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Medicalização da subjetividade e fetichismo psicofármaco: uma análise dos fundamentos

Resumo

Este trabalho trata dos fundamentos da epidemia das drogas psiquiátricas e tem por objetivo analisar a medicalização da subjetividade e o fetichismo dos psicofármacos em suas bases fundamentais. Trata-se de uma reflexão teórica à luz da análise do discurso inaugurada por Michel Pêcheux, a partir da qual se apresenta um gesto de interpretação, possibilitando identificar a epidemia das drogas psiquiátricas como expressão da medicalização da vida. Com base na crítica dos fundamentos da forma capitalista de consumo e da prescrição dos psicofármacos, esta análise demonstrou como o modelo de metabolismo social do capital impõe aos sujeitos uma terapêutica fetichizada. Espera-se contribuir com práticas que lutam pelo legado do movimento antimanicomial e, com isso, somar aos esforços dos sujeitos envolvidos na produção de práticas terapêuticas efetivamente humanizadas e críticas.

Palavras-chave:
Subjetividade; Fetichismo Psicofármaco; Saúde Mental; Capitalismo

Abstract

This study deals with the foundations of the psychiatric drug epidemic, aiming to analyze the medicalization of subjectivity and the fetishism of psychotropic drugs in their fundamental bases. It is a theorical reflection in the light of discourse analysis inaugurated by Michel Pêcheux, from which it presents a gesture of interpretation, allowing the identification of the psychiatric drug epidemic as an expression of the medicalization of life. Based on the critique of the foundations of the capitalist form of consumption and prescription of psychotropic drugs, this analysis demonstrated how the social metabolism model of capital imposes a fetishized therapy on the subjects. We hope to contribute to the practices of those who fight for the legacy of the anti-asylum movement and thus add to the efforts of the subjects involved in the production of effectively humanized and critical practices.

Keywords:
Subjectivity; Psychotropic Drugs Fetishism; Mental Health; Capitalism

Introdução

O uso de medicamentos psicotrópicos,1 1 A gama de fármacos que, de diferentes maneiras, afetam o humor e o comportamento (Rang; Dale, 2010). ou psicofármacos, vem aumentando de forma vertiginosa desde sua introdução ao mercado, em meados da década de 1950. Nos últimos anos, observa-se um crescimento ainda mais expressivo no consumo desses produtos. No Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM) de 2016, que analisou os 20 subgrupos farmacológicos mais utilizados pelos usuários da atenção primária à saúde, os antidepressivos, antiepiléticos e ansiolíticos figuraram entre os medicamentos mais consumidos, sendo superados apenas pelos anti-inflamatórios não esteroidais (Aines), pelos anti-hipertensivos e pelos antidiabéticos (Álvares et al., 2017ÁLVARES, J. et al. Pesquisa nacional sobre acesso, utilização e promoção do uso racional de medicamentos: métodos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, n. supl.2, p. 4s, 2017. DOI: 10.11606/S1518-8787.2017051007027
https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017...
).

Em decorrência das implicações sociais da pandemia da covid-19, essa tendência de uso medicamentoso se intensificou ainda mais, de forma que, segundo o levantamento feito pela consultoria IQVIA,2 2 A referida sigla decorre da formulação derivada da associação das empresas Quintiles e IMS Health e do termo “via”, do latim, que significa “por meio de”. A fusão ocorreu em 2006 e trata-se de uma empresa voltada para a informação e serviços de investigação clínicas e soluções tecnológicas. a pedido do Conselho Federal de Farmácia (CFF), verificou-se que no primeiro semestre de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019, houve um crescimento de quase 14% nas vendas de antidepressivos e estabilizadores de humor. O número de unidades vendidas saltou de 56,3 milhões, em 2019, para 64,1 milhões, em 2020 (Venda…, 2020VENDA de medicamentos psiquiátricos cresce na pandemia. IQVIA - Quintiles & IMS Health e VIA, Teresina, 10 set. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://cff.org.br/noticia.php?id=6015#:~:text=Levantamento%20feito%20pela%20consultoria%20IQVIA%20a%20pedido%20d >. Acesso em: 23 nov. 2021.
https://cff.org.br/noticia.php?id=6015#:...
).

O perfil mundial de consumo em escala crescente de psicofármacos tem preocupado uma série de pesquisadores e entidades nos últimos anos, a ponto de tal padrão configurar, segundo Whitaker (2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.), uma epidemia das drogas psiquiátricas. Este artigo parte da tese que epidêmica, na realidade, é a forma de a sociedade capitalista lidar com o uso de medicamentos psicotrópicos.

Partilha-se da noção proposta por Szasz (1980SZASZ, T. S. Ideologia e doença mental: ensaios sobre a desumanização psiquiátrica do homem. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.), ao considerar que a doença/transtorno mental é uma forma de mito, de ideologia. Tal noção não nega a existência de diferentes formas de sofrimento psíquico, tampouco se opõe à ideia de que o número de sujeitos com tais problemas esteja aumentando e se reconfigurando nas últimas décadas, apenas rejeita o reducionismo de equiparar o sofrimento psíquico aos parâmetros restritos das doenças orgânicas.

Assim, a epidemia das drogas psiquiátricas é bem particular, pois está estruturada sobre o processo iatrogênico, que funda a psiquiatria dita científica: a concepção de que as formas de sofrimento psíquico possuem causa biológica, estruturadas numa suposta alteração de um padrão neuroquímico normal. Foi em decorrência dessa concepção que a captação por parte do discurso biomédico da subjetividade humana e das formas de sofrimento psíquico se tornou possível. Tal fato reconfigurou toda a terapêutica psiquiátrica e psicológica, causando a produção de um número monumental de sujeitos em sofrimento e com problemas orgânicos induzidos pelo uso desses fármacos (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.).

Já há mais de 40 anos, algumas pesquisas desmontam, nos próprios termos positivistas, as hipóteses biologicistas de causas dos ditos transtornos mentais, como apontam as revisões de Whitaker (2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.) e Coser (2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.). Destacam-se mundialmente, nesse sentido, as críticas realizadas por Peter Lehmann e Salam Gómez (2018LEHMANN, P; GÓMEZ, S. (Ed.). Dejando los medicamentos psiquiatricos: estrategias y vivencias para la retirada exitosa de antipsicóticos, antidepresivos, estabilizadores del ánimo, psicoestimulantes y tranquilizantes. Berlin: Peter Lehmann Editorial, 2018.), Marcia Angell (2014ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: Record, 2014.), além do próprio Robert Whitaker (2017)WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.; e, no Brasil, os professores Fernando Freitas e Paulo Amarante (2017FREITAS, F.; AMARANTE, P. Medicalização em psiquiatria. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.) também contribuem significativamente para as análises desse fenômeno. Todos esses autores apontam, em certa medida, as determinações econômicas e políticas exercidas, especialmente pela indústria farmacêutica e por setores do Estado moderno, como fato que condiciona a criação e manutenção da epidemia das drogas psiquiátricas.

A partir desses pressupostos, busca-se nos dispositivos teórico-analíticos da análise do discurso a necessária ancoragem para uma tomada de posição no jogo dos sentidos materializados na subjetividade medicalizada. Para tanto, cabe ressaltar que o francês Michel Pêcheux (2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.), filósofo de formação, buscou formular uma teoria materialista dos processos semânticos a partir do materialismo histórico, da linguística e da psicanálise, enquanto três regiões do saber, sendo esse o ponto nodal que articula teoricamente a proposta desta reflexão. Desse modo, este artigo não tem como objetivo recontar o que foi dito por esse segmento da crítica da saúde mental, mas analisar a medicalização da subjetividade e o fetichismo dos psicofármacos em suas bases fundamentais à luz da crítica marxiana, e, dessa maneira, contribuir com outra possibilidade de ler a questão, numa perspectiva discursiva com base em Michel Pêcheux.

A epidemia das drogas psiquiátricas como expressão da medicalização da vida

O consumo de drogas psiquiátricas, de forma a ser pensado como uma epidemia, só é possível devido a um fenômeno ainda mais amplo, perene e legitimado ideologicamente pela sociedade capitalista: a medicalização da vida. De acordo com Freitas e Amarante (2017FREITAS, F.; AMARANTE, P. Medicalização em psiquiatria. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.), medicalizar não se resume a cuidar(se) por medicamentos. De modo geral, a medicalização da vida se configura como um processo de “[…] transformar experiências consideradas indesejáveis ou perturbadoras em objetos da saúde, permitindo a transposição do que originalmente é da ordem social moral ou político para os domínios da ordem médica e práticas afins” (Freitas; Amarante, 2017FREITAS, F.; AMARANTE, P. Medicalização em psiquiatria. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017., p. 14). Todavia, o processo de medicalização é indissociável da constituição da medicina moderna, e seu entendimento requer a análise histórica da reconfiguração do lugar do médico, tal como determinado pela sociedade capitalista desde o século XVIII.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento das forças produtivas e do positivismo biologicista tornou possível o conhecimento das bases fisiológicas do funcionamento corporal, proporcionando tratamentos médicos mais resolutivos para algumas doenças da época. Desse modo, a medicina, agora com base científica, reivindicou a autoridade sobre o adoecimento e seus assuntos, constituindo-se como o porta-voz3 3 Numa perspectiva discursiva, a posição do porta-voz consiste naquela que se situa “ao mesmo tempo como ator visível e testemunha ocular do acontecimento […]” (Pêcheux, 1990, p. 17). Configura-se, antes de tudo, como sujeito que fala “em nome de…”, por um efeito visual “[…] que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim ser visto: o porta-voz se expõe ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele representa e sob seu olhar” (Pêcheux, 1990, p. 17). da ciência burguesa em relação aos temas de saúde (Frances, 2013FRANCES, A. Saving normal: an insider’s revolt against out-of-control psychiatric diagnosis, DSM-5, big pharma, and the medicalization of ordinary life. New York: William Morrow, 2013.). Nessa direção, Freitas e Amarante (2017FREITAS, F.; AMARANTE, P. Medicalização em psiquiatria. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017., p. 22) afirmam que “não se trata simplesmente de uma evolução do saber científico - objetivo, neutro e isento dos interesses e conflitos sociais. Trata-se, sobretudo, do saber médico resultante de processos de construção social de um poder sobre os indivíduos”.

Por essa via, a problematização da cientificidade na psiquiatria conduz à análise das condições de produção dos conhecimentos científicos no capitalismo, considerando-as, em grande parte, como resultado das determinações da exploração do capital sobre o fazer médico. Partindo da noção de espelhamento desenvolvida por Lukács (2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.), afirma-se que o processo de produção científica é uma forma particular de reflexo - o científico. Essa forma de espelhamento, que se torna conhecimento, é um reflexo dialético e contraditório da realidade objetiva apreendida, sistematicamente, pela subjetividade. Essa apreensão sistemática assume a forma de um concreto pensado a partir de sucessivas aproximações (Marx, 2008MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.).

Dizer que a produção do conhecimento é um processo dialético significa que ele é histórico e que não há um “[…] ‘estádio’ pré-epistemológico em que ‘os homens’ se encontrariam diante do mundo em estado de completa ignorância […]” (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., p. 174, grifos do autor). Dessa forma, ao produzir conhecimento - ação humana, ativa, posta teleologicamente -, o ser social se debruça sobre essa objetividade e apreende, por sucessivas aproximações e tomadas de posição, suas leis e fundamentos, a fim de continuar modificando-a a partir de necessidades sociais (sejam elas do gênero humano ou de reprodução do capital).

Entendendo, a partir do materialismo histórico, que a centralidade do processo de produção do conhecimento científico é objetiva, deve-se considerar, então, a determinação fundamental da luta de classes nesse processo, uma vez que:

[…] a história da produção dos conhecimentos não está acima ou separada da história da luta de classes […] isso implica que a produção histórica de um conhecimento científico dado não poderia ser pensada como uma ‘inovação das mentalidades’, uma ‘criação da imaginação humana’, ‘um desarranjo dos hábitos do pensamento’ etc., mas como efeito (e a parte) de um processo histórico determinado, em última instância, pela própria produção econômica. (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., p. 172, grifos do autor)

A natureza constitutiva da relação entre produção econômica e de conhecimento é do tipo fundador-fundado; não de maneira historiográfica ou com base em uma hierarquia valorativa, mas sob uma consideração ontologicamente dialética. Lukács (2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 30) afirma que “[…] a ciência ascende a partir do pensamento e da práxis da cotidianidade, em primeiro lugar do trabalho, e sempre a este retorna, fecundando-o”. Desse modo, trabalho e ciência se articulam em co-determinação recíproca, fundamentando-se e justificando-se, uma vez que “[…] as condições de produção dos conhecimentos científicos estão inscritas nas condições de reprodução/transformação das relações de produção […]” (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., p. 172). Ou seja, dada a centralidade do trabalho na reprodução social, a esfera econômica vai requisitar do complexo da ciência formas compatíveis com seus parâmetros de (re)produção.

Cumpre destacar também que o processo de produção do conhecimento mais amplo, incluindo o conhecimento médico, ergue-se na dinâmica contraditória de constituição das ideologias teóricas, que são, geralmente, mediações entre as ideologias práticas e a produção de conhecimentos (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.), com a função essencial de orientar determinados sentidos, garantindo a operacionalização da práxis científica. Tais ideologias aparecem na forma de ideias científicas, concepções gerais e particulares de cunho epistemológico regional (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.). Como existem objetivamente e desempenham uma função social, não estão apartadas da história da luta de classes.

Nesse processo, exprime-se a relação indissociável entre produção econômica e produção de conhecimento, pois, dialeticamente, as ideologias práticas, fundadas no cotidiano e orientadas para o trabalho, atribuem formas e limites às ideologias teóricas. No entanto, essa condição não anula a ação do sujeito na produção do conhecimento científico, apenas coloca-o em seu devido lugar, uma vez que “o processo de produção dos conhecimentos se opera através das tomadas de posição (‘demarcações’, etc.) pela objetividade científica” (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., p. 182, grifo do autor). Ora, quem toma posição por alguma coisa não é a objetividade, mas um sujeito sobre/sob uma objetividade. Marx, e depois Lukács, lembram que o ser social não é passivo, e sim um ser que responde dialeticamente, de acordo com as condições objetivas históricas que o determinam.

Desse modo, o processo de produção do conhecimento científico “[…] é um ‘corte continuado’; ele é, como tal, coextensivo às ideologias teóricas, das quais ele não cessa de se separar, de modo que é absolutamente impossível encontrar um puro ‘discurso científico’ sem ligação com alguma ideologia” (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., p. 182, grifo do autor), o que põe em causa uma suposta neutralidade no campo da ciência.

Do ponto de vista ontológico, então, tratando-se de um sistema socialista, por exemplo, a produção continuaria na articulação dialética determinando as ideologias teóricas, não sendo a função das ideologias, portanto, restrita às sociedades de classe (Lukács, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.). Nessa perspectiva, apesar de atender às demandas sociais de cuidado e de atenção à saúde, a medicina, como as demais categorias do setor, é determinada e estruturada dialeticamente com o metabolismo social de sua época. O médico,4 4 Neste artigo, o termo “médico” remete a uma posição-sujeito no discurso, historicamente produzida. nesse tempo histórico, é, portanto, o médico do capitalismo, forjado sob a hegemonia científica do positivismo. Tal modelo também comparece na base do que se convencionou chamar de socialismo real.

Uma das consequências dessa nova função social assumida pelo médico é a ressignificação do papel do doente. Considerando as várias particularidades históricas das épocas e das sociedades, regularmente, a função de doente serviu para estabilizar uma noção geral de norma, determinada mediante sua negação do que seria normal, sendo o doente a margem constitutiva desse parâmetro. No entanto, com o avanço da sociedade do capital e seu imperativo econômico de reproduzir-se e legitimar-se, a função de doente passou a servir novos e indissociáveis dois propósitos: a entrada no circuito de valorização do capital e a legitimação do poder médico. O doente passou, então, a ser produzido sob uma perspectiva mercantil, tornando-se um dos negócios mais lucrativos da atualidade.

A estruturação dos serviços de saúde sob a predominância mundial do caráter curativista, clínico, hospitalocêntrico e farmacológico produziu um determinado tipo de doente: o doente consumidor. Nessa perspectiva, o saber da medicina, em sua expressão biomédica, passou a ser o discurso que estrutura e legitima - principalmente por meio de seus manuais diagnósticos e terapêuticos - a margem não somente dos parâmetros de normal e patológico, mas as condutas fundamentais que devem ser empregadas nesses sujeitos. Desse modo, o doente desse tempo histórico, em função da aliança médica com a manutenção da dinâmica capitalista, é o doente do capital, (re)produzido fundamentalmente sob suas leis.

De certa forma, esse movimento de reestruturação, na perspectiva de Foucault (2019FOUCAULT, M. A história da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2019.), foi ensaiado por Philippe Pinel no movimento conhecido como alienismo, ocorrido na ebulição dos acontecimentos da Revolução Francesa, da qual Pinel participou ativamente. Desse contexto, sob as determinações sociais da época, iniciou-se uma profunda transformação nas bases do que hoje se conhece por hospital.

Historicamente, o hospital surgiu como um espaço associado ao ideário cristão de acolhida e solidariedade, como a própria etimologia da palavra sugere - em latim, a palavra hospital significa hospedagem, hospitalidade. No século XVII, contudo, o hospital passou a desempenhar uma função social mais explícita, sobretudo no que confere ao papel do louco e da loucura no ocidente europeu. Tal função foi o exercício sistemático da segregação e isolamento de determinados grupos sociais, principalmente loucos e/ou pobres (Foucault, 2019FOUCAULT, M. A história da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2019.). Nesse hiato temporal, situa-se o alienismo, quando, por ocasião da Revolução Francesa, a medicina, com a finalidade de humanizar o Hospital Geral e torná-lo mais coerente com a pregação iluminista, converte-o em uma instituição médica por excelência (Foucault, 2019FOUCAULT, M. A história da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2019.). Nesse sentido, o hospital foi, paulatinamente, secundarizando os ideais de caridade e segregação e se configurando como um espaço de tratamento de doentes/enfermos.

De acordo com Amarante (2007AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007., p. 25), a medicalização do hospital configurou duas consequências dialéticas: “o hospital se tornou a principal instituição médica, ou seja, foi apropriado pela medicina, absorvido por sua natureza; em contrapartida, a medicina se tornou um saber e uma prática predominantemente hospitalares”. Um dos resultados desse movimento foi a criação de um modelo científico de medicina baseado na anatomoclínica.

É importante destacar que Pinel entendia que as causas da alienação mental não eram redutíveis às explicações organicistas. Entretanto, já em Cabanis foi possível observar um direcionamento à explicação anatomofisiológica da loucura, com a introdução do conceito de degeneração no campo da medicina. A esse respeito, Caponi (2012CAPONI, S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2012., p. 60) afirma que “a psiquiatria que se inicia com os teóricos da degeneração na segunda metade do século XIX manterá e aprofundará as ideias localizacionistas esboçadas por Cabanis, distanciando-se das críticas que Pinel dirigia a esse modelo explicativo de doenças mentais”. A teoria da degeneração, oriunda da França, teve impacto mundial, inclusive na comunidade científica da Alemanha e em Emil Kraepelin.

Mesmo com a influência das teorias da degeneração, o movimento de reconfiguração da psiquiatria em um saber com bases sustentadas fundamentalmente na fisiologia e na bioquímica foi tardio e ainda é motivo de contestação. O desenvolvimento da psiquiatria estadunidense é um exemplo significativo desse panorama.5 5 O caso norte-americano foi escolhido para exposição por configurar a gênese da articulação entre psiquiatria e indústria farmacêutica. O desenvolvimento histórico da psiquiatria brasileira, por exemplo, apresenta uma estrutura um pouco distinta da que ocorreu nos Estados Unidos da América. Para isso, vale lembrar, de acordo com Amarante (2007), a considerável contribuição das ideias de Kraepelin, e depois, Freud, na organização psiquiátrica. Contudo, apesar de diferenças importantes na sua história, a forma atual da medicalização capitaneada pela psiquiatria brasileira hegemônica é centrada no tratamento medicamentoso, não diferindo fundamentalmente da maioria dos países, apesar da reforma psiquiátrica recentemente iniciada nesse país. No final do século XIX, no país, as formas de terapia moral para os loucos passaram a ser questionadas, cedendo lugar aos “tratamentos físicos”, que compreendiam várias formas de hidroterapia, injeção de extrato de tireoide de ovelha, injeções de sais metálicos, soro equino e até extração dentária (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.).

Na passagem da década de 1930 para 1940, a psiquiatria manicomial voltou-se a três tratamentos diretamente cerebrais: o coma insulínico, as terapias convulsivas e a lobotomia frontal. É salutar registrar que tais formas contaram, à época, com o apoio de parcela expressiva da comunidade acadêmica e dos principais meios de comunicação, sendo esses tratamentos adjetivados como inovações milagreiras.

Em contraponto, observava-se o avanço das psicoterapias da palavra (sobretudo a psicanálise e o behaviorismo) e o crescente questionamento das fragilidades das técnicas psiquiátricas físicas anteriormente citadas. No entanto, do ponto de vista epistemológico, não há antagonismo entre a psiquiatria moderna e o behaviorismo, uma vez que o campo da psiquiatria e a abordagem behaviorista têm por fundamento o positivismo.

Em meio a tais questões e a comparação com o desenvolvimento científico de outras áreas da medicina, a psiquiatria tradicional entrou numa importante crise financeira e de legitimidade (Amarante, 2007AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.; Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.; Szasz, 1980SZASZ, T. S. Ideologia e doença mental: ensaios sobre a desumanização psiquiátrica do homem. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.). A referida crise é uma das marcas primordiais da psiquiatria enquanto campo da medicina científica. No contexto europeu, a partir das descobertas microbianas de Ehrlich, Pasteur e Koch, o saber médico passou a buscar e construir hipóteses mais consistentes de causas biológicas das doenças. Esse foi, desde então, o paradigma médico fundamental. Todavia, na psiquiatria, tal iniciativa se deparou com percalços significativos, tanto que a área foi acusada de estar mais alinhada às ditas ciências humanas do que às biológicas (Amarante, 2007AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.; Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.).

Desse modo, a falta de um paradigma biológico bem definido perpassou a transição do alienismo para a psiquiatria moderna europeia e norte-americana,6 6 Guardadas as devidas distinções. bem como parte da sua história inicial. A hipótese cerebral para as ditas doenças mentais, que marcou o início do século XX, não conseguia articular minimamente seus pressupostos com a terapêutica física. Foi nessa época que a indústria farmacêutica, em franco crescimento, despontou para lucrar com a angústia da crise psiquiátrica e dos sujeitos por ela atendidos.

A aliança firmada entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria, em meados da década de 1950, é a chave para o entendimento da ampliação do processo de medicalização da subjetividade e da epidemia das drogas psiquiátricas. Tal aliança, sob a tutela do Estado, tem sua expressão mais fundamental no caso norte-americano. Inicialmente, a American Medical Association (AMA) se institui como a organização que faria, junto ao Food and Drug Administration (FDA),7 7 FDA é um órgão governamental norte-americano, criado em 1862, com a função de controlar os alimentos e medicamentos da população, através de testes e pesquisas. a avaliação da segurança e eficácia dos medicamentos em solo estadunidense. Com isso, a AMA tornou-se “o cão de guarda da indústria farmacêutica e de seus produtos […], promovendo os interesses financeiros e de seus membros, porque suas avaliações davam aos pacientes uma boa razão para consultarem um médico” (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017., p. 70). Os médicos passaram a controlar o acesso do público aos medicamentos, tornando-se uma espécie privilegiada de vendedores das farmacêuticas. Essa aliança foi tão oportuna que esses profissionais passaram a trabalhar na promoção de novas drogas.8 8 A receita da AMA para a publicação de drogas em seus veículos saltou de 2,5 milhões de dólares em 1950 para 10 milhões de dólares em 1960 (Whitaker, 2017).

Foi no contexto alicerçado sobre esse conchavo que os primeiros medicamentos psicotrópicos foram lançados no mercado, na década de 1950. Nesse período, “o público estava ansioso por saber dos remédios milagrosos, e era exatamente essa a história que a indústria farmacêutica e os médicos estavam ansiosos para contar” (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017., p. 72).

Importa pensar também que o êxito mercadológico da indústria farmacêutica necessitaria da produção de um novo tipo de “doente mental”, que não fosse aquele da primeira metade do século XX. Como já antecipado, a determinação do patológico há muito já era uma prerrogativa da medicina científica, e, no contexto de inserção dos primeiros psicofármacos, isso foi ainda mais contundente. Freitas e Amarante (2017FREITAS, F.; AMARANTE, P. Medicalização em psiquiatria. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017., p. 33) afirmam que o papel do médico se estendeu para além da sua relação dual com o paciente, afinal a psiquiatria se tornou o intermediário fundamental da indústria farmacêutica diante do sujeito. Nessa relação, agora tríplice, o paciente foi convertido em um doente agrupado segundo certa construção nosológica, compatível com tais propósitos: tratar-se-á de re-medicalizar a subjetividade, agora sob as bases neuroquímicas.

Nesse sentido, a medicalização da subjetividade é um fenômeno tipicamente contemporâneo, que se desdobra mediante a requisição do saber psiquiátrico, por meio de compromissos ideológicos de sustentação e legitimação dos parâmetros da sociedade do capital. Tal associação se desdobra em diversas instâncias da reprodução social, como a educação, o setor saúde e a economia - com destaque para o papel da indústria farmacêutica e de tecnologias da saúde.

Faz-se oportuno lembrar que o capital está presente na história muito antes de constituir um sistema em torno de si - o capitalismo (Marx, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro 1. 31. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. v. 1.). Na perspectiva marxiana, o capital é uma relação social erguida na subordinação do trabalho vivo, que, uma vez transformado em capital, é convertido em trabalho morto, quantificado, acumulado e alienado. Nessa linha, Mészáros (2002MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo , 2002.) entende que mesmo nos países do socialismo real, o capital continuou determinando a reprodução econômica. Portanto, a partir desses pressupostos, consideramos a medicalização como um fenômeno típico das sociedades contemporâneas, nas quais o capital é (ou foi) a relação produtiva fundamental, expressando-se tanto nas sociedades capitalistas, quanto naquelas pertencentes ao “campo socialista”.

Não obstante, no período pós-revolução de 1917 na Rússia, a partir da influência da psicologia histórico-cultural desenvolvida por Vigotski, baseada no materialismo histórico e dialético, tomou-se o adoecimento psíquico como constituído histórica e socialmente, entendido como produto (não exclusivamente, mas determinado) das relações sociais. No entanto, no dito período de stalinização da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) a influência da psicologia histórico-cultural foi drasticamente secundarizada, dando lugar às ideias de condicionamento do fisiólogo Ivan Pavlov e só retornando na década de 1960, a partir da patopsicologia experimental desenvolvida por Bluma Zeigarnik, psicóloga lituana e discípula de Vigotski (Silva; Tuleski, 2015SILVA, M. A. S.; TULESKI, S. C. Patopsicologia experimental: abordagem histórico-cultural para o entendimento do sofrimento mental. Estudos de Psicologia, Natal, v. 20, n. 4, p. 207-216, 2015. DOI: 10.5935/1678-4669.20150022
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).

Destacamos ainda que a medicalização não deve ser reduzida à medicamentalização. A medicalização é um fenômeno estruturado na consideração de experiências e condutas socialmente indesejáveis como objetos da saúde, logo, não é restrita à terapêutica farmacológica. Já a medicamentalização é uma particularização desta última, tratando-se de “[…] um fenômeno cultural amplo que diz respeito às interseções entre droga, medicina e sociedade e inclui a demanda dos pacientes por […] medicamento” (Rosa; Winograd, 2011ROSA, B. P. G. D.; WINOGRAD, M. Palavras e pílulas: sobre a medicamentalização do mal-estar psíquico na atualidade. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 23, n. spe, p. 37-44, 2011. DOI: 10.1590/S0102-71822011000400006
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201100...
, p. 42). No campo da psiquiatria, a medicamentalização só emergiu como fenômeno significativo a partir da segunda metade do século XX.

Da biologização da subjetividade ao fetiche psicofármaco

A epidemia das drogas psiquiátricas não seria possível sem que a reformulação da medicalização da subjetividade se apoiasse na sua biologização.9 9 Esse tem sido propriamente o movimento da psiquiatria hegemônica: atribuir determinado sintoma a uma (des)ordem moral e tentar apreendê-lo e explicá-lo biologicamente. Isso implica dizer que a indústria farmacêutica, para lograr êxito em conceber um grupo consumidor, precisaria reduzir a subjetividade, como sua estrutura mais fundamental, ao funcionamento neuronal. Com isso, tornou-se imperativa a produção de discursos alinhados aos propósitos ideológicos da aliança firmada entre a indústria farmacêutica e a “nova” psiquiatria, inclusive na sua faceta acadêmica.

Como não existe produção de conhecimento sem processos discursivos, é a função discursiva que materializa na linguagem uma determinada ideologia teórica, que, por sua vez, orienta a tomada de posição na produção de saber. Por essa razão, o sistema de ideologias teóricas, próprio de uma formação social específica, é acompanhado de formações discursivas que lhes são correspondentes e/ou contrárias. Dessa maneira, “o processo da produção dos conhecimentos está, pois, indissociavelmente ligado a uma luta a propósito de nomes e de expressões para aquilo que eles designam […]” (Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014., p. 180, grifo do autor).

Conforme Coser (2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.) aponta, a forma mais eficiente de simbolizar os interesses coorporativos da indústria farmacêutica e da psiquiatria é por meio do poder das metáforas. Com isso, produziu-se no imaginário contemporâneo o corpo metaforizado como uma espécie de máquina neuroquímica, cuja engenharia funcionará no plano farmacoquímico, “[…] através da química e física das investigações moleculares; no propagandístico, por ícones, analogias e metáforas” (Coser, 2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010., p. 10). Uma vez que os meios de divulgação reproduzem tais discursos, “nós criamos ou damos consistência imaginária para essas metáforas, que, encarnadas, são vividas como o grande enigma (ou a grande resposta) que governa a vida de cada um - a serotonina, a endorfina…, metáforas farmacológicas com as quais se vive” (Coser, 2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010., p. 10).

As origens desse empreendimento datam da metade do século passado. No entanto, a causa que requisita esse tipo de saber da psiquiatria remonta às bases históricas da sociedade capitalista, em sua relação com o processo de produção dos conhecimentos, mais precisamente com a sua face positivista.

Mészáros (2004MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo , 2004., p. 246) afirma que, com a necessidade do capital em fazer ascender o positivismo na primeira metade do século XIX, “[…] nasceu um novo tipo de relacionamento entre ciência, tecnologia e indústria, que sustentou a realização das potencialidades produtivas da sociedade em uma extensão anteriormente inimaginável”. Isso ocorreu “[…] em parte devido a um crescimento qualitativo significativo do domínio da natureza e, em estreita relação com este último, a um aumento inimaginável da produtividade do trabalho […]” (Lukács, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 45-46). Por meio do imperativo de expansão e acumulação de capital, as ciências naturais se tornaram o modelo básico da produção de conhecimento, uma vez que o desenvolvimento dessas últimas é condição elementar para a ampliação de técnicas e tecnologias que garantam o aumento da produtividade econômica, em níveis compatíveis com as necessidades do capital.

De fato, a relação entre capitalismo e positivismo é, por demais, estreita, e sua base se ergue sob duas razões centrais: a) a manipulação da natureza numa eficiência nunca vista e b) a negação à ontologia (Lukács, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.). Essas duas razões são expressas em unidade dialética, daí o questionamento de Lukács (2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 39), que indaga se “[…] as verdades das ciências naturais reproduzem efetivamente a realidade objetiva ou apenas possibilitam a sua manipulação prática […]”, é fundamental para o andamento desta análise.

Nascido no contexto capitalista, o positivismo é considerado, até os dias atuais, a forma científica mais eficiente de manipulação da natureza. Esse foco extensivo no domínio da natureza traz consigo uma limitação interessante, que exclui a análise da totalidade social, eliminando as categorias decisivas da natureza e da matéria, uma vez que sua atividade permanece presa ao imediato da manipulação fragmentada, mesmo em se tratando, por exemplo, da ciência produzida no chamado “campo socialista”.

No positivismo,

[…] o funcionamento do conhecimento da natureza - em cada ciência singular - em sua objetividade prático-imanente, é deixado gnosiologicamente intacto, ao lado de uma rejeição - igualmente gnosiológica - de toda “ontologização” de seus resultados, de todo reconhecimento da existência de objetos em si, independentes da consciência cognoscente […]. (Lukács, 2013LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 40, grifo do autor)

Dessa forma, a fragmentação é a consequência do reducionismo - nesse caso, biológico/cerebral - que caracteriza o edifício positivista enquanto empreendimento metodológico-ideológico-discursivo, no qual se ergue o saber psiquiátrico, sob a determinação da indústria farmacêutica a partir da segunda metade do século XX. Por sua vez, a constituição desse funcionamento expressa o que aqui se entende por fetichismo psicofármaco.

A fórmula clássica e fundamental de um fetiche é o todo pela parte, funcionando por sinédoque - ocorre produção de um efeito de universalização do particular, procedimento no qual, em meio a um determinado fenômeno, elege-se uma determinada parte deste para ser tomada como denominador comum redutivo do complexo em questão. No que trata esta análise, o fetichismo psicofármaco opera no reducionismo da subjetividade ao funcionamento nervoso e, a partir daí, a subjetividade humana pode ser reduzida, em última instância, ao funcionamento das redes neuronais.

Todavia, a forma que a psiquiatria encontrou para estruturar o fetiche psicofármaco já era pressuposto de outras áreas da medicina. A operação consistia em tornar farmacológica a medicalização, ou seja, patologizar (via reducionismo biológico) e fundamentar sua terapêutica, sempre que possível, no uso de medicamentos. No entanto, a sinédoque na psiquiatria ainda não tinha enredo bem definido, uma vez que os tratamentos físico-químicos anteriores não tinham se sustentado à prova da crítica.

A narrativa moderna da psicofarmacologia surgiu, então, na ironia comum de boa parte das descobertas farmacológicas do século XX: encontrar efeito terapêutico a partir de efeitos inesperados. Desse modo, o início da psicofarmacologia é de certa forma um acidente”, como expressam os casos pioneiros da clorpromazina, do meprobamato e do clorodiazepóxido (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.; Coser, 2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.). Coser (2010)COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010., inclusive, salienta que tal regularidade se deu também com os antidepressivos inibidores de monoamina oxidase, outros antidepressivos, ansiolíticos e as butirofenonas.

Esses “acidentes” bem-sucedidos permitiram à indústria farmacêutica e à psiquiatria a formulação das hipóteses das aminas biogênicas, sua sinédoque fundamental.10 10 Atualmente, a teoria das aminas biogênicas perdeu força como modelo acadêmico explicativo principal, o que não significa que não seja o modelo dominante na prática clínica ou que se tenha abandonado a explicação biológica como causa dos ditos transtornos mentais. Em suma, tais hipóteses apostam que a causa dos sofrimentos psíquicos, transformados em transtornos/doenças mentais, é um desequilíbrio neurobiológico de certos transmissores sinápticos.

Cabe lembrar que a hipótese que entende a subjetividade como centralmente determinada pelo funcionamento químico e fisiológico do cérebro é bem anterior ao desenvolvimento de medicamentos psicotrópicos. Todavia, foi devido ao uso empírico dos fármacos que tal concepção se expandiu. Whitaker (2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.) aponta que a raiz teórica da hipótese das aminas biogênicas surgiu na década de 1950, quando ainda se debatia sobre de que forma os sinais atravessavam os neurônios. Ao se conseguir, contudo, isolar acetilcolina, serotonina, norepinefrina e dopamina, o modelo da sinapse química rapidamente prevaleceu. Nessa linha, a partir de 1955, iniciativas como as de Bernard Brodie, Arvid Carlsson, Joseph Schildkraut e Jacques Van Rossum defenderam hipóteses biológicas sobre a causa dos transtornos/doenças mentais.

Entretanto, tais postulados padeciam da mesma debilidade metodológica: supor a fisiopatologia da pretensa doença a partir do mecanismo de ação do fármaco (Whitaker, 2007WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.; Coser, 2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.). Foi devido à descoberta de parte do mecanismo de ação do psicofármaco - sua resposta biológica - que se produziu a explicação, dominante até hoje, que os transtornos/doenças mentais são decorrentes de desequilíbrios fisiológicos. Dessa forma, as supostas causas biológicas foram sugeridas pela imagem invertida do funcionamento farmacológico. Em síntese: não foram as causas que determinaram as condutas terapêuticas, mas o inverso, as condutas - acidentais, em sua maioria - que determinaram a causa.

Para explicar o funcionamento discursivo característico do fetiche psicofarmacológico, recorre-se ao exemplo de um dos psicotrópicos mais vendidos e utilizados no Brasil, o antidepressivo tricíclico (ADT) cloridrato de amitriptilina. Sua ação decorre da inibição da captação neuronal de norepinefrina e serotonina no terminal nervoso pré-sináptico (Rang et al., 2010; Whalen; Finkel; Panavelil, 2016WHALEN, K.; FINKEL, R.; PANAVELIL, T. A. Farmacologia ilustrada. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016.). Para os que ainda compartilham do mito da causa biológica da depressão, esta seria decorrente, sobretudo, de um suposto déficit cerebral de serotonina, mas também de dopamina e/ou norepinefrina. Nesse sentido, o cloridrato de amitriptilina, ao inibir a recaptação pré-sináptica, proporciona as quantidades de serotonina e norepinefrina necessárias para o restabelecimento das atividades cerebrais “normais”.

Quando a terapêutica para a depressão é centrada na atuação biológica medicamentosa, em específico no uso do cloridrato de amitriptilina, o sujeito do cuidado psiquiátrico torna-se redutível à sua dimensão biológica elementar - suas células nervosas. A dimensão biológica da subjetividade é, então, deslocada à condição dominante do psíquico, razão pela qual o fetichismo do psicofármaco expressa seu efeito de sentido elementar na produção da afirmativa: somos nosso cérebro. Nessas circunstâncias, o psiquiatra se torna uma espécie de engenheiro neuronal.

Nessa linha de reflexão, a fetichização dos medicamentos psicotrópicos produz um efeito de silenciamento da dimensão sócio simbólica. Em outras palavras, a evidência de automação fisiológica da subjetividade, criada pela ciência positivista dos tempos atuais,11 11 Conhecida também sob o título sugestivo de neurociência. busca esconder as determinações sociais das formas de sofrimento psíquico, das quais a depressão faz parte. Ao ignorar tais determinações, individualizar e hiper dimensionar a estrutura biológica da subjetividade, a ideologia psiquiátrica dominante se vale da antiga estratégia burguesa de culpabilizar a vítima. Dessa forma, essa parte da psiquiatria serve aos propósitos de conservação da sociedade do capital, uma vez que seu proceder implica na limitação da capacidade de apreender a complexidade das relações sociais contraditórias nesse sistema e assim contestá-lo.

Por isso, a forma fetichizada do uso do psicofármaco é caracterizada também por sua capacidade de produzir estranhamento: nesse tipo de funcionamento, as sinapses neurais se projetam contra o sujeito que as integra, como uma força hostil que o controla. O sujeito, reduzido ao biológico, perde-se no movimento “autônomo” do metabolismo das suas aminas. A partir desse discurso, assumem poderes fantasmagóricos sobre a subjetividade.

Todavia, o poder fantasmagórico do psicofármaco não é da ordem do sobrenatural, mas advém da ordem material estruturada na forma com que os sujeitos se relacionam na sociedade. Desse modo, a função social do fetichismo do medicamento psicotrópico no capitalismo possui duas razões complementares e articuladas de maneira indissociável: uma econômica, alinhada aos imperativos de reprodução e acumulação do capital (especificamente, os alinhados ao complexo industrial da saúde); e outra ideológica, decorrente da necessidade de estabelecer um conjunto de discursos orientados à reprodução e à manutenção da forma capitalista de sociedade, a partir de estratégias de controle. O fármaco se torna a nova alternativa para o silenciamento, isolamento e controle, antes exercidos hegemonicamente pelo manicômio.

Em função disso, o fetichismo do psicofármaco é estruturado em outro fetiche ainda mais embrionário, o da mercadoria, fundamento da sociedade capitalista (Marx, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro 1. 31. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. v. 1.). Dessa forma, é preciso entender o fármaco psicotrópico também sob a forma-mercadoria-medicamento. A consideração da medicação como uma mercadoria implica no entendimento de que sua realização perpassa o momento da produção, da circulação e do consumo. Decorrente da necessidade de ter seu produto comercializado para poder valorizar o capital, a indústria farmacêutica investe, anualmente, vultosas quantias monetárias na manutenção da sua aliança com a psiquiatria e nas metáforas que dão materialidade às campanhas de marketing de suas “pílulas mágicas” (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.; Coser, 2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.).

Todavia, a mercadoria-medicamento também satisfaz às necessidades (terapêuticas ou imaginárias) dos seus usuários e alivia momentaneamente certos sintomas do sofrimento psíquico, e é por esse motivo que sua demanda é crescente. Em função disso, a crítica feita neste artigo não é à substância farmacológica em si, mas à maneira capitalista do seu consumo, que, a partir da determinação mercantil, desloca o fármaco da condição de aliviador de sintomas, e, pelo efeito das metáforas produzidas, o elege como núcleo da terapêutica, dotando-o de poder para incidir na causa do suposto transtorno (Coser, 2010COSER, O. As metáforas farmacoquímicas com que vivemos: ensaios de metapisocofarmacologia. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.).

O efeito dessas metáforas é expresso, por exemplo, quando, nas campanhas comerciais e nos dizeres dos usuários e dos trabalhadores em saúde, os psicofármacos são enunciados sob o título de antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos. Observa-se, com isso, um funcionamento no qual o usuário passa a depositar no uso da medicação a expectativa de ser cuidado e protegido, secundarizando o fato desse uso, quando recomendado, ser apenas um dos recursos de tratamento; e que “[…] sua eficácia é dependente das muitas ações outras que são desenvolvidas em uma dada ‘linha do cuidado’ que se processa no interior dos serviços de saúde e esta é determinada por processos sociais, técnicos e de subjetivação […]” (Franco; Merhy, 2005FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. A produção imaginária da demanda e o processo de trabalho em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Org.) Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ; ABRASCO, 2005., p. 3, grifo do autor).

Até mesmo a abordagem psicossocial da saúde mental, objeto da Reforma Psiquiátrica (RP), não consegue sozinha superar a hegemonia da abordagem medicamento-centrada, e vem sendo paulatinamente, não obstante os seus avanços, secundarizada e tomada como complementar à terapêutica farmacológica. Se bem que, conforme aponta Oliveira (2021OLIVEIRA, J. R. de. Os sentidos do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. 2021. 204 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2021.), parece não haver sequer uma terapêutica medicamentosa, mas um processo reduzido de busca da receita-consulta-dispensa da medicação, constituindo-se, dessa forma, como um ciclo do cuidado em saúde mental focado, quase que exclusivamente, no uso dos psicofármacos. Eis o fenômeno, alvo fundamental da crítica deste trabalho.

Considerações finais

A invenção biológica das causas dos transtornos mentais, como é conhecida atualmente, se deu, em grande parte, por ação do complexo industrial farmacêutico. Tal processo é coerente com a dinâmica fundamental do capital de subjugar os demais complexos sociais. Não foi só a psiquiatria, mas a indústria farmacêutica (expressão setorial do capital) que hegemonizou o discurso biologizante do sofrimento psíquico, e a psiquiatria não se ocupou apenas de dizer pela indústria, como foi discursivizada por esta. Em uma análise dialética mais ampla, o papel da psiquiatria foi o de ser também um suporte na legitimação dos interesses econômicos do setor farmacêutico.

Não se nega a capacidade da medicação psicotrópica de satisfazer certas necessidades humanas, tão menos os benefícios que podem ser oferecidos por elas às pessoas em sofrimento psíquico, afinal, não somos somente nosso cérebro, mas o somos em certa medida. Assim, não se teve por finalidade construir um entendimento negativo do desenvolvimento e aperfeiçoamento farmacológico. O que se buscou foi criticar os fundamentos da forma capitalista de consumo e prescrição dos psicofármacos. Por isso, a análise perpassou obrigatoriamente por uma crítica ao modelo de metabolismo social que o capital impõe aos sujeitos, na expectativa de que se possa ir além da terapêutica fetichizada e mostrar que os fármacos são produtos sociais e que o sujeito é mais que sua dimensão biológica.

Por fim, espera-se contribuir com as práticas daqueles que lutam pelo legado do movimento antimanicomial e, com isso, somar aos esforços dos sujeitos envolvidos na produção de práticas efetivamente humanizadas e críticas, cuja matéria prima é uma terapêutica com altas doses de acolhimento, escuta qualificada, afeto, empatia e autonomia.

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  • 1
    A gama de fármacos que, de diferentes maneiras, afetam o humor e o comportamento (Rang; Dale, 2010).
  • 2
    A referida sigla decorre da formulação derivada da associação das empresas Quintiles e IMS Health e do termo “via”, do latim, que significa “por meio de”. A fusão ocorreu em 2006 e trata-se de uma empresa voltada para a informação e serviços de investigação clínicas e soluções tecnológicas.
  • 3
    Numa perspectiva discursiva, a posição do porta-voz consiste naquela que se situa “ao mesmo tempo como ator visível e testemunha ocular do acontecimento […]” (Pêcheux, 1990PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões e deslocamentos. Tradução de José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 19, p. 7-24, 1990. DOI: 10.20396/cel.v19i0.8636823
    https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.86368...
    , p. 17). Configura-se, antes de tudo, como sujeito que fala “em nome de…”, por um efeito visual “[…] que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim ser visto: o porta-voz se expõe ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele representa e sob seu olhar” (Pêcheux, 1990PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões e deslocamentos. Tradução de José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 19, p. 7-24, 1990. DOI: 10.20396/cel.v19i0.8636823
    https://doi.org/10.20396/cel.v19i0.86368...
    , p. 17).
  • 4
    Neste artigo, o termo “médico” remete a uma posição-sujeito no discurso, historicamente produzida.
  • 5
    O caso norte-americano foi escolhido para exposição por configurar a gênese da articulação entre psiquiatria e indústria farmacêutica. O desenvolvimento histórico da psiquiatria brasileira, por exemplo, apresenta uma estrutura um pouco distinta da que ocorreu nos Estados Unidos da América. Para isso, vale lembrar, de acordo com Amarante (2007)AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007., a considerável contribuição das ideias de Kraepelin, e depois, Freud, na organização psiquiátrica. Contudo, apesar de diferenças importantes na sua história, a forma atual da medicalização capitaneada pela psiquiatria brasileira hegemônica é centrada no tratamento medicamentoso, não diferindo fundamentalmente da maioria dos países, apesar da reforma psiquiátrica recentemente iniciada nesse país.
  • 6
    Guardadas as devidas distinções.
  • 7
    FDA é um órgão governamental norte-americano, criado em 1862, com a função de controlar os alimentos e medicamentos da população, através de testes e pesquisas.
  • 8
    A receita da AMA para a publicação de drogas em seus veículos saltou de 2,5 milhões de dólares em 1950 para 10 milhões de dólares em 1960 (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2017.).
  • 9
    Esse tem sido propriamente o movimento da psiquiatria hegemônica: atribuir determinado sintoma a uma (des)ordem moral e tentar apreendê-lo e explicá-lo biologicamente.
  • 10
    Atualmente, a teoria das aminas biogênicas perdeu força como modelo acadêmico explicativo principal, o que não significa que não seja o modelo dominante na prática clínica ou que se tenha abandonado a explicação biológica como causa dos ditos transtornos mentais.
  • 11
    Conhecida também sob o título sugestivo de neurociência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2023
  • Aceito
    19 Dez 2023
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