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PENSAR A VIDA EM SUA MULTIPLICIDADE

Simmel, Georg. . (2020). Cultura filosófica. Apresentação de Waizbort, Leopoldo. . Tradução de Bárbara, Lenin Bicudo. . São Paulo: Editora 34, 335 p.

I

Em Cultura Filosófica, livro que, recentemente, chegou ao público brasileiro, Georg Simmel (2020)Simmel, Georg. (2020). Cultura filosófica. Apresentação de Leopoldo Waizbort. Tradução de Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Editora 34, 335 p. propõe uma mudança radical do modo de pensar as coisas do mundo e da vida. Recomenda que a filosofia se despregue de seus dogmas e se volte para o cotidiano, os objetos simples que nos cercam, os acontecimentos prosaicos da vida, e, ainda, para questões como a personalidade de artistas ou de Deus - temas que provocam interesse e aguçam a curiosidade. O que importa para Simmel é apreender como o pensamento se move para conhecer os objetos de sua atenção em direções múltiplas, escavando um detalhe aqui, chegando a uma profundeza maior ali, mas evitando sempre a presunção de encerrá-los em um círculo fechado.

Os ensaios reunidos pelo autor em Cultura Filosófica, publicados na Alemanha em 1911 - aliás, única coletânea que Simmel nos deixou em vida -, foram divididos em seis assuntos: psicologia filosófica, filosofia dos sexos, estética, personalidades estéticas, filosofia da religião e filosofia da cultura. O leitor tem aí, finalmente disponível em português, o contexto original de ensaios que porventura leu de forma dispersa em outros livros, elaborados com outros propósitos e unidades de sentido. A leitura do índice, entretanto, o deixa sequioso por saber como foi possível a Simmel juntar em um só livro a aventura com a asa do jarro, a cultura feminina com a moda, a personalidade de Deus com Rodin, a ruína com a coqueteria.

O autor oferece uma resposta a essa inquietação na “Introdução”, onde afirma que os diferentes assuntos publicados na coletânea estão interligados por um modo de pensar. O que lhes confere unidade é o processo do pensamento em sua mobilidade e plasticidade, e não os conteúdos ou resultados que, embora relevantes, podem sempre ser contestados. Para Simmel, somente a distinção entre a maneira de agir do pensamento e seus resultados permite questionar os domínios do conhecimento que ficaram fora do alcance da filosofia, seja porque a disciplina ignora assuntos pouco notáveis da existência, seja porque o conhecimento filosófico realiza-se “apenas relativamente a um princípio absoluto”.

Simmel admite que sua proposição não é de fácil aceitação, mas insiste na quebra da rigidez do pensamento habitual da filosofia a fim de que se constitua a base de uma cultura filosófica, de modo abrangente e moderno, segundo suas próprias palavras. Percebe-se aí o rompimento definitivo do autor com princípios tradicionais da filosofia, o qual demarca o caminho metodológico por ele seguido em sua obra. Simmel não abandona a filosofia, mas ao redefini-la, ilumina o programa de sua sociologia, e sobretudo a sua provocadora reflexão sobre a modernidade. Ao publicar Cultura Filosófica, Simmel já havia escrito grande parte de sua obra, livros e numerosos artigos; não era um estreante, e sabia muito bem o que desejava esclarecer.

II

Foram necessários cerca de 70 anos para que a coletânea organizada por Simmel viesse novamente à luz para o público alemão e se juntasse a outras reedições de sua obra, nas décadas de 1970 e 1980. Não se pode esquecer que as obras de Simmel foram reeditadas em um contexto intelectual marcado pela concorrência entre aportes teóricos tão diversos, como o de Jürgen Habermas, com a teoria da comunicação, e Niklas Luhmann, com a teoria dos sistemas, que vinham a público juntamente com a “redescoberta” da sociologia, de Max Weber e Norbert Elias, e os debates de integrantes da Escola de Frankfurt.

Muito embora não se possa aqui recompô-lo, a lembrança desse quadro intelectual da sociologia alemã sugere o lugar peculiar que Simmel nele ocupa. Diferentemente dos sociólogos, vivos ou mortos, postos em foco naquelas décadas - alguns a tensionar os limites entre a sociologia e o direito, outros a questionar as fronteiras entre a sociologia e a filosofia, uns mais afeitos à empiria, outros menos, mas todos ocupados com o tema da modernidade - o pensamento de Simmel (2020Simmel, Georg. (2020). Cultura filosófica. Apresentação de Leopoldo Waizbort. Tradução de Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Editora 34, 335 p.:19) se distingue porque adquire forma e se apresenta “não por meio de uma ideia principal mas, no lugar disso, por meio de um mosaico […]”. E somente esse mosaico, constituído de fragmentos de ideias, seria capaz de alcançar o conhecimento da vida em contraposição ao conhecimento dogmático.

Não se deve pensar, contudo, que as características caleidoscópicas do pensamento de Simmel o impeçam de modelar os seus ensaios a partir de pares de relações próprias do “espírito”, como afirma o autor de Cultura Filosófica: “Eu e o mundo, sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, permanência e movimento, material e forma, e muitos outros” (Simmel, 2020Simmel, Georg. (2020). Cultura filosófica. Apresentação de Leopoldo Waizbort. Tradução de Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Editora 34, 335 p.: 79). Os termos de cada um desses pares se contrapõem num jogo de distanciamentos e proximidades, com tensões, conflitos, contradições, mas, também, de unificações e reconciliações, em movimento permanente. Em trecho do ensaio “A Moda”, Simmel (2020Simmel, Georg. (2020). Cultura filosófica. Apresentação de Leopoldo Waizbort. Tradução de Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Editora 34, 335 p.: 44) adverte que “cada forma essencial da vida ao longo da história de nossa espécie, representa em seu respectivo domínio um modo particular de unificar o interesse na duração, na unidade e na igualdade com o interesse na mudança, no particular, na singularidade”.

Ainda neste mesmo ensaio, Simmel observa que a vida em sociedade requer a imitação de um padrão, um modo de conduta que atenda à dependência social, assim como requer a distinção, almejada por indivíduos e grupos, afirmando que essas duas forças em contraposição levam ao universal e ao singular do fenômeno da moda. É justamente na apreciação do movimento contínuo dessas duas tendências que reside a possibilidade de conhecimento do que seja a moda. O leitor se dá conta, entretanto, de que Simmel não se satisfaz com a mera definição das noções de imitação e distinção; ele também mostra como elas se conformam em múltiplas facetas da vida social, em grupos, classes sociais, homens, mulheres, no profundo ser de um indivíduo, podendo a moda aprisionar ou emancipar, esconder ou exibir, intensificar ou diluir.

Uma outra tensão própria da vida social é provocada pelas forças contrapostas da interioridade do indivíduo e da exterioridade que o cerca. Ela percorre diversos capítulos de Cultura Filosófica, como “A Moda”, “O Relativo e o absoluto no problema dos sexos”, “A Coqueteria”, “Rodin”. Em Simmel, o conhecimento das relações entre indivíduo e sociedade não se reduz à escolha de uma dessas categorias como se houvesse ascendência de uma sobre a outra, tal como ocorre com frequência em pesquisas e proposições teóricas no campo das ciências sociais. O que existe é um diálogo contínuo de dentro para fora e de fora para dentro, a ganhar mais ou menos força ora a subjetividade, ora a objetividade, dependendo de condições e circunstâncias.

Finalmente, outro aspecto que distingue o pensamento do autor diz respeito a uma concepção de temporalidade, notável exemplarmente no ensaio sobre “A Coqueteria”, que abarca a efemeridade e a transitoriedade de acontecimentos da vida social. Longe de os vincular a um processo histórico, e menos ainda a alguma promessa utópica ou fim teleológico, Simmel os enlaça na leveza do aqui e agora. Em alguns casos, o autor compara acontecimentos do presente com acontecimentos do passado, figuras do presente com figuras do passado, sem deixar que seu pensamento circunscreva o exame de um objeto a um único momento anterior. Antes, Simmel o presentifica no fluxo da vida.

Embora seja difícil destacar um dos quatorze ensaios da coletânea, “O Conceito e tragédia da cultura” se diferencia dos demais não só pelo seu escopo alargado, mas, sobretudo, pela antecipação de uma crítica à cultura, que viria a se instalar cada vez com mais força no pensamento alemão, se lembrarmos da querela entre cultura versus civilização desde Freud (2010)Freud, Sigmund. (2010). O mal-estar na civilização. In: Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização: novas conferências introdutórias e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. a Elias (1977)Elias, Norbert. (1977). Über den Prozeß der Zivilisation: Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2 v. e Adorno (Horkheimer & Adorno, 1989Horkheimer, Max & Adorno, Theodor W. (1989). Dialektik der Aufklaerung: philosophische fragmente. Leipzig: Reclam.). Há nele a declaração de um juízo - já no título - sobre a situação da cultura moderna. O desgarramento da cultura objetiva da cultura subjetiva, a enormidade da produção cultural, que não mais reverte para a formação dos indivíduos, e o modo alienado e acelerado de produção da cultura possibilitaram, na modernidade, a circulação de objetos que, embora não inteiramente desprovidos de sentido, não possuem um sentido pleno. Paradoxalmente, esses objetos se tornaram indispensáveis aos indivíduos, que não conseguem mais deles se desprender.

III

Ao escrever sobre Cultura Filosófica, Habermas (1986)Habermas, Jürgen. (1986). Simmel als Zeitdiagnostiker. In: Simmel, Georg. Philosophische Kultur: Über das Abenteuer, die Geschlechter und die Krise der Moderne: Gesammelte Essais. Berlin: Klaus Wagenbach, p 7-17. recorre a Adorno para mostrar que a forma ensaística adotada por Simmel encerra um perigo. Realçando as vantagens e desvantagens do ensaio, Adorno (apud Habermas, 1986Habermas, Jürgen. (1986). Simmel als Zeitdiagnostiker. In: Simmel, Georg. Philosophische Kultur: Über das Abenteuer, die Geschlechter und die Krise der Moderne: Gesammelte Essais. Berlin: Klaus Wagenbach, p 7-17.: 9, tradução nossa) adverte que a adesão ao caráter aberto do ensaio e a desvinculação da coerção do método têm um risco: “Por sua afinidade com a experiência espiritual aberta, o espírito deve pagar com a falta de segurança, que a norma do pensamento estabelecido teme como à morte”. Seria essa advertência válida para a proposta metodológica que Simmel faz?

Cultura Filosófica evidencia como os esquemas rígidos de pensar e pesquisar, tão comuns na contemporaneidade, estreitam a capacidade reflexiva aos limites de um trilho. O estudioso que realmente quer rever e questionar os problemas resultantes da mera aplicação de conceitos e ideias aos objetos vivos e múltiplos de seu conhecimento vai tirar proveito dos ensinamentos de Simmel em Cultura Filosófica. Assim também aqueles interessados em se aventurar por temas que não se inscrevem em uma agenda de assuntos com a pretensão exclusiva de validade. Mas a tarefa exige uma autonomia intelectual nem sempre reconhecida ou recompensada.

Ao final da “Introdução”, Simmel conta a história de um camponês que, no leito de morte, disse aos filhos que havia enterrado um tesouro na sua propriedade. Os filhos escavaram o terreno de cima a baixo, sem encontrá-lo. No ano seguinte, entretanto, a terra trabalhada rendeu uma colheita três vezes maior que as anteriores. Não há, possivelmente, parábola que melhor esclareça o caminho seguido por Simmel no seu livro Cultura Filosófica.

REFERÊNCIAS

  • Elias, Norbert. (1977). Über den Prozeß der Zivilisation: Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2 v.
  • Freud, Sigmund. (2010). O mal-estar na civilização. In: Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização: novas conferências introdutórias e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Habermas, Jürgen. (1986). Simmel als Zeitdiagnostiker. In: Simmel, Georg. Philosophische Kultur: Über das Abenteuer, die Geschlechter und die Krise der Moderne: Gesammelte Essais. Berlin: Klaus Wagenbach, p 7-17.
  • Horkheimer, Max & Adorno, Theodor W. (1989). Dialektik der Aufklaerung: philosophische fragmente. Leipzig: Reclam.
  • Simmel, Georg. (2020). Cultura filosófica. Apresentação de Leopoldo Waizbort. Tradução de Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Editora 34, 335 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2021
  • Aceito
    15 Mar 2022
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