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A transdisciplinaridade como crítica e resposta ao paradigma simplificado da ciência moderna

EDITORIAL ESPECIAL

A transdisciplinaridade como crítica e resposta ao paradigma simplificado da ciência moderna

Augusta Thereza de Alvarenga

Professora Doutora da Faculdade de Saúde Pública da USP e uma das editoras da Saúde e Sociedade desde 1992, data de sua criação

O interesse em trazer a transdisciplinaridade como tema de discussão para este espaço da Saúde e Sociedade decorre da importância crescente que a mesma vem assumindo como parte do amplo movimento de crítica que se trava, na atualidade, ao paradigma hegemônico que preside a ciência moderna. Por outro lado, pelas possibilidades que a mesma representa como resposta aos limites desse paradigma que se caracteriza pela simplificação, redução e fragmentação da realidade.

Tradicionalmente considerado como um campo multi e interdisciplinar, a Saúde, sobretudo em sua dimensão pública e coletiva, muito tem a beneficiar-se com as novas propostas de abordagens da transdisciplinaridade que se apresentam,no entanto, de maneira mais desenvolvida, no campo da educação e da formação. Embora em número reduzido, algumas dessas propostas já se destacam por procurarem demonstrar a importância do emprego desse conceito no campo da saúde.

Neste número da Saúde e Sociedade exemplificam mais especificamente este último caso dois trabalhos aqui apresentados: o de Naomar de Almeida Filho e o de Patrick Paul. No texto por mim elaborado, em colaboração com Américo Sommerman e Aparecida Magali de Souza Alvarez, procuramos descrever e interpretar a emergência e constituição de um pensamento recente sobre a transdisciplinaridade, partilhado por um grande número de pensadores, dentre eles Patrick Paul e também Gaston Pineau. Este último, que procura destacar em seu trabalho a importância da transdisciplinaridade em sua trajetória profissional e intelectual, traz um bom exemplo de como esse pensamento recente, por nós analisado, tem sido incorporado e desenvolvido no campo da educação, dinamizando as pesquisas nessa área e abrindo amplas possibilidades de seu emprego em outros campos, dentre os quais destaca-se a educação e a formação em saúde.

Em "Congressos Internacionais sobre Transdisciplinaridade: reflexões sobre emergências e convergências de idéias e ideais na direção de uma nova ciência moderna" (texto que elaborei com Sommerman e Alvarez), analisamos o contexto de emergência do pensamento transdisciplinar como inscrito no amplo movimento de crítica ao paradigma da ciência moderna acima referido. Como objetivo central, procuramos descrever a constituição de um dado modo de entender a transdisciplinaridade, representado por um esquema básico específico, que identificamos em pesquisa a documentos finais de congressos e colóquios internacionais sobre o tema, que ocorrem notadamente a partir da década de 1980. Definido a partir de três pilares – a complexidade, os diferentes níveis de realidade e a lógica do terceiro incluído considerados fundamentais para se pensar uma metodologia da transdisciplinaridade, tal esquema passa a ser compartilhado por investigadores de diferentes áreas demonstrando, em alguns estudos, seu caráter heurístico. Pela filosofia que embasa e norteia o processo de reflexão nesses encontros, consubstanciada na idéia de integrar o conhecimento e humanizar a ciência, nossa conclusão é a de que tais espaços permitiram, com a constituição desse esquema básico de pensamento, não somente a emergência e convergência de idéias sobre a transdisciplinaridade , mas igualmente, através delas, a convergência de ideais.

Naomar de Almeida Filho apresenta e aprofunda em seu artigo "Transdisciplinaridade e o Paradigma Transdisciplinar"abordagem original que possui para o entendimento da transdisciplinaridade inscrevendo-a, igualmente, no movimento de crítica ao paradigma simplificado da ciência moderna e articulando-a ao conceito de complexidade.Ao definir o "objeto complexo" da transdisciplinaridade como sintético, não linear, múltiplo, plural e emergente passa a caracterizá-lo como um "objeto-modelo sistêmico", fazendo parte de um sistema de totalidades parciais, não passível de ser apreendido pela organização convencional da ciência em disciplinas autônomas.Daí fundamenta sua proposta de abordagem transdisciplinar por considerar a necessidade de operações de síntese produzindo modelos holísticos de determinação complexa síntese do tipo interparadigmática _ que vai além dos limites dos modelos pluri e interdisciplinares. Embora reconheça que a mesma possa ser construída no âmbito de cada campo científico, defende a idéia de uma "síntese transdisciplinar, construída na prática transitiva dos agentes científicos particulares", por considerar que somente esta é capaz de dar conta do objeto complexo. Nessa perspectiva, coloca em discussão a questão da formação desses agentes. Para esse autor, preparados mediante etapas sucessivas de treinamento-socialização-enculturação, nos distintos campos científicos que estruturam determinada prática, como no caso das práticas de saúde coletiva, tais agentes apresentam-se como "operadores transdisciplinares da ciência porque capazes de trans-passar fronteiras nos diferentes campos da trans-formação".

Essa questão da formação transdisciplinar, colocada por Almeida Filho, encontra-se igualmente presente como preocupação nos discursos dos demais autores, aqui reunidos.

Assim, no artigo "Transdisciplinaridade e Antropoformação: sua importância nas pesquisas em saúde", Patrick Paul procura demonstrar a importância da antropoformação nas pesquisas em saúde que devem postular, através da transdisciplinaridade, uma nova epistemologia do sujeito.Discute essa relação em profundidade, tomando como eixo de análise os três pilares da transdisciplinaridade, já mencionados. No entanto, a eles não se circunscreve ao propor o "paradoxo" como um quarto pilar.

Aborda as implicações que a aplicação do paradigma biomédico, reducionista e fragmentado pelas especialidades, traz para o cuidado em saúde e apresenta, como contraponto, a transdisciplinaridade como um novo paradigma. Não o concebe como uma super disciplina unificadora, que destrói o antigo paradigma, mas considera este último como o caso particular de uma globalidade mais aberta, mais ampla que se articula também a outras formas de conhecimento, como a pluri e a interdisciplinar. Isso porque, a nova complexidade que desafia a ciência no campo da saúde pede para tecer os laços entre a genética, o biológico, o psicológico, o antropológico, o sociológico, etc. Ao pressupor que a transdisciplinaridade se aproxima das fronteiras disciplinares, das zonas imprecisas tomando-as, por assim dizer, como "objeto", Paul passa a justificar e fundamentar a necessidade de construção de uma nova epistemologia do sujeito porque entende que é bem ele – o sujeito – que se exprime "além" dos saberes disciplinares e quem participa sempre, de uma maneira ou de outra, da observação pela interação mais ou menos forte com o objeto. É discutindo essa nova epistemologia do sujeito que esse autor vê, no campo da saúde, as possibilidades de se ir além da doença precisando a interação e a interdependência entre unidade nosológica e realidade presente no sujeito.

Também Gaston Pineau, que apresenta a reconstrução de sua sua própria trajetória no campo da educação e da formação em seu artigo "Emergência de um paradigma antropoformador de pesquisa-ação-formação transdisciplinar", permite demonstrar como a busca de uma nova epistemologia do sujeito, preconizada pela perspectiva de transdisciplinaridade que adota, o leva a confrontar o paradigma pedagógico-positivista, que estrutura a "pesquisa normal" em educação dissociando sujeito e objeto. Daí o termo antropoformação - como formação do humano ser proposto para nomear o "novo paradigma pós-moderno" que propõe, onde busca criar ligações entre pesquisa, ação e formação mediante uma "epistemologia sistêmica transdisciplinar".

Assim, diante da amplitude com que o tema da transdisciplinaridade foi aqui tratada, nossa pequena apresentação tem o objetivo tão somente de representar um convite, a cada leitor, para que encontre nos referidos textos motivação para a empreitada conjunta de repensarmos nossas práticas em saúde a partir de um novo olhar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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