RESUMO
O processo sócio-histórico do Brasil é atravessado pelo racismo e pela questão agrária, visto que ambos fazem parte de uma mesma dimensão estrutural. Desse modo, a compreensão do racismo é elementar para apreender o processo de determinação social das desigualdades raciais em saúde. Esta pesquisa-ação teve como objetivo geral analisar a interferência do racismo no processo saúde-doença-cuidado de famílias negras do campo e, mais especificamente, descrever as atividades de intervenção do grupo de crianças. Foram utilizados dados primários: diários de campo e outros documentos elaborados pela Equipe de Residentes; e dados secundários: sistematização das ferramentas do Diagnóstico Rural Participativo na territorialização. Essa ação compartilhada entre profissionais residentes em saúde da família e moradores/as de um assentamento, localizado em Caruaru (PE), foi desenvolvida a partir da educação popular em saúde com foco na promoção à saúde e teve o enfrentamento ao racismo como eixo transversal. Nesse sentido, a equipe de Saúde da Família se mostrou instrumento potente de promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis a partir do enfrentamento do racismo em suas questões não biocentradas, com o uso de baixa tecnologia, transdisciplinarmente, fortalecendo as identidades negras e construindo saúde conforme preconizado nas políticas de saúde e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
PALAVRAS-CHAVE
Educação para a saúde comunitária; Saúde da população rural; Saúde das minorias étnicas; Desenvolvimento sustentável; Determinantes Sociais da Saúde
ABSTRACT
The socio-historical process in Brazil is crossed by racism and the agrarian issues, as both are part of the same structural dimension. Thus, the understanding of racism is essential to apprehend the social determination process of racial inequalities in health. This action research had as general objective to analyze the interference of racism in the health-disease-care process of rural black families and, more specifically, to describe the children’s group intervention activities. Primary data were used: field diaries and other documents prepared by the Resident Team; and secondary data: the Participatory Rural Appraisal as a tool of systematization in territorialization. This shared action between professionals residents in Family Health Care and settlement dwellers, located in Caruaru (PE), was developed from the popular health education focusing on health promotion and facing racism as a transversal axis. In this sense, the Family Health team is a powerful tool for promoting Healthy and Sustainable Territories by confronting racism in its non-biocentered issues, with the use of low technology, transdisciplinary, strengthening black identities and building health as recommended in health policies and the Sustainable Development Goals.
KEYWORDS
Community health education; Rural health; Health of ethnic minorities; Sustainable development; Social Determinants of Health
Introdução
Os dados preliminares do Censo Agropecuário de 2017 sobre produtores/as rurais no Brasil mostram a presença majoritária de negros/as (52%)11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2017. Brasília, DF: IBGE; 2017. [acesso em 2021 jun 10]. Disponível em: https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/
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. Em Pernambuco, a população negra soma 64,73% entre os/as produtores/as rurais. A maioria, porém, não representa equidade no acesso aos bens e serviços produzidos e autonomia política, posto que o agronegócio brasileiro perpetua a lógica colonial de commodities e concentração de terras22 Melo PB. Quilombos: transição da condição de escravizado à de camponês livre. Rev. da ABPN. 2011 [acesso em 2021 jun 12]; 1(3):53-76. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/274
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As relações entre o racismo, enquanto ideologia que produz desigualdades, e a questão da terra, são alicerces da formação social do Brasil, e fazem parte de uma mesma dimensão estrutural. A estrutura fundiária no País é produto de um longo processo de colonização que priorizou a exploração das forças de trabalho africana e indígena como base para o desenvolvimento e a concentração de terras. Desse modo, é fundamental relacionar o fato de o Brasil ser o último país a abolir a escravidão, ser recordista em concentração de terras (1% dos proprietários rurais são donos de 45% das terras agricultáveis) e ter a maioria da população negra em condição de pobreza22 Melo PB. Quilombos: transição da condição de escravizado à de camponês livre. Rev. da ABPN. 2011 [acesso em 2021 jun 12]; 1(3):53-76. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/274
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,33 Barbosa AM, Porto-Gonçalves C. Reflexões sobre a atual questão agrária brasileira: descolonizando o pensamento. Cescontexto. 2014 [acesso em 2020 jul 2]; (05):12-27. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/publicacoes/cescontexto/ficheiros/cescontexto_debates_v.pdf
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Na contemporaneidade, as desigualdades raciais se expressam de maneiras diversas. Estudos demonstram que o racismo institucional interfere no acesso aos serviços e na qualidade da assistência à saúde da população negra44 Batista LE, Barros S. Enfrentando o racismo nos serviços de saúde. Cad. Saúde Pública. 2017 [acesso em 2020 jun 2]; 33(supl1):1-5. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/1678-4464-csp-33-s1-e00090516.pdf
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,55 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Soc. 2016 [acesso em 2020 jun 21]; 25(3):535-549. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-129020162610
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Por isso, a compreensão do racismo estrutural é elementar para apreender o processo de determinação social das iniquidades raciais em saúde, sendo importante destacar que tais iniquidades são uma das expressões do racismo enquanto sistema de exploração66 Borde EMS. A subalternização das populações não-brancas no sistema-mundo capitalista/colonial e os processos de determinação social das iniquidades étnico-raciais em saúde. Cescontexto. 2014 [acesso em 2020 jun 21]; (5):145-62. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/318987165
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. O conceito da determinação social da saúde é uma alternativa à compreensão dos ‘determinantes sociais em saúde’, que, segundo seus críticos, possui uma análise probabilística dos ‘riscos’ de adoecer, fragmentando a realidade e naturalizando as desigualdades77 Almeida-Filho N. A problemática teórica da determinação social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde debate. 2009 [acesso em 2020 jul 12]; 33(83):349-70. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/4063/406345800003.pdf
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. Autores/as discutem a importância desse conceito para não recair no determinismo biológico ou histórico e buscar uma compreensão mediante visão complexa e dialética da relação social-biológico e sociedade-natureza88 Breilh J. Las tres ‘S’ de la determinación de la vida: 10 tesis hacia una vision crítica de la determinacion social de la vida y la salud. In: Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 87-125. [acesso em 2020 maio 10]. Disponível em: https://repositorio.uasb.edu.ec/bitstream/10644/3412/1/Breilh,%20J-CON-117-Las%20tres%20S.pdf
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,99 Borghi CMSO, Oliveira RM, Sevalho G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: texto e contexto na américa latina. Trab educ saúde. 2018 [acesso em 2020 jul 12]; 16(3):869-97. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/jJpLdWtYsCMVV8YQm6PqMFk/abstract/?lang=pt
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Apesar da coerência na crítica, ainda há limitação na compreensão das relações raciais enquanto fundantes da estrutura social brasileira. Por isso, é importante defender uma abordagem crítica da determinação social da saúde para que o racismo seja visto como problema central que se expressa no processo saúde-doença-cuidado66 Borde EMS. A subalternização das populações não-brancas no sistema-mundo capitalista/colonial e os processos de determinação social das iniquidades étnico-raciais em saúde. Cescontexto. 2014 [acesso em 2020 jun 21]; (5):145-62. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/318987165
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. Na pesquisa, foi preciso realizar mediações entre a urgência de reconhecer o racismo enquanto produtor de doenças e agravos; a importância de utilizar ferramentas que identifiquem as necessidades em saúde do território; e a necessidade de intervir com foco na promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS).
A saúde da família assume uma estratégia prioritária da Atenção Básica (AB), sendo um campo privilegiado para compreender as iniquidades raciais em saúde. Como previsto na Política Nacional da Atenção Básica (PNAB)1010 Brasil. Portaria nº 2.436. Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017. [acesso em 2020 jun 9]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
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, a AB é a porta de entrada prioritária dos/as usuários/as na Rede de Atenção à Saúde (RAS); deve coordenar o cuidado; preza pela integralidade da assistência; estimula a criação de vínculo; tem base territorial e corresponsabilização do cuidado entre profissionais e usuários/as. A dimensão estritamente biológica e procedimental, superestimada nos serviços de média e alta complexidade, é desafiada pelas demandas de ordem social que os/as usuários/as levam a esses equipamentos de saúde1111 Barbosa RRS, Silva CS, Sousa AAP. Vozes que ecoam: racismo, violência e saúde da população negra. Rev. Katálysis. 2021 [acesso em 2021 jun 14]; 24(2):353-63. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-0259.2021.e77967
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No território, ocorrem as transformações e as relações entre as práticas sociais e seus efeitos na determinação social da saúde. O conceito de TSS na saúde coletiva pode ser direcionado de duas maneiras: uma relacionada às determinações teóricas e abstratas; e outra diretamente vinculada à determinação de relações sociais de um dado território, de forma que o processo de reprodução social territorializado e condicionado por fatores determinantes, ou pressupostos de sustentabilidade que conformam espaços e determinam características sociais dos territórios, poderão ou não promover saúde, segundo sua predominância, presença ou ausência1212 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com. Ciênc. Saúde. 2018 [acesso em 2020 jun 30]; 28(2):243 249. Disponível em: http://www.escs.edu.br/revistaccs/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/245
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Os TSS podem ser definidos como espaços relacionais e de pertencimento onde a vida é viabilizada, por meio de ações comunitárias e de políticas públicas que interagem entre si e se materializam em resultados para o desenvolvimento global, regional e local, nas dimensões ambientais, culturais, econômicas, políticas e sociais1212 Machado JMH, Martins WJ, Souza MS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Com. Ciênc. Saúde. 2018 [acesso em 2020 jun 30]; 28(2):243 249. Disponível em: http://www.escs.edu.br/revistaccs/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/245
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. Dada a importância da territorialidade na construção de TSS, essa pauta tem sido priorizada em diretrizes de políticas sociais e de desenvolvimento, o que inclui a AB e, mais recentemente, a negociação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que compõem a chamada Agenda 2030, elaborada pela sociedade internacional com o respaldo da Organização das Nações Unidas (ONU)1313 Organização das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. 2015. [acesso em 2020 maio 15]. Disponível em: https://odsbrasil.gov.br/home/agenda
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Nessa perspectiva, este estudo foi desenvolvido e orientado a partir das necessidades do território. Para isso, salientam-se as permanentes interlocuções entre a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e Águas (PNSIPCFA)1414 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral das populações do campo e da floresta. Brasília, DF: Editora do Ministério da Saúde; 2013. 48 p. [acesso em 2020 ago 12]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacoes_campo.pdf
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, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)1515 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. 2. ed. Brasília, DF: Editora do Ministério da Saúde; 2013. 36 p. [acesso em 2020 jun 20]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_integral_populacao.pdf
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e os ODS da ONU. O presente artigo teve como objetivo geral analisar a interferência do racismo no processo saúde-doença-cuidado de famílias negras que vivem no campo e, mais especificamente, descrever as atividades de intervenção realizadas no grupo de crianças a partir da educação popular em saúde, tendo o enfrentamento ao racismo enquanto eixo transversal.
Material e métodos
Trata-se de uma pesquisa-ação realizada durante processo formativo no programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família com ênfase nas populações do campo (RMSFC-UPE). A pesquisa foi realizada no assentamento do distrito de Cachoeira Seca, zona rural de Caruaru, próximo às cidades de Toritama e Santa Cruz; região conhecida como polo de confecções do agreste pernambucano.
O assentamento é formado por 25 famílias de maioria negra. Tal afirmação política advém, sobretudo, do fenótipo e das experiências de racismo relatadas pelas famílias durante os atendimentos da Equipe de Residentes (ER)1616 Gomes NL. Por uma indignação antirracista e diaspórica: negritude e afrobrasilidade em tempos de incertezas. Revista da ABPN. 2018 [acesso em 2020 maio 24]; 10(26):111-24. Disponível em: https://redib.org/Record/oai_articulo2209874-por-uma-indigna%C3%A7%C3%A3o-antirracista-e-diasp%C3%B3rica-negritude-e-afrobrasilidade-em-tempos-de-incertezas
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,1717 Souza NS. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de janeiro: Edições Graal; 1983.. Esses relatos orientaram as escolhas da ER na elaboração das estratégias de cuidado. Entre elas, o grupo de crianças foi o trabalho comunitário mais duradouro e com maior adesão, justificando sua escolha para este estudo.
A ER foi composta por profissionais com diferentes formações: educação física, farmácia, fisioterapia, medicina veterinária, nutrição, odontologia, psicologia, serviço social e terapia ocupacional. A equipe de Saúde da Família (eSF) contava com médica, enfermeira, técnica de enfermagem e quatro agentes comunitários de saúde.
A pesquisa-ação teve três momentos: i) territorialização, ii) intervenção e iii) análise, conforme detalhado: i) Territorialização: utilizou-se o Diagnóstico Rural Participativo (DRP), metodologia na qual a comunidade constrói seu próprio diagnóstico, servindo de instrumento para coleta de dados, estímulo ao autoconhecimento comunitário e orientação para o planejamento da ação política1818 Verdejo ME. Diagnótico rural participativo - Guia prático DRP. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Secretaria da Agricultura Familiar; 2006 [acesso em 2020 maio 18]. Disponível em: https://www.projetovidanocampo.com.br/livros/Diagnostico_rural_participativo.pdf
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. A ferramenta do DRP escolhida foi o mapa falado, em que os comunitários desenharam seu território de acordo com suas percepções de espaços e dispositivos de integração sociocultural disponíveis. Após a elaboração do mapa, os comunitários identificaram os fatores de risco e proteção à saúde e à vida no território, o que permitiu compreender a dinâmica do território em seus arranjos, identidades e necessidades de saúde.
ii) Intervenção: A intervenção foi desenvolvida mediante processos formativos e estratégias de cuidado participativas e horizontais, conduzidos pela ER e por profissionais da ESF, voltados às crianças da comunidade. Foram realizados 22 encontros, com duração de 2 horas, em média, durante o período de julho de 2017 a fevereiro de 2019. Os encontros contavam, em média, com a presença de 15 crianças na faixa etária de 2 a 10 anos de idade. Um dos encontros oportunizou a avaliação do grupo de crianças a partir da percepção dos seus responsáveis.
A partir do DRP as atividades educativas foram construídas e orientadas metodologicamente pela Educação Popular em Saúde (EPS). A EPS, enquanto ferramenta político-pedagógica, propõe o desenvolvimento de novas relações com base no diálogo, na valorização do saber popular e na busca da inserção na dinâmica do território, tendo a identidade cultural enquanto alicerce do processo de educação1919 Vasconcelos EM, Prado EV. A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2017.,2020 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II Caderno de educação popular em saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014.. Nesses espaços, o brincar foi empregado como estratégia de promoção de TSS, considerando o combate ao racismo enquanto eixo transversal. Foram utilizadas como estratégias pedagógicas as seguintes técnicas: vivenciais, audiovisuais, rodas de conversa e oficinas.
iii) Análise: As etapas anteriores permitiram a produção de banco de dados formado pelos documentos: diários de campo2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec; 2010., trabalhos de conclusão de residência, livro de registro de atividades, relatórios, fotos e atas de reuniões. Esses instrumentos possibilitaram o registro das atividades de acordo com a percepção de quem as constrói, propiciando uma prática reflexiva a partir da/o autora/or, com os detalhes percebidos em suas múltiplas dimensões e inter-relações2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec; 2010.. Foi realizada leitura exaustiva de todo material, organização em planilhas do Excel e oficinas para discussão dos resultados entre a equipe, construindo um diálogo com o referencial teórico. As atividades foram descritas considerando como categorias as temáticas e atividades desenvolvidas, os objetivos principais, a data de realização e o número de participantes. Os dados levantados no DRP foram base para a sistematização dos elementos promotores e ameaçadores da vida dos comunitários segundo a matriz teórica de Breilh2222 Breilh J. De la vigilancia convencional al monitoreo participativo. Ciênc. Saúde Colet. 2003 [acesso em 2020 maio 16]; 8(4)937-51. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/84YH3CqTdpFzPByK9Z7kmWJ/?format=pdf
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. Essa análise permite identificar vulnerabilidades e potencialidades existentes no território.
O estudo faz parte do projeto Análise do desenvolvimento e aplicação do conceito de TSS na Região do Semiárido brasileiro de Pernambuco, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob número 31982820.3.0000.5190.
Resultados e discussão
Elementos promotores e ameaçadores da saúde e da vida no território
As particularidades e dinâmicas das famílias negras do assentamento orientaram a leitura realizada do território. O quadro 1 apresenta a síntese dos elementos promotores e ameaçadores da saúde e da vida identificados:
Durante muito tempo, a agricultura foi a principal atividade produtiva dessa região, estabelecendo-se não apenas enquanto atividade econômica, mas, também, nos modos de vida e nos processos de subjetivação. Porém, devido à ausência de condições para o trabalho no campo, como os longos períodos de estiagem e ausência de políticas públicas que viabilizassem a produção agrícola, a indústria de confecção tornou-se predominante na economia local (quadro 1 - Itens 16 e 31). Apesar disso, tal herança subjetiva expressa a convivência com um éthos agricultor/a que se apresenta por meio de costumes, valores e tradições, imersos às práticas e seus efeitos tanto nos modos de gerir a vida como na relação consigo e com seus pares (quadro 1 - Item 1).
A produção têxtil, além de não garantir direitos trabalhistas e previdenciários, não oferece condições adequadas ao/à trabalhador/a, visto que o trabalho é altamente fragmentado, não ergonômico, com estrutura precária, baixa luminosidade e jornada de trabalho estendida, chegando a mais de 12 horas por dia. O pagamento é realizado unicamente por produção, cuja remuneração equivale a centavos por peça2323 Lira PVRA, Gurgel IGD, Albuquerque PCC, et al. Superexploração e desgaste precoce da força de trabalho: a saúde dos trabalhadores de confecção. Trab. Educ. e Saúde. 2020 [acesso em 2020 maio 20]; 18(3). Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/jpLw4dXR9yJvzsFJjvNJjJw/?lang=pt
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. Segundo dados do DRP, uma das famílias recebia 20 centavos por cada zíper costurado no jeans, e, por isso, todos se envolviam na produção, incluindo crianças e idosos (quadro 1 - Itens 17 e 18).
O trabalho precarizado contribui para a fragilidade na organização comunitária, apesar desta ter sido apontada pelas famílias como imprescindível para a garantia de direitos e resolução de questões do território. A instabilidade do trabalho informal influencia diretamente as condições de vida e saúde dessas populações e expõe os/as trabalhadores/as a jornadas intensas, com pouco tempo e recurso para cuidados em saúde2323 Lira PVRA, Gurgel IGD, Albuquerque PCC, et al. Superexploração e desgaste precoce da força de trabalho: a saúde dos trabalhadores de confecção. Trab. Educ. e Saúde. 2020 [acesso em 2020 maio 20]; 18(3). Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/jpLw4dXR9yJvzsFJjvNJjJw/?lang=pt
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. Como consequência desse contexto, identificaram-se adoecimentos e agravos de ordem física, como infecção urinária, problemas de coluna, dores nos membros superiores e inferiores; e psicossocial, como ansiedade, depressão, trabalho infantil, insegurança alimentar e conflitos familiares, intensificados pela sobreposição dos ambientes familiar e laboral (quadro 1 - Item 18).
As famílias do assentamento são ampliadas, não atendendo a um padrão nuclear/casa. Era comum encontrar membros de uma mesma família no território, mãe, irmãs, cunhadas e tias. Essa relação familiar matricentrada se apresentava nas potencialidades para o cuidado coletivo, evidenciando uma importante rede de apoio social. A organização matricêntrica dialoga e ao mesmo tempo reflete aspectos do matriarcado, contribuindo, assim, para valores coletivos e cooperativos, extrapolando o sentimento individualista e competitivo, o que confere à mulher posição, também, de autoridade2424 Oliveira FC. O matriarcado e o lugar social da mulher em África: uma abordagem afrocentrada a partir de intelectuais africanos. ODEERE. 2018 [acesso em 2021 out 30]; 3(6). Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/odeere/article/view/4424
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. Essa configuração do assentamento fortaleceu os trabalhos comunitários e as estratégias de cuidado coletivo (quadro 1 - Itens 2 e 3).
Outro fator de proteção desse território é a existência de práticas tradicionais de saúde. A espiritualidade e a relação com a terra transpareciam na figura da benzedeira da comunidade, a mesma que cultiva uma pequena horta com plantas medicinais e algumas frutíferas no seu quintal, sendo reconhecida por seus saberes e cuidados (quadro 1 - Item 4). As práticas populares são formas concretas de resistência dos povos do campo aos efeitos destrutivos da modernidade industrial e à hegemonia da medicina ocidental, além de muitas vezes ser a única alternativa de cuidado devido à dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde2525 Fernandes VR, Luz ZP, Amorim AC, et al. O lugar da vigilância no SUS - entre os saberes e as práticas de mobilização social. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2020 jul 27]; 22(10):3173-81. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/tBBGN3ZsyVmwDzJcvNfkL5m/abstract/?lang=pt
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,2626 Castro MR, Figueiredo FF. Saberes tradicionais biodiversidade, práticas integrativas e complementares: uso de plantas medicinais no SUS. Hygeia - Rev. Bras. Geogr. Médica e da Saúde. 2019 [acesso em 2020 maio 24]; 15(31):56-70. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/hygeia/article/view/46605
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. O uso de chás, tinturas e benzimento enquanto alternativas de cuidado frente ao sofrimento mental e físico é realizado concomitantemente ao uso de medicamentos psicotrópicos2727 Dimenstein M, Leite J, Macedo JP, et al. Condições de vida e saúde mental em contextos rurais. Natal-RN: Intermeios; FAPEPI; CNPQ; UFRN; UFPI; 2016., superando a lógica da medicalização enquanto um dos únicos dispositivos de cuidado ofertados às populações do campo.
A maioria das famílias era beneficiária do programa bolsa família e exercia o trabalho na costura para complementar a renda, principalmente na retirada de sobras de linhas - ‘pelos’ do jeans (quadro 1 - Item 5). Nos períodos de muito serviço, era comum observar as mulheres e crianças em círculos, sentadas no chão ou em cadeiras, reunidas para a tarefa coletiva de retirar os ‘pelos’. As famílias também realizavam o trabalho de passar ferro nos bolsos do jeans, e trabalhavam juntas, de modo intensivo, nos dias marcados para entrega da mercadoria. Nem sempre o pagamento era realizado de imediato. Poucas eram as famílias do assentamento que possuíam máquina de costura e/ou sabiam costurar, e isso explica a realização de serviços menos complexos, que requerem como instrumento apenas tesoura.
As condições de desproteção social, exposição a longas jornadas de trabalho e irregularidades na manutenção dos equipamentos, além da não utilização de equipamentos de proteção individual e coletivos propiciam o desgaste precoce e o consequente adoecimento dos/as trabalhadores/as2323 Lira PVRA, Gurgel IGD, Albuquerque PCC, et al. Superexploração e desgaste precoce da força de trabalho: a saúde dos trabalhadores de confecção. Trab. Educ. e Saúde. 2020 [acesso em 2020 maio 20]; 18(3). Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/jpLw4dXR9yJvzsFJjvNJjJw/?lang=pt
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De acordo com o DRP, as terras desse assentamento foram ocupadas em 1997, e, em 1999, foi concedida a posse, sendo assentadas 25 famílias. Tensões geradas durante a negociação com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) culminaram na não organização do assentamento em agrovilas e parcelas, estruturas típicas no processo de posse da terra, onde as casas são construídas e onde a prática agropecuária é realizada, respectivamente. Apesar do não ordenamento, algumas famílias resistiam e plantavam em terrenos ainda não ocupados, bem como nos próprios quintais. A descaracterização política do território, em que parte dos/as assentados/as não conhece a fundo a história local, faz com que o lugar seja denominado como ‘Sem Terra’.
O assentamento possui um campo de futebol, duas oficinas e uma mercearia. O campo de futebol e a mercearia são equipamentos importantes para a interação entre e/com a comunidade, facilitando o desenvolvimento de atividades coletivas, aspectos importantes para promoção da qualidade de vida. As ruas não eram pavimentadas, e a coleta de lixo ocorria apenas duas vezes por semana, por isso, era possível visualizar resíduos acumulados, inclusive retalhos de jeans. O rio que atravessa o assentamento é poluído pelas lavanderias da indústria do jeans, o que o tornava azul escuro e fétido. Não havia rede de esgoto, mas algumas casas possuíam fossa séptica. Poucas famílias tinham cisternas próprias, fragilidade amenizada por meio de duas cisternas comunitárias, abastecidas pelo exército semanalmente. Porém, ainda era necessário armazenar água em baldes e garrafas de plástico de forma individual, que comumente se tornavam foco de mosquitos transmissores de doenças vetoriais, a exemplo das arboviroses (quadro 1 - Itens 6, 7, 8, 24, 25, 26 e 30).
Outras necessidades e demandas identificadas no território foram as seguintes: transporte coletivo insuficiente, sendo as toyotas (carros privados que oferecem serviço de transporte) as mais utilizadas; distância e dificuldade de acesso aos serviços socioassistenciais; insuficiência da assistência à saúde bucal; falta de iluminação e infraestrutura pública; fragilidade na vigilância em saúde; presença de animais errantes e/ou portadores de zoonoses; insuficiência da assistência técnica rural e de políticas para convivência com o semiárido; ausência de creche; alto índice de evasão escolar, analfabetismo e desemprego (quadro 1 - Itens 15, 27, 28, 29, 30 e 31).
No que tange à saúde mental, o diagnóstico permitiu identificar a presença de pessoas com Transtornos Mentais Comuns (TMC), como insônia, ansiedade e estresse; problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas; uso indiscriminado/abusivo de medicamentos controlados (benzodiazepínicos etc.) e situação de isolamento social, estando em consonância com a sintomatologia encontrada em pesquisas junto às populações do campo brasileiro2828 Neto MCC, Dimenstein M. Cuidado psicossocial em saúde mental em contextos rurais. Temas em Psicol. 2017 [acesso em 2020 jul 19]; 25(4):1653-64. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v25n4/v25n4a09.pdf
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,2929 Pirró JCF. Cuidado integral em saúde mental do campo: caminhos para um novo amanhecer. [monografia]. Recife: Universidade de Pernambuco; 2019. 43 p.. De acordo com elas, tanto o isolamento quanto a exposição frequente a situações de violência podem causar sintomas psicossomáticos e uso abusivo de álcool e outras drogas (quadro 1 - Itens 19, 20 e 21). Além disso, a saúde mental é impactada quando ocorre violação dos direitos ou exclusão de oportunidades de educação e geração de renda2727 Dimenstein M, Leite J, Macedo JP, et al. Condições de vida e saúde mental em contextos rurais. Natal-RN: Intermeios; FAPEPI; CNPQ; UFRN; UFPI; 2016..
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), há uma relação entre situações de vulnerabilidade e problemas de saúde mental, verificando-se associação entre transtornos mentais com condições de vida e de trabalho precárias3030 World Health Organization. Mental Health and Development: Targeting People with Mental Health Conditions as a Vulnerable Group. Geneva: WHO; 2010. [acesso em 2020 maio 19]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44257/9789241563949_eng.pdf;jsessionid=E18FC58F992DC0BBBE49A2FA25A14F3C?sequence=1
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. Nesse sentido, as questões sócio-históricas têm repercussões na saúde mental da população do campo, na medida em que seu local de vida e trabalho é ameaçado constantemente pela degradação ambiental e pela pobreza, sendo palco de conflitos e lutas por direitos2929 Pirró JCF. Cuidado integral em saúde mental do campo: caminhos para um novo amanhecer. [monografia]. Recife: Universidade de Pernambuco; 2019. 43 p..
A violência é uma categoria de extrema importância para compreender a experiência de famílias negras, haja vista a exposição a episódios aniquiladores diante das instituições do Estado e das relações estabelecidas socialmente. A política centrada na morte, ou a soberania expressa “no poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer”3131 Mbembe A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições; 2018.(5) são alicerces do conceito de necropolítica. No território, foram identificadas situações de êxodo por violência e histórico comum de mortes por homicídio; cárcere prisional sem julgamento, decorrente de pequenos delitos; exposição ao racismo institucional na escola, no sistema de saúde e no judiciário; relações de conflito entre os membros do assentamento; violência intrafamiliar e dificuldades em expressar afetividade; além de situações de não reconhecimento da identidade racial e autodepreciação, a exemplo de alisamento de cabelos crespos em crianças e preferência por filhos negros de pele clara3232 Brito TCS. Raça importa! Saúde, doença e cuidado da família no assentamento Lampião. [monografia]. Recife: Universidade de Pernambuco; 2019. 36 p. (quadro 1 - Item 33 e 35).
Apesar das dificuldades encontradas nesse território, é possível reconhecer a presença da integração local e de suporte social existentes no assentamento, podendo ser elencados enquanto fatores de proteção à saúde mental, impactando positivamente a vida dos/as comunitários/as (quadro 1 - Item 3).
A cobertura pela Unidade de Saúde da Família (USF), aliada à ER em saúde do campo, apresentou potencial para a ampliação do cuidado, bem como a possibilidade de maior vínculo com a eSF (quadro 1 - Itens 9 e 13). O acompanhamento supervisionado pela coordenação da RMSFC contribuiu para pensar em estratégias territorializadas e articuladas com outros dispositivos da saúde e intersetoriais, a exemplo do mutirão de saúde bucal realizado no assentamento, da articulação com a vigilância para a vacinação dos animais errantes e da articulação com a arquidiocese para políticas de convivência com semiárido (quadro 1 - Itens 12, 13 e 14).
Diante dos processos protetores e ameaçadores da saúde e da vida, foram planejadas atividades individuais e coletivas que buscaram reconhecer no território suas particularidades, situando a experiência das famílias negras do assentamento nas relações hegemônicas de poder, que são orientadas pela necropolítica e pela negação do racismo enquanto produtor de desigualdades.
Estratégias de cuidado: a experiência do grupo das crianças
Apoia-se no entendimento de cuidado como parte do trabalho em saúde e, além disso, enquanto dimensão da vida que se realiza no encontro. Assim, as práticas de cuidado não podem ser entendidas apenas enquanto ações, mas enquanto atitude ética que envolve preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo para com o/a outro/a2828 Neto MCC, Dimenstein M. Cuidado psicossocial em saúde mental em contextos rurais. Temas em Psicol. 2017 [acesso em 2020 jul 19]; 25(4):1653-64. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v25n4/v25n4a09.pdf
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O cuidado também está fundamentado na dimensão política da determinação social e da EPS, visto que a relação horizontal, dialógica, baseada na autonomia e na problematização, gera consciência crítica e fortalecimento comunitário, contribuindo para que a população, a partir desse cuidado, engaje-se em um processo de transformação não só individual, mas, também, comunitário e social2020 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II Caderno de educação popular em saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014..
Nesse sentido, as razões para criação do grupo foram multifacetadas. Envolveram a ausência de atividades de lazer e de creche, a presença de trabalho infantil, atraso no desenvolvimento motor e cognitivo, queixa sobre a desobediência e agressividade de algumas crianças, bem como a receptividade e o engajamento comunitário para que as atividades fossem possíveis.
Desde o primeiro momento, o local definido para reunião do grupo foi a frente de uma das casas, que também era o bar e a mercearia do assentamento, espaço cedido por uma das moradoras. A área era coberta por telhas Brasilit, o que proporcionava sombra, apesar do calor, e permitia maior conforto. Na realização das atividades, a ER e as crianças costumavam se sentar no chão, em formato de círculo, buscando maior horizontalidade e interação.
Os temas dos encontros eram escolhidos a partir do processo contínuo de avaliação sobre as demandas prioritárias e as possibilidades de intervir diante delas. Buscou-se promover o potencial dos atores sociais do território para o engajamento no processo de aprendizagem, a partir da EPS, o que permitiu as sugestões das crianças e dos seus responsáveis. As atividades desenvolvidas e as temáticas abordadas estavam alinhadas aos seguintes ODS: saúde e bem-estar; igualdade de gênero; redução das desigualdades; cidades e comunidades sustentáveis1313 Organização das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. 2015. [acesso em 2020 maio 15]. Disponível em: https://odsbrasil.gov.br/home/agenda
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Através do brincar, essa intervenção possibilitou diálogos e reflexões sobre a determinação social no processo saúde-doença-cuidado; exercício da criatividade, criticidade e autonomia; estímulo à sociabilidade e o desenvolvimento neuropsicomotor das crianças. O racismo e suas múltiplas facetas foi priorizado em todos os encontros, sendo elemento transversal nas atividades desenvolvidas, a partir da compreensão de que é impossível atingir os ODS sem combater as desigualdades raciais.
O quadro 2 descreve as atividades desenvolvidas, temáticas principais, objetivos, datas de realização e número de participantes de cada encontro.
Temáticas e atividades desenvolvidas no grupo de crianças do assentamento no período de junho de 2017 a janeiro de 2019
De modo geral, as temáticas buscaram ampliar a percepção ambiental e a identificação com o território; promover o conhecimento acerca do cuidado em saúde das crianças e das famílias; estimular o desenvolvimento neuropsicomotor e social; promover a cidadania; fortalecer os vínculos afetivos comunitários e familiares e a identidade negra das crianças, impulsionando a autoestima e o resgate à ancestralidade.
As atividades dedicadas a valorizar alimentos pouco processados e regionais e o estímulo à produção da horta agroecológica buscaram considerar tanto os efeitos do alto consumo de agrotóxicos e transgênicos para a saúde, como a sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas, consequências do sistema de produção alimentar do agronegócio (quadro 2 - Item 1). Compreende-se que, além de orientar sobre a importância da alimentação saudável, também é preciso estimular o contato com a terra e a defesa da agroecologia como estratégia de fortalecimento da saúde no campo3333 Burigo AC, Porto MFS. Trajetórias e aproximações entre a saúde coletiva e a agroecologia. Saúde debate. 2019 [acesso em 2020 jul 21]; 43(8):248-62. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Qsg8HMWDTqBPtgGys7Krm3P/abstract/?lang=pt
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Os dados epidemiológicos apontam a vulnerabilidade da população negra, visto que as doenças de maior prevalência para esse grupo estão relacionadas a fatores genéticos agravados por questões ambientais, como hipertensão arterial e diabetes mellitus. Enquanto na população branca a morte por hipertensão esteve estável entre 2005 e 2012 e a morte por diabetes diminuiu entre 2000 e 2012, para a população negra e indígena, essa taxa recrudesceu3434 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Articulação Interfederativa. Painel Temático Saúde da População Negra. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016. [acesso em 2020 ago 12]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tematico_saude_populacao_negra_v._7.pdf
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As questões que se referem ao meio ambiente, às injustiças ambientais e implicações do racismo ambiental na saúde de populações vulnerabilizadas também orientaram as atividades realizadas no grupo. O conceito de racismo ambiental coloca o processo de condução estatal econômica e política como produtor de desigualdades3535 Bullard RD. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: Acselrad H, Herculano S, Pádua JA, organizadores. Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 2004. p. 41-66.. Apenas 32,8% dos domicílios rurais estão ligados à rede de distribuição de água, o que influencia direta e indiretamente o surgimento de Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI)3636 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílios - Síntese de indicadores. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.. A ausência de abastecimento de água, esgotamento sanitário e tratamento de resíduos sólidos adequados contribui para o genocídio da população negra e configura uma das faces do racismo ambiental que, no Brasil, resulta na morte de uma pessoa negra por DRSAI a cada uma hora e meia3737 Jesus V. Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental. Saúde e Soc. 2020 [acesso em 2020 maio 18]; 29(2):1-15. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/5LRzfP3sP8kCDbhnJy6FkDH/abstract/?lang=pt
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As comunidades afetadas e seus aliados democráticos possuem capacidade de enfrentar esses e outros conflitos ambientais, o que está diretamente relacionado à produção de saúde nos territórios. As mobilizações por justiça ambiental lutam em prol da autonomia das comunidades, de suas culturas e do direito à manutenção de suas subsistências. A produção do conhecimento contra-hegemônico é essencial para que essas mobilizações ganhem força nas disputas de poder epistemológico. Combater as manipulações e as incertezas daqueles que produzem injustiças ambientais através do fortalecimento da produção compartilhada de conhecimento e da mobilização de comunidades é uma potente estratégia no enfrentamento3838 Porto MF, Ferreira DR, Finamore R. Health as dignity: political ecology, epistemology and challenges to environmental justice movements. J Polit Ecol. 2017 [acesso em 2020 maio 16]; 24(1):110-24. Disponível em: https://journals.librarypublishing.arizona.edu/jpe/article/1989/galley/2248/view/
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,3939 Holifield R, Chakraborty J, Walker G. The Routledge handbook of environmental justice. Reino Unido: Routledge; 2017..
Nesse sentido, enfatizou-se a discussão sobre o saneamento básico e sua importância para a promoção da saúde, considerando a dificuldade de acesso dessa comunidade aos serviços de infraestrutura, instalações operacionais de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas, esgotamento sanitário e abastecimento de água potável3737 Jesus V. Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental. Saúde e Soc. 2020 [acesso em 2020 maio 18]; 29(2):1-15. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/5LRzfP3sP8kCDbhnJy6FkDH/abstract/?lang=pt
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Por isso, a importância de estimular a percepção das crianças acerca do território e a criticidade frente às problemáticas ambientais, em uma educação ambiental implicada na busca de justiça ambiental4040 Layrargues PP, Puggian C. Convergências na ecologia política: quando a educação ambiental abraça a luta por justiça ambiental. Pesquisa em Educ Ambient. 2016 [acesso em 2020 maio 15]; 11(2):72-82. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/pea/article/view/128732
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. O teatro de fantoches (quadro 2 - Item 5), que teve como personagem o ‘Mosquivaldo’, representação lúdica do mosquito Aedes aegypti, permitiu discutir a forma como as intervenções estatais no enfrentamento às arboviroses culpabilizam a população, enquanto negam a negligência do Estado frente à determinação social da saúde4141 Peixinho BC. Análise do processo de trabalho de uma médica veterinária em Unidades de Saúde da Família do campo em Caruaru-PE: desafios e potencialidades da prática. [monografia]. Recife: Universidade de Pernambuco; 2019. 66 p.. Ainda na temática ambiental, desenvolveu-se a montagem de um painel com imagens de hábitos relacionados à prevenção e ao controle de helmintíases (quadro 2 - Item 13). Realizaram-se oficinas de reciclagem para construção de brinquedos, discutindo como o descarte adequado e o reuso de resíduos sólidos contribuem para um território mais saudável e sustentável (quadro 2 - Item 17).
No campo das relações sociais, foi fundamental considerar o legado da violência colonial e suas implicações contemporâneas4242 Hooks B. Vivendo de Amor. In: Werneck J, Mendonça M, White EC, editores. O Livro da Saúde das Mulheres Negras Nossos Passos Vêm de Longe. Rio de Janeiro: Pallas; Criola; 2006. p. 188-98. na afetividade das famílias negras, devido ao contraste que a violência produz entre a repressão às emoções, como mecanismo de defesa, e a solidariedade comunitária como estratégia cotidiana de sobrevivência. No grupo das crianças, além das situações em que o afeto foi tema central do encontro, a prática da amorosidade2020 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II Caderno de educação popular em saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. era estimulada por intermédio dos abraços coletivos e da expressão das emoções e dos sentimentos, o que influiu nas relações das crianças não somente entre si, mas também com os familiares e a comunidade (quadro 2 - Item 8).
As razões históricas que incidem na afetividade interferem no processo de autonegação do corpo negro, o que alimenta a busca do embranquecimento, gerando baixa autoestima e insegurança desde a infância1717 Souza NS. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de janeiro: Edições Graal; 1983.. No primeiro encontro, em que foram levadas imagens de referências negras para as crianças pintarem, surgiram questionamentos com relação à beleza dessas referências e a rejeição para realizar as pinturas (quadro 2 - Item 2). Em outro momento, durante a proposta de elaborar um desenho a partir da autopercepção da imagem corporal, elencando suas características, as crianças se desenharam enquanto brancas, com olhos claros e cabelos lisos (quadro 2 - Item 12). Nos relatórios das reuniões avaliativas com familiares, constam depoimentos das mães sobre o racismo sofrido pelas crianças na escola, o que repercutia na forma como elas se viam, compreendiam-se e compreendiam seus pares (quadro 2 - Item 9).
No decorrer dos encontros, com a inserção de referências positivas de negritude, diálogos sobre as histórias de resistência e origem do povo negro, problematização sobre o lápis ‘cor de pele’ e a diversidade dos fenótipos, puderam-se identificar mudanças no comportamento e na autoestima das crianças. Era comum percebê-las disputando pelo lápis preto e marrom para as pinturas, e já não retratavam os olhos e cabelos com as cores azul e amarelo. Com o passar do tempo, elas ficaram cada vez mais participativas e confiantes para realizar as tarefas propostas.
Na avaliação realizada com as crianças no encerramento, em 2018, o Dia da Consciência Negra e a oficina de capoeira Angola foram lembrados como os melhores encontros do ano. Ao final dos encontros, era perceptível a alegria das crianças por se verem retratadas de forma positiva. No Dia da Consciência Negra, as oficinas de turbantes e pinturas corporais deixaram as crianças entusiasmadas. Uma delas expressou: “Eu sou linda, tia. Estou parecendo uma rainha africana”, conforme registro dos diários de campo (quadro 2 - Item 19).
As professoras estão perguntando se coloquei minha filha no reforço, de tão bem que ela está indo na escola.
Antes meu filho nem falava direito, hoje ele conversa tudinho.
Os relatos acima demonstram a evolução nas habilidades pessoais e nas interações sociais das crianças, estimuladas nas atividades propostas. A falta de estímulos e de mediação, decorrente do contexto de vulnerabilidade e racismo ao qual as famílias e seu território estão submetidos, impacta diretamente a subjetividade e as dimensões emocional, motora e mental das crianças, comprometendo o seu pleno desenvolvimento4343 Pereira MÂCM, Amparo DM, Almeida SFC. O brincar e suas relações com o desenvolvimento. Psicol. Argumento. 2006 [acesso em 2020 set 2]; 24(45):15-24. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/psicologiaargumento/article/view/19861/19165
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. Como estratégia para transpor esses danos, os encontros brincantes contribuíram para a elaboração das emoções, aumento da consciência corporal e da autopercepção, influenciando o desenvolvimento neuropsicomotor e a sociabilidade.
As demais atividades buscaram instrumentalizar as crianças para o autocuidado em saúde e o conhecimento dos seus direitos, por intermédio de diálogos e brincadeiras que envolviam os temas higiene, saúde bucal, direito ao lazer, cidadania e participação comunitária (quadro 2 - Itens 3, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22 e 23). As metodologias participativas incentivaram a atuação efetiva das crianças e de suas famílias no processo educativo, valorizando seus conhecimentos, experiências e os envolvendo na identificação e busca de soluções para as necessidades do território.
Considerações finais
Durante os vinte meses de atividades, foi possível acompanhar o desenvolvimento das crianças, suas histórias e os contextos familiares e comunitários que desempenham papel fundamental na construção de suas subjetividades e trajetórias biográficas. Os resultados incluem significativos avanços no desenvolvimento, no fortalecimento dos laços comunitários e na criação do vínculo consolidado com as famílias do território. A partir do grupo, foi possível acompanhar de forma sistemática o cuidado com a saúde das famílias do assentamento, de modo que as demandas identificadas, sobretudo aquelas que apontavam para as dimensões racistas, foram trabalhadas para o cuidado com as famílias de forma ampliada.
Os encontros com as crianças e os familiares ainda ressoam pulsações potentes na ER. O trabalho transdisciplinar, a partir das diferentes formações profissionais, assim como os momentos de cuidado vivenciados junto às famílias do território, garantiu aprendizados mútuos sobre saúde, resistência e atuação comunitária. Tendo em vista a rotatividade e o curto período do processo formativo na residência, foi fundamental garantir a continuidade do grupo a partir da contribuição de profissionais da ER posterior.
A partir desta pesquisa-ação, foi possível perceber a eSF enquanto instrumento potente de promoção de TSS mais fortalecidos para enfrentar uma problemática de altíssima complexidade que é o racismo. Pelo caráter territorial e longitudinal do cuidado, atuar junto às famílias e potencializar os vínculos permitiu incidir sobre questões raciais e não biocentradas com o uso de baixa tecnologia, fortalecendo e construindo saúde conforme preconizado na AB, nas políticas de saúde e nos ODS, de forma integral e preventiva. Como último ponto reflexivo: a promoção da cidadania e o fortalecimento de identidades negras são partes fundamentais nas estratégias de promoção e prevenção em saúde, bem como no estabelecimento de TSS.
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Suporte financeiro: Apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Projeto Análise do desenvolvimento e aplicação do conceito de Territórios Saudáveis e Sustentáveis na Região do Semiárido brasileiro de Pernambuco - pesquisa CNPq - processo nº 440209/2019-6
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Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
References
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2021 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2021
Histórico
-
Recebido
30 Set 2020 -
Aceito
10 Set 2021