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“Aquende a neca e aperte os seios”: inteligibilidade, trabalho e saúde nas experiências de pessoas trans universitárias

“Tuck the girldick and bind the breasts:” intelligibility, work, and health in the experiences of university trans people

Resumo

As pessoas trans estão expostas a diferentes situações de vulnerabilidade que se entrecruzam, causando impactos negativos no processo saúde-doença-cuidado. Para melhor compreender essa questão, buscamos conhecer as experiências de sete estudantes trans de uma universidade pública de Minas Gerais, a partir de entrevistas norteadas por roteiro semiestruturado. As falas foram analisadas pela perspectiva da análise de conteúdo, e as categorias finais foram tensionadas com estudos das ciências sociais e da saúde coletiva. De forma geral, as narrativas se diferenciaram daquelas que compõem a maioria das pesquisas sobre o tema no Brasil, sobretudo em relação à manutenção de vínculos familiares e ao acesso à universidade pública. Nesse sentido, formulamos a hipótese de que a interação desses elementos com outros marcadores de diferenças pode contribuir positivamente para o estabelecimento de alianças e estratégias, a fim de lidar com o regime de inteligibilidade das identidades de gênero e com as dificuldades de acesso à educação, ao trabalho e à saúde. Compreender essa dinâmica e suas limitações, em uma perspectiva em que o individual se enlaça ao coletivo, possibilitou evidenciar o funcionamento da (hétero)normatividade nos processos de segregação de pessoas trans, assim como refletir sobre ações políticas que possam transformar essa realidade social efetivamente.

Palavras-chave:
Pessoas Trans; Vulnerabilidade Social; Política Pública; Atenção Integral à Saúde

Abstract

Transgender people are exposed to different situations of vulnerability that intersect, having negative impacts on the health-illness-care process. To better understand this issue, we sought to know the experiences of seven transgender undergraduates at a public university in Minas Gerais, from semi-structured interviews. The narratives were analyzed on the perspective of content analysis, and the final categories juxtaposed with studies of social sciences and public health. In general, the narratives are different from those which account for most of the research on the theme in Brazil, especially regarding maintaining family bonds and the access to public universities. Hence, we formulated the hypothesis that the interaction between these elements and other markers of differences can positively contribute to establishing alliances and strategies to deal with the regime of gender identity intelligibility and the constraints of access to education, work, and health. Understanding these dynamics and their limitations, under the perspective in which the individual and the collective are intertwined, enabled us to highlight the role of (hetero)normativity in the segregation processes of transgender people, as well as reflecting on the political actions that might effectively transform this social reality.

Keywords:
Transgender People; Social Vulnerability; Public Policy; Comprehensive Health Care

Introdução

As pessoas trans estão situadas em diferentes posições de precariedade (Butler, 2019BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica , 2019.), que podem acentuar a vulnerabilidade1 1 A vulnerabilidade, nesse caso, decorre de uma distribuição desigual da precariedade constitutiva da vida, numa lógica em que alguns corpos se tornam dignos de luto e outros não (Butler, 2019). e interferir negativamente no processo saúde-doença-cuidado ao longo de suas vidas. No Brasil, são recorrentes relatos de expulsão precoce de casa, evasão escolar e acesso precário ao mercado formal de trabalho. Tais violações cotidianas de direitos são acompanhada de outras formas de violência, incluindo assassinatos com requintes de crueldade (Benevides, 2023Benevides, B. G. Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil (Antra), 2023.).

Apesar do silenciamento do Estado em relação a essa questão, a mobilização dos movimentos sociais e de outros atores nacionais tem alcançado algumas conquistas (Rios; Perez, 2020Rios, F.; Perez, O. C. Interseccionalidade e diversidade nas universidades brasileiras: mudanças da última década. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I.L. (Org.). Direitos em disputa: LGBT+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp , 2020, p. 89-115.). No campo da saúde, por exemplo, existem portarias, notas técnicas e resoluções que, mesmo de forma incipiente, legitimam e protegem as pessoas que desafiam as normas de gênero e sexualidade. Entre elas, destacamos a Política Nacional Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT) que, embora reconheça os efeitos da discriminação e da exclusão no processo de saúde-doença-cuidado dessa população, apresenta limitações em sua implementação, tais como a insuficiência de investimentos em recursos humanos e materiais, a centralização de serviços especializados nas capitais e a manutenção de práticas que dificultam o acesso ao cuidado humanizado e integral (Miskolci et al., 2022MISKOLCI, R. et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos, Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27. n. 10, p. 3815-3824, 2022.).

No campo da educação, instituições públicas de ensino superior têm adotado ações afirmativas locais desde 2001, ampliando gradualmente o acesso à universidade. Ainda que esse processo tenha se dado de forma heterogênea, é possível detectar, especialmente nos últimos anos, mudanças no perfil dos universitários em relação à classe social, à raça/cor, à etnia e à gênero e/ou sexualidade. Isso tem favorecido a formação de coletivos, que se aliam a partir de diferentes marcadores sociais (Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.) para reivindicar direitos e reconhecimento, construindo novas formas de resistências. Alguns efeitos dessas lutas incluem o direito ao uso do nome social e a abertura de cotas trans nas pós-graduações (Rios; Perez, 2020Rios, F.; Perez, O. C. Interseccionalidade e diversidade nas universidades brasileiras: mudanças da última década. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I.L. (Org.). Direitos em disputa: LGBT+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp , 2020, p. 89-115.).

Além disso, a partir de 2010, assistimos no âmbito jurídico-institucional decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que reforçam essa garantia de direitos. É o caso da decisão de 1 de março de 2018, que assegurou às pessoas trans o direito de retificarem prenome e gênero em seus documentos diretamente nos cartórios, sem a necessidade de laudos médicos (Brasil, 2018BRASIL. Provimento 73, de 28 de junho de 2018. Dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files//provimento/provimento_73_28062018_02072018160046.pdf >; Acesso em: 19 jan. 2024.
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), e da decisão de 13 de junho de 2019, que criminalizou a homotransfobia, equiparando-a ao crime de racismo (Benevides, 2023Benevides, B. G. Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil (Antra), 2023.).

Reconhecer essas conquistas não significa desconsiderar os efeitos da “cidadania precária” (Bento, 2014Bento, B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014.), estratégia historicamente utilizada pelo Estado para manter pessoas trans na zona de abjeção. De todo modo, embora ações institucionais e decisões do STF não sejam suficientes para garantir o acesso a direitos fundamentais por essa população, elas podem funcionar como marcos simbólicos que abrem espaços para novas negociações, criando realidades menos violentas (Rios; Perez, 2020Rios, F.; Perez, O. C. Interseccionalidade e diversidade nas universidades brasileiras: mudanças da última década. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I.L. (Org.). Direitos em disputa: LGBT+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp , 2020, p. 89-115.).

Contudo, esse efeito não é homogêneo, e depende de como as precariedades são distribuídas e combinadas entre os corpos na produção de distintas vulnerabilidades (Butler, 2019BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica , 2019.). Ainda que as pessoas trans sejam marcadas por questões relacionadas à identidade de gênero, elas também são atravessadas por outras variáveis - classe social, raça/cor, etnia etc. - que se articulam dinamicamente, (re)produzindo sujeitos, subjetividades, desigualdades e hierarquias (Brah, 2006BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, 2006.; Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.). Portanto, para entender os entrecruzamentos dessas vulnerabilidades, é preciso observar experiências singulares em contextos histórico-políticos específicos, levando em conta as cenas em disputa nos aparatos de Estado, assim como as articulações e arranjos dos movimentos sociais (Carrijo et al., 2019CARRIJO, G. G. et al. Movimentos emaranhados: travestis, movimentos sociais e práticas acadêmicas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e54503, 2019.).

Tal perspectiva nos pareceu interessante para discutir achados da investigação, que teve como objetivo (re)conhecer vivências de pessoas trans de uma cidade universitária de Minas Gerais. Nos deparamos, nesse processo, com histórias de vida que de alguma forma se diferenciam daquelas que compõem a maioria das pesquisas sobre o tema no Brasil, sobretudo no que diz respeito à manutenção de vínculos familiares e ao acesso à universidade pública. Conforme destacado nos relatos, são pessoas que escaparam das trajetórias de invisibilidade e marginalização tão recorrentes nas narrativas dessa população, mas que ainda assim encontram limites para reconhecimento e legitimação de suas vidas.

Percurso teórico-metodológico

Esta pesquisa é de natureza qualitativa e buscou refletir sobre experiências singulares de estudantes trans de uma universidade pública do interior de Minas Gerais com foco em diferentes dimensões de suas vidas, incluindo saúde, educação e trabalho. Para acessar possíveis participantes acionamos informantes-chave, que nos indicaram pessoas trans que residiam no município em questão. Fizemos contato através de redes sociais para apresentarmos o projeto e convidá-las para colaborar. Sete pessoas aceitaram o convite, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram entrevistadas em seus locais de preferência. A proposta foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Institucional (CAAE 79745317.1.0000.5150), e o anonimato dos(as) participantes foi preservado (Tabela 1).

Tabela 1
Participantes da pesquisa

Durante os encontros, buscamos nos adaptar às singularidades dos(as) entrevistados(as), tecendo uma relação de confiança que favorecesse a construção de uma narrativa mais fluida, ética e respeitosa sobre as suas vivências (Carrijo et al., 2019CARRIJO, G. G. et al. Movimentos emaranhados: travestis, movimentos sociais e práticas acadêmicas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e54503, 2019.). Embora tenhamos usado roteiro semiestruturado para nortear a conversa, mantivemos um espaço aberto para que cada um(a) contasse a sua história, mantendo as descontinuidades e contingências características dos processos individuais e coletivos de subjetivação.

As entrevistas foram gravadas e transcritas, e as narrativas foram examinadas seguindo a análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Após diversas leituras, localizamos tanto as repetições quanto as falas inéditas, de modo a evidenciar núcleos temáticos por meio de expressões ou palavras em função de em quais o conteúdo das narrativas se organizava. Por fim, realizamos uma classificação de categorias empíricas ou teóricas, que foram colocadas em diálogo com estudos das ciências sociais e saúde coletiva sobre o tema.

As identidades de gênero e as experiências de vida foram lidas a partir da ideia de que gênero e sexualidade são reflexos de jogos de poder/saber, que produzem normatividades com efeitos de verdade por meio de práticas e discursos socialmente autorizados. Nessa dinâmica, o sujeito atua performaticamente, reproduzindo e escapando das normas que procuram ancoragem em seus corpos (Butler, 2015BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2015.) ao mesmo tempo que garantem certa consistência ao regime heteronormativo que rege o campo sexual, o que abre espaço para questionamentos e subversões e revela, finalmente, que as verdades são sempre localizadas e provisórias.

Buscamos, nesse sentido, traduzir cada uma das narrativas como “ficções políticas vivas” (Preciado, 2020PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas de travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 222) que, longe de representarem qualquer estabilidade, refletem um processo histórico-social que é sempre inacabado devido ao seu caráter relacional e dinâmico e, por isso, aberto a formas inusitadas de agenciamentos e resistências. Os resultados das análises e discussões serão apresentados em três eixos que evocam, respectivamente: identidade de gênero, trabalho e saúde.

Resultados e discussões

“Espectro trans”

Todos(as) os(as) entrevistados(as) se identificaram com o “espectro trans”, termo utilizado por uma participante que traduz a impossibilidade de reduzir essas experiências a uma identidade única, marcada por um processo linear e dotada de essência (Duque, 2011DUQUE, T. Montagens e desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume, 2011.; Butler, 2015BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2015.; Preciado, 2020PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas de travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.). Muitos(as) questionaram a matriz binária e heteronormativa, que naturaliza uma suposta continuidade entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais a partir de um órgão sexual específico, tal como Pedro destacou: “[…] parece que as pessoas são órgãos genitais gigantes!”.

Pedro, de 24 anos, se identificava como homem trans há dois anos e, apesar do apoio da mãe e irmãs, se sentia solitário nesse processo: “[…] o nosso corpo não é colocado como humano, sabe? […] eles colocam o nosso corpo como algo que pode ser facilmente tratado como um nada, como um lixo!” Sua narrativa corrobora a ideia de que o órgão biológico, ao ser tomado como verdade pré-discursiva, funciona não apenas como “reprodutor” - no sentido de reprodução da espécie -, mas como “produtor” de uma coerência corporal daquilo que é considerado humano (Preciado, 2020PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas de travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.).

Para além do gênero, Pedro enfatizou que o seu corpo “preto” replicava os mecanismos de exclusão aos quais era submetido, intensificando a sua vulnerabilidade: “Já que eu sou um homem preto, eu já sou marginalizado, já sou visto como bandido. Se eu não sou visto como bandido, eu sou visto como um corpo sexual” Diante do receio de se tornar ameaça ou fetiche, preferia ficar em casa e, quando saía, selecionava lugares e pessoas que o garantiriam proteção e segurança, estratégia também adotada por outros(as) entrevistados(as) para se deslocarem do lugar violento da segregação (Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.; Duque, 2011DUQUE, T. Montagens e desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume, 2011.; Medeiros, 2022MEDEIROS, B. N. Faces do silêncio e o ecoar nas existências trans no contexto sócio-organizacional. 2022. 309 f. Tese (Doutorado em Administração) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022.). Isso não o impedia de ocupar o seu “lugar de fala”, posicionando-se criticamente em relação à narrativa biomédica (Borba, 2016BORBA, R. O (des)Aprendizado de si: transexualidade, interação e cuidado em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2016.) sobre a transexualidade:

[…] a minha história como um homem trans não é mesma história daquele menino que gostava de roupas masculinas, que gostava de brincar de futebol… Eu sempre brinquei de boneca, eu sempre vesti roupas femininas… (Pedro)

Frida também considerava importante se posicionar no coletivo para confrontar estereótipos. Ora se identificava como mulher trans, ora como travesti, justificando que fazia um uso político dessas categorias de acordo com o contexto. Ela manteve a sua feminilidade “entre quatro paredes” até os 30 anos de idade. Já sabia o que era uma travesti - “o que chamam de mulher de pau” (Frida) - e, embora se identificasse com esse universo, dizia não ter coragem de se assumir. Outros(as) entrevistados(as) também mantiveram, durante algum período e como estratégia de sobrevivência, suas identidades de gênero em “segredo”. Sedgwick (2007SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu , Campinas, n. 28, p. 19-54, 2007.), ao discutir a “epistemologia do armário”, mostrou que o armário é um dispositivo instituído na modernidade com a finalidade de controlar os corpos. O segredo, nessa perspectiva, não é exatamente uma decisão individual, mas reflexo de um processo histórico que funda uma lógica em que a (cis)heterossexualidade se torna presumida e compulsória (Butler, 2015BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2015.).

Não é por acaso que muitos(as) participantes se identificaram como homossexuais em um primeiro momento de suas vidas, algo já localizado em outras investigações (Duque, 2011DUQUE, T. Montagens e desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume, 2011.; Paulino; Marchin; Pastor-Valero, 2020PAULINO, D. B.; MACHIN, R.; PASTOR-VALERO, M. “Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans”: performatividade trans, família e cuidado em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 4, e190732, 2020.). Apesar das homossexualidades permanecerem estigmatizadas, elas são mais inteligíveis e podem ser vivenciadas em segredo, diferentemente das experiências trans que, muitas vezes, rompem com as normas de forma mais pública, virando alvo de reações mais violentas (Medeiros, 2022MEDEIROS, B. N. Faces do silêncio e o ecoar nas existências trans no contexto sócio-organizacional. 2022. 309 f. Tese (Doutorado em Administração) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022.).

Diante do silenciamento decorrente desse sistema, Frida, assim como outros(as) participantes, mencionou o papel das redes sociais e dos meios de comunicação de massa - sobretudo novelas e programas de televisão - na significação de suas experiências. Almeida e Carvalho (2021ALMEIDA, G.; CARVALHO, R. R. Homens inesperados: emergência de transmasculinidades na cena brasileira do início dos anos 2000. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I.L. (org.). Direitos em disputa: LGBT+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 287-285.) mostraram, nesse sentido, que as redes virtuais que emergiram no Brasil nos anos 2000 alteraram radicalmente as possibilidades de interação e de agenciamento político, fomentando a aparição de novas identidades e a construção de alianças. Por outro lado, não podemos desconsiderar o risco desses dispositivos propagarem estereótipos que pouco contribuam para circulação das diferenças, tal como Pedro apontou: “Qualquer lugar coloca a gente como estereótipo. Novela, seriado… então a gente só cresce vendo que a gente é um tipo de comédia, algo que é pra dar risada.”

Esse tipo de violência, no entanto, pode ser desestabilizado dentro da própria lógica performativa, que não só permite múltiplas identificações sempre fluidas, cambiantes e negociadas de acordo com o contexto, mas também pode ser a ressignificação da injúria e do lugar de abjeção ocupado por esses corpos, tal qual nos convida a pensar o queer (Preciado, 2020PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas de travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.). Erica, travesti, preta, não binária, sempre gostou de “brincar com o gênero”. Em sua entrevista, não hesitou, em tom irreverente, em dizer: “[…] sempre fui muito viado, sempre fui uma bichinha, sempre fui uma poc-zinha!” (Erica). Na adolescência utilizou hormônio feminino por conta própria, mas interrompeu por receio de reproduzir o destino das meninas trans que via na rua, ou seja, o da prostituição. Sua postura indica uma perspectiva de proteção individual diante do desamparo do Estado, e a certeza constituída de que a expulsão dos diferentes espaços sociais é destino quase inexorável para as travestis (Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.; Carrijo et al., 2019CARRIJO, G. G. et al. Movimentos emaranhados: travestis, movimentos sociais e práticas acadêmicas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e54503, 2019.).

Érica, com 22 anos, ao entrar para a universidade, se sentiu mais segura e voltou a usar a medicação. Outros(as) participantes também localizaram na universidade um espaço estratégico para perceber as suas diferenças e materializá-las em seus corpos. Além da possibilidade de conviver com perspectivas de vida diversas (Rios; Perez, 2020Rios, F.; Perez, O. C. Interseccionalidade e diversidade nas universidades brasileiras: mudanças da última década. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I.L. (Org.). Direitos em disputa: LGBT+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp , 2020, p. 89-115.) e de ter acesso a recursos financeiros através de programas de apoio e de projetos de pesquisa e extensão, no momento em que entraram na instituição a existência da resolução sobre o direito ao nome social facilitaria as negociações e o trânsito social. Alan, homem trans de 21 anos, ressaltou a importância dessa resolução para que o seu nome social constasse nas chamadas, embora nem sempre fosse respeitado.

No Brasil, o vácuo provocado pela ausência de uma lei que garantisse o direito a um nome consonante com a identidade de gênero forjou a criação de normativas institucionais que possibilitassem esse reconhecimento. Se, por um lado, essa “gambiarra legal” (Bento, 2014Bento, B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014.) minimizou a ocorrência de eventos vexatórios em certos contextos, por outro ela sempre foi limitada e insuficiente para uma transformação da realidade de pessoas trans. Mesmo após a decisão de 2018 do STF, com a possibilidade de mudança do registro civil diretamente nos cartórios sem a necessidade de laudos médicos, as estruturas hierárquicas de poder em nosso país pouco mudaram, especialmente com avanço de uma política de ataque às diferenças e aos direitos humanos (Rios; Perez, 2020Rios, F.; Perez, O. C. Interseccionalidade e diversidade nas universidades brasileiras: mudanças da última década. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I.L. (Org.). Direitos em disputa: LGBT+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp , 2020, p. 89-115.). Essa situação exige que pessoas subalternizadas invistam em outras formas de agenciamento para garantir algum reconhecimento nos espaços sociais.

Alan, por exemplo, destacou que, para além da garantia institucional do nome social, sempre teve a “sorte” (Teixeira, 2008TEIXEIRA, F. B. L’Italia dei Divieti: entre o sonho de ser européia e o babado da prostituição. Cadernos Pagu , Campinas, n. 31, p. 275-308, 2008.) de ter o apoio da família e dos amigos no processo de transição. Esse tipo de suporte parece ser fundamental para sedimentar espaços menos violentos de existência. Como mencionamos na introdução, diferentemente de outros estudos (Benevides, 2023Benevides, B. G. Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil (Antra), 2023.; Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.), os(as) nossos(as) entrevistados(as) não localizaram rupturas radicais - precoces e/ou definitivas - com suas famílias.

João, que se apresentou como transmasculino, afirmou estar em um “lugar de transição”, ou seja, que não é fixado como de homem nem como de mulher. Com exceção da irmã, a família não o reconhecia como uma pessoa masculina, insistindo em chamá-lo pelo nome de registro, situação recorrente conforme identificado por Pereira, Gaudenzi e Bonan (2021Pereira, P. L. N.; Gaudenzi, p.; Bonan, C. Masculinidades trans em debate: uma revisão da literatura sobre masculinidades trans no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3. e190799, 2021.). Como a sua família o sustentava financeiramente, ele preferia acatar a norma e performar a masculinidade apenas em espaços de sociabilização específicos, onde o risco de violência era menor. Isso afetou diretamente a sua subjetividade, evidenciando o papel estrutural da família na forma como cada um se relaciona com o seu corpo e com o seu entorno social (Paulino; Marchin; Pastor-Valero, 2020PAULINO, D. B.; MACHIN, R.; PASTOR-VALERO, M. “Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans”: performatividade trans, família e cuidado em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 4, e190732, 2020.).

Nesse processo de negociações, existem adaptações (intencionais ou não) em que, diante de exigências sociais, os sujeitos fazem uso de diferentes recursos e tecnologias, pontuais e contextualizadas, de forma a transitar na escala de violência com menos riscos (Duque, 2011DUQUE, T. Montagens e desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume, 2011.). Erica, apesar de ter sido expulsa da casa dos pais aos 14 anos, para retornar à casa da mãe aceitou pintar o cabelo black power rosa e deixou de usar roupas que apontassem para o feminino, para atender as expectativas maternas. Essa “desmontagem estratégica” não durou muito tempo: foi morar em uma cidade maior e, no momento da entrevista, estava movendo um processo contra os pais por abandono.

Sua história é emblemática para entendermos como a família e a universidade podem funcionar tanto como locus de acolhimento e proteção, como de abandono e sofrimento. A ruptura familiar foi marcada por idas e vindas, de forma que em nenhum momento ela ficou completamente sem contato com essa rede. O fato dela mobilizar um processo contra os pais indica a existência de um outro para o qual ela pode endereçar alguma demanda. Abre-se, assim, uma possibilidade de responsabilização familiar na reivindicação de uma infância e uma adolescência inseridas nos marcos de uma proteção social, que as considerem como “[…] subjetividades políticas irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça” (Preciado, 2020PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas de travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020., p. 73).

Na universidade, Érica faz política com o próprio corpo, evidenciando que “travesti preta” também pode frequentar esse espaço. Ao “brincar” com a possibilidade de trânsito entre diferentes performatividades de gênero e sexualidade, ela desestabiliza o sistema, podendo se ancorar em outras experiências presentes nesse campo da educação (Rios; Perez, 2020Rios, F.; Perez, O. C. Interseccionalidade e diversidade nas universidades brasileiras: mudanças da última década. In: FACCHINI, R.; FRANÇA, I.L. (Org.). Direitos em disputa: LGBT+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp , 2020, p. 89-115.). Nessa mesma linha, Oscar, um jovem não binário, conta que desde que entendeu que essa fluidez era possível assumiu diferentes performatividades, que variavam entre travestilidade, transexualidade e “bicha lésbica” (Oscar). Apesar de reconhecer a importância do contato com a literatura queer durante a sua graduação, ressaltou que as chamadas “conversas de corredor”, em que vivências diferentes são compartilhadas, eram fundamentais em seu processo de subjetivação. Ao não se deixar capturar por qualquer categoria, Oscar materializa em seu corpo a instabilidade das identidades, evidenciando a potência política desse deslocamento perene cada vez mais frequente na contemporaneidade (Carrijo et al., 2019CARRIJO, G. G. et al. Movimentos emaranhados: travestis, movimentos sociais e práticas acadêmicas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, e54503, 2019.; Preciado, 2020PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas de travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.).

Se, para alguns, os questionamentos e subversões do binarismo compõem uma política cotidiana de reconhecimento, para outros, a corporificação das normas e convenções se configura não só como um desejo legítimo, mas como importante estratégia de trânsito social e sobrevivência (Duque, 2011DUQUE, T. Montagens e desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume, 2011.; 2017). Paulo, transgênero de 27 anos, contou que, apesar de ter iniciado a terapia hormonal há poucos meses, já sentia “na pele” o prazer da “passabilidade”:

[…] eu conheci meninas que não desconfiaram, não desconfiaram de mim. […] nossa, tinha que ver a alegria que eu fiquei… […] muitos me confundem com gay, mas antes ser confundido com gay do que com uma mulher! (Paulo)

Diferentemente de Alan, que havia se submetido à mastectomia, Paulo acreditava que não precisaria do procedimento para ser tratado como “homem”: suas mamas haviam “secado” com o uso de hormônio. No entanto, isso não era uma garantia, afinal, a passabilidade é resultado de uma interação que envolve contingências e depende dos interlocutores envolvidos (Duque, 2017DUQUE, T. A gente sempre tem coragem: identificação, reconhecimento e as experiências de (não) passar por homem e/ou mulher. Cadernos Pagu , Campinas, n. 51, e175110, 2017.). Foi o caso de um episódio em que Paulo, ao perceber que uma moça estava embriagada, a conduziu até em casa. A mãe da jovem, que o conhecia desde criança, se surpreendeu, dizendo que nunca imaginaria que ele “tinha sido mulher”. Para além da aparência, o comportamento avaliado como honesto e respeitador foi destacado pela interlocutora como indício de “homem de verdade”.

Tal acontecimento ilustra a dinâmica da passabilidade, em que valores morais interagem com marcadores da diferença em um processo que, ao mesmo tempo que reproduz desigualdades e opressões, abre possibilidades da agência política poder minimizar preconceitos e criar modos relacionais (Duque, 2017DUQUE, T. A gente sempre tem coragem: identificação, reconhecimento e as experiências de (não) passar por homem e/ou mulher. Cadernos Pagu , Campinas, n. 51, e175110, 2017.). Seguindo essa perspectiva, pudemos localizar nas narrativas analisadas que, nesse jogo de incorporação das normas, há sempre um espaço para ressignificação das práticas e experiências. Verificaremos, a seguir, como essas múltiplas identidades - “ficções políticas vivas” que borram as fronteiras entre natureza e cultura, denunciando as normas e convenções às quais todos nós somos submetidos (Preciado, 2020PRECIADO, P. B. Um apartamento em Urano: crônicas de travessia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.) - transitam no universo do trabalho.

“Agradeça a oportunidade!”

A exclusão de pessoas trans do mercado formal de trabalho é um índice de vulnerabilidade documentado em diversos estudos (Benevides, 2023Benevides, B. G. Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil (Antra), 2023.; Paulino; Marchin; Pastor-Valero, 2020PAULINO, D. B.; MACHIN, R.; PASTOR-VALERO, M. “Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans”: performatividade trans, família e cuidado em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 4, e190732, 2020.; Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.). Uma vez que a inserção no universo do trabalho envolve não apenas aspectos econômicos e materiais, mas também aspectos relacionados à construção de redes de sociabilidade (Abreu, 2022ABREU, V. B. S. Vidas que importam, trabalhos que existem: (im)possibilidades laborais de travestis e transexuais. In: PRADO, M. A. M.; FREITAS, R. V. (Org.). Travestilidades em diálogo na pista acadêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. p. 263-285.), a dificuldade de inserção nessa esfera de relações torna-se um potente dispositivo para manutenção dessas pessoas no campo da abjeção.

Em nossa pesquisa, apesar de muitos(as) participantes terem acesso a recursos financeiros pela universidade e/ou família, surgiram algumas narrativas bastante emblemáticas em relação a essa questão. Erica, por exemplo, antes de entrar para a universidade e diante do impedimento materno para performar a travestilidade, se afastou da família e passou a “viver de bico” (Erica): fez faxinas, trabalhou em um salão de beleza e animou festas infantis:

Eram condições muito abusivas e eu tinha que ser agradecida pelas situações de como eu trabalhava e pelo fato de ter um emprego. […] muitas pessoas trans acabam aceitando as condições porcas de trabalho pra justamente não ter que ir pra prostituição, sabe? (Erica)

De fato, parece não haver alternativas para além do mercado do sexo ou de trabalhos informais e/ou precarizados. No caso da prostituição, compreendemos os aspectos relacionados à sociabilidade, à construção de identidades, ao desejo e à possibilidade de existência material que envolvem o seu exercício (Teixeira, 2008TEIXEIRA, F. B. L’Italia dei Divieti: entre o sonho de ser européia e o babado da prostituição. Cadernos Pagu , Campinas, n. 31, p. 275-308, 2008.; Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.). A nossa crítica se dá, no entanto, quando essa se apresenta como única opção para sobrevivência2 2 Lembramos que, por ocasião da inclusão da prostituição na Classificação Brasileira de Ocupações, em 2002, a palavra “travesti” foi inserida como sinônimo de “prostituta” no item que descreve a ocupação. Essa situação foi, posteriormente, corrigida pelo então Ministério do Trabalho e Emprego. , uma situação comum especialmente entre corpos atravessados por outros marcadores, como raça/cor e classe social (Benevides, 2023Benevides, B. G. Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2022. Brasília, DF: Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil (Antra), 2023.).

Entre os trabalhos informais e/ou precarizados, os mais comuns envolvem estética, beleza, cuidado ou cargos em que não há exposição pública pronunciada (Abreu, 2022ABREU, V. B. S. Vidas que importam, trabalhos que existem: (im)possibilidades laborais de travestis e transexuais. In: PRADO, M. A. M.; FREITAS, R. V. (Org.). Travestilidades em diálogo na pista acadêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. p. 263-285.; Almeida; Vasconcelos, 2018ALMEIDA, C. B.; Vasconcellos, V. A. Transexuais: transpondo barreiras no mercado de trabalho em São Paulo? Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 302-333, 2018.), tal como Oscar destacou ao mencionar o primeiro emprego, em telemarketing:

Porque telemarketing é o pacotão das opressões! […] porque ninguém te vê, só te escuta. Então, é mais fácil mesmo. Eu percebo call center como esse espaço de apanhado de tudo que não pode ser visível! (Oscar)

Diante desse regime de invisibilidade, alguns(as) entrevistados(as) encontraram na universidade uma forma de sobrevivência menos abjeta. Erica, por exemplo, passou a receber recursos institucionais que a ajudavam a se manter, afastando-a de condições “abusivas” de trabalho. Tal recurso, no entanto, não foi suficiente para Paulo. Ele “trancou” a matrícula na universidade porque, além de não se identificar com o curso, precisava trabalhar para sustentar a filha. Se tornou motorista de Uber e, durante uma corrida, conseguiu uma entrevista de emprego em uma loja que “apoiava a diversidade” (Medeiros, 2022MEDEIROS, B. N. Faces do silêncio e o ecoar nas existências trans no contexto sócio-organizacional. 2022. 309 f. Tese (Doutorado em Administração) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022.). Sua história de “superação”, assim como o seu compromisso e seriedade, contribuiu para que ele fosse contratado e assumisse, após algum tempo, lugar de destaque. Ainda assim ficava inseguro, sobretudo quando tinha que se afastar das atividades laborais por motivo de saúde.

Se, por um lado, esse tipo de receio faz com que pessoas trans empregadas adiem a transição para evitar afastamentos médicos, por outro, a “passabilidade” que pode advir desse processo é um fator que contribui para que sejam contratadas (Almeida; Vasconcelos, 2018ALMEIDA, C. B.; Vasconcellos, V. A. Transexuais: transpondo barreiras no mercado de trabalho em São Paulo? Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 302-333, 2018.). Embora Paulo não tenha enfatizado essa questão, pudemos presumir, a partir de seu orgulho de ser tratado como um “homem normal”, que “passar-se” por um homem cis foi um elemento fundamental que, juntamente com o fato de ser branco, facilitou a conquista do emprego. Erica acrescentou, nesse sentido, o quanto a “passabilidade” pode ser dolorosa para aqueles que não têm acesso a recursos de adequação corporal sofisticados:

Porque, tipo assim, meninos trans que ainda não fizeram mastectomia […] e em vários trabalhos eles são obrigados a apertarem os seios… e isso dói, deixa sem ar, deixa marcas. É bem complicado, sabe? Uma menina trans, sabe? […] É ok aquendar a neca3 3 “Aquendar a neca”, no dialeto das travestis, significa esconder o genital masculino com adesivos e/ou roupas íntimas apertadas. , mas depois que isso se torna rotina, acaba ficando perigoso, sabe? (Erica)

Frida, por exemplo, trabalhou durante mais de 10 anos em uma empresa constituída majoritariamente por homens, sustentando uma performatividade masculina. Sua voz “feminina”, contudo, tornava-a alvo de chacota dos colegas. Colecionou provas, acionou recursos humanos da instituição e, depois de ser reiteradamente ignorada, ameaçou o chefe. E então saiu da empresa, recebeu uma indenização, se mudou de cidade e entrou na universidade. Ela se orgulha de ter diversas formações técnicas e estar terminando uma graduação, situação bastante diferente da maioria das pessoas trans no país. Sabemos, contudo, que ter formação adequada não é suficiente para que elas permaneçam nos empregos para os quais foram contratadas ou acessem cargos com maior reconhecimento (Abreu, 2022ABREU, V. B. S. Vidas que importam, trabalhos que existem: (im)possibilidades laborais de travestis e transexuais. In: PRADO, M. A. M.; FREITAS, R. V. (Org.). Travestilidades em diálogo na pista acadêmica. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. p. 263-285.).

Frida conseguiu um emprego no campo da saúde para complementar sua renda. Ocupou um cargo que habitualmente era ocupado por homens, e, nesse período, começou a usar hormônios. Embates no trabalho aconteciam até o momento da entrevista, época em que, apesar da “passabilidade”, não tinha os documentos retificados. Nos momentos em que o seu nome social não era respeitado, ela exigia o seu direito, valendo-se inclusive da decisão do STF em relação à criminalização da homotransfobia.

A despeito das situações violentas e vexatórias vivenciadas por Frida no trabalho, ela construiu vínculos com alguns colegas. Contou com entusiasmo um episódio em que estava acompanhando um usuário no hospital e, quando foi usar o banheiro, um segurança se aproximou e lhe indicou o banheiro destinado às mulheres. Foi a sua primeira experiência no banheiro feminino. Ainda que esse tipo de reconhecimento - e aqui podemos incluir não só a possibilidade de usar os banheiros, vestiários e uniformes consonantes com o gênero auto identificado, mas também o respeito ao nome social - afete positivamente a permanência de pessoas trans no trabalho (Almeida; Vasconcelos, 2018ALMEIDA, C. B.; Vasconcellos, V. A. Transexuais: transpondo barreiras no mercado de trabalho em São Paulo? Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 302-333, 2018.), na prática ele pouco acontece.

No Brasil, as parcas políticas públicas voltadas para essa população se concentram no campo da saúde, com foco em questões específicas, sobretudo naquelas relacionadas às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) (Almeida; Vasconcelos, 2018ALMEIDA, C. B.; Vasconcellos, V. A. Transexuais: transpondo barreiras no mercado de trabalho em São Paulo? Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 302-333, 2018.; Miskolci et al., 2022MISKOLCI, R. et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos, Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27. n. 10, p. 3815-3824, 2022.). Nesse processo, um cuidado integral desses corpos, que contemple a dinâmica dos marcadores sociais das diferenças em esferas fundamentais de existência - incluindo família, educação e trabalho - é ignorado, por serem considerados um risco social eminente (Paulino; Marchin; Pastor-Valero, 2020PAULINO, D. B.; MACHIN, R.; PASTOR-VALERO, M. “Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans”: performatividade trans, família e cuidado em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 4, e190732, 2020.). Para esclarecer melhor esse aspecto, discutiremos a seguir as experiências dos entrevistados nesse campo.

“Preguiça de ir no hospital!”

De forma geral, as narrativas comprovaram que o acesso aos serviços de saúde por pessoas trans é marcado por dificuldades e barreiras (Rocon, 2021Rocon, P. C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a: processos formativos de trabalhadores da saúde. Simões Filho: Devires, 2021.; Mota; Santana; Silva; Melo, 2022Mota, M. et al. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface, Botucatu, v. 26, e210017, 2022.). O desrespeito ao nome social foi citado por todos como fator de evitação desses espaços: “[…] assim, há um deslegitimamento dos meus pronomes, do meu nome e do meu gênero de uma forma tão grande… Assim, eu fico com preguiça de ir no hospital resolver as minhas coisas…” (Erica)

O nome social, como explicou Erica, envolve não só o preenchimento da ficha, mas todo o processo relacional com os diversos profissionais e usuários que antecedem o atendimento médico em si (Rocon, 2021Rocon, P. C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a: processos formativos de trabalhadores da saúde. Simões Filho: Devires, 2021.; Mota et al., 2022Mota, M. et al. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface, Botucatu, v. 26, e210017, 2022.). Apesar da Carta dos Direitos dos Usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2007 e da PNSILGBT de 2011 (Miskolci et al., 2022MISKOLCI, R. et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos, Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27. n. 10, p. 3815-3824, 2022.) garantirem o uso dele em prontuários e outros documentos do sistema, sabemos que esse direito é reiteradamente desrespeitado até mesmo em situações em que as pessoas levam o seu cartão SUS impresso com a retificação, tal como Paulo destacou.

Nesse processo em que julgamento moral e a boa vontade dos profissionais entram em jogo, as experiências dessas pessoas são deslegitimadas em uma lógica em que tanto o estatuto de cidadania quanto o de humanidade são negados (Bento, 2004). A naturalização disso reflete a institucionalização da transfobia no campo da saúde, contribuindo para que esses espaços, que deveriam ser de acolhimento e cuidado, se tornem reprodutores de violência e sofrimento (Mota et al., 2022Mota, M. et al. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface, Botucatu, v. 26, e210017, 2022.).

Além do desrespeito do nome social, muitos(as) relataram eventos em que os seus corpos foram reduzidos aos possíveis “comportamentos de risco” para ISTs e aids, situação muito documentada na literatura (Mota et al., 2022Mota, M. et al. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface, Botucatu, v. 26, e210017, 2022.; Miskolci et al., 2022MISKOLCI, R. et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos, Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27. n. 10, p. 3815-3824, 2022.). Foi o caso de Frida que, ao procurar um dentista, foi questionada se era “HIV positiva”. Um desconforto parecido surgiu quando, em um atendimento de urgência por conta de uma dor de ouvido, passou por vários questionamentos do médico em relação ao uso de hormônios.

Essa situação remete ao que autores (Pereira; Chazan, 2019PEREIRA, L. B. C.; CHAZAN, A. C. S. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 14, n. 41, 2019. DOI: 10.5712/rbmfc14(41)1795
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) nomeiam como “síndrome do braço quebrado trans”, ou seja, uma interpretação equivocada de que qualquer questão de saúde dessas pessoas está relacionada ao fato de serem trans. Isso provoca atrasos no diagnóstico, atendimentos pouco receptivos e ineficazes e, por vezes, iatrogênicos.

De fato, a falta de acolhimento é algo recorrente e que pode se dar por diferentes vias. Alan, por exemplo, após realizar mamoplastia em uma cidade distante, acionou um serviço de urgência por conta de uma hemorragia localizada. Como tinha “passabilidade”, o médico questionou se ele “tomava bomba”. Após o jovem explicar sua condição, o profissional preferiu não fazer o procedimento, “porque não conhecia”. Mesmo diante das explicações e da simplicidade da resolução do problema, a demanda de Alan não foi atendida e ele teve que viajar uma longa distância para conseguir assistência adequada. Em sua narrativa, podemos localizar outra barreira que tem sido foco de debate (Rocon, 2021Rocon, P. C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a: processos formativos de trabalhadores da saúde. Simões Filho: Devires, 2021.; Mota et al., 2022Mota, M. et al. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface, Botucatu, v. 26, e210017, 2022.; Pereira; Chazan, 2019PEREIRA, L. B. C.; CHAZAN, A. C. S. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 14, n. 41, 2019. DOI: 10.5712/rbmfc14(41)1795
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): a formação inadequada dos profissionais.

Se, por um lado, sabemos que as graduações na área da saúde são limitadas na abordagem de questões relacionadas aos gêneros e sexualidades, reduzindo-as aos aspectos orgânicos, por outro, existe uma postura dos profissionais que reflete falta de empatia e de disponibilidade para construção de novas práticas e saberes (Rocon, 2021Rocon, P. C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a: processos formativos de trabalhadores da saúde. Simões Filho: Devires, 2021.). Esse “não querer saber” se constitui como uma violência silenciosa, que afeta negativamente o contato de pessoas trans com serviços de saúde (Paulino; Rasera; Teixeira, 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface, Botucatu, v. 23, e180279, 2019.).

Por via não menos violenta, alguns profissionais adotam uma postura “normalizadora” (Rocon, 2021Rocon, P. C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a: processos formativos de trabalhadores da saúde. Simões Filho: Devires, 2021.), norteando os cuidados em uma perspectiva médico-psiquiátrica. Nesse caso, as experiências trans são entendidas como um “transtorno” que precisa de “tratamento”, ou seja, procedimentos que visam garantir uma harmonia entre o sexo biológico e o gênero. Esse fenômeno de “medicalização” e “patologização” está na base do “processo transexualizador” que, desde 2008, tem sido ofertado pelo SUS. Psicoterapia compulsória, laudos médicos e psicológicos que comprovam a condição por meio do diagnóstico, terapias hormonais e procedimentos cirúrgicos fazem parte desse processo e afeta o trânsito das pessoas trans em diversos serviços de saúde, sejam eles especializados ou não, públicos ou privados (Cano-Prais; Costa-Val; Souza, 2021CANO-PRAIS, H. A.; COSTA-VAL, A.; SOUZA, E. S. de. Incongruências classificatórias: uma análise dos discursos sobre as propostas da CID11 em relação às experiências trans. Cadernos Pagu , Campinas, n. 62, e216219, 2021.).

Essa patologização dos corpos trans ficou evidente no relato de Paulo, que em exame ginecológico habitual, foi questionado a respeito do seu diagnóstico: “[…] pra poder te agendar, pra poder te examinar, eu tenho que ter um CID!” (Paulo). Diferentemente dele, que teve paciência para explicar a sua condição, muitos acabam evitando os serviços pois não querem ser tratados como pessoas “transtornadas”, sem direito à autonomia. Isso ocorre na contramão da decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS) de renomear, na 11ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID11), as transexualidades como “incongruência de gênero”, deslocando-as para uma categoria dissociada dos transtornos mentais. Essa escolha integra um movimento antigo, defensor da despatologização dessas experiências, não negando o cuidado em saúde (Cano-Prais; Costa-Val; Souza, 2021CANO-PRAIS, H. A.; COSTA-VAL, A.; SOUZA, E. S. de. Incongruências classificatórias: uma análise dos discursos sobre as propostas da CID11 em relação às experiências trans. Cadernos Pagu , Campinas, n. 62, e216219, 2021.).

Outra barreira citada foi a dificuldade de acessar serviços especializados. Atualmente, existem apenas cinco hospitais autorizados pelo Ministério da Saúde (MS) para realização da cirurgia de transgenitalização, sendo que alguns têm filas com média de espera de 10 anos. Entre os serviços ambulatoriais que se capilarizaram pelo Brasil nos últimos anos, apenas nove são cadastrados no MS, sendo que os demais funcionam sem qualquer financiamento da União (Santos, 2020SANTOS, M. C. B. Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil. 2020. 483 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.). Além disso, não é raro que muitos deles sejam médico-centrados e atuem a partir de uma lógica patologizante, situação que afeta diretamente a performatividade dos(as) usuários(as) que, com receio de não terem acesso aos procedimentos desejados, passam a se comportar de forma a não deixar dúvidas em relação ao diagnóstico (Borba, 2016BORBA, R. O (des)Aprendizado de si: transexualidade, interação e cuidado em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2016.).

Nesse jogo em que esses corpos são reiteradamente violentados, há um movimento permanente dessas pessoas que evidencia suas potencialidades de agenciamento (Paulino; Marchin; Pastor-Valero, 2020PAULINO, D. B.; MACHIN, R.; PASTOR-VALERO, M. “Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans”: performatividade trans, família e cuidado em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 4, e190732, 2020.; Pereira; Chazan, 2019PEREIRA, L. B. C.; CHAZAN, A. C. S. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 14, n. 41, 2019. DOI: 10.5712/rbmfc14(41)1795
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). Alguns entrevistados, diante de situações vexatórias, como não terem os seus nomes sociais respeitados ou serem alvos de perguntas constrangedoras, se impuseram ignorando o acontecimento, conversando calmamente com os profissionais e explicando os motivos de incômodo ou ironizando as questões que lhes eram endereçadas. Foi o caso de Frida que, quando questionada pelo dentista se era HIV positiva, respondeu: “HIV não sei, mas positiva eu sou, até demais!” (Frida). No entanto, essa postura nem sempre lhe garantiu um tratamento digno, e por isso, em algumas circunstâncias, chegou a “dar um bafão”, abordando gestores e acionando dispositivos legais. Esse tipo de ação não é um mero escândalo imotivado, mas uma estratégia política adotada por pessoas trans para impor respeito, garantir direitos e responder às mais diversas formas de violência (Rocon, 2021Rocon, P. C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a: processos formativos de trabalhadores da saúde. Simões Filho: Devires, 2021.).

Outra estratégia, já discutida em estudos (Krüger et al., 2019Krüger, A. et al. Characteristics of hormone use by travestis and transgender women of the Brazilian Federal District. Revista Brasileira de Epidemiologia., São Paulo, v. 22, n. suppl. 1, e190004, 2019.; Mota et al., 2022Mota, M. et al. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface, Botucatu, v. 26, e210017, 2022.), é a automedicação de hormônios a partir de pesquisas na internet e/ou conversas com pares. Foi o caso de Paulo, que encontrou na internet uma pessoa que vendia, “por um preço absurdíssimo” (Paulo), tanto a receita quanto o medicamento. Depois de um tempo ficou com receio de seu corpo “rejeitar” a medicação, e procurou um médico para acompanhá-lo. Pedro, por sua vez, recebeu a indicação de um médico generalista LGBT com experiência no acompanhamento de pessoas trans. Apesar do orgulho de estar fazendo um “controle adequado”, ele comentou que além do SUS não disponibilizar os hormônios, frequentemente precisa pagar pelos exames de controle, devido ao tempo de espera nos serviços públicos.

Em sua narrativa, Pedro destacou a importância de acompanhamento de um profissional no processo de hormonioterapia, valendo-se de argumentos biomédicos que não lhe davam embasamento, mas também, ainda que de forma discreta, permitiam que ele julgasse aqueles que não seguiam esse caminho. Isso evidencia como o poder é internalizado e materializado em seu corpo, de forma a exercer um controle sobre ele e sobre os outros (Butler, 2015BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2015.).

Esse tipo de agenciamento, embora esteja em consonância com certo ideal de saúde, faz parte de um “[…] repertório cultural de classe média medicalizada” (Duque, 2017DUQUE, T. A gente sempre tem coragem: identificação, reconhecimento e as experiências de (não) passar por homem e/ou mulher. Cadernos Pagu , Campinas, n. 51, e175110, 2017.) e contribui para cristalização de um modelo patologizado de transexualidade. O caso de Pedro também mostra que o recorte de classe tem papel fundamental no acesso aos tratamentos, afinal ainda que o acompanhamento seja feito pelo SUS, “não é barato!” (Krüger et al., 2019Krüger, A. et al. Characteristics of hormone use by travestis and transgender women of the Brazilian Federal District. Revista Brasileira de Epidemiologia., São Paulo, v. 22, n. suppl. 1, e190004, 2019.), como ele mesmo destacou. Não é por acaso que travestis - pessoas associadas a classes econômicas mais baixas e à prostituição - frequentemente ocupem lugar marginal nesse processo (Pelúcio, 2011PELÚCIO, L. Marcadores sociais da diferença nas experiências travestis de enfrentamento à AIDS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 76-85, 2011.; Paulino; Marchin; Pastor-Valero, 2020PAULINO, D. B.; MACHIN, R.; PASTOR-VALERO, M. “Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans”: performatividade trans, família e cuidado em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 4, e190732, 2020.).

Para Pedro, o acompanhamento na rede pública só foi viabilizado a partir da indicação de um profissional com experiência. Isso corrobora a constatação de que pessoas trans, diante do receio de violência, preferem buscar especialistas com conhecimento sobre o tema e que já atendam outras pessoas LGBT (Pereira; Chazan, 2019PEREIRA, L. B. C.; CHAZAN, A. C. S. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 14, n. 41, 2019. DOI: 10.5712/rbmfc14(41)1795
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). Essa estratégia, no entanto, parece não ter sido suficiente para Pedro: no momento da entrevista e apesar de se mostrar satisfeito com o atendimento, ele estava cogitando contratar um plano de saúde privado na expectativa de agilizar o resultado dos exames. Vale lembrar que esse recurso, embora tenha sido acionado por outros/as participantes com relativo sucesso, não é garantia de um tratamento digno e livre de violência (Mota et al., 2022Mota, M. et al. “Clara, esta sou eu!” Nome, acesso à saúde e sofrimento social entre pessoas transgênero. Interface, Botucatu, v. 26, e210017, 2022.).

Foi nesse sentido que muitos(as) mencionaram a importância de ações educativas voltadas para estudantes do ensino médio e superior, com o objetivo de transformar essa realidade em que diferenças são invisibilizadas e rechaçadas. Especialmente no campo da saúde, é fundamental fomentar estratégias formativas que rompam com as tradicionais hierarquias entre trabalhadores e usuários, instaurando uma gestão coletiva do cuidado. Nesse processo, para além de protocolos e saberes pré-estabelecidos, manter uma abertura constante às contingências e às possibilidades de construção de novas formas de cuidado pode contribuir para a circulação menos violenta de corpos dissidentes (Rocon, 2021Rocon, P. C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a: processos formativos de trabalhadores da saúde. Simões Filho: Devires, 2021.; Paulino; Marchin; Pastor-Valero, 2020PAULINO, D. B.; MACHIN, R.; PASTOR-VALERO, M. “Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans”: performatividade trans, família e cuidado em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 4, e190732, 2020.).

Considerações finais

As histórias analisadas neste estudo se diferenciam daquelas da maioria das pessoas trans no Brasil, especialmente em relação à manutenção de vínculos familiares e ao acesso à universidade pública. Embora a escolha metodológica não permita afirmar exatamente o teor da associação entre esses dois fatores, é possível supor que eles contribuem positivamente para o estabelecimento de redes de apoio e de estratégias para lidar com a identidade de gênero e com a precariedade nos campos da educação, do trabalho e da saúde.

Nesse contexto e na medida em que reconhece e legitima as diferenças relacionadas aos gêneros e às sexualidades, a universidade se torna um potente espaço para construção de formas de politização, que facilitam o acionamento de certos recursos em direção a uma vida mais digna. Vale destacar que, embora a luta política não possa ser reduzida às reformas legais, a formalização de direitos através de leis e políticas se mostrou, para muitos(as) dos(as) entrevistados(as), uma importante ferramenta de combate à vulnerabilidade. Cabe ao Estado, nesse sentido, garantir políticas afirmativas mais estáveis por meio de pactuações entre diferentes instâncias, de forma a permitir a entrada de pessoas posicionadas em lugar de maior precariedade nos campos da educação e do trabalho.

Diante das limitações de nosso estudo, nos perguntamos: quais corpos, quais famílias, quais contextos e quais formas de aliança podem favorecer o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento da transfobia institucional e da falta de acesso à educação, ao trabalho e à saúde? Como definir os efeitos, seja no corpo individual ou no corpo coletivo, das ações e políticas públicas voltadas para população trans? Como incidem os determinantes relacionados à classe e à raça/etnia na (re)produção de desigualdades por diferenças? Acreditamos que essas e outras questões possam não só incentivar outras pesquisas, mas também dar visibilidade a uma discussão importante e necessária para mudança de nossa realidade social.

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  • 1
    A vulnerabilidade, nesse caso, decorre de uma distribuição desigual da precariedade constitutiva da vida, numa lógica em que alguns corpos se tornam dignos de luto e outros não (Butler, 2019BUTLER, J. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica , 2019.).
  • 2
    Lembramos que, por ocasião da inclusão da prostituição na Classificação Brasileira de Ocupações, em 2002, a palavra “travesti” foi inserida como sinônimo de “prostituta” no item que descreve a ocupação. Essa situação foi, posteriormente, corrigida pelo então Ministério do Trabalho e Emprego.
  • 3
    “Aquendar a neca”, no dialeto das travestis, significa esconder o genital masculino com adesivos e/ou roupas íntimas apertadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2023
  • Revisado
    04 Jun 2023
  • Aceito
    07 Ago 2023
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