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O trabalho e a saúde dos trabalhadores: sinais da insustentabilidade do atual modelo produtivo

EDITORIAL ESPECIAL

O trabalho e a saúde dos trabalhadores: sinais da insustentabilidade do atual modelo produtivo

Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela

Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da USP

O trabalho apresenta na relação com a saúde um papel ambíguo. Se por um lado tem um papel positivo como afirmador da identidade, meio de socialização e desenvolvimento pessoal, por outro pode representar ameaça e risco de acidentes e outros agravos aos trabalhadores. Trabalhadores doentes e afastados apresentam impactos sociais e econômicos para a sociedade e Estado. A incipiência de políticas públicas de atenção integral e de vigilância pode representar por outro lado um agravante neste quadro.

Passada a primeira década deste milênio, a sociedade confronta-se diariamente com desafios e dificuldades de afirmação de políticas públicas que dêem conta de entender, acompanhar e controlar os riscos oriundos do trabalho, que é crescentemente complexo, invisível e por vezes mais perigoso. Novas formas de organização da produção de tipo flexível, apoiadas em tecnologias de informação, aceleram o ritmo e tornam o trabalho mais denso e mais intenso (Wisner, 1994). Cadeias produtivas transnacionais criam mecanismos que transferem processos perigosos aos pólos e sociedades mais desorganizadas. Exemplo deste cenário nada animador é um acidente recente: o desabamento do edifício onde operavam em condições sub-humanas várias empresas têxteis em Bangladesh. O fato não é isolado e pode ser verificado na região central da Cidade de São Paulo onde ocorre processo semelhante com uso de mão de obra semiescrava para produção de tecidos e peças de luxo de grandes marcas mundiais. O trabalho formal está sob constante ameaça de precarização no jogo de forças da concorrência intercapitalista, pela crescente terceirização, rotatividade ou deslocamento de atividades para outras regiões do planeta (Antunes, 2010). Prevalece na esfera global o ideário de produzir mais com menos. Mais rápido, maior diversidade de produtos, portanto maior variabilidade, mais exigência do cérebro, mais tarefas, mais responsabilidade, mais hora extra, mais trabalho noturno, menos estoque, menos folga, menos gente... Ao invés de superar as contradições do sistema taylorista e fordista anterior, o modelo flexível dominante carrega no seu interior as contradições do antigo modo de gestão da produção: a qualidade não suprimiu as exigências de quantidade; as exigências cognitivas são acompanhadas de exigências físicas, o aumento da autonomia do operador é acompanhado do aumento do controle, agora mais sutil e sofisticado, com cobranças de metas e concorrência não só entre as equipes mas também dentro delas. Se no primeiro modelo o objetivo era a exploração do corpo físico, agora explora-se também o cérebro e a alma do trabalhador (Ferreira, 2001; Lima, 1996) agora transformado em "colaborador", uma figura paradoxal, isolada e impotente diante de um império econômico e ideológico. Este movimento, não por acaso, é o mesmo que tenta desqualificar o trabalho enquanto um valor de primeira grandeza. Visto como custo, busca-se desprotegê-lo, desregulá-lo e colocá-lo no mesmo patamar de outras mercadorias (Krein, 2009 ). Estas contradições ajudam a explicar a manutenção e persistência de verdadeira epidemia de doenças e acidentes relacionados ao trabalho. Elas afloram tanto como resultado deste processo como pela ausência ou pouca eficácia do controle público ou social. Quebrar e enfraquecer o Estado e as políticas públicas é necessário para dar mais liberdade ao mercado. Estes imbricamentos explicam a natureza conflituosa dos assuntos relacionados à saúde do trabalhador, que ultrapassa em muito os aspectos técnicos: enfrentar estes problemas significa por um lado colocar em questão a natureza insustentável deste modo de produção e por outro a importância de articular as políticas públicas, as pesquisas e atividades de extensão interinstitucional, enquanto ferramentas mediadoras estratégicas para a superação das iniquidades apontadas.

Saúde e Sociedade com este dossiê oferece importantes relações e percepções que mostram a importância do trabalho como determinante social da saúde.

Moraes e colaboradores apresentam o perfil socioeconômico, a motivação e percepção dos impactos do trabalho para a saúde de trabalhadores migrantes inseridos no corte manual da cana de açúcar e a relação com o sistema de saúde pública na região de Mendonça, SP. Entre seus importantes resultados chama atenção o fato de que 48% sentiram algum tipo de dor no corpo atribuída ao cansaço do trabalho; a maioria deles não teve acesso aos serviços de saúde da unidade básica do município devido á incompatibilidade de horários do serviço, e que esta dificuldade pode ter relação com o fato de que 87% dos trabalhadores fizeram uso de automedicação.

Silva e colaboradores avaliam a convergência dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) com os conceitos de desenvolvimento sustentável e saúde do trabalhador em Refinarias de Petróleo. Por meio de indicador revelam um distanciamento entre estes dois conceitos quando aplicados nos EIA e sugerindo a necessidade de maior integração dos conceitos de saúde do trabalhador no processo de licenciamento dos empreendimentos.

Gomes e Esteves, ao avaliar o stress ocupacional, encontraram experiências laborais mais negativas nos profissionais de segurança casados, nos que não praticavam exercício físico, nos que exerciam majoritariamente funções externas aos locais de trabalho, nos que trabalhavam mais horas por semana e nos situados em categorias profissionais mais baixas.

Siqueira e Couto apresentam aspectos da relação médico-paciente no contexto das perícias do INSS, mostrando as tensões entre os interesses dos portadores de LER/DORT e a lógica do direito previdenciário que descaracteriza a própria relação médico paciente.

Gil-Monte e Rubio avaliam as diferenças na gestão de prevenção de riscos no trabalho na Província de Valencia - Espanha, em função das diferenças de gênero, mostrando que as mulheres trabalhadoras são mais discriminadas no processo preventivo.

Zilloto e Berti realizam estudo de revisão da reabilitação profissional para trabalhadores com deficiência mostrando que as pesquisas concentram-se principalmente nos aspectos da efetividade dos programas de reabilitação profissional, nas limitações da pericia medica e na LER/DORT como importante agravo à saúde dos trabalhadores e que prevalece nas pesquisas uma restrita visibilidade desta temática no âmbito da saúde e do emprego.

Diniz e Matté investigam procedimentos de biossegurança adotados por profissionais de serviços de embelezamento, mostrando as dificuldades de esterilização, a inadequação de equipamentos e meios para controle dos riscos de contaminação. A necessidade de politicas públicas de vigilância nos estabelecimentos é sugerida.

Santos e colaboradores investigam as práticas de atividade física e a inatividade durante os deslocamentos ao trabalho, mostrando que a situação está relacionada a aspectos como a renda familiar, porte da empresa, escolaridade e diabetes, concluindo que a prevalência de deslocamento inativo é alta e está associada a fatores individuais, sociais e organizacionais.

Referências

ANTUNES, R. A crise, o desemprego e alguns desafios atuais. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 104, p. 632-636, out./dez. 2010.

FERREIRA, L. L. A intensificação do trabalho ou é proibido vacilar. In: DUARTE, F. (Org.). Ergonomia e projeto na indústria de processo contínuo. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001. p. 268-280.

KREIN, J. D. Tendências recentes nas relações de trabalho no Brasil. In: BALTAR, P. E. A.; KREIN, J. D.; SALAS, C. (Org.). Economia e trabalho: Brasil e México. São Paulo: LTr, 2009, p. 199-226.

LIMA, M. E. A. Os equívocos da excelência: as novas formas de sedução na empresa. Petrópolis: Vozes, 1996.

WISNER, A. A Inteligência no Trabalho: textos selecionados em ergonomia. São Paulo: FUNDACENTRO; 1994.

  • ANTUNES, R.  A crise, o desemprego e alguns desafios atuais. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 104, p. 632-636, out./dez. 2010.
  • LIMA, M. E. A. Os equívocos da excelência: as novas formas de sedução na empresa. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • WISNER, A. A Inteligência no Trabalho: textos selecionados em ergonomia. São Paulo: FUNDACENTRO; 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2013
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