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MODA E ARTE: MUNDOS DA CULTURA EM CONSTANTE PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO

Ensaios sobre moda, arte e globalização cultura. Crane, Diana. (organizadora: Bueno, Maria Lucia. ). São Paulo: Ed. Senac, 2011, 272p.

Se ainda existe a crença de que na Sociologia alguns campos de pesquisa são mais relevantes que outros, Diana Crane mostra, em Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural, livro recém-publicado no Brasil, que a moda e a arte não são apenas temas de interesse para especialistas na área, mas que sua investigação contribui de forma inovadora para a compreensão das dinâmicas da vida social contemporânea. Para a autora, a produção de bens culturais é um processo que ocorre dentro de sistemas sociais, os quais sofreram grandes mudanças ao longo das últimas décadas e, certamente, vão continuar a mudar no futuro, em resposta às novas dinâmicas que se apresentam na experiência social. Diana Crane analisa os novos contextos e as novas orientações da produção da moda e da arte, utilizando-se de ferramentas conceituais mais adequadas à realidade atual e, com base em suas pesquisas, especula sobre o futuro dessas produções culturais.

A socióloga considera que moda e arte são formas de cultura material criadas em mundos de cultura, termo um pouco mais abrangente que o de mundos da arte de Howard Becker (1982Becker, Howard. Art worlds. Berkeley: University of California Press, 1982.), mas por ele influenciado. Esta percepção perpassa os dez artigos apresentados no livro, organizado por Maria Lucia Bueno, e separados em quatro partes. Na primeira delas, intitulada “Cultura popular, moda e significado”, a autora afirma que classificar a cultura em alta cultura e cultura popular é uma prática obsoleta, pois recorre a conceitos ultrapassados de estrutura social e parte do princípio de que é possível separar inequivocamente os itens culturais nestas duas categorias. Para Crane, alta cultura e cultura popular não passam de tipos ideais. Atualmente a cultura é pluralista e apenas dentro de um sistema estético específico é possível avaliar a qualidade de um objeto cultural. Não se pode mais, portanto, fazer um julgamento de valor e qualidade entre elas. Crane propõe uma nova classificação dos bens culturais que leve em conta os ambientes e contextos em que produções culturais são criadas, produzidas e disseminadas. Define então os termos cultura midiática e cultura urbana, que são produzidas respectivamente nos contextos das indústrias culturais nacionais e dos ambientes urbanos. Os conteúdos de ambas são diversificados, mas podem influenciar um ao outro (e, com efeito, usam elementos um do outro); o que difere são os contextos de disseminação e produção. A cultura urbana, além de integrar o que se definia como alta cultura - mais clássica e tradicional - integra também formas de cultura criadas por grupos dentro da classe trabalhadora. A cultura midiática, por sua vez, também se diversifica, dirigindo-se tanto para o público de massa quanto para públicos especializados.

Contudo, Crane demonstra, ainda nesta primeira parte, a dificuldade em separar diversos tipos de cultura ao analisar a inovação estilística na moda de luxo de 1950 até a década de 1990. As mudanças na relação dos consumidores com a moda, antes calcada na identidade de classe social, passou a orientar-se pela identidade individual moldada por grupos sociais; além disso, as mudanças no ambiente organizacional da criação e da distribuição de artigos de moda, tornando-os cada vez mais competitivos, repercutiu decisivamente na produção da moda. Inicialmente, os estilistas eram mais modernistas, segundo Crane, recriando seus modelos com base nos modelos de anos anteriores. A partir de 1960, entretanto, adotaram um perfil vanguardista, transgredindo regras e convenções da alta-costura. Em 1990, o pós-modernismo, com seus pastiches, paródias e redefinição contínua das imagens dominou o design de moda de luxo. Com um mercado cada vez mais globalizado, competitivo e com consumidores ávidos por variedade para construir sua própria identidade por meio da moda, a vanguarda e o pós-modernismo foram capazes de responder com muita variedade, mas sem uma mensagem coerente ou uma mudança evolucionária.

Na segunda parte, “Moda e arte: sistemas de recompensa e produção de cultura”, a autora propõe o estudo tanto da moda quanto da arte, fazendo uso de tipos de sistemas de recompensas, ou seja, do grau de controle que os inovadores têm de definir as regras cognitivas e técnicas de sua produção cultural e, também, de distribuir as recompensas simbólicas e materiais dentro desse sistema. Crane enumera quatro sistemas: 1) os de recompensas independentes, quando os inovadores controlam tanto as regras cognitivas quanto a distribuição de recompensas materiais e simbólicas - e a inovação é produzida para um público de inovadores do mesmo tipo; 2) sistemas de recompensas semi-independentes, quando se tem controle de todos os aspectos, menos o das recompensas materiais, que são distribuídas por consumidores, burocratas ou empreendedores; 3) sistemas de recompensa subculturais, em que as inovações são produzidas para um grupo que representa uma cultura específica - étnica, geracional etc. - sendo este grupo aquele que distribui as recompensas simbólicas e materiais; e, finalmente, 4) sistemas de recompensas heteroculturais, nos quais os inovadores não têm controle de nenhum aspecto do sistema, pois empreendedores e burocratas definem as regras para a inovação e distribuem as recompensas materiais e os consumidores distribuem as recompensas simbólicas. De acordo com as mudanças no controle sobre os recursos de produção, distribuição e exibição de inovações e das possibilidades de formação de comunidades de inovadores, os sistemas de recompensa dos mundos da cultura podem mudar.

Mediante a análise do funcionamento do mercado global da arte, Diana Crane mostra que entre as décadas de 1940 e 1950 havia um sistema de recompensas independente, totalmente controlado pelos inovadores e no qual as recompensas simbólicas eram mais importantes que as materiais. No final do século XX, com a globalização do mercado de arte contemporânea e a intensificação das feiras e bienais internacionais, além dos leilões, a distribuição de recompensas materiais e simbólicas concentrou-se nas mãos de pequeno grupo de colecionadores muito ricos, europeus e norte-americanos, que associados aos marchands, são responsáveis pelo financiamento da inovação. Tal concentração impossibilitou a formação de uma comunidade de inovadores e impediu a predominância de um estilo. Paralelamente, segundo a análise minuciosa que a autora faz do mercado global da moda de luxo, se os primeiros costureiros puderam abrir seus negócios a um custo razoável e controlar as regras de inovação, esperando recompensas materiais e simbólicas dos consumidores, hoje em dia este mercado é dominado por conglomerados que contratam estilistas, pagando-lhes um salário e limitando sua inovação, porque a moda de luxo não é mais para estas empresas a principal fonte de renda, mas, sim, os produtos licenciados, acessórios e perfumes. Assim, os consumidores e a mídia é que distribuem as recompensas simbólicas enquanto os conglomerados financiam, limitam a inovação - para não correr riscos, uma vez que os investimentos e as chances de prejuízos são grandes e não raro, acontecem - e distribuem recompensas materiais. Empresas de pequeno porte que sobrevivem neste mercado costumam ser vistas como fontes de inovação; contudo, nem sempre o são, pois não podem arcar com os riscos perante a feroz concorrência dos conglomerados.

Na terceira parte, “Difusão e inovação”, Crane retoma uma das discussões da primeira parte, que concerne à mudança de expectativa dos consumidores da moda, cujo desejo, agora, é abandonar o hábito de vestir-se segundo as convenções de classe e escolher uma vestimenta que dê vazão à expressão individual. Para tanto, a autora põe em debate o modelo de disseminação da moda, elaborado por Georg Simmel no início do século XX, que definia a moda como resultado do interesse das elites em diferenciar-se das outras classes, reafirmando seu status, e do desejo das classes subalternas em adquirir status usando os estilos do grupo de elite. Na realidade, porém, quando as classes baixas ou trabalhadoras adotavam o estilo da classe alta, esta já havia substituído o estilo antigo por um novo, recomeçando o ciclo, que se repetia. Dessa maneira podia-se identificar facilmente, conforme a adequação às regras da moda, a posição social das mulheres - as que mais consomem moda - ou a posição à qual aspiravam. A adequação às regras da moda era fundamental para definir a classe social da mulher e, através dela, sua identidade.

Se a moda pôde ser compreendida através desse modelo até meados do século XX, a partir de 1960 os consumidores buscam construir sua personalidade individual, deixando-se influenciar por grupos sociais e não mais pelas classes sociais. A alta-costura e o prêt-à-porter respondem à demanda de consumo de apenas uma parte da elite, que também está fragmentada. Outros grupos podem fazer e influenciar a moda, como os jovens, os trabalhadores, subculturas como os punks, e até grupos de diversos países. A indústria cultural e a mídia também oferecem repertório para a moda e participam de seu mundo. A moda não pode mais ser explicada pela simples difusão de cima para baixo, como Simmel descrevia, e nem mesmo apenas de baixo para cima; além dos estilistas e da elite, outros atores estão em jogo. Traçar empiricamente a difusão das inovações é muito difícil, já que o caminho que percorrem pode ser mais curto de um grupo para outro, e uma moda pode alcançar certos segmentos da população sem provocar o interesse de outros segmentos.

A autora aponta uma diferença cu-riosa em relação ao controle da inovação no mercado da moda entre homens e mulheres que participam deste mercado: Diana Crane mostra que as mulheres consideradas, dentro deste mundo, como as mais inovadoras, são as que chegam ao mundo da moda como outsiders; ao contrário, no caso dos homens, que conformam a maioria no mundo da moda, são considerados os mais inovadores aqueles já estabelecidos desde muito tempo.

Ainda na terceira parte do livro, Diana Crane pergunta se existe um processo de artificação (termo criado por ela) da moda, que se define pelo reconhecimento desta, especificamente da alta costura e do prêt-à-porter como um tipo de arte, uma forma de cultura material produtora de significados. Assim como no mundo da arte, o mundo da moda tem suas vanguardas que se deixam influenciar por objetos artísticos; há performances artísticas durante os desfiles, museus de moda e roupas sendo vendidas em leilões. Contudo, o caráter comercial da moda - ainda que minimizado em algumas lojas -, seu valor de uso e fabricação em série não permitem que ela seja considerada arte pela autora.

Finalmente, na quarta parte do livro, “O futuro da moda e do consumo”, Crane reafirma que a difusão da inovação na moda não é mais a mesma, já que o termo “moda” vem sendo substituído por “tendência”, e que as inovações não são mais impostas por estilistas, mas localizadas por caçadores de tendências, pelos próprios estilistas e outros atores envolvidos no mundo da moda. Lembra que nas feiras internacionais de moda certas tendências localizadas são escolhidas em detrimento de outras para serem trabalhadas e divulgadas nas próximas coleções. O mercado de fast fashion precisa cada vez mais de novas tendências para corresponder à demanda principalmente de um público jovem, ávido por consumir e por refletir sua identidade no consumo. Por outro lado, na mesma parte do livro afirma que o consumo ético e político da moda, muito valorizado hoje em dia, ainda é controverso: se muitas pessoas reconhecem a importância do consumo verde (que respeita o meio ambiente), do consumo de comércio justo (que privilegia países em desenvolvimento que garantem trabalho e vida digna aos seus produtores) e do consumo ético (que respeita pessoas e animais), poucas são as que realmente se propõem a utilizar os critérios éticos e políticos no consumo da moda. Isto porque o engajamento individual é mais difícil: fazer parte de um grupo no qual os valores ambientais estejam associados a uma identidade verde, que não deixa de ser uma identidade de grupo. Além disto, os custos financeiros e de tomada de decisão (exemplo: quais produtos escolher, como garantir a reciclagem do lixo etc.) são maiores se feitos individualmente. Campanhas de boicote a certos produtos ou empresas são mais eficientes neste sentido.

Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural analisa a moda e a arte enquanto formas de cultura material, que produzem e transmitem significados culturais. Para isso, Diana Crane utiliza ferramentas conceituais como mundos da cultura, contexto organizacional, sistemas de recompensa, conceitos de pós-modernidade e vanguarda, que definem os processos de mudança pelos quais a sociedade, e por consequência, a arte e a moda têm passado ao longo do tempo. Sua análise evidencia que o mundo da moda associa novos contextos de produção e inovação, além de novos valores e interesses sociais, a culturas materiais, realimentado o consumo da moda.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Becker, Howard. Art worlds Berkeley: University of California Press, 1982.
  • Crane, Diana. Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural Organizadora: Maria Lucia Bueno. São Paulo: Ed. Senac, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2012

Histórico

  • Recebido
    Jul 2012
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