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Epidemia e mídia: sentidos construídos em narrativas jornalísticas

Epidemic and media: meanings constructed in journalistic narratives

Resumos

O objetivo deste estudo é analisar a construção de sentidos em narrativas jornalísticas sobre problemas de saúde relevantes, como são as epidemias. O estudo focaliza a cobertura realizada por quatro jornais de Salvador, Bahia-Brasil, a uma epidemia de leucopenia por exposição ocupacional ao benzeno, ocorrida no Pólo Petroquímico de Camaçari-Ba, Brasil, nos anos de 1990 e 1991. A análise da ampla cobertura e diversidade das abordagens jornalísticas permite refletir sobre o papel da media no crescimento da consciência crítica da sociedade na proteção da saúde de coletividades. Analisa-se a narrativa construída pela articulação das 217 notícias publicadas sobre o tema ao longo de dezoito meses, com base na Teoria da Interpretação de Paul Ricoeur. A referência para a análise é a interpretação técnico-científica do evento, reconstituída através de análise documental e de entrevistas realizadas com pesquisadores, profissionais de saúde e de segurança do trabalho envolvidos com as ações de diagnóstico e controle da situação e proteção da saúde dos trabalhadores na ocasião da epidemia. Mediante diferentes níveis de análise, foram identificados quatro distintos sentidos da epidemia produzidos pelos diferentes jornais. Os argumentos que sustentaram os sentidos são descritos e analisados como meio de validar as hipóteses formuladas inicialmente, enquanto conjecturas na análise do discurso das narrativas, a partir da interpretação das posturas e movimentos dos jornalistas na busca da notícia. Os resultados são discutidos, considerando-se os discursos sociais correntes que fundamentam e informam os sentidos. Reflete-se também acerca dos limites e possibilidades das agências de notícias na comunicação de informações que contribuam para a promoção e proteção da saúde em situações de conflito, como são as epidemias, quando as populações afetadas anseiam por informação.

Saúde e mídia; Epidemia e comunicação; Benzenismo e mídia


The aim this research is to analyze the meanings constructed in journalistic narratives over relevant public health problems, are epidemic event. The study focuses on the coverage made by four journals of Salvador, Bahia-Brasil, over un epidemic of leucopoenia due to occupational exposure to benzene, that occurred at Petrochemical Polo of Camaçari-Ba, Brasil, during 1990 e 1991. The study of the extensive and diverse approaches of the journals allows the reflection about the role of media for the growth of society critical conscience, in order to protect health in collectivities. It is analyzed the narrative constructed by the articulation of 217 news about the theme, published during 18 months, oriented by Paul Ricoeur's Theory of Interpretation. The reference for the analysis is the technical and scientific interpretation for the event, reconstituted by the documental analysis and interviews with researchers and health and safety professionals who were involved in the activities for the diagnosis and control of the epidemic. Through different levels of analysis, there were identified four distinct meanings for the epidemic, produced by the journals. The arguments that supported the meanings are described and analyzed as a way for the validation of the hypotheses formulated as conjectures in the discourse analysis of the narratives by interpreting the postures and movements of journalists to find out news events.. The results are discussed considering the current social discourse that supports and informs the meanings, and also the limits and possibilities of the news agency for the communication of relevant information for health promotion and protection, in so conflictive situation as the epidemics, when populations affected are hopeful for information.

Health and Media; Epidemic and Communication; Benzenism and Media


ARTIGOS

Epidemia e mídia: sentidos construídos em narrativas jornalísticas

Epidemic and media: meanings constructed in journalistic narratives

Maria Ligia Rangel-S.

Doutora em Saúde Pública, Prof. Adjunto ISC/UFBA. Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. E-mail: lirangel@ufba.br

RESUMO

O objetivo deste estudo é analisar a construção de sentidos em narrativas jornalísticas sobre problemas de saúde relevantes, como são as epidemias. O estudo focaliza a cobertura realizada por quatro jornais de Salvador, Bahia-Brasil, a uma epidemia de leucopenia por exposição ocupacional ao benzeno, ocorrida no Pólo Petroquímico de Camaçari-Ba, Brasil, nos anos de 1990 e 1991. A análise da ampla cobertura e diversidade das abordagens jornalísticas permite refletir sobre o papel da media no crescimento da consciência crítica da sociedade na proteção da saúde de coletividades.

Analisa-se a narrativa construída pela articulação das 217 notícias publicadas sobre o tema ao longo de dezoito meses, com base na Teoria da Interpretação de Paul Ricoeur. A referência para a análise é a interpretação técnico-científica do evento, reconstituída através de análise documental e de entrevistas realizadas com pesquisadores, profissionais de saúde e de segurança do trabalho envolvidos com as ações de diagnóstico e controle da situação e proteção da saúde dos trabalhadores na ocasião da epidemia.

Mediante diferentes níveis de análise, foram identificados quatro distintos sentidos da epidemia produzidos pelos diferentes jornais. Os argumentos que sustentaram os sentidos são descritos e analisados como meio de validar as hipóteses formuladas inicialmente, enquanto conjecturas na análise do discurso das narrativas, a partir da interpretação das posturas e movimentos dos jornalistas na busca da notícia. Os resultados são discutidos, considerando-se os discursos sociais correntes que fundamentam e informam os sentidos. Reflete-se também acerca dos limites e possibilidades das agências de notícias na comunicação de informações que contribuam para a promoção e proteção da saúde em situações de conflito, como são as epidemias, quando as populações afetadas anseiam por informação.

Palavras Chave: Saúde e mídia; Epidemia e comunicação; Benzenismo e mídia

ABSTRACT

The aim this research is to analyze the meanings constructed in journalistic narratives over relevant public health problems, are epidemic event. The study focuses on the coverage made by four journals of Salvador, Bahia-Brasil, over un epidemic of leucopoenia due to occupational exposure to benzene, that occurred at Petrochemical Polo of Camaçari-Ba, Brasil, during 1990 e 1991. The study of the extensive and diverse approaches of the journals allows the reflection about the role of media for the growth of society critical conscience, in order to protect health in collectivities.

It is analyzed the narrative constructed by the articulation of 217 news about the theme, published during 18 months, oriented by Paul Ricoeur's Theory of Interpretation. The reference for the analysis is the technical and scientific interpretation for the event, reconstituted by the documental analysis and interviews with researchers and health and safety professionals who were involved in the activities for the diagnosis and control of the epidemic.

Through different levels of analysis, there were identified four distinct meanings for the epidemic, produced by the journals. The arguments that supported the meanings are described and analyzed as a way for the validation of the hypotheses formulated as conjectures in the discourse analysis of the narratives by interpreting the postures and movements of journalists to find out news events.. The results are discussed considering the current social discourse that supports and informs the meanings, and also the limits and possibilities of the news agency for the communication of relevant information for health promotion and protection, in so conflictive situation as the epidemics, when populations affected are hopeful for information.

Key words: Health and Media; Epidemic and Communication; Benzenism and Media

Introdução

Os meios de comunicação são reconhecidos pela influência que exercem na sociedade e na cultura, já estudada por diversos autores, de várias perspectivas, tais como Thompson (1995) e Bourdieu (1989; 1988), e outros que analisam sua influência sobe atitudes e comportamento humano (Wallack, 1990), ou sobre o julgamento de riscos (Potter, 1997; Coleman; 1993). As relações entre o campo da saúde e da comunicação vêm se estreitando nas últimas décadas, encontrando-se vários estudos que mostram a relação dos meios de comunicação com questões de saúde (Hertog & Fan, 1995; Brown & Walsh-Childers, 1994; Lefèvre, 1999; Soares, 1998). Contudo, pouco se estudam os modos de operação das agências de notícias, bem como seus limites e possibilidades para contribuir na ação educativa e de promoção da saúde, no sentido de elucidar situações e apontar soluções, embora se reconheça sua influência sobre as imagens que são construídas sobre o mundo (McCombs, 1996). Os poucos estudos sobre a relação mídia e saúde no Brasil mostram que os meios estão longe de oferecer uma contribuição efetiva para as necessárias mudanças na situação sanitária brasileira (Lefèvre,1999; Soares, 1998), especialmente quanto ao seu potencial na promoção e na educação em saúde. Ademais, há pouco conhecimento no campo da Saúde Pública sobre o papel da mídia em saúde e particularmente em saúde do trabalhador, da qual este artigo trata.

O presente artigo tem por objetivos analisar os sentidos construídos para a epidemia e discutir o papel que quatro jornais de Salvador-Bahia-Brasil tiveram na disseminação de informação sobre uma epidemia de benzenismo que ocorreu no Pólo Petroquímico de Camaçari –Bahia, durante os anos de 1990 e 1991. Este evento se mostra exemplar para a análise da atuação da mídia frente a situações epidêmicas, nas quais a população costuma ansiar por informações.

A cobertura jornalística dos quatro meios durou dezoito meses, motivada inicialmente pela morte de um médico do trabalho, vítima de aplasia medular, cujo laudo médico do INAMPS reconheceu a relação causal entre morte e exposição ocupacional ao benzeno.

O benzenismo é uma doença que decorre da intoxicação crônica pelo benzeno, o qual produz diversos danos ao organismo humano.

A referida epidemia levou ao público grande quantidade de informações oriundas de fontes diversificadas, constituída por atores envolvidos no dimensionamento e enfrentamento do problema, destacando-se empregadores, trabalhadores e sindicalistas do trabalho.

No período citado, os jornais A Tarde (AT), Tribuna da Bahia (TB), Jornal da Bahia (JB) e Correio da Bahia (CB), produziram um total de 217 matérias (80 do TB; 70 do AT; 33 do JB e 34 do CB).

Estudiosos da mídia local consideram que estes jornais baianos possuíam características e capacidades noticiosas distintas, na época da epidemia, destacando-se Jornal A Tarde como o principal meio impresso de Salvador, de mais ampla tiragem, com alcance do interior do estado e já se conformando como uma empresa jornalística. Este buscava realizar um jornalismo profissional e independente em relação às forças políticas do estado. Em segundo lugar, em termos de circulação, estava o Jornal Tribuna da Bahia, caracterizando-se por uma linha editorial que se colocava criticamente às forças governantes locais e era reconhecido pela sociedade como um jornal de oposição. Um terceiro jornal, o Correio da Bahia, de cunho governista e de propriedade de políticos da situação que vêm governando o estado há várias décadas, tinha tiragem restrita e buscava se implantar no mercado. Por fim, o Jornal da Bahia, vinculado historicamente às forças de esquerda, sofrera pressões políticas e econômicas, tentava alcançar uma nova audiência, de perfil popular, como forma de sobrevivência. Encontrava-se, pois em profunda crise nos anos 90, vindo posteriormente a se extinguir (Entrevista 11, em anexo).

Interroga-se neste estudo sobre o modo como esses jornais podem ter contribuído, com suas narrativas, para a criação de uma consciência de proteção e promoção da saúde de trabalhadores do Pólo Petroquímico de Camaçari, Bahia, face à crise de segurança e saúde que se instalara no mesmo.

Abordagem teórico-metodológica

Neste estudo, buscou-se estabelecer uma relação discurso/referência, extraindo-se o quê foi selecionado e publicado pelos jornais, dentre os acontecimentos narrados aos jornalistas por técnicos e cientistas da área da saúde do trabalhador. Observam-se, pois, as fontes de informação e a pertinência e coerência dos eventos de fala selecionados, para contribuir para a consciência sobre as condições de saúde e segurança no Pólo, agregando conhecimentos da situação real e visão crítica sobre os modos de fazer saúde.

A análise de discurso realizada neste estudo foi orientada pela hermenêutica de Paul Ricour para a busca da inovação semântica do enredo das narrativas dos jornais, a qual, segundo este autor, encontra no argumento o locus privilegiado, em que se escondem os sentidos (Ricoeur, 1976; 1988). Estes podem também se revelar mediante a observação dos movimentos dos jornais para articular os fatos já interpretados, realizando, então, uma inovação semântica para os discursos recolhidos das fontes visitadas.

Entende-se que, ao ocupar um lugar social de discurso autorizado, o jornal constrói um modo de fala particular, lançando mão de recursos lingüísticos que, por um lado, compatibilizam-se com outros discursos sociais e, por outro, conferem veracidade aos fatos noticiados (Mouillaud, 1997). Desse lugar autorizado, os jornalistas interpretam e informam (Kosir, 1988), podendo se diferenciar uns dos outros, quanto à postura que assumem para buscar a notícia e relatar os acontecimentos, lançando mão de recursos epistêmicos ou afetivos1 1 Segundo a definição de Ochs & Scheffelin (1989), na análise do discurso, a postura afetiva diz respeito ao humor, atitudes, sentimento e disposição, bem como aos graus de intensidade emocional, face a algum foco de preocupação, enquanto a postura epistêmica se refere ao conhecimento ou crença sobre algum foco de preocupação, incluindo graus de compromisso de verdade de proposições e fontes de conhecimento, entre outras qualidades epistêmicas. Ambas as posturas são passíveis de serem analisadas no discurso escrito, pela identificação de marcadores de linguagem. .

Neste artigo analisa-se a inovação semântica na simbólica textual, agregando-se à hermenêutica de Paul Ricoeur a análise das posturas do jornalista na construção do discurso. Este é orientada pela busca de modalidades epistêmicas tais como: a) pressuposições ou informações com bases assumidas como verdades necessárias: afirmação de realidade com uso de frases afirmativas e fontes de evidência em defesa da afirmação, experiência direta, informação comunicada da experiência do outro, inferência a partir da própria experiência ou da experiência do outro; b) proposição de irrealidade: informação fracamente sustentadas, verdade possível ou por hipótese, frases condicionais, verbos em tempo futuro, verbos modais, verbos que sugerem manipulação (pedir), verbos de cognição, advérbios epistêmicos (talvez, possível, provável, presumível) (Ochs, 1998). Estes podem ser vistos como partes constitutivas do estilo jornalístico.

Agrega-se também a análise dos especificadores de afeto, quais sejam, recursos léxicos como interjeição, formas descritivas versus nomes de pessoas, termos arcaicos, vocabulário que denotam respeito, apelidos; pronomes distintivos, demonstrativos, pessoais, determinados, compassivos.

Ademais, considera-se que o modo de fala do jornalista é situado, posto que diz respeito ao seu background enquanto sujeito individual e social, profissionalmente adquirido num contexto histórico e sócio cultural. De tal situação depreende-se que algo o identifica com o leitor, cuja linguagem e o modo de entendimento não lhe é estranho, sendo a base do seu trabalho narrativo.

O estudo submeteu à análise as 217 notícias coletadas nos arquivos dos quatro jornais, tomando como referência investigações epidemiológicas realizadas pela Secretaria de Saúde do Estado da Bahia - SESAB e Delegacia Regional do Trabalho - DRT, que caracterizaram a epidemia como um fato. Foram ainda acrescidas entrevistas com sanitaristas envolvidos na investigação epidemiológica e nas negociações para o controle da epidemia. Foram desenvolvidos os seguintes momentos de tratamento e análise dos dados: 1- a partir da reconstituição do discurso médico-sanitário sobre a epidemia, através de entrevistas e análise documental, construiu-se a referência do real sobre o qual os jornais se debruçaram, tomando-se o discurso epidemiológico sobre a situação como definidor da realidade de saúde; 2 – a articulação das 217 matérias jornalísticas em uma única narrativa conformada por todos os jornais e dispostas em um fio narrativo permitiu visualizar as semelhanças de leituras dos jornais sobre uma mesma realidade, ou seja, a confluência dos eventos selecionados para serem noticiados pelos jornais, bem como as ressonâncias e os diálogos entre os quatro meios sobre estes e outros eventos; 3 – a identificação das posturas (epistêmica ou afetiva) e os movimentos dos jornalistas para a busca da notícia, esta realizada mediante a observação das perguntas e respostas subjacentes às notícias, bem como as fontes consultadas nos diferentes jornais, permitiram visualizar as diferenças e formular as primeiras conjecturas acerca dos sentidos produzidos pelos diferentes jornais. Ainda, os horizontes de expectativas dos jornalistas foram analisados, através da observação de matérias dissonantes, eventos referidos em todos os títulos que deram origem a uma narrativa construída mediante a articulação dos títulos, legendas e leads em manchete em cada jornal; 4 – a validação das conjecturas sobre os sentidos foi realizada mediante a análise dos argumentos nos enredos sobre a epidemia, conformados nas narrativas de cada jornal, analisados separadamente.

Resultados

A referência: epidemia, um evento real

A partir da década de 80 começaram a surgir, no Brasil, casos de leucopenia por exposição ao benzeno: primeiro, em 1983, na Companhia Siderúrgica Paulista - COSIPA, em Cubatão-SP, seguida, em 1985, da Companhia Siderúrgica Nacional - CSN-RJ em Volta Redonda, e em 1986, nas Indústrias Químicas Matarazzo-SP, para em 1990 se revelar no Pólo Petroquímico de Camaçari-BA (Carvalho, 1995). A década de 80 foi marcada por eventos que divulgaram informações sobre o benzenismo entre trabalhadores e profissionais de saúde, destacando-se a campanha "Leucopenia: morte lenta", promovida pelo Departamento Intersindical de Saúde do Trabalhador - DIESAT- da CUT, em 1988, em São Paulo, a qual contou com a participação de 21 sindicatos de diversos estados.

A epidemia de leucopenia por exposição ao benzeno, no contexto do Pólo Petroquímico de Camaçari-BA, nos anos de 1990 e 1991, ocorreu revelando a realidade sanitária do ambiente de trabalho, especialmente das seis indústrias que compunham o ciclo do benzeno naquela ocasião. Do ponto de vista médico-sanitário, evidências clínicas e epidemiológicas indicavam a existência de uma epidemia silenciosa de benzenismo, em curso, afetando a saúde dos trabalhadores do Pólo Petroquímico de Camaçari (Miranda e col, 1990; DRT/MTb, 1991; Fundação José Silveira, 1992; Bahia, 1992; Rêgo e Pereira, 1997).

Na Bahia, a situação epidemiológica das doenças ocupacionais no Pólo Petroquímico de Camaçari-Bahia já era preocupação do setor sindical desde 1985. Naquela ocasião, o benzenismo surgiu como problema de saúde levantado em estudo realizado pela FUNDACENTRO na Central de Tratamento de Efluentes (CETREL), do qual resultou a recomendação de afastamento de 12 trabalhadores com suspeita de mielopatia ocupacional. No entanto, tal recomendação não foi acatada, tampouco as ações de avaliação e controle prosseguiram naquela época (Entrevista 07).

Até o final da década de 80, são poucos os registros de casos de benzenismo, representando 0,1% do total de "acidentes de trabalho" no período, passando a 20% nos anos de 1996/97 (Rêgo e Pereira, 1997; Brasil, 1997).

A situação do benzenismo no Polo Petroquímico de Camaçari se configurou como epidêmica quando técnicos da DRT realizaram um levantamento diagnóstico nas empresas do Pólo que utilizavam o benzeno no processo de trabalho, realizando uma busca ativa de casos, isto é, estabelecendo uma investigação epidemiológica, com o objetivo de identificar a existência de outros casos de leucopenia relacionados à exposição ao benzeno, o que aumentou subitamente o número de casos até então conhecidos.

Em meados de 1990, em um período de três meses, duas mortes de trabalhadores do Pólo tiveram grande repercussão na sociedade baiana: um médico e um operador de processo, ambos funcionários da empresa Nitrocarbono. Sendo então a Companhia Petroquímica do Nordeste (COPENE), a maior empresa nacional produtora do benzeno, situada no Complexo Petroquímico de Camaçari - COPEC (dado de 1991), a emergência de casos de morte por patologias associadas ao benzeno dentre trabalhadores de empresas operadoras do produto, sugeria tratar-se de um problema de extrema gravidade que requeria ação imediata dos órgãos governamentais, para o controle das condições de operação das empresas (Entrevista 03).

A ocorrência dessas mortes no COPEC significou, portanto, o desvendamento de uma realidade de saúde até então velada (Carvalho, 1995), seja para os técnicos dos órgãos governamentais com diferentes níveis de responsabilidade sobre a saúde dos trabalhadores, seja para a sociedade em geral. Devido às condições de operação dessas empresas, casos de benzenismo eram desde aquela época de algum modo esperados, uma vez que já haviam ocorrido em Cubatão, Volta Redonda e nos países industrializados. Tratava-se, então, de desenvolver a capacidade diagnóstica, fazendo circular a informação entre os trabalhadores e técnicos das áreas de saúde e de segurança do trabalho para a assegurar a identificação de casos e o controle da situação.

A conjuntura política no estado da Bahia, na ocasião, era favorável ao desenvolvimento de ações institucionais nessa área, uma vez que, renovadas as forças políticas governantes, ampliara-se a sensibilidade governamental às demandas sociais. Também porque, o movimento sindical concretizava, nesta época, alianças internacionais específicas da área da saúde do trabalhador, especialmente com instituições italianas dispostas a investir recursos para a implantação de serviços de atenção à saúde dos trabalhadores no Brasil.

As mortes ocorridas então, por anemia aplástica e leucemia, eram fortemente sugestivas de relação causal com a exposição ao benzeno e desencadearam um intenso processo de mobilização social que pressionou a DRT/BA a adotar uma estratégia de investigação da empresa Nitrocarbono (Entrevista 03). Tais mortes indicavam a gravidade da situação, demandando estudos que definissem a magnitude do problema de intoxicação entre trabalhadores das indústrias do Pólo e foram tomadas como casos índices de uma investigação epidemiológica realizada pela referida instituição, cujo relatório foi intitulado "Investigação de Benzenismo no Complexo Petroquímico de Camaçari (BA): uma proposta de ação fiscalizadora", concluído em 1991.

Inicialmente a DRT determinou a realização de hemogramas em 420 trabalhadores da empresa Nitrocarbono, onde as mortes ocorreram. Com o apoio da SESAB realizou a investigação diagnóstica dos casos suspeitos, contando ainda com o apoio da FUNDACENTRO para a avaliação ambiental. Com base nos critérios então vigentes na Previdência Social, encontrou como resultado da investigação 22 trabalhadores com suspeita de leucopenia por exposição ao benzeno, na referida empresa (DRT/MTb, 1991).

Esse fato fortaleceu a suspeita do caráter epidêmico da doença, o que levou a DRT a buscar (...) substituir a óptica rotineira da fiscalização por um enfoque mais técnico e científico, visando respostas efetivas da atuação na perspectiva da melhoria dos ambientes de trabalho e conseqüentemente na redução de agravos de causa ocupacional (DRT/MTb, 1991:8).

Para aprofundar o conhecimento dessa realidade, realizou-se uma investigação epidemiológica nas empresas que compunham o ciclo do benzeno do Pólo Petroquímico de Camaçari: a COPENE, produtora de benzeno, e as cinco indústrias consumidoras: Nitroclor, Ciquine, Deten, Nitrocarbono, Estireno, e outras que utilizavam o benzeno como solvente, totalizando 11.937 trabalhadores, dos quais 7.356 eram empregados diretos e 4.581 trabalhadores em empregos indiretos, através de empreiteiras.

Numa primeira triagem investigou-se 100% desses trabalhadores, destacando-se 850 suspeitos. Numa segunda etapa, com o objetivo de ampliar a sensibilidade/validação do instrumento de triagem, os 850 trabalhadores foram submetidos a três novos hemogramas, com intervalo de 15 dias e foram avaliados os prontuários dos suspeitos, buscando-se de cada um deles a história ocupacional e a "série histórica" de exames hematológicos (Miranda e col, 1990).

A avaliação, encaminhamento e conduta foram então realizados e definidos em reunião que envolveu médicos da DRT, das empresas, do CESAT e do sindicato dos trabalhadores, a partir das quais se padronizaram os modos de avaliação, classificação e conduta para os casos, estabelecendo-se um plano diagnóstico, avaliação ambiental e adoção de medidas de controle. Após a segunda triagem 216 trabalhadores (35% do total) mantiveram-se com valores leucocitários baixos (menor ou igual a 4.000) e neutrófilos igual ou menor a 2.000 ou série histórica com valores decrescentes. Estes foram então definidos como casos, sendo notificados através da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) e os trabalhadores afastados das empresas (Bahia, 1992).

O relatório final apresentou a distribuição de suspeitos e casos nas empresas estudadas, conforme descritos na Tabela 1 (Anexo 1). A percentagem de notificados foi maior na Nitrocarbono (5%), seguida da COPENE (3,8%) e da Ceman (3,5%). O estudo mostrou que em todas as empresas havia casos de benzenismo, conforme os padrões diagnósticos estabelecidos em norma técnica do INPS de 1987 (INSS, 1993).

A avaliação ambiental que deu suporte à DRT/BA foi então realizada pela FUNDACENTRO, em 1991, cujos resultados foram apresentados no documento intitulado "Avaliação ambiental das instalações da empresa Nitrocarbono S/A, situada no Complexo Petroquímico de Camaçari" (Bahia, 1992). Nesse estudo, a FUNDACENTRO desenvolveu uma programação para avaliar a empresa Nitrocarbono em procedimento normal de operação e em parada de manutenção, e não encontrou dificuldades para demonstrar concentrações de benzeno no ar muito próximo ao limite de tolerância de 8 ppm, estabelecido em lei naquela época2 2 A legislação brasileira considerava, nessa época, como limite de tolerância para concentrações ambientais de benzeno, até 8 ppm, conforme o Quadro 1, Anexo 11,a NR 15, da Portaria 3214/88, embora numerosos estudos já mostrassem aberrações cromossômicas e carcinogenicidade em expostos a valores em torno de 1 ppm (DRT,1991). A Portaria no 14 de 20 de dez./95, altera o Anexo 13 da NR 15, da Portaria 3214/78, criando um novo parâmetro para a avaliação ambiental - o Valor de Referência Tecnológica (VRT), definido em 1,0 ppm, que não exclui o risco à saúde como o anterior LT (Brasil, 1996). , mas já reconhecido internacionalmente com potencial carcinogênico (Entrevista 07). Ademais, esse estudo constatou 44,1 ppm de benzeno em operações de raqueteamento e outras de esgotamento de linha e concluiu sobre a possibilidade de contaminação do setor administrativo, de refeitórios e das ruas fora da empresa, na ocorrência de grandes emanações de benzeno para a atmosfera e disseminadas pelo vento (Bahia, 1992).

Também a DRT levantou informações sobre a avaliação ambiental disponível em nove empresas (seis do ciclo benzeno e mais a CETREL, a CEMAN e a POLIBRASIL) e avaliou seus programas de controle ambiental e biológico voltados para o benzeno. Observou a presença de indicações de níveis de benzeno acima do Limite de Tolerância (LT) estabelecido por lei na NR-15/CLT, em todas as empresas estudadas, encontrando valores entre 1.0 a 3.000 ppm. Registrou ainda informações sobre vazamentos devido à situação precária das plantas e à heterogeneidade de equipamentos e métodos utilizados para avaliação ambiental, bem como dos laboratórios contratados para as análises de cromatografia, incluindo aqueles próprios de algumas empresas.

Dentre as nove empresas avaliadas, constatou-se a ausência de programa de monitoramento ambiental para riscos químicos em três delas, incluindo a Ciquine e a Nitrocarbono. Nesta última, encontrou-se a ausência de monitoramento mesmo durante as atividades de parada de manutenção, situação de maior exposição dos trabalhadores aos produtos químicos, uma vez que estes entram em equipamentos para realizar reparos ou limpeza. Nessa empresa, em particular, foram então encontrados valores acima de 100 ppm, enquanto na Ciquine encontraram-se os mais altos índices, que variaram entre 1,0 a 3.000 ppm, seguida da COPENE com 1,0 a 239 ppm (Tabela 2).

Portanto, a avaliação realizada por ambos os órgãos governamentais mostrou que as empresas apresentavam, naquela situação, valores elevados de concentração de benzeno no ar, com pouco ou nenhum controle.

Independente dessas medições destacavam-se as precárias condições dos equipamentos observadas na ocasião como por exemplo válvulas não bem afixadas, deixando gotejar benzeno no chão. Assim, não se tratava de medir benzeno no ar, partícula por milhão, pois as condições de contaminação ambiental se mostravam a olho nu (Entrevistas 01 e 05). Observava-se também a entrada de trabalhadores em casas de medição totalmente contaminadas, com concentração de benzeno de 12 ppm, para fazer coleta de amostras de efluente, na CETREL, "quando a simples presença de um exaustor eliminaria essa exposição" (Entrevista 05).

A Cobertura Jornalística

As notícias sobre a epidemia surgiram nos jornais no final do mês de julho de 1990, mantendo-se com regularidade ao longo de dezoito meses, alcançando o pico de maior concentração em novembro do mesmo ano, para desaparecer progressivamente, ao longo do ano de 1991, mostrando que a evidência do caráter epidêmico da leucopenia conferiu à cobertura dos jornais um caráter semelhante, quando os jornais se comportaram com uma espécie de "contágio" mútuo e "contaminação" do tecido social.

Da cobertura jornalística originaram-se enredos das narrativas, povoadas pelas vozes de atores sociais empenhados em interpretar a ação e reação uns dos outros face aos acontecimentos. O jornalista buscava e lançava a notícia, a qual era recebida e articulada na forma de respostas e questões que conectavam os acontecimentos. Se o assunto era considerado importante, o jornalista podia mesmo fazer a "marcação" de certos atores, suas fontes privilegiadas de informação, fazendo-se presente para acompanhar os acontecimentos que estariam fora do seu olhar, provocando, por vezes, desconfiança e desconforto aos mesmos quanto ao que se dizia e o que se publicava (Entrevista 08).

Os enredos de narrativas então conformados tornavam-se visíveis pela articulação da seqüência de eventos referentes ao surgimento de casos de doença e morte entre trabalhadores petroquímicos do Pólo Petroquímico de Camaçari e às ações e reações dos diferentes sujeitos sociais envolvidos: trabalhadores, governo, empresas e outros setores da sociedade. Buscava-se a relação causal entre casos e exposição ao benzeno nas empresas, o dimensionamento do problema, sua explicação e possíveis soluções.

Dentre os acontecimentos noticiados, alguns foram confluentes: as duas mortes, a visita do Ministro da Saúde ao COPEC; e a decisão do governo de interditar a unidade de benzeno da empresa Nitrocarbono. Desde o início da cobertura jornalística foi plantada a dúvida em torno do diagnóstico causal das mortes ocorridas, tornando-se esta "o pivô" da história que se desenvolveu ao longo dos dezoito meses. Por exemplo, todos os jornais informaram os efeitos nocivos do benzeno sobre o organismo humano, mas os eventos tornados notícia variaram, sendo enfatizados uns, silenciados outros nas diferentes agências, em um movimento de perguntas e respostas, no qual as notícias ressoavam entre os meios. As perguntas às vezes eram afirmações/provocações ou acusação e as respostas podem ser silêncios, contra-argumentos ou simplesmente novos acontecimentos.

Assim, o diálogo entre os jornais se fez em torno da dúvida que se estabeleceu sobre a relação causal entre as mortes e os casos de leucopenia com a exposição ao benzeno, sobre a qual as narrativas foram tecidas, seja para afirmá-la, seja para refutá-la. Uma dúvida que significou o apoio à versão da empresa e encontrou sustentação no saber/poder médico, bem como na fragilidade governamental para avaliar a exposição ao benzeno, tanto do meio ambiente, quanto a do corpo dos operários. Esse diálogo foi construído com diferentes nuances, mediante as posturas e movimentos dos jornalistas com se pode ver a seguir.

Posturas e Sentidos

A análise das notícias mostrou que os jornais selecionaram aspectos diferentes em torno da epidemia e que os jornalistas assumiram posturas epistêmicas ou afetivas distintas (Ochs & Scheffelin,1989). Tais posturas imprimiram movimentos às narrativas que fizeram surgir inovações semânticas no enredo de cada jornal, dando origem a sentidos diferenciados para a epidemia.

No Quadro I observa-se que a postura dos jornais variou frente à denúncia de casos de leucopenia, sejam aquelas feitas pelos trabalhadores, sejam aquelas que resultaram dos estudos realizados pelos órgãos governamentais. O jornal AT procurou fontes e argumentos que apontaram à negação dos casos, tendo no horizonte de expectativas a investigação. O jornal TB, diante dos mesmos acontecimentos, buscou fontes e argumentos que apontaram para a confirmação da existência dos casos. O jornal JB apenas acolheu as denúncias como verdadeiras, não se movendo seja para negá-las, seja para confirmá-las, enquanto o jornal CB suspeitou da veracidade das denúncias.


Frente às evidências de que a epidemia era real, tais como a publicação dos resultados dos estudos e as subseqüentes denúncias do surgimento de novos casos, por parte de trabalhadores e seu sindicato, além dos serviços de saúde, os jornais também variaram quanto à postura. AT tratou de contestar, enquanto a TB buscou recorrências e o CB permaneceu imparcial. O JB por sua vez, tomando-as como verdade, tratou de buscar culpados. A análise revelou quatro sentidos produzidos pelos jornais, também apresentados no Quadro I: epidemia incerta ou duvidosa, no jornal AT; real e alarmante, na TB; criminosa, no CB; e, finalmente, natural e controlável/negociável no CB.

Sentidos e Argumentos

Tomando-se para análise a narrativa de cada jornal em separado, revelaram-se quatro linhas discursivas que focalizavam aspectos distintos da epidemia e que deram suporte aos sentidos das narrativas dos jornais. Estas representam as distintas interpretações dadas pelos jornais para alguns acontecimentos-chave da construção dos argumentos (Quadro II). Note-se que o Jornal A Tarde produziu o sentido de uma epidemia incerta argumentando que o laudo do Instituto Nacional de Previdência e Assistência Social – INAMPS sobre a causa da morte do médico era contestável e o sistema de controle ambiental da empresa onde trabalhavam as vítimas fatais era considerado pelas fontes vocalizadas no jornal como o melhor do Pólo. Em sua interpretação, a epidemia seria uma invenção de grupos de interesses que articulavam uma "guerra contra o Pólo", explicitamente divulgado em um editorial do jornal. AT potencializou a fala de entrevistados que afirmavam que na Bahia não havia equipamentos suficientes para confirmar a relação casos de leucopenia/intoxicação pelo benzeno e ressaltou que a empresa comprovou a inexistência de contaminação e sugerindo que o governo não tinha certeza suficiente (ou poder) para tomar a decisão de interditá-la. Apesar do argumento do relativo desconhecimento da natureza e magnitude do problema, o jornal AT mostrou reiteradamente o Pólo investindo em meio ambiente.


O jornal TB produziu o sentido de uma epidemia real e aterrorizante, argumentando que o INAMPS reconheceu a origem ocupacional da aplasia medular que matou médico e que este fato mostrava apenas a ponta do iceberg de um problema maior, o da intoxicação química, "um inimigo sempre à espreita" que "põe as garras de fora com ferocidade aterradora". O jornal denunciou a morte de um operador, por leucemia ocupacional na mesma empresa e saiu à frente com a notícia de que a DRT constatou o comprometimento da saúde por exposição ao benzeno em mais 73 trabalhadores; evidenciando uma ameaça química no COPEC. Esta estaria envolta em mistério, mostrando-se através dos novos casos surgidos a cada dia e em várias empresas. A ação governamental e da empresa foram também argumentos para configurar a realidade da epidemia: o Ministro da Saúde reconheceu a epidemia; a DRT determinou fiscalização rígida da empresa, enquanto o pânico se instalara no seu interior. Enquanto AT utilizava argumentos que enfraqueciam a crença da epidemia como fato, o TB orientou-se em sentido oposto, disputando a faticidade da notícia.

O movimento do jornal JB se aproximou do TB, por considerar a epidemia um fato real, mas, foi além, produzindo o sentido de uma epidemia criminosa. Construiu seu argumento pela vocalização das falas dos trabalhadores e seu sindicato, o qual incriminou a empresa e moveu ação judicial, bem como à atitude da empresa de contestar o laudo do INAMPS. No movimento do jornal identificou-se a busca do culpado de uma epidemia criminosa. O discurso da culpabilidade impregna as notícias deste jornal que se moveu para mostrar que a empresa era culpada e o crime era acompanhado de terror, "matando os trabalhadores aos poucos", como declarou o jornal em algumas de suas matérias. O crime se configurava por inúmeras irregularidades realizadas pelas empresas: demissões, sonegação de informações sobre operários doentes; corte da assistência médica e da complementação salarial; empresa "esconde o jogo da contaminação". Face às negociações entre governo, empresa e trabalhadores, o jornal se antecipou anunciando que a DRT interditara a empresa, fato que não se confirmaria.

A ocorrência de casos de leucopenia no COPEC ganhou também o sentido uma epidemia natural e controlável, construído pelo jornal Correio da Bahia. Na sua construção discursiva, o argumento que ganhou força foi o de que o laudo do INAMPS sobre a morte de médico era uma incógnita e de que a epidemia era esperada pois ocorria em outros pólos industriais de países do primeiro mundo, requerendo a investigação das autoridades sanitárias. Este jornal ofereceu ao público a interpretação de que a epidemia decorreu do fracasso do sistema de controle tecnológico pelo desgaste "natural" dos equipamentos e de que empresa e governo eram co-responsáveis pelo controle da epidemia, a qual exigia uma solução negociada. Minimizando os drama vivido pelos trabalhadores destacado pela TB, mas sem ocultá-lo, ressaltou os investimentos das empresas em tecnologia de controle ambiental para solucionar problema.

Considerações Finais

Tendo em conta as preocupações que nortearam e motivaram este estudo, os resultados corroboram a compreensão de que os meios de comunicação operam construindo a realidade social, recortando e selecionando discursos sociais correntes de atores sociais diversos. Neste estudo, os sentidos produzidos pelos jornais mostram que as notícias contribuíram para conformar a realidade sócio-sanitária de saúde dos trabalhadores do COPEC naquela ocasião e foram informadas por diversos tipos de discursos que têm sido estudados por diversos autores: o do risco natural, o da incerteza no mundo, o do risco epidemiológico, o da culpabilidade do sujeitos na doença e na morte.

Estes discursos oferecem possibilidades distintas para a compreensão do processo de adoecimento de trabalhadores expostos a riscos ocupacionais e, portanto, para a proteção e promoção da saúde. O discurso da incerteza no mundo aparece no jornal AT quando este contribui para desarticular os acontecimentos de sua essência, isto é, o sofrimento dos trabalhadores e o fato epidemiológico, e dissemina a dúvida sobre a epidemia. O princípio da incerteza é, para Baudrillard (1992), o que orienta o mundo da pós-modernidade, com o que as massas se põem diante da certeza estúpida e da banalidade inexorável dos números, encarnando esse princípio e cuidando secretamente da desordem estatística. Segundo esse autor, tal é o modo contemporâneo revolucionário do ser no mundo, em que "as coisas, os signos as ações são libertadas de sua idéia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito" (Baudrillard, 1992: 12). Nesse sentido, "vale tudo"para interpretar o que se passa com a saúde dos trabalhadores do COPEC.

Assim, a narrativa do jornal AT transitou sobre os acontecimentos em torno da epidemia de benzenismo no Pólo Petroquímico de Camaçari, valorizando a incerteza da doença no corpo, contida na polêmica médico-científico para o diagnóstico causal da morte do médico e dos casos de leucopenia que foram identificados. Ao transpor esta incerteza para a situação de contaminação ambiental e de risco no Pólo Petroquímico de Camaçari, contribuiu para diluir a responsabilidade do Estado e das empresas para com a proteção da saúde dos trabalhadores do COPEC.

A TB aproximou-se do discurso médico-sanitário apoiado no conhecimento clínico e epidemiológico, e sustentou o sentido de uma epidemia real, contribuindo efetivamente para levar à compreensão da distribuição de casos e levantar hipótese causais. Contudo, impregnou suas páginas de frases e imagens sensacionalistas, transitando por disposições do terror de que fala Heidegger (1995) como um modo de acontecer da epidemia. A ênfase ao terror praticada por este jornal contribuiu para alastrar o pânico e a insegurança entre os trabalhadores do Pólo, acentuando o sofrimento vivido por estes face à epidemia de leucopenia, o qual foi levado ao público por este mesmo jornal com toda a dramaticidade que os envolveu na relação de conflito com os diferentes atores.

O sentido de uma epidemia criminosa, construído pelo JB, a requerer a punição dos culpados, transpôs a culpa da doença, do trabalhador para a empresa. A idéia de culpa vinculada à doença é descrita como uma das variações culturais, tanto na definição de eventos nosológicos quanto na compreensão de sua função social (Berlinguer, 1988). No discurso da higiene e segurança industrial essa idéia encontra lugar na definição da responsabilidade civil e criminal dos acidentes de trabalho e da doença ocupacional, cuja avaliação causal se dá pelo estabelecimento de um ato inseguro ou de uma condição insegura. Alguns autores chamam a atenção para a função ideológica da interpretação causal de processos que são complexos e envolvem dimensões, tanto individuais quanto sócio-culturais (Berlinguer, 1988, Douglas, 1985) ou psíquica (Dejours, 1987), mas que são, sobretudo relacionados a processos de trabalho agressivos à saúde e à segurança (Cohn e col, 1985). Estudos sobre a produção da consciência culposa do trabalhador, abordando aspectos jurídicos e econômicos da transferência da responsabilidade do acidente para os trabalhadores, revelam conseqüências para as práticas de prevenção a partir de tal interpretação, tais como acentuação do sofrimento psíquico (Dejours, 1987) e o reforço à eficácia ideológica do discurso do ato inseguro (Rangel, 1993).

A idéia do risco à saúde como fenômeno natural que deu suporte ao argumento construído pelo CB é bastante difundida. Encontra-se vinculada ao fato de que o julgamento do risco envolve, necessariamente, valores morais e éticos (Douglas, 1985). Se o risco é naturalizado, ele se torna passível de uma aceitação mais calma e sobre ele não recai o mesmo sentido de injustiça e desejo de retribuição, quanto se ele é visto como uma construção humana passível de atribuição de responsabilidades (Douglas, 1985).

No conjunto, os sentidos construídos pelos quatro jornais, ao transitaram por discursos sociais diversos e às vezes conflitantes, levou ao público uma visão confusa da epidemia. Assim, observando-se o modo com que operam as notícias, essas agências que obedecem a uma lógica complexa marcada por interesses de naturezas diversas, parecem possuir mais limites do que possibilidades de contribuição no processo de crescimento da consciência crítica para a proteção da saúde das coletividades, ainda que a existência de múltiplos meios favoreceu a ampliação do debate no seio da sociedade, movendo atores que ganharam visibilidades para ações socialmente mais aceitáveis.

Contudo, entende-se que a diversidade na invenção da intriga, nos termos de Ricoeur, das narrativas da mídia, resultou dos modos próprios dos diferentes atores sociais envolvidos na questão se posicionarem, sentirem e pensarem a epidemia, apreendida seletivamente pelos meios. Assim, a inovação semântica da narrativa midiática que deu origem aos sentidos ofertados ao público, encontrou nas malhas da sociedade e na cultura a sua principal fonte de inspiração e de criação, através de um modo de narratividade que Aristóteles chamou de mimese em A Poética.

Assim, os sentidos surgiram, com tal e qual configuração, por estarem vivos, enquanto experiência de sujeitos sociais concretos, na abertura à diversidade de possibilidades de interpretação com que os atores sociais se colocaram frente aos acontecimentos, sendo enfatizados pela mídia, em uma ou outra perspectiva. Cada um de seu lugar social, com sua biografia, num contexto de intenso conflito. Múltiplas vozes compondo discursos consonantes/dissonantes ao longo de um ano e meio, lançando perguntas, trazendo respostas, silenciando, construindo imagens. Tal foi o movimento dos jornais, cuja diferenciação se fez pela preferência intencional de orientar o sentido na direção de uma ou outra possibilidade de desenlace do conflito, o que, em suma, está na base do acontecimento e, portanto, da narrativa jornalística.

Do inusitado da morte de um médico, à construção dos sentidos, a mídia passou a construir uma trama que explorou o conflito daí decorrente, tornada evidente a gravidade do problema de saúde no COPEC, até então tratado com negligência pelas empresas e secundariamente por órgãos públicos que passaram a assumi-lo com alguma prioridade naquela ocasião, agregando e articulando esforços e recursos para uma ação integrada e negociada com os diversos atores.

Relação dos entrevistados

Recebido em: 31/10/2003

Aprovado em: 01/12/2003

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  • Entrevista 01 - Médica Sanitarista e do Trabalho. USAT Camaçari.
  • Entrevista 02 - Médico Sanitarista e do Trabalho. CESAT e Sindiquímica.
  • Entrevista 03 - Médico do Trabalho. DRT
  • Entrevista 04 - Médica Sanitarista e do Trabalho, Sindiquímica
  • Entrevista 05 - Médica Sanitarista e do Trabalho. SINDAE e CESAT
  • Entrevista 06 - Engenheira Sanitarista. SVS/SESAB
  • Entrevista 07 - Engenheiro Higienista da FUNDACENTRO
  • Entrevista 08 - Jornalista do Tribuna da Bahia
  • Entrevista 09 - Jornalista do Jornal da Bahia
  • Entrevista 10 - Jornalista do Correio da Bahia
  • Entrevista 11 - Jornalista Professor da FACOM/UFBA
  • 1
    Segundo a definição de Ochs & Scheffelin (1989), na análise do discurso, a postura afetiva diz respeito ao humor, atitudes, sentimento e disposição, bem como aos graus de intensidade emocional, face a algum foco de preocupação, enquanto a postura epistêmica se refere ao conhecimento ou crença sobre algum foco de preocupação, incluindo graus de compromisso de verdade de proposições e fontes de conhecimento, entre outras qualidades epistêmicas. Ambas as posturas são passíveis de serem analisadas no discurso escrito, pela identificação de marcadores de linguagem.
  • 2
    A legislação brasileira considerava, nessa época, como limite de tolerância para concentrações ambientais de benzeno, até 8 ppm, conforme o
    Quadro 1, Anexo 11,a NR 15, da Portaria 3214/88, embora numerosos estudos já mostrassem aberrações cromossômicas e carcinogenicidade em expostos a valores em torno de 1 ppm (DRT,1991). A Portaria no 14 de 20 de dez./95, altera o Anexo 13 da NR 15, da Portaria 3214/78, criando um novo parâmetro para a avaliação ambiental - o Valor de Referência Tecnológica (VRT), definido em 1,0 ppm, que não exclui o risco à saúde como o anterior LT (Brasil, 1996).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      01 Dez 2003
    • Recebido
      31 Out 2003
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