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ENTENDENDO A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE EMIGRANTES RETORNADOS

Joseph, Tiffany D.. (2015). Race on the move: Brazilian migrants and the global reconstruction of race. New York: Stone Brook University.

Em 2016, a PNAD publicou dados acerca do crescimento populacional no Brasil. Naquele ano, a pesquisa revelou que não apenas a população brasileira ultrapassara a marca dos 200 milhões de habitantes, como também o número de pardos e pretos havia crescido (de 45,3% para 46,7% e de 7,4% para 8,2%, respectivamente). A população branca, por outro lado, havia decrescido numericamente de 46,6% para 44,2%. Explicações para tais percentuais normalmente encontram respaldo no aumento da fecundidade entre pessoas negras e no reconhecimento da negritude como fator de orgulho (Silveira, 2017Silveira, Daniel. (2017). População que se declara preta cresce 14,9% no Brasil em 4 anos, aponta IBGE. G1. Disponível em <https://g1.globo.com/economia/noticia/populacao-que-se-declara-preta-cresce-149-no-brasil--em-4-anos-aponta-ibge.ghtml>. Acessado em 7/4/2018.
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) quanto a questões sobre a "tendência da miscigenação..." (Saraiva, 2017Saraiva, Adriana. (2017). População chega a 205,5 milhões, com menos brancos e mais pardos e pretos. Agência IBGE Notícia. Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-pnad-c-moradores.html>. Acessado em 7/4/2018.
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). Seriam, porém, apenas esses os fatores que influíram na mudança na autodeclaração racial dos brasileiros? Que outros fatores poderiam também estar contribuindo para essa tendência do aumento da população negra e parda no Brasil? Será que o aumento da migração de brasileiros para os Estados Unidos nas últimas três décadas e os processos transnacionais entre os dois países teriam alguma participação nessas alterações populacionais no Brasil? Essas perguntas, ainda que sem resposta definitiva, são abordadas no livro publicado nos Estados Unidos pela socióloga Tiffany Joseph.

Race on the move: Brazilian migrants and the global reconstruction of race é um excelente e necessário estudo comparativo entre Estados Unidos e Brasil sobre formações raciais transnacionais, a partir de uma análise de emigrantes que retornaram ao Brasil e não migrantes. A análise feita pela socióloga baseia-se em 11 meses - entre 2007 e 2008 - de pesquisa de campo etnográfica, na cidade de Governador Valadares (GV), bem como em 73 entrevistas realizadas com emigrantes, dos quais 49 eram emigrantes retornados e 24 possuíam familiares que nunca migraram.

Em seis capítulos, Race on the move não apenas levanta uma importante questão sobre o impacto da justaposição de diferentes ideologias raciais (democracia racial versus pureza racial) na vida do emigrante brasileiro "latinizado" nos Estados Unidos, mas também o resultado de tais experiências no Brasil, seja por comunicação com familiares não migrantes, seja a partir do retorno. Tal circuito transnacional tem um efeito poderoso na forma como os emigrantes brasileiros passam a se enxergar (como também a outros compatriotas) a partir de suas experiências como "imigrantes indocumentados de cor..." (p. 2) em terras estrangeiras. Para realizar esse estudo, Tiffany escolheu a cidade de Governador Valadares (GV), situada no sudeste de Minas Gerais e que, além de ser a cidade brasileira com o maior número de migrantes, é também a que possui a mais longa história de migração para os Estados Unidos de todo o Brasil. Enquanto a migração brasileira para os Estados Unidos só passou a ser percebida em meados dos anos 1980, ganhando mais número e expressão nas duas décadas seguintes, GV já havia enviado os primeiros emigrantes desde a década de 1960. A relação entre o desenvolvimento da cidade e as remessas financeiras enviadas pela população migrante é tão significativa, que GV ficou conhecida, popularmente, como "a cidade que o Tio Sam construiu".

Tiffany apresenta um sofisticado conceito denominado "perspectiva racial transnacional," baseado em outros, como "perspectiva transnacional", desenvolvido por Peggy Levitt e Nadya Jaworsky (2007)Levitt, Peggy & Jaworsky, B. Nadya. (2007). Transnational migration studies: past developments and future trends. Annual Review of Sociology, 33, p. 129-156. e "esquema racial", de Wendy Roth (2012)Roth, Wendy D. (2012). Race migrations: Latinos and the cultural transformation of race. Stanford, CA: Stanford University Press.. A diferença básica entre os conceitos anteriores e o desenvolvido por Tiffany se mostra no fato de como a socialização pré-migratória somada à mudança da posição na hierarquia racial entre os emigrantes de pele clara afeta/altera o entendimento racial do emigrante (tanto na sociedade que o recebe quanto naquela que o envia). Essa chave teórico-metodológica que prioriza formações raciais pré e pós-experiência migratória revelou-se frutífera para entender como o processo migratório em si pode, como Tiffany enfatiza, "mudar pessoas e países" (p. 155).

Após apresentar o local em que a pesquisa foi realizada e a perspectiva teórica do estudo, Tiffany divide os próximos quatro capítulos (do 2 ao 5) de acordo com as negociações raciais feitas dentro do movimento migratório circular, entre a partida para os Estados Unidos, o período de adaptação e o subsequentemente retorno ao Brasil. O capítulo 6 explora as "consequências sociais" e as atitudes raciais que a experiência migratória gera na vida pessoal (micro) como também social do emigrante retornado. O livro se conclui mostrando como as relações raciais entre o Brasil e os Estados Unidos estão convergindo e a importância da perspectiva racial transnacional como chave interpretativa para entendermos as formações raciais em diferentes contextos.

A exposição do emigrante brasileiro a uma sociedade com esquema racial fixo, prioritariamente binário e com base na ancestralidade, aliada a sua experiência de racialização, proporciona aos emigrantes brasileiros perspectiva racial diferente daquela à qual estão acostumados no contexto brasileiro. No contexto estadunidense, a rigidez dos esquemas e categorias raciais cria uma certa confusão inicial na cabeça dos brasileiros. Muitos (especialmente os que eram percebidos como brancos no Brasil) passam a ser percebidos como não brancos por parte dos americanos. Tal racialização leva muitos brasileiros a se autoperceber racialmente diferentes de como se viam no Brasil. É esse processo de negociação e renegociação de categorias raciais distintas em contextos distintos que está no centro do argumento proposto por Tiffany. Assim, ela afirma que a migração transnacional de certa forma expande (ainda que não de forma permanente) os esquemas raciais anteriores para absorver e acomodar esquemas raciais locais. Esse processo cognitivo, contudo, varia de acordo com a autoclassificação racial anterior do emigrante. Emigrantes que se autoclassificavam como brancos antes da migração, normalmente percebem-se não tão "brancos"; ao mesmo tempo em que emigrantes negros já esperavam ser tratados e vistos como negros ou afro-americanos pela população dos Estados Unidos.

Importante, nessa análise, é a forma como o brasileiro se percebe em relação a outros imigrantes da América Latina. Nesse ponto, Tiffany apresenta os brasileiros como detentores de um exclusivismo - superioridade? - sociocultural em relação às demais culturas latino-americanas. Duas dinâmicas se mostram aparentes na análise de Tiffany. A primeira, em relação à economia e à importância do Brasil na região. Tal dinâmica se mostrou ainda mais evidente diante do momento de crescimento econômico por que o Brasil passava durante a pesquisa. A segunda dinâmica, contudo, está mais arraigada na realidade vivida por brasileiros nos Estados Unidos. Pesquisas anteriores realizadas por brasileiros e americanos (Marrow, 2003Marrow, Helen. (2003). To be or not to be (Hispanic or Latino): Brazilian racial and ethnic identity in the United States. Ethinicities, 3/4, p. 427-464.; Beserra, 2005Beserra, Bernadete. (2005). Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos. Fortaleza/São Paulo/Santa Cruz: UFC/Unisc/Hucitec.) já apontavam para um distanciamento do brasileiro em relação a outros grupos da América Latina como uma forma de "proteção", ou seja, como "um dispositivo psicológico usado para debilitar o processo de racialização" (McDonnell & Lourenço, 2009McDonnell, Judith & Lourenço, Cileine de. (2009). You’re Brazilian, right? What kind of Brazilian are you? The racialization of Brazilian immigrant women. Ethnic and Racial Studies, 32/2, p. 239-256.: 254). Além de ser invisível ao cidadão estadunidense médio, o brasileiro percebe a categoria "hispânico" como tendo conotação estereotipada negativa associada a imigrantes indocumentados. Poder dissociar-se dessa categoria, portanto, é visto não só como estratégia de distinção, mas também, de acordo com Tiffany, como "o reflexo do uso da perspectiva racial transnacional" (p. 51) dos emigrantes brasileiros. Em outras palavras, ao enfatizar a identidade brasileira (acima da racial), os brasileiros são capazes de justapor o privilégio de "ser brasileiro" em relação à posição marginal da categoria hispânico, nos Estados Unidos, para se colocar acima dela.

Após centrar sua análise nas dinâmicas e nos processos cognitivos raciais pelos quais o emigrante brasileiro vive nos Estados Unidos, Tiffany volta-se para os efeitos de tais processos nas interações sociais em solo brasileiro. No Brasil, a percepção racial adquirida no exterior (principalmente em ver categorias raciais em termos binários) segue muitos dos emigrantes retornados. Tal constatação pode ser percebida após Tiffany comparar as respostas dos retornados com os que nunca migraram. Por exemplo, a categoria "preto/negro" cresceu 10% em relação aos que nunca migraram, enquanto a categoria "pardo" diminuiu 9%. Outra importante mudança entre os emigrantes retornados se deu na forma como muitos passaram a perceber a desigualdade racial no Brasil. Tiffany argumenta que a "migração reconfigurou a compreensão dos retornados da hierarquia étnico-racial brasileira, que moldou suas percepções sobre a desigualdade racial após o retorno" (p. 105).

É certo dizer que, para Tiffany, a perspectiva racial transnacional teve um impacto na vida dos retornados, como também dos não migrantes, ainda que no nível individual. O impacto racial no nível social, contudo, foi menos sentido. Uma das razões para tanto, segundo Tiffany, seria a força da ideologia racial brasileira - democracia racial - e a forma como os brasileiros percebem o racismo por meio de expressões e comportamentos que servem de impedimento para uma percepção mais ampla das disparidades raciais em GV.

Race on the move... mantém a tradição, dentro da academia americana, de comparar as relações e ideologias raciais entre o Brasil e os Estados Unidos (Marx, 1996Marx, Anthony W. (1996). Race-making and the nation-State. World Politics, 48/2, p. 180-208.; Andrews, 1996Andrews, George Reid. (1996). Brazilian racial democracy, 1900-90: an American counterpoint. Journal of Contemporary History, 31/3, p. 483-507.). Pesquisas realizadas nos Estados Unidos têm revelado que a divisão entre brancos e negros vem perdendo parte de sua força, gradativamente substituída por uma proposta de divisão de estratificação trirracial. Isso é o que os estudiosos têm chamado de "latinamericanização" das relações raciais nos Estados Unidos (Bonilla-Silva, 2002Bonilla-Silva, Eduardo. (2002). We are all Americans!: the Latin americanization of racial stratification in the USA. Race & Society, 5, p. 3-16.; Bonilla-Silva e Embrick, 2006Bonilla-Silva, Eduardo & David G. Embrick. (2006). Black, honorary white, white: the future of race in the United States? In: Brunsma, D. L. (ed.) Mixed messages: multiracial identities in the 'color-blind'era. Boulder: Lynne Rienner Publishers, p. 33-48.). Essa convergência em termos de raça e multirracialidade entre Brasil e Estados Unidos (Daniel, 2006Daniel, G. Reginald. (2006). Race and multiraciality in Brazil and the United States: converging paths? University Park: Pennsylvania State University Press.) permite que estudiosos como Tiffany possam investigar a experiência brasileira nos Estados Unidos, bem como seus laços transnacionais com o Brasil. Tais pesquisas buscam não só avançar teórica e conceitualmente o campo da migração de raça e etnia, como também entender a relação (se é que ela existe) entre migração transnacional e mudanças demográficas raciais no Brasil. Apesar da sofisticação conceitual, às vezes Race on the move... parece exceder-se na ideia de "perspectiva racial transnacional". O uso constante do conceito implica algumas vezes a simplificação da análise. Não reconhecer outras forças influenciando as decisões dos emigrantes retornados, contudo, não retira a importância desse livro para o entendimento de como a formação racial é fluida, contextual e transnacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Andrews, George Reid. (1996). Brazilian racial democracy, 1900-90: an American counterpoint. Journal of Contemporary History, 31/3, p. 483-507.
  • Beserra, Bernadete. (2005). Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos Fortaleza/São Paulo/Santa Cruz: UFC/Unisc/Hucitec.
  • Bonilla-Silva, Eduardo. (2002). We are all Americans!: the Latin americanization of racial stratification in the USA. Race & Society, 5, p. 3-16.
  • Bonilla-Silva, Eduardo & David G. Embrick. (2006). Black, honorary white, white: the future of race in the United States? In: Brunsma, D. L. (ed.) Mixed messages: multiracial identities in the 'color-blind'era Boulder: Lynne Rienner Publishers, p. 33-48.
  • Daniel, G. Reginald. (2006). Race and multiraciality in Brazil and the United States: converging paths? University Park: Pennsylvania State University Press.
  • Levitt, Peggy & Jaworsky, B. Nadya. (2007). Transnational migration studies: past developments and future trends. Annual Review of Sociology, 33, p. 129-156.
  • Marrow, Helen. (2003). To be or not to be (Hispanic or Latino): Brazilian racial and ethnic identity in the United States. Ethinicities, 3/4, p. 427-464.
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  • Roth, Wendy D. (2012). Race migrations: Latinos and the cultural transformation of race Stanford, CA: Stanford University Press.
  • Saraiva, Adriana. (2017). População chega a 205,5 milhões, com menos brancos e mais pardos e pretos. Agência IBGE Notícia. Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-pnad-c-moradores.html>. Acessado em 7/4/2018.
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  • Silveira, Daniel. (2017). População que se declara preta cresce 14,9% no Brasil em 4 anos, aponta IBGE. G1. Disponível em <https://g1.globo.com/economia/noticia/populacao-que-se-declara-preta-cresce-149-no-brasil--em-4-anos-aponta-ibge.ghtml>. Acessado em 7/4/2018.
    » https://g1.globo.com/economia/noticia/populacao-que-se-declara-preta-cresce-149-no-brasil-em-4-anos-aponta-ibge.ghtml

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2018
  • Aceito
    05 Jul 2018
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