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O espelho opaco de Seni

Quando Seni se contemplou no espelho e não se viu, desesperada gritou: estou cega, estou cega. O grito que primeiramente havia retumbado dentro dela própria foi ganhando amplidão. Ultrapassou seus próprios ouvidos, feriu sua própria escuta, fugiu das quatro paredes de seu quarto, entulhado de coisas e de dores, e se espalhou pela casa.

- Estou cega, estou cega, estou cega!

A repetição do grito bateu ríspida, ferina na audição de Benigna, que veio em socorro da mãe.

- Que isso mãe? Que isso? Pare de gritar, a senhora vai incomodar os vizinhos!

- Estou cega, estou cega, Seni repetia, ora esfregando os olhos, ora abrindo as órbitas, como se quisesse enxergar até o infinito, sempre em desespero.

Por uns instantes Benigna se assustou também. Estaria a mãe tendo uma crise de diabetes? O açúcar alto estaria a lhe amargar a vida? E contaminada pelo desespero da mãe, alteando a voz, parecendo competir com Seni para sentir qual potência vocal estaria nas alturas e qual em terra rasa, gritou mais alto do que a mulher cega de si, diante do espelho:

- Mãe Seni, a senhora está me vendo?

- Estou cega! Estou cega!

- Mãe Seni, olhe para cá! A senhora está me vendo?

Seni esfregando os olhos, como se quisesse acordá-los de um vazio de imagens, respondeu, ainda em tom de desespero:

- Sim, estou te vendo. Você é Benigna, é mais do que as outras meninas, é mais do que o meu menino. Você é grande. Cresceu, cresceu. Você é grande como o meu tamanho...

- Mãe Seni, qual a cor de minha roupa?

- Várias cores, várias, trançadas, amarradas umas às outras, trançadas, confundidas, confusão, com fusão.... Você está com um vestido estampado...

- Sim, Mãe Seni, a senhora não está cega, pois viu como eu estou! Sossega, vá dormir! Feche os olhos, descanse, assim amanhã a senhora vai enxergar melhor!

Benigna cada vez mais se enternecia diante do estado de saúde da sua mãe. Há anos ela começara a apresentar um comportamento estranho, que foi acentuando ao longo do tempo. O que no princípio parecia cisma, desconfiança contra algumas pessoas, notadamente contra o marido, se transformara em medo, raiva e até mesmo ódio em algumas ocasiões, beirando ao ataque contra quem lhe despertava tais sentimentos. E assim foi se dando a vida de Seni, um mal-estar constante. O marido pouco se importava, aliás se importava sim, preocupava em contrariar Seni o máximo possível, assim como embargar qualquer tratamento que ela pudesse fazer. Certa ocasião, familiares do lado materno de Seni conseguiram uma vaga de internação para ela, em um famoso e requisitado hospital da cidade, mas dependia dele, como marido, assinar e permitir o tratamento. O consentimento não foi dado. Dessa forma ela foi se agravando, até se tornar filha das filhas. Não viu as meninas crescerem. O menino, o caçula, parece que não sentiu nem a gravidez. Nunca se referiu à barriga, ao parto e ao bebê.

Quando os sintomas esquisitos começaram a aparecer causando estranheza, devido ao comportamento dela a família não prestou muito atenção. Seni sempre fora uma dificuldade, uma pedrinha no calcanhar da mãe e da tia, a que ajudava a irmã solteira a cuidar das quatro filhas.

Benigna, a filha mais velha de Seni, se constituía mesmo como uma benção na vida da mãe. Testemunhou o nascimento das três irmãs e o nascimento do irmão. Menina ainda, bem pequena, já intuía que a relação do pai com a mãe era eivada de maldades e de tormentos. Um dia, ela nunca esquecera, embora tivesse um pouco mais de quatro anos, o pai chegou mais cedo em casa, antes do completo anoitecer. Suas irmãzinhas menores já dormiam, enquanto ela recolhia os toquinhos do joguinho de madeira que estavam espalhados no chão da sala. A mãe estava no banheiro tomando banho, o pai entrou sorrindo e foi direto para o banheiro. Depois Benigna só se lembra de a mãe sair do banheiro, enrolada na toalha e gritando:

- Atrás não, atrás não, não...

Se lembra também de barulhos no quarto e de muito choro da mãe, muito. Ouviu também quando o pai berrou:

- Você é minha mulher!

Ela correu para o quarto e, desde aquele dia, tomou um receio do pai, sem saber o que estava acontecendo de fato. Não sabia onde o pai estava ferindo a mãe dela, mas sabia que ela estava sendo machucada por aquele homem. Anos depois entendeu, não foi só receio o sentimento que ela experimentou na ocasião, naquele dia, principiou o seu ódio pelo pai e para sempre. Ou quem sabe talvez tivesse iniciado até antes. Balas ferem, os estampidos também, ouvidos de bebê são sensíveis à brutalidade circundante. Outra lembrança agarrada àquela vinha sempre a sua mente. No dia após, em que ela ouviu o grito do pai e o choro da mãe, de hora em hora, chegavam flores, ele mesmo, quando retornou à noite, veio com uma braçada de lírios. A casa ficou parecendo uma primavera e as flores eram dolorosamente regadas com as lágrimas de sua mãe, que chorou dias e dias.

Seni era belíssima! Benigna era cópia perfeita de Seni. Quem não a conhecesse pessoalmente, era só procurar as feições da filha para encontrar o rosto da mãe. Não só o rosto, o corpo, a voz e muita semelhança de temperamento. Profunda era a parecença das duas.

Belíssima era Seni, repito, quando jovem, quando menina, quando bebê. E mesmo mais tarde, lá pelos quase oitenta, depois de anos sem vaidade alguma, sendo vestida para que não ficasse nua, alimentada para não morrer à míngua, continuava bonita.

Seni era a primeira filha de uma prole de nove crianças. Ela era quem puxava a fila. A concepção de Seni inaugurou o corpo mulher de sua mãe, mãe solteira, aos vinte anos. Fato vivido por sua mãe como se fosse pecado. O pai de Seni, um motorista de ônibus, um homem negro, da pele clara, cabelos crespos e aloirados. Nos anos quarenta, devia ser confundido como sendo um sujeito branco. A mãe, uma mulher de pele inconfundivelmente negra, assim como as tias, as irmãs e os irmãos, filhos de seu padrasto, todas pessoas negras. Seni nasceu relembrando mais o pai, o que destacava o seu porte no seio da família.

Seni se sabia bonita, era voz unânime a beleza dela, proclamada pela família e pela vizinhança. Era também amável, educada e bem quista, a não ser por uma colega ou outra, que lhe invejava a beleza. Tinha voz bonita também, gostava muito de cantar. Em casa tinha desses tambores grandes para armazenar água. Quando estavam vazios, Seni debruçava o corpo sobre um deles e cantava soltando a voz para dentro do enorme vasilhame. A voz dela ecoava como se tivesse cantando em um gigantesco microfone. Assobiava bem também, tinha ritmo, canções inteiras. Sabia desenhar flores e pessoas como ninguém, aprendeu sozinha. Dom! Tinha a letra bonita. Já mocinha, era a maior da turma, repetiu todas as séries escolares, da primeira à quarta. Namoradeira, curiosa, não gostava dos afazeres domésticos. Odiava ir buscar as trouxas de roupas sujas nas casas das patroas, a não ser na de Dona Maria de Souza Salles. Na casa dos Salles havia um espelho na sala de visitas e ali Seni podia se ver de corpo inteiro. A patroa, percebendo o encanto de Seni diante do espelho, elogiava o porte da mocinha. Um dia a Dona Salles resolveu aparar os cabelos de Seni, que estavam lisos sob efeitos do ferro quente, objeto que parece ter dado origem à escova progressiva. Ficou bonito aos olhos das duas, mas quando Seni chegou em casa, a mãe gritando demonstrou toda indignação contra a patroa. Que autoridade a senhora Salles tinha sobre Seni, para lhe cortar os cabelos sem consultar a mãe. Um novo desencontro instalou entre as duas. Seni estava irradiando beleza e respondendo, gritou que os cabelos da mãe eram feios e que jamais seriam como os dela, pois o ferro quente não fazia efeito algum e que a mãe tinha inveja dela. Não só a mãe, mas as irmãs e as primas também. A mãe sempre respondia que beleza não punha mesa. E chorava muito depois.

Realmente, para Seni, a beleza não estava pondo mesa. O rosto bonito, o corpo escultural de uma mocinha que poderia ser miss, não lhe traziam benefício algum. Ela não deixava de ser pobre quando passava nas portas dos botecos e os homens jovens e velhos suspiravam por ela. A pobreza punha mesa para ela, sempre vazia, sem os itens que Seni sonhava para se tornar mais bela ainda: batom, lápis de olhos, pó compacto, sombras e sombras...

A mãe e a tia de Seni viviam uma grande preocupação. Estava ali sob a responsabilidade delas uma mocinha bonita, que só tinha minhocas na cabeça e que não gostava de trabalhar, nem de estudar. A beleza não punha a mesa para uma menina negra, mas na certa, segundo o que elas temiam, poria a cama. Aconteceria com Seni o que se deu com a Boneca Cobiçada, vizinha, a dois becos dali. A mulher mais bonita da favela, não contando com Seni, que era mocinha ainda. O que Boneca Cobiçada era? O que ela fazia? Puta da baixa zona de meretrício, lá pelos lados da rodoviária. Seni precisava arranjar logo um namorado e casar. Um moço bom haveria de passar nos caminhos dela.

Muitas eram as pessoas que queriam se intrometer na criação de Seni, porém a mãe dela não permitia. Só uma pessoa dividia com ela a responsabilidade de mãe, a sua irmã mais velha. E assim foi quando o padrasto de Seni demonstrou desejos de morar com a mulher, na casa dela. Foi uma grita geral, principalmente das patroas, aquelas mulheres para quem a mãe e a tia de Seni trabalhavam. As senhoras entendiam que a mãe de Seni, tendo três filhas meninas, não deveria levar um homem para dentro de casa. E cada qual se prontificava em ficar, ou melhor, em tomar Seni da mãe e ficar com a menina, como responsabilidade dela. Seni desejava sair de casa, sair da pobreza, sair da favela. Qualquer lugar seria melhor do que viver com a mãe, com a tia, com as irmãs e com o padrasto que ia chegar. Entretanto, a tia, a que ajudava sempre, bateu os pés e definiu: Seni ficaria com a mãe, tivesse ela ou não um homem dentro de casa. A filha era da mãe. Era uma menina bonita, boa, atrevida sim, namoradeira sim, orgulhosa sim, preguiçosa, não tinha como negar, mas Santo Antônio traria um namorado para ela. Um rapaz sério, pronto para o casamento. E enquanto traçavam o destino dela, Seni se rebelava brigando com a mãe. Queria ir para algum lugar, alguma casa que não tivesse miséria. Que o guarda-roupa não tivesse só molambos dentro, que não tivesse a porta despencada e o espelho rachado em vários lugares. Tão rachado que impedia a sua imagem de aparecer bela, inteira como ela era, apesar das roupas surradas que cobriam seu corpo.

Um dia outro espelho, ou melhor, mais um espelho, surgiu para a justa vaidade de Seni. Alguém lhe arrumou um serviço de auxiliar de arrumadeira na casa dos Levinios Bandeira. Ela iria ganhar bem, mas teria de dormir no emprego. A mãe e a tia não consentiram, a não ser que uma das irmãs fosse dormir com ela, todas as noites. De manhã cedinho, a companhia iria embora, antes mesmo do café, para não ser mais um gasto para a patroa. Acordo feito.

Quando a irmã chegou para fazer companhia para Seni, o quarto de empregada, mesmo pequeno, parecia para as duas uma mansão. Três camas, que deveriam ser ocupadas, quando o quadro de domésticas da casa estivesse completo e um guarda-roupa com um bonito espelho. Pendurados havia uns dez uniformes de empregada. Seni estava vestida com um e tudo lhe caía bem, bonita como sempre. Satisfeita, a jovem auxiliar de arrumadeira contava em detalhes a riqueza que ela tinha visto e que deveria cuidar todos os dias para que não ajuntasse poeira. Armários, mesas, cadeiras, banheiros, sofás, etc. O quarto de Dona Alice Levinios Bandeira tinha um guarda-roupa com um espelho por fora, não era preciso nem abrir a porta. Belíssimo, sem um arranhão, e devia ser limpo todos os dias, serviço adorável de fazer. E foram tantas as novidades, tantas coisas para descrever. A competência da cozinheira que tinha feito um almoço e um jantar tão gostoso e que estava no outro quatro, ali do lado delas. Os armários da cozinha que pareciam armazéns, a geladeira que parecia ser a feira de sábado da Rua Pedra Azul... E tanto conversaram que o sono fugiu pela noite a dentro e quando dormiram, creio que já era quase horas de levantar. Logo depois, acordaram com um som de campainha tocando agressivamente em seus ouvidos. Assustaram. Seni pulou da cama tremendo, ficou uns segundos paralisada, parece que procurando reconhecer o ambiente. A irmã viu duas lágrimas rolarem no rosto da jovem auxiliar de arrumadeira, se comoveu também e com um gesto pouco usual abraçou Seni. Por um instante agarradinhas se perderam naquele recinto das empregadas. A campainha chamou novamente em disparada, até descobrirem que deviam tocar o maldito botão, para indicar que estavam acordadas. Seni vestiu logo o seu uniforme de empregadinha, como se falava na época, e rapidamente se mirou no espelho. Foi quando deu um grito puxando a irmã que estava quase que colada ao corpo dela, dizendo:

- Estou cega, estou cega, estou cega! Não estou me vendo!

- Seni, pare de brincadeira, a cozinheira já deve estar lhe esperando, deve ter tocado a campainha a mando de Dona Alice - disse a irmã de Seni.

Entretanto, em desespero, Seni repetia encarando o espelho:

- Estou cega, estou cega, estou cega! Não estou me vendo!

O tom de desespero na voz de Seni indicou para a irmã que ela não estava de brincadeira, angustiada, parando diante do espelho perguntou para Seni:

- Você está me vendo?

- Sim, estou te vendo, uma trança do seu cabelo começa a se desmanchar...

A irmã passou as mãos nos cabelos, sim, era verdade. Como Seni não conseguia enxergar a si própria? Sentiu um mal-estar, um arrepio. Alguma coisa estranha estava acontecendo. Devia contar para mãe o acontecido? Não contou. Guardou durante anos o que tinha vivido com a irmã, na primeira e única noite que tinham dormido ali. No final da tarde, Seni chegou em casa, com algum trocadinho e as pouquíssimas roupas que tinha levado, calcinhas e sutiãs. A patroa não tinha gostado dela e a cozinheira havia dito que ela era muito bonitinha, mas desatenciosa. Seni não falou nada sobre o espelho, sobre nada. Foi como se nada tivesse acontecido. E a irmã de Seni só veio relatar o sucedido, muito tempo depois, para a sobrinha Benigna. E só narrou quando o episódio se repetiu, em meio à perturbação que já havia se instalado de forma irreversível em Seni, que nunca havia perdido a sua beleza.

Um dia, em meio a poucas coisas que Seni havia deixado para atrás, ao se casar e ir com o marido, a irmã dela achou um caderno com alguns desenhos, letras de músicas e outras anotações. As mais pungentes eram estas:

“Mamãe vive repetindo que beleza não põe mesa. Gosto de ser bonita e sei que sou. Todo mundo fala. A beleza tem de servir para alguma coisa? A minha não serve. Isabel, minha irmã é emburrada, pirracenta e quase não fala. Todo mundo diz que ela é boazinha, não incomoda ninguém. Quando ela quer alguma coisa nossa, temos de dar, pois o médico diz que ela sofre do coração, temos medo dela morrer. Eu não gostaria que Isabel morresse. O jeito dela serve para que minha mãe, minha tia e nós tenhamos sempre cuidado com ela. Duzinha tem bronquite e umas feridinhas na pele, tem vez que o corpo dela fica todo cheio de pereba. Na escola ninguém gosta de sentar perto dela. Mamãe tem de levar Duzinha quase sempre ao médico. Dizem que ela não pode pegar poeira. Mas não tem jeito, a nossa casa é poeira pura, o chão é de terra. Essa minha irmã é miudinha. Em casa temos muita pena de Duzinha. Ela não me atrapalha em nada. Quem me atrapalha é Tetê, ela é mais nova do que eu, mas é metida a me mandar. Está sempre do lado de minha mãe e de minha tia. Ela é minha vigia, por obrigação. Tem de contar tudo que eu faço na rua e em casa também. As poucas vezes que saio de casa sozinha com Cosme, meu noivo, ela tem de ir também para nos vigiar. Ela me dá conselhos como se fosse uma tia. Eu sei que ela gosta de mim. Somos diferentes, ela é pretinha, pretinha, acho que ela tem inveja de mim. Gosto dela um tiquinho, é inteligente e estudiosa. Desde que fiquei noiva, estamos mais amigas e nunca mais brigamos. Lá em casa todo mundo confia nela e elogiam o seu esforço para estudar. Fico pensando que ser calada, ser miudinha, ser estudiosa, tudo vale para alguma coisa. E ser bonita, vale para que? ”

“Ah, sou bonita, porque puxei a família de pai. Vi meu pai uma vez só. É um homem bonito, não sei como ele gostou da minha mãe. Ela é tão preta!”

Quando Seni conheceu o pai já foi em vésperas de seu casamento. E foi por insistência da tia. Pela mãe tudo ficaria como estava, ninguém conhecendo ninguém. Mas a tia queria mostrar ao cunhado ausente que elas tinham dado conta da menina. Ia entregá-la pura, como uma moça de família, ao ato do sagrado sacramento. Ela era filha de mãe solteira, mulher que ele havia seduzido, abusado, mas elas haviam dado conta sozinhas da menina. O ato de entrega do convite se deu na casa dele. A comitiva familiar foi composta por Seni, a tia e sua irmã. Foi essa a primeira vez que ela viu o pai, em vésperas de seu casamento, aos dezessete anos. E talvez por uma infeliz coincidência ela foi morar em um bairro bem próximo da residência dele. Encantada, talvez, por um pai, cuja história ela não sabia, um homem que lhe conferia uma beleza mestiça, que ela julgava branca, curiosa, carente, ela passou a buscar esse pai, no ambiente de trabalho dele, no ônibus, na garagem. Até que um dia ele lhe pediu que não fosse mais, não ficava bem as pessoas saberem que ele tinha uma filha fora do casamento.

Seni tinha a pecha de ser preguiçosa, mas não era, apenas não gostava de certos trabalhos. Quando casou dava conta da casa, tudo limpinho, muito diferente da miserabilidade vivida na casa da mãe. Não era uma casa rica, mas confortável. Água encanada, divisões internas definidas: quartos, sala, cozinha, banheiro.... Quando a sua irmã Tetê nasceu, como é de costume nas famílias pobres, as crianças mais velhas aprendem a cuidar das mais novas. Enquanto a mãe trabalhava na lavagem de roupas das madames, na torneira pública, Seni cuidava da irmã menor, a segunda filha. Dava a mamadeira, punha para dormir, carregava a irmãzinha enganchada nas cadeiras. Eram tão pequenas as duas, que quando Tetê soltou as primeiras palavras, ela confundia, ou melhor, fundia a irmã com a mãe. E como Tetê nem direito falava, Seni foi chamada por ela de Nãe. E assim, na casa, na intimidade do chamamento, entre mãe, filhas e irmãs, a maiorzinha tinha um apelido nascido do cuidado com as menores, Nãe, quase Mãe. Nãe era quase Mãe, preguiçosa não era.

E gostando ou não dos trabalhos domésticos, Seni foi trabalhar nas casas das patroas, pois era preciso providenciar o enxoval para o casamento. A tia foi com ela. Maria cuidava da cozinha e Seni da arrumação. E não foram poucas as vezes que a tia, a cozinheira, tinha de livrar a jovem arrumadeira do assédio dos homens da casa, os patrões e seus filhos.. E mais, da implicância das patroas, com uma arrumadeira, jovem, negra, bonita, que limpava o pó dos móveis, mas deixava pó, que arrumava a cama sem esticar bem os lençóis e cantava, assoviava, sem prestar atenção no que fazia.

O dia em o moço fardado no trem sorriu para Seni, um mundo se abriu. Antes dele descer, pediu-lhe o endereço. A tia piscou para ela, permitindo a informação. Estavam voltando de uma peregrinação a uma cidade, cujo protetor era Santo Antônio, justo o casamenteiro. O milagre estava se anunciando. As etapas estavam sendo cumpridas, namoro entre dois, namoro entre as famílias, todo mundo se conhecendo entre si. Casamento marcado, vestido de noiva. A moça Seni estava sendo entregue para o marido. Vitória! Ali se selava uma vida tranquila para ela. Uma moça bonita, negra, pobre, filha de mãe solteira não se perdera, não se prostituíra. Mãe e tia respiraram felizes. Havia ainda mais três meninas, mas aquelas não dariam trabalho, eram comuns. Nelas a beleza não gritava, não era convidativa, não indicava perigo algum. Pensavam!

Quando Seni contou com todos os pormenores que um dia o marido havia atirado nela, mas, em princípio, de nada adiantou a narração da história. Ninguém acreditou. Ela estava amamentando a primeira filha do casal, Benigna. Aparentemente tudo estava em paz, iam completar dois anos de casamento e uma descoberta se deu. O marido estava de gracinha com a moça que ele havia levado para auxiliá-la nos trabalhos domésticos. Seni saíra para levar a bebê para o acompanhamento de rotina e ao chegar encontrou o marido com a moça, sua auxiliar, na cama deles.

E foi em meio ao desespero, ao desgosto da traição, ao sentimento de estar sozinha, pois não tinha coragem de contar para família o que tinha acontecido, que Seni topou, esbarrou violentamente com o que era, não era e julgava ser. Aconteceu uma discussão que culminou com uma bala rente a sua cabeça, que ao errar o alvo, perfurou a parede, quando era para lhe arrebentar os miolos. E o homem, o seu marido, ainda lhe gritou:

- Bianca me atrai, gosto dela até no nome, no porte, na fala, no jeito dela ser. Tudo nela combina. Nome e pessoa. Bi-an-ca.

Seni não soube como atacar e muito menos como se defender. Sim, ela não era Bianca. Ela era a outra, apesar de ter casado com ele, de ser a esposa dele e de ter parido a primeira filha dele, há pouco meses. E silenciou-se. Ela não era Bianca. Ele continuou com Bianca e seguiu com ela a vida de casado. Fez nela mais duas meninas e um menino. E fez do corpo dela, da vida dela, o que bem quis de mal e de ruim.

Anos mais tarde, quando Seni contou para família o acontecido, ninguém acreditou. O sujeito sempre fora um bom marido. Tal história narrada com tanta veemência apenas certificava o adoecimento que havia tomado conta do comportamento dela. Só Tetê procurou o fundamento da fala de Seni. Buscou saber da veracidade da fala da irmã, com os vizinhos da época. Uma senhora, a moradora ao lado, confirmou tudo. Ela escutara o estampido, a falação gritada, o choro desesperado de Seni e vira o buraco na parede feito pela bala. E disse que havia ficado calada, pesando que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.

Durante muito tempo Benigna pensou que lágrimas de mulheres fossem o sumo vivificador da primavera, sem elas não haveria floração. E mais, milagrosamente, flores machucadas se erguiam em florescência, banhadas pelas lágrimas-dores das mulheres. Por isso punha todo cuidado ao tratar da mãe. Paciência tinha com as variações de humor dela. Tinha dias que Seni falava, falava, falava. Parecia ser um tempo de desabafo, de relembranças, de julgamento do passado. Nesse período de falação, a conversa era tão lúcida, tão certeira nos detalhes que mais parecia invenção, como a história do tiro que o marido tinha disparado contra ela. Havia igualmente os dias de silêncios, semanas e até meses. Seni se calava, guardava os gestos e os movimentos também. Escolhia um cantinho da casa, um qualquer, punha ali a sua cadeira e ficava. Se não lhe levassem a água e o alimento, de sede e fome ela morreria. Mal levantava para ir ao banheiro, com o xixi nem se preocupava, descia pela cadeira abaixo. Quando a outra imposição do corpo surgia, poucas vezes, pois Seni era dada a prisão de ventre, Benigna aproveitava a ida da mãe ao banheiro para lavar a cadeira e o cantinho em que ela ficava paralisada. Depois criando um ardil qualquer, pedia para que ela abrisse a porta do banheiro e quase à força, como se faz com uma criança que não quer tomar banho, a filha cuidadosamente banhava o corpo da mãe. Asseada e sem qualquer gesto ou palavra que indicasse compreensão da cena vivida anteriormente, Seni retornava à cadeira, como se nunca tivesse saído dali. O silêncio perdurava até se transformar em dias de agitações, de xingamentos a quem passasse por ela. Esse era então o tempo de longas e incompreensíveis narrações que, às vezes, continham pedaços de fala referentes às situações da infância, da juventude e do tempo de convívio com o marido. E foi daquelas falas partidas, relembradas, com choros, ora altos, ora contidos, mais os testemunhos de suas tias e tios, da vizinha próxima, e muito da incômoda lembrança dos atos fingidos de amor do pai pela mãe, que Benigna ia compreendendo a destruição da vida de sua mãe. Um esfacelamento desde a infância, desde a concepção talvez. Quem sabe ainda se o adoecimento não tivesse sido a única porta de saída para Seni? O único modo viável de se agarrar a vida... Quem sabe?

Um respeitoso e doloroso silêncio, como pacto, se instaurou entre Benigna e sua avó Joana a respeito de Seni. Nada se perguntava, nada se respondia, desde o dia em que Seni, estando em crise, precisou ser internada. A mãe foi visitá-la. Seni, sob os efeitos dos remédios, aparentava calma, até a chegada da mãe dela, que foi recebida com xingamentos. Na esbravejação de Seni em direção à mãe tudo se misturou: balas na parede, trouxas para carregar, campainhas tocadas em altíssimos sons, coroação de Nossa Senhora em que só a Bianca podia coroar, lençóis bem espichados nas camas, pó não retirado dos armários, garagem de ônibus, parir em dores, flores machucadas, buracos na parede, estampidos de bala, véu de noiva alvo como Bianca, panos de chão encardidos, atrás não, não...

A mãe de Seni chorava e quem sabe flores machucadas até à morte renasciam naquele instante. Podia ser, podia ser.…. Entretanto o golpe mortal ainda iria acontecer. Foi quando no desenlace final, Seni, esbravejando, contemplou a mulher-mãe e gritou na rouquidão, talvez, de um incompreensível e antigo ódio:

- Negra, puta! O que você veio fazer aqui?

Depois desse episódio a mãe de Seni foi rareando o que já era pouco, o contato com a filha. Passou anos sem ir à casa da filha, sem vê-la. Dizia ter medo de ser agredida, o que parecia ser um risco iminente. E quando voltaram a se encontrar novamente, em ocasiões mais raras ainda, Seni se referia mãe como aquela velhinha ali ou como a vovozinha. E quando percebia que a velha ia se levantar arrastando seus longos anos de vida, Seni se abaixava para consertar as sandálias que fugiam dos envelhecidos e cansados pés da mãe que ela não reconhecia mais, se é que havia reconhecido algum dia.

Quando Benigna, ainda solteira, escolheu se engravidar, mesmo tendo a pessoa amada, optou por não se casar e nem morar sob o mesmo teto. Ela e o companheiro já tinham uma relação de quase dez anos. De certa forma viviam uma vida conjugal, só que separados, cada qual no seu quadrado, e tudo seguia bem. A explicação dada por ela, para satisfazer a curiosidade das pessoas, é que ela não queria se separar de mãe Seni. Podia ter até um fundo de verdade. Melhor decisão não poderia ser tomada.

Seni se engravidou junto com Benigna. Olhava e tocava a barriga da filha e acarinhava o próprio ventre. Viveu com a filha os enjoos e desejos. Ela, que não pedia nada para comer e se alimentava do que lhe dessem, pedia com constância mel de abelhas para beber, quindim e feijão fradinho. Eram esses os desejos de Benigna também. Poucas crises Seni teve durante a gravidez da filha, seu rosto e gesto se acalmaram um pouco, voltou a cantar e a dançar muito. Pedia sempre um espelho para se ver, mas quando lhe ofereciam, ela caía em pranto dizendo que não estava vendo imagem alguma. E só cessava quando alguém conseguia retirar o espelho de perto dela, sem que ela visse.

Quando a neta de Seni nasceu, a primeira, filha de Benigna, deram-lhe o nome de Núbia. A menina cresceu rápido, juntas as três formavam uma espécie de trindade feminina. Belíssimas. A avó, a mãe e a neta pareciam um desdobramento de imagens antigas bailando no tempo. Núbia rapidinho pôs corpo de mocinha-mulher, como diziam que Seni havia posto um dia. A mãe Benigna e o companheiro podiam prover a filha de afetos, condições de estudos, lazer e do que ela mais gostava, coisinhas de maquiagem. Núbia cresceu com muitos espelhos, objetos e águas, e também em histórias passadas, nas quais ela podia se mirar, mesmo as dolorosas, para evitar ser flor massacrada, um dia. A avó Seni se perdia feliz ao se contemplar nos espelhos da neta, todos emoldurados com um metal amarelado a lembrar ouro, não opacos, mas sim transparentes até ao infinito. Diante dos espelhos luzidios da neta sempre se enxergava e com tanta nitidez que espichava a mão tentando agarrar a sua imagem que ficava ao fundo. Núbia sorria respeitosa com a confusão de Vó Seni. Sorria, sabia-se bela como a avó Seni, a mãe Benigna e a bisavó, que nunca se soube bela. A bisa Joana, que dormia nos fundos de um tempo que espelhava todos os tempos. O tempo do vivido, o do viver agora e o do que iria acontecer.

Conceição EvaristoEVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Malê , 2016.

Rio de Janeiro Março 2022

Referências1 1 Por exigência da SciELO, referências devem ser apresentadas em todos os manuscritos publicados. Em atendimento a essa determinação, nesta lista foi incluída uma seleção de obras da autora.

  • EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
  • EVARISTO, C. Becos da Memória 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas , 2017.
  • EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
  • EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres 2. ed. Rio de Janeiro: Malê , 2016.
  • EVARISTO, C. Olhos d’água Rio de Janeiro: Pallas : Fundação Biblioteca Nacional, 2014.
  • EVARISTO, C. Histórias de leves enganos e parecenças 2. ed. Rio de Janeiro: Malê , 2017.
  • EVARISTO, C. Canção para ninar menino grande São Paulo: Unipalmares, 2018.
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    Por exigência da SciELO, referências devem ser apresentadas em todos os manuscritos publicados. Em atendimento a essa determinação, nesta lista foi incluída uma seleção de obras da autora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2023
  • Aceito
    13 Abr 2023
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