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Círculo de Cultura como estratégia de promoção da saúde: encontros entre educação popular e interdisciplinaridade

Culture Circle as a strategy to promote health: encounters between popular education and interdisciplinarity

RESUMO

A promoção da saúde é uma estratégia de cuidado da Atenção Primária à Saúde (APS) que deve entender a saúde como dinâmica sócio-histórica atravessada por determinantes sociais. Além disso, a APS tem o intuito de promover a qualidade de vida, reduzindo vulnerabilidades e riscos à saúde relacionados com os seus determinantes e condicionantes. Nos territórios em saúde, existem grupos que necessitam de busca ativa e atenção integral dos serviços de saúde devido à sua condição de vulnerabilidade. Este relato de experiência apresenta o uso do Círculo de Cultura, proposto por Paulo Freire, como ferramenta para a aproximação entre profissionais de saúde e um agrupamento de famílias em situação de vulnerabilidade no contexto do território de uma unidade de saúde periférica situada em uma capital na região Sul. A estratégia promoveu o fortalecimento do vínculo entre trabalhadores e usuários, ampliando o empoderamento, o acesso à saúde e à dignidade, concomitantemente ao envolvimento dos profissionais da equipe com a Educação Popular em Saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à; Saúde; Promoção da saúde; Educação em saúde; Interdisciplinaridade.

ABSTRACT

Health promotion is a care strategy in Primary Health Care (PHC) that must see health as a social-historic dynamic permeated by social determinants. Moreover, PHC aims to promote the quality of life, reducing vulnerabilities and health risks related to determinants and conditions of health. There are groups in health territories that require actively search and integrative care of health services, due to their condition of vulnerability. This experience report presents the use of Culture Circle, as proposed by Paulo Freire, as a tool for health professionals to approach a family agroupment in a vulnerability situation in the territory of a Health Care Unit located in the peripherical region of a city in the south of Brazil. This strategy strengthens the bond between health workers and patients, amplifying empowerment and access to health and dignity, concurrently to the involvement of team workers with Popular Education in Health.

KEYWORDS
Primary Health Care; Health promotion; Health education; Empowerment for health.

Introdução

A promoção da saúde, por meio da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), é um dos princípios que envolvem as estratégias de trabalho na Atenção Primária à Saúde (APS)11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017.. Ações de promoção da saúde visam promover a qualidade de vida, reduzindo vulnerabilidades e riscos à saúde relacionados com os seus determinantes e condicionantes22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Aprova a Política de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União. 31 Mar 2006.. A saúde deve ser entendida como uma dinâmica relativa a um contexto sócio-histórico e deve promover a autonomia e o empoderamento individual e coletivo para transformar e melhorar as condições de vida e saúde, superando a visão exclusivamente biológica33 Carvalho FFB, Cohen SC, Akerman M. Refletindo sobre o instituído na Promoção da Saúde para problematizar ‘dogmas’. Saúde debate. 2017 [acesso em 2022 nov 18]; 41(3):265-276. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xV7FHzBmscvF7J3Xt85Yc9t/?lang=pt#.
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. Estratégias de promoção da saúde e de empoderamento de grupos vulnerabilizados que respeitem as subjetividades, desejos, histórias e contexto de vida dos usuários devem ser empregadas no cotidiano de trabalho, bem como as ações de educação em saúde33 Carvalho FFB, Cohen SC, Akerman M. Refletindo sobre o instituído na Promoção da Saúde para problematizar ‘dogmas’. Saúde debate. 2017 [acesso em 2022 nov 18]; 41(3):265-276. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xV7FHzBmscvF7J3Xt85Yc9t/?lang=pt#.
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,44 Dantas VL, Linhares AMB. Círculos de Cultura: problematização da realidade e protagonismo popular. In: Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II Caderno de Educação Popular em Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. p. 73-80.
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De acordo com o princípio da equidade, o direito à saúde perpassa as diferenças sociais e deve atender à diversidade, direcionando maior atenção às populações vulnerabilizadas55 Rocha G. Você sabe o que é equidade?. UNASUS. 2015 [acesso em 2022 nov 18]. Disponível em: https://www.unasus.gov.br/noticia/voce-sabe-o-que-e-equidade.
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. A concepção de grupos vulnerabilizados não está estritamente condicionada à ausência ou à precariedade no acesso à renda, mas atrelada a uma multideterminação que atravessa as fragilidades de vínculos afetivo-relacionais e a desigualdade de acesso a bens e serviços públicos; contextos que exercem influências sobre a maneira como os indivíduos se enxergam e se posicionam na sociedade66 Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad. Saúde Pública. 2018 [acesso em 2022 nov 15]; 34(3):1-14. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/ywYD8gCqRGg6RrNmsYn8WHv/?lang=pt.
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. A promoção da saúde deve ser pensada por meio da sua relação com os Determinantes Sociais de Saúde (DSS), que se caracterizam como fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população77 Buss PM, Pellegrini Filho A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis. 2007 [acesso em 2022 nov 18]; 17(1):77-93. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/msNmfGf74RqZsbpKYXxNKhm/?format=pdf⟨=pt.
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. Os DSS são mecanismos que podem suscitar iniquidades e contribuir para a vulnerabilização de populações, impactando negativamente na situação de saúde dos indivíduos e dos coletivos. Dentre esses mecanismos, destacam-se a escassez de recursos, a ausência de infraestrutura comunitária, a violência nos territórios, as diferenças de rendas e outras desigualdades sociais88 Brasil. Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008.,99 Organização Mundial da Saúde. World conference on social determinants of health: meeting report. Rio de Janeiro: WHO; 2011.. Desse modo, deve-se considerar que os aspectos sociais, culturais e materiais condicionam as formas de viver dos indivíduos em comunidade, sendo necessário superar propostas conservadoras relacionadas meramente com o estilo de vida e com o comportamento individual33 Carvalho FFB, Cohen SC, Akerman M. Refletindo sobre o instituído na Promoção da Saúde para problematizar ‘dogmas’. Saúde debate. 2017 [acesso em 2022 nov 18]; 41(3):265-276. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xV7FHzBmscvF7J3Xt85Yc9t/?lang=pt#.
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Na prevenção, o agravo não é o único foco da atenção, mas também o indivíduo, que é corresponsável pelo seu estado de saúde33 Carvalho FFB, Cohen SC, Akerman M. Refletindo sobre o instituído na Promoção da Saúde para problematizar ‘dogmas’. Saúde debate. 2017 [acesso em 2022 nov 18]; 41(3):265-276. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xV7FHzBmscvF7J3Xt85Yc9t/?lang=pt#.
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. Desse modo, a prevenção de agravos em saúde somente se aproximará da promoção da saúde a partir da combinação de estratégias para que as ações também atuem sobre as causas dos problemas, e não apenas sobre riscos ou sinais e sintomas clínicos, assim como possam também contemplar o empoderamento individual e coletivo1010 Westphal MF. Promoção da saúde e prevenção de doenças. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M et al., organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 635-667..

A educação em saúde, muitas vezes, parte do pressuposto de que existem ações prescritivas para as pessoas mudarem seus hábitos, mediante práticas baseadas em um único conhecimento, o do profissional da saúde. No entanto, para a Educação Popular em Saúde (EPS), o ponto de partida são os saberes prévios dos educandos, construídos pelas pessoas à medida que essas vão seguindo sua história, cabendo aos educadores populares a facilitação da ampliação da análise crítica de suas realidades, para que consigam superar situações adversas1111 Gomes LB, Merhy EE. Compreendendo a educação popular em saúde: um estudo na literatura brasileira. Cad. Saúde Pública. 2011 [acesso em 2022 nov 22]; 27(1):7-18. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2011.v27n1/7-18/.
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A EPS tem como princípios político-pedagógicos a defesa da vida como estratégia para mobilização popular, no sentido de mudar o cotidiano. Ela problematiza a realidade mostrando-se um dispositivo de crítica social e das situações vivenciadas, permitindo a produção de sentidos para a vida, estimulando a vontade de agir em direção a mudanças de cenários que se julguem necessárias. A EPS permite a aproximação entre agentes formais de saúde e população, diminuindo a distância entre a assistência e o cuidado, a unidade de saúde e as famílias do território. Por intermédio da reflexão crítica, do diálogo e da construção compartilhada do conhecimento, temos ferramentas que propiciam o encontro entre a cultura popular e a científica. Nesse sentido, é importante a disponibilidade de escuta e fala dos atores envolvidos, cada qual portando uma visão de saberes e práticas diferentes, convivendo em situações de reciprocidade e cooperação1212 Gonçalves AC, Araújo FCA. Multiplicar para combater: a experiência de formação de multiplicadores para a prevenção e combate ao abuso infantojuvenil. Rev. Ed. Popular. 2020 [acesso em 2022 nov 18]; 19(2):275-289. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/50757.
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,1313 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular e saúde. Brasília, DF: MS; 2007.
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No desenvolvimento de ações baseadas na EPS, são utilizadas metodologias participativas que permitem a atuação efetiva dos participantes no processo educativo, valorizando os conhecimentos e as experiências dos atores, envolvendo-os na discussão, identificação e busca de soluções para problemas que emergem de suas vidas. Com efeito, trata-se de uma forma de trabalho pedagógico baseado no prazer, na vivência e na participação ativa em situações reais ou imaginárias, a qual provoca a reflexão, fazendo os participantes construírem sentidos às situações concretas da vida. Sendo assim, a metodologia de Paulo Freire, proposta pelo Círculo de Cultura, apresenta-se como um potente meio para promover a saúde por meio do empoderamento popular sobre o direito do acesso à saúde1313 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular e saúde. Brasília, DF: MS; 2007..

Este relato parte da experiência da Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) com enfoque em atenção básica em saúde coletiva, com atuação em uma Unidade de Saúde (US) distante da região central de uma capital da região Sul, vinculada a uma equipe de Saúde da Família (eSF). Durante o período de inserção no serviço, houve percepção do distanciamento da equipe em relação à compreensão do impacto que os DSS possuem na situação de saúde da população do território, principalmente dos grupos vulnerabilizados. O desenvolvimento de uma postura ativa por parte dos profissionais da eSF em busca da comunidade é necessário para a identificação de grupos populacionais que, por motivos históricos, sociais, políticos ou econômicos, não acessam os serviços das US, impulsionado a criação de vínculos de confiança com a comunidade local11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017.. Desse modo, buscou-se identificar grupos no território que apresentaram pouco ou nenhum acesso à US nos últimos anos, devido a diversas situações de vulnerabilidades sociais. Esse mapeamento teve como ator principal o Agente Comunitário de Saúde (ACS), conhecedor do território e protagonista no vínculo saúde-comunidade.

A atuação do ACS constitui um pilar fundamental para a consolidação das eSF e do conceito ampliado de saúde, por meio de ações de educação em saúde individual e coletiva, prevenção de doenças e agravos em saúde, vigilância em saúde e visitas domiciliares22 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Aprova a Política de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União. 31 Mar 2006.. Além disso, constitui um elo muito importante entre a equipe de saúde e os usuários, tanto informando a equipe sobre as situações das famílias quanto orientando os usuários e identificando possíveis riscos à saúde1414 Costa SM, Araujo FF, Martins LV, et al. Agente Comunitário de Saúde: elemento nuclear das ações em saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2013 [acesso em 2022 nov 22]; 18(7):2147-2156. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csc/2013.v18n7/2147-2156/.
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No planejamento das estratégias de ação, confrontou-se uma realidade ainda presente na APS: um modelo médico-centrado, orientado pelo enfoque na doença e na cura1515 Polidoro AA, Da Ros MA, Polidoro JAP. Metodologia problematizadora na promoção à saúde: fichas e círculo de cultura. Rev. Ed. Popular. 2016 [acesso em 2022 nov 22]; 15(1):79-90. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/32942.
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,1616 Rumor PCF, Berns I, Heidemann ITSB, et al. A promoção da saúde nas práticas educativas da saúde da família. Cogitare Enferm. 2010 [acesso em 2022 nov 15]; 15(4):674-680. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/20364/13525.
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. Ainda que seja importante considerar os agravos em saúde para definição das ações educativo-preventivas e curativas a serem realizadas, a adoção desse critério não deve significar a exclusão dos indivíduos sem agravos em saúde ou queixas prévias33 Carvalho FFB, Cohen SC, Akerman M. Refletindo sobre o instituído na Promoção da Saúde para problematizar ‘dogmas’. Saúde debate. 2017 [acesso em 2022 nov 18]; 41(3):265-276. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xV7FHzBmscvF7J3Xt85Yc9t/?lang=pt#.
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,1717 Lopes AS, Villar RLA, Melo RHV, et al. O acolhimento na Atenção Básica em saúde: relações de reciprocidade entre trabalhadores e usuários. Saúde debate. 2015 [acesso em 2022 nov 15]; 39(104):114-123. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/sKxQnfbmdm43Yc7JRrkqNtB/?format=pdf⟨=pt.
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. Para a elaboração das atividades, foi necessário esforço conjunto da equipe para superar o modelo ‘queixa-conduta’ e possibilitar ações estratégicas de promoção da saúde1818 Fermino JM, Silva AT, Shirasaki RTS, et al. Potencialidades e dificuldades nas práticas de acolhimento na rede de atenção básica conforme a Política Nacional de Humanização. Sau & Transf Soc. 2015 [acesso em 2022 nov 18]; 6(2):54-69. Disponível em: http://stat.necat.incubadora.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/viewFile/3313/4470.
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Diante dessas premissas, este trabalho tem como objetivo descrever o processo de aproximação dos profissionais de uma US com um grupo específico de moradores do território com pouco acesso e baixo vínculo com o serviço de saúde, por meio da utilização do Círculo de Cultura de Paulo Freire e com abordagem interdisciplinar.

Material e métodos

As atividades descritas neste trabalho foram realizadas nos meses de setembro, outubro e dezembro de 2019, em um bairro periférico de uma capital da região Sul, como parte do processo formativo da RMS dos núcleos profissionais de enfermagem, farmácia, nutrição, odontologia e psicologia.

A pesquisa apresenta um relato de experiência, de abordagem qualitativa, por intermédio da descrição das atividades realizadas com a utilização da ferramenta Círculo de Cultura proposta por Paulo Freire. O trabalho tem por base as anotações de caderno de campo e as discussões realizadas pelas trabalhadoras envolvidas na construção dessa atividade, comparando-as com os achados já existentes na literatura.

O Círculo de Cultura, proposto por Paulo Freire em meados de 1960, compreende a construção de possibilidades por meio da negociação e da conquista do poder compartilhado com saberes distintos e igualmente importantes. Adverso a uma simples ‘prestação de serviços clínicos’ na localidade, a metodologia permite o respeito pelo educando, a conquista da autonomia e a dialogicidade, produzindo promoção da cidadania, autocuidado e acesso aos serviços de saúde disponíveis na rede do território44 Dantas VL, Linhares AMB. Círculos de Cultura: problematização da realidade e protagonismo popular. In: Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II Caderno de Educação Popular em Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. p. 73-80.,1717 Lopes AS, Villar RLA, Melo RHV, et al. O acolhimento na Atenção Básica em saúde: relações de reciprocidade entre trabalhadores e usuários. Saúde debate. 2015 [acesso em 2022 nov 15]; 39(104):114-123. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/sKxQnfbmdm43Yc7JRrkqNtB/?format=pdf⟨=pt.
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,1818 Fermino JM, Silva AT, Shirasaki RTS, et al. Potencialidades e dificuldades nas práticas de acolhimento na rede de atenção básica conforme a Política Nacional de Humanização. Sau & Transf Soc. 2015 [acesso em 2022 nov 18]; 6(2):54-69. Disponível em: http://stat.necat.incubadora.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/viewFile/3313/4470.
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O desenvolvimento do Círculo de Cultura pode ser estruturado em três momentos: a) a investigação do universo vocabular, do qual são extraídas palavras geradoras representativas dos modos de vida e singularidades dos grupos e do território onde se trabalhará; b) a tematização, processo no qual os temas e as palavras geradoras são codificados e decodificados, possibilitando a ampliação do conhecimento e a compreensão dos educandos sobre a própria realidade; c) a problematização, que, por meio da reflexão com o conjunto dos atores, possibilita a visão crítica, partindo para a transformação do contexto vivido44 Dantas VL, Linhares AMB. Círculos de Cultura: problematização da realidade e protagonismo popular. In: Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II Caderno de Educação Popular em Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. p. 73-80..

A seleção da população foi após a identificação do baixo acesso aos serviços de saúde por sete famílias que habitavam um mesmo terreno pertencente ao território da US. A equipe acreditava que o conhecimento da comunidade sobre o envolvimento dessas famílias com o tráfico de substâncias ilícitas foi uma importante barreira cultural e principal fator do não acesso desse grupo ao serviço de saúde devido à crença de que poderia haver qualquer discriminação no atendimento. Além disso, apontou-se a dificuldade das famílias em se adequarem à organização e horários ofertados pela US. Os núcleos familiares eram compostos por 12 crianças, 7 adolescentes e 10 adultos, na sua maioria do sexo feminino.

A primeira etapa do trabalho foi a realização de um treinamento sobre a utilização do Círculo de Cultura, disponibilizado pela instituição de ensino da RMS. Na sequência, houve o repasse desses conhecimentos para os outros profissionais envolvidos no trabalho e vinculados à US.

Em seguida, foi iniciada a etapa de imersão e reconhecimento no local de estudo, com o intuito de formação de vínculo com os participantes, processo facilitado pelo ACS. Para isso, foram realizadas visitas ao território com o objetivo de propiciar aos profissionais a capacidade de imersão na realidade da família, buscando a desconstrução de conceitos previamente estabelecidos, que, por vezes, podem interferir no processo de cuidado. A estruturação dos encontros foi oportunizada por intermédio dessa aproximação inicial e de visitas realizadas em pequenos grupos, buscando entender o cotidiano das famílias que moravam naquele lugar. Ao longo de três meses, foram realizados seis encontros com as crianças e com os adultos, com o intuito de não sobrecarregar as famílias e, também, de propiciar aos profissionais tempo oportuno para a preparação das próximas atividades. Já com os adolescentes, foi possível realizar somente um encontro, visto que a maioria deles trabalhava durante o dia e estudava à noite. As atividades foram desenvolvidas em um espaço coletivo comum aos moradores do local, com aproximadamente uma hora de duração.

Os temas escolhidos foram abordados em rodas de conversa conforme a faixa etária (crianças até 10 anos, adolescentes até 17 anos e adultos maiores de 18 anos), respeitando as diferentes fases do desenvolvimento humano e proporcionando privacidade e liberdade para tratar de assuntos diversos, inclusive os considerados tabus, como a sexualidade. Cada assunto era iniciado por meio de perguntas disparadoras capazes de levantar novas palavras geradoras e tematizações, em que a participação entre profissionais de saúde e usuários acontecesse de modo horizontal, valorizando o conhecimento de todos os atores envolvidos.

Resultados

Durante a fase de observação, percebeu-se nas famílias a necessidade de atendimentos voltados à prestação de serviços clínicos pontuais, como atendimentos odontológicos, distribuição de medicamentos para verminoses, avaliação e consulta com equipe multiprofissional, como psicologia e nutrição. Os seguintes relatos de moradoras:

A gente nunca consegue ir no dentista lá no posto, sempre tem fila, as crianças aqui precisavam de uma psicóloga, são muito agitadas, vocês podiam trazer da próxima vez remédio para verme e piolho, aqui as crianças estão cheias e aqui a gente precisava uma nutricionista também, todo mundo engordou.

Dispararam a necessidade de desconstruir as possíveis expectativas geradas pela presença dos profissionais de saúde, destacando que as atividades não seriam pautadas em atendimentos clínicos, mas sim em estratégias de promoção da saúde.

Inicialmente, realizou-se a investigação do universo vocabular por meio das perguntas ‘Vocês sentem necessidade de acessar a unidade de saúde? Quais assuntos vocês gostariam de discutir?’ e ‘Quais são as maiores dificuldades para acessar a unidade de saúde?’. Nesse momento, participaram algumas das mulheres adultas das famílias. A partir das respostas, surgiram palavras geradoras relacionadas com a dificuldade do acesso aos serviços da US, questões de autoestima e comportamento, preocupação com parasitoses e com a educação sexual e reprodutiva dos adolescentes. Tal investigação possibilitou a formação das temáticas: alimentação saudável, saúde bucal, saúde mental, cuidados de higiene e saúde, e saúde sexual e reprodutiva. A partir dessa formação, foi planejada a construção de círculos de conversa, com o intuito de problematizar as temáticas. Os questionamentos tinham como objetivo realizar uma provocação baseada nas palavras geradoras e levar os participantes a pensar nas temáticas de forma dinâmica, como parte integrante do conceito de saúde, conduzindo a atividade para a promoção do autocuidado, prevenção de agravos em saúde e empoderamento para saúde.

Na roda de crianças, os assuntos foram abordados por intermédio de atividades lúdicas, mediante o uso de contação de histórias, músicas, teatro e brincadeiras com instrumentos. No primeiro encontro, o tema abordado foi saúde e alimentação. Iniciou-se a conversa perguntando às crianças o que significava para elas ter saúde. As respostas foram variadas, como “não ter doença”, “ser feliz”, “estar de bem com todos”, sendo que, a partir dessas respostas, foi conduzido um debate sobre o conceito ampliado de saúde. Na sequência, o tema abordado foi sobre a alimentação, por meio das seguintes perguntas: ‘Qual a sua comida preferida? Do que é feita a sua comida preferida? De onde ela vem? O que ela traz para o nosso corpo?’. Com esses questionamentos, foi possível perceber um alto consumo de alimentos ultraprocessados, como salsicha, salgadinhos e balas, e baixo consumo de alimentos in natura e minimamente processados, como frutas, verduras e legumes. Apesar do padrão inadequado de consumo, notou-se que as crianças sabiam a diferença entre alimentos mais saudáveis e menos saudáveis, pois associavam a presença de gordura e açúcares como prejudiciais à saúde, entretanto, eram os alimentos que estavam mais acessíveis no território devido ao menor preço.

Na roda com os adultos, foi percebida a importância de uma abordagem mais direta e madura, enfocando sempre a promoção da saúde e a autonomia, esclarecendo quais os fluxos de acesso aos atendimentos e serviços solicitados. A conversa se iniciou por meio de perguntas como: ‘Me alimento apenas quando tenho fome ou me alimento por outros motivos? Minha alimentação faz sentir-me bem? Existe relação entre o alimento e a minha saúde?’. A partir dessas perguntas, os adultos trouxeram que a alimentação das famílias é influenciada pelo que está disponível no bairro e o que é mais barato. As mães relataram ser comum, durante as tardes, comprar salsicha para fazer cachorro-quente e compartilhar o lanche entre as famílias. Além disso, destacaram ser difícil a aquisição de alimentos in natura e minimamente processados. Uma das usuárias destacou: “a gente sabe que esses produtos não são bons pra saúde, mas as crianças gostam e é mais barato também”.

O quadro 1 apresenta como foi realizada a condução das outras atividades, a partir das perguntas geradoras.

Quadro 1
Sistematização das atividades desenvolvidas

A conversa com os adolescentes ocorreu somente em um encontro previamente agendado, em um espaço reservado, separado dos adultos e das crianças. O encontro foi conduzido de forma acolhedora, propiciando a desconstrução de tabus socialmente estabelecidos e proporcionando ao grupo um espaço de partilha de experiências, dúvidas e aflições. O objetivo desse encontro foi a saúde sexual e reprodutiva, tendo como perguntas norteadoras aquelas expostas no quadro 1.

Em cada encontro, após a condução das perguntas norteadoras, da tematização e da problematização das questões, foram desenvolvidas ações voltadas à promoção da saúde, a fim de apurar as situações expostas, como as verminoses, cáries, alto consumo de ultraprocessados, além de explicar os fluxos de atendimento para a US e outros equipamentos sociais e de saúde disponíveis no território.

Após a realização dos encontros, utilizando como ferramenta o Círculo de Cultura, foi possível perceber que as famílias participantes apresentaram maior acesso à US e maior envolvimento nos grupos ofertados, como Grupo de Caminhada e Grupo de Alimentação Saudável, propiciando um maior empoderamento do seu cuidado. Além disso, a partir do vínculo, notou-se melhora no envolvimento das famílias com o território, que agora buscam pelo acesso à alimentação, educação, itens de higiene e renda por meio dos equipamentos sociais disponíveis, incluindo organizações, associações e demais serviços públicos, privados e filantrópicos acessíveis, demonstrando compreensão do conceito ampliado de saúde.

Outro resultado importante das atividades foi a interdisciplinaridade alcançada, visto que a oficina foi conduzida em conjunto pelo ACS e pelas trabalhadoras da saúde dos núcleos de enfermagem, farmácia, medicina, nutrição, odontologia e psicologia, proporcionando uma intensa troca de saberes. Ademais, vale destacar a mudança na postura dos profissionais diante do seu trabalho ao longo do processo. Durante as atividades, notou-se uma dificuldade dos profissionais e dos usuários de se desvincularem de práticas curativistas, voltadas à transmissão vertical de informações e oferta imediata de procedimentos pontuais. A prática do diálogo/problematização proposta pela ferramenta do Círculo de Cultura permitiu uma reflexão nas práticas de cuidado, possibilitando a superação da postura curativista para uma abordagem de promoção da saúde, propiciando um cuidado horizontal e centrado na pessoa.

Discussão

Trabalhar promoção da saúde por meio da metodologia de Círculos de Cultura possibilita a aproximação entre os profissionais como um grupo, bem como a aproximação destes com os usuários, desvelando a realidade do território a partir do diálogo1919 Santos JLF, Westphal MF. Práticas emergentes de um novo paradigma de saúde: o papel da universidade. Estud Av. 1999 [acesso em 2022 nov 22]; 13(35):71-88. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/MHv33yZVWbrXNZJw6xyCTVJ/?format=pdf⟨=pt.
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20 Mello MRC, Dantas VLA. Círculos de cultura e promoção da saúde na estratégia de saúde da família. Rev Bras Promoç Saúde. 2012 [acesso em 2022 nov 22]; 25(3):328-336. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/RBPS/article/view/2263.
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-2121 Monteiro EMLM, Vieira NFC. Educação em saúde a partir de círculos de cultura. Rev Bras Enferm. 2010 [acesso em 2022 nov 18]; 63(3):397-403. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/dqqbpFdL5c7pV3W5WxKXJFt/?format=html⟨=pt.
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. Além disso, a oportunidade de problematizar temáticas desmistifica conceitos e preconceitos, além de viabilizar a adoção de novas práticas a partir da identificação de potencialidades e dificuldades2020 Mello MRC, Dantas VLA. Círculos de cultura e promoção da saúde na estratégia de saúde da família. Rev Bras Promoç Saúde. 2012 [acesso em 2022 nov 22]; 25(3):328-336. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/RBPS/article/view/2263.
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. A multidimensionalidade dos seres humanos requer práticas profissionais que considerem as subjetividades, os desejos, as histórias e o contexto de vida dos usuários na promoção da saúde e empoderamento de grupos vulnerabilizados. A interdisciplinaridade se apresenta como essa possibilidade, uma vez que existe a integração para além dos saberes, mas também de práticas, em um processo de construção entre teoria e prática compartilhadas por núcleos diferentes2222 Scherer MDA, Pires DAP, Jean M. A construção da interdisciplinaridade no trabalho da Equipe de Saúde da Família. Ciênc. Saúde Colet. 2013 [acesso em 2022 nov 18]; 18(11):3203-3212. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/ssm/content/raw/?resource_ssm_path=/media/assets/csc/v18n11/11.pdf.
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.

A educação em saúde para adolescentes no contexto de problematização dos assuntos abordados constitui uma estratégia fundamental para envolver estes nas discussões, de modo a promover autonomia e desconstruir as ideias de inibição e repreensão social que podem advir. Ao trabalhar os conceitos de saúde sexual e reprodutiva com adolescentes, é necessária a flexibilidade no diálogo, alcançada pelos Círculos de Cultura. Dessa forma, possibilita-se uma discussão complexa com graus de maturidade e conhecimento de todos os envolvidos, normalizando a sexualidade como uma questão de desenvolvimento humano. Também se ressalta que o trabalho interdisciplinar aborda os aspectos da educação em saúde sexual por intermédio das esferas biológica, psicológica e sociocultural, proporcionando o conhecimento dos adolescentes em suas diversidades e o fortalecimento das ações de promoção da saúde2323 Coelho MMF, Torres RAM, Miranda KCL, et al. Educação em Saúde com Adolescentes: Compartilhando Vivências e Reflexões. Cienc. Cuid Saude. 2012 [acesso em 2022 nov 18]; 11(2):390-5. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/14271.
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.

O trabalho de Cavalcante et al.2424 Cavalcante JHV, Oliveira EN, Neto FRGX, et al. Experience of using a cultural circle meeting as a reference for educational intervention with adolescents. Res., Soc. Dev. 2020 [acesso em 2022 nov 18]; 9(8):e694986256. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/6256/5815.
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apresenta um relato de experiência sobre a utilização do Círculo de Cultura em uma abordagem educativa com adolescentes, realizado nos anos de 2013 e 2014. Os resultados encontrados no trabalho apontam que a utilização da ferramenta auxiliou no fortalecimento do vínculo entre educandos e educadores, diante da mudança na postura adotada pelos educadores, de um caráter mais centralizador e transversal para uma abordagem horizontal, que valorizava os conhecimentos prévios dos educandos.

O trabalho de Heidemann et al.2525 Heidemann ITSB, Wosny AM, Boehs AE, et al. Promoção da Saúde na Atenção Básica: estudo baseado no método de Paulo Freire. Ciênc. Saúde Colet. 2014 [acesso em 2022 nov 18]; 19(08):3553-3559. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csc/2014.v19n8/3553-3559/pt/.
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dialoga com a experiência apresentada, uma vez que traz o Círculo de Cultura como uma ferramenta importante para a realização de atividades voltadas à promoção da saúde. Em seu trabalho, os autores destacam a utilização da estratégia nos encontros de educação permanente das eSF de Florianópolis e percebem o quanto é difícil para os profissionais se desvincularem de práticas direcionadas ao repasse direto e vertical de informações, fato também percebido no presente estudo. Apesar das dificuldades relatadas, o estudo destaca o potencial de utilização da ferramenta, tanto na educação permanente quanto nas atividades com os usuários.

É necessária a ampliação de experiências e interações entre coletivos a fim de favorecer relações que implicam a potencialização da produção de novos significados sobre o cuidado à saúde, pautado na atenção interdisciplinar. O trabalho em saúde a partir de uma perspectiva interdisciplinar otimiza as ações em saúde com melhor qualidade aos usuários, além de fortalecer as estratégias de comunicação, resolução de conflitos e processos de tomada de decisões compartilhada. Ademais, promove a aproximação entre os profissionais de saúde e os usuários em suas diversas complexidades, sendo essencial para uma assistência humanizada, crítica e reflexiva, de modo a melhorar as condições dos serviços ofertados aos usuários do sistema de saúde2626 Feuerwerke LC. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014..

Ainda, é importante destacar a sobrecarga de trabalho das equipes de saúde e a falta de tempo disponível para a integração entre os profissionais. Nesse sentido, torna-se fundamental a implantação de mecanismos institucionais, e ações ao nível de gestão que possibilitem trabalhos interdisciplinares entre as equipes de saúde2727 Lima VV, Ribeiro ECO, Padilha RQ, et al. Desafios na educação de profissionais de Saúde: uma abordagem interdisciplinar e interprofissional. Interface (Botucatu). 2018 [acesso em 2022 nov 15]; 22(2):1549-1562. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/HcKDyxGDbbtHpj8nphcZ5nv/?lang=pt#.
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Como pontos fortes do relato de experiência apresentado, podem-se citar: 1) utilização da abordagem qualitativa por meio do registro das atividades em diários de campo; 2) utilização do Círculo de Cultura na área da Saúde, visto que ainda é uma ferramenta mais utilizada pelas ciências humanas; 3) incentivo ao trabalho de promoção da saúde com populações vulnerabilizadas; 4) abordagem interdisciplinar. Além desses pontos, pode-se destacar que a ferramenta apresentada é uma tecnologia de cuidado leve, fácil de ser implementada e pouco custosa aos serviços de saúde.

Apesar dos resultados satisfatórios apontados no relato de pesquisa, o estudo apresenta algumas limitações, tais como: 1) a realização das atividades ocorreu em espaço familiar, e isso, de certo modo, pode ter deixado os participantes mais inibidos em relatar algumas situações, principalmente no caso dos adultos; 2) não foi aplicado um questionário que pudesse avaliar o impacto das atividades com os participantes, incluindo também aspectos quantitativos no trabalho.

Conclusões

O papel dos trabalhadores nos serviços de saúde é indispensável na promoção da saúde e na orientação das práticas de prevenção de agravos ao mesmo tempo que os usuários são parte de um contexto social, que se relacionam direta ou indiretamente com a forma de cuidado da sua própria saúde, em proximidade às recomendações científicas. Para tanto, é importante que os trabalhadores busquem e desenvolvam estratégias que vençam as práticas punitivas e de prescrição de comportamentos saudáveis, construindo com o usuário negociações e pactos que possam gerar mudanças de vida33 Carvalho FFB, Cohen SC, Akerman M. Refletindo sobre o instituído na Promoção da Saúde para problematizar ‘dogmas’. Saúde debate. 2017 [acesso em 2022 nov 18]; 41(3):265-276. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xV7FHzBmscvF7J3Xt85Yc9t/?lang=pt#.
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. O Círculo de Cultura foi um facilitador do empoderamento dos indivíduos sobre sua própria saúde e seus direitos enquanto cidadão e pode ser aplicado em diferentes contextos.

Nas atividades desenvolvidas, independentemente da faixa etária, a finalidade da roda de conversa não se deteve em ‘como curar/prevenir determinada doença’, e sim ‘ter saúde e sentir-se bem’, vinculando os aspectos subjetivos, a autonomia e o empoderamento individual e coletivo, resultado do acesso aos bens e serviços sociais básicos, e não necessariamente à ausência de doenças, problematizando com a visão médico-centrada. Tal abordagem proporcionou com sucesso o envolvimento da equipe e o estímulo ao interesse dos usuários pelo autocuidado, o empoderamento dos indivíduos e a aproximação entre comunidade e US, fortalecendo o vínculo e a confiança entre os usuários vulnerabilizados e os trabalhadores, bem como ampliando o acesso à saúde e à dignidade.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2021
  • Aceito
    20 Jun 2022
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