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As formas de padecimento no trabalho

EDITORIAL ESPECIAL

As formas de padecimento no trabalho

Ricardo Antunes

Professor Titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP e pesquisador do CNPq

O leitor encontra, neste número especial de Saúde e Sociedade, um inventário detalhado das tantas penalizações que vêm afetando o mundo do trabalho, com um olhar especialmente voltado para as formas de padecimento, adoecimento e sofrimento. Estas formas emergem da era do capitalismo liofilizado e flexibilizado que aflorou com a monumental reestruturação produtiva do capital, desencadeada nos países centrais desde meados dos anos 1970 e no Brasil especialmente a partir dos anos 1990.

A temática é ampla, contemplando os acidentes e a saúde no trabalho; as variadas formas da fadiga; as tantas violências físicas e mentais; o absenteismo, dentre outros pontos discutidos. O universo analisado também é multifacetado: metalúrgicos, téxteis, trabalhadores do açucar, motoristas de caminhão, trabalhadores públicos da saúde, policiais militares, bancários, ou ainda adolescentes portadores de necessidades especiais. Os trabalhadores são contemplados em suas múltiplas dimensões: sua subjetividade, condições de trabalho, vigência ou ausência de políticas públicas, etc.

O chão social, que faz aflorar este inventário, originou-se com o vasto processo de reestruturação produtiva do capital, desencadeado em escala global, cujo leitmotiv era a recuperação do padrão de acumulação e a hegemonia dos capitais, abalados desde as explosões sociais do final da década de 1960.

O capitalismo, a partir de então, estruturou-se seguindo algumas tendências, que podem assim ser resumidas: 1) o padrão produtivo taylorista e fordista passou a ser crescentemente substituído, mesclado, ou alterado pelas formas produtivas flexibilizadas e desregulamentadas, das quais a chamada acumulação flexível e o modelo japonês ou toyotismo são exemplares; 2) o modelo de regulação social-democrático e seu estado keynesiano, geradores do chamado welfare state em vários países do Norte, foram ou vem sendo solapados pela desregulação neoliberal, privatizante e anti-social, acentuando os elementos destrutivos desta lógica produtiva.

Desenvolve-se, então, uma precarização, sem paralelos em toda era moderna, da força humana que trabalha, que oscila entre a busca de trabalhos precários e a vivência do desemprego. Há perenidade e superfluidade do trabalho porque os capitais não podem se reproduzir sem a extração do sobre-trabalho. Por outro lado, podem se reproduzir intensificando o trabalho daqueles que se encontram no mundo produtivo e expulsando um enorme contingente que não tem mais como ser incorporado e absorvido pelo mundo produtivo.

No Brasil, esse quadro se acentuou durante a década de desertificação neoliberal, nos anos 1990, quando presenciamos a pragmática desenhada pelo Consenso de Washington e uma significativa reestruturação produtiva nos universos industrial e de serviços, consequência da nova divisão internacional do trabalho, que exigiu mutações no plano da organização sócio-técnica da produção e nos processos de re-territorialização e desterritorialização da produção.

Foi nesse contexto que se redesenharam novas (e velhas) modalidades de trabalho, que se gestou uma nova engenharia produtiva, cujo objetivo era ampliar as formas de agregação de valor, através de um redesenho sócio-técnico da produção e da criação de novas formas de gestão e controle do trabalho. Proliferaram, a partir de então, os exemplos de "empresa enxuta", "empreendedorismo", "cooperativismo", "trabalho voluntário", "colaboradores", "consultores", expressões disfarçadas de trabalho que, em verdade, ocultam os seus reais significados, ou seja, a proliferação dos contratos desprovidos de direitos, desconstruídos em seus alicerces, desmontados em seus fundamentos.

A constatação que se pode fazer desta processualidade é a verificação de uma monumental tendência à precarização do trabalho em escala global, que afeta dos Estados Unidos ao Japão, da Europa à Ásia, da China à Índia. E que rebate diretamente em nosso continente e, em particular, nas condições de trabalho em nosso país.

Esta precarização está presente na intensificação da atividade laborativa, no aumento do esforço, nas responsabilizações, nas individualizações, na cobrança de um trabalho segundo os preceitos de "metas", "competências", onde a lógica humano-societal é substituída por um produtivismo típico da era privatista, por uma lógica movida pela (des)razão instrumental.

O trabalho, espaço de sobrevivência possível para aqueles que só dispõem da venda de sua força de trabalho, tornou-se, então, o lócus por excelência das jornadas extenuantes, da precarização dos direitos sociais, dos medos e dos temores constantes do desemprego, do stress para se manter no emprego, ou ainda das lesões por esforço repetitivo (LER) e dos múltiplos modos de ser do adoecimento. É um adoecimento típico da era informacional.

Novas consequências ainda podem ser esperadas, pois estamos em plena fase de crise profunda do capitalismo, cujas repercussões e consequências no universo do trabalho serão tão duras quanto imprevisíveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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