Open-access Pandemia do coronavírus (2019-nCoV) e mulheres: efeitos nas condições de trabalho e na saúde

Coronavirus (2019-nCoV) pandemic and women: effects on working conditions and health

RESUMO

O trabalho teve como objetivo discutir os efeitos da pandemia da Covid-19, causada pelo novo coronavírus (2019-nCoV), às condições de trabalho e de saúde das mulheres, com foco nas dinâmicas de gênero. A reflexão proposta partiu da literatura sobre saúde das mulheres e epidemias, valendo-se dos dados sobre a condição das mulheres durante a pandemia da Covid-19, no ano de 2020, sobretudo no Brasil, mas também em demais países com diferentes características socioeconômicas. A análise expôs três aspectos centrais em que a pandemia da Covid-19 afeta a saúde das mulheres, a saber: a exposição das profissionais do cuidado, trabalhadoras da saúde e domésticas; os direitos reprodutivos; e a violência doméstica. O trabalho contribuiu para a compreensão dos modos como epidemias podem expor acentua- damente a saúde das mulheres, seja nas precárias condições de trabalho, na ameaça de suspensão de seus direitos na atenção à saúde ou no aumento da violência no contexto de isolamento social.

PALAVRAS-CHAVE
Covid-19; Gênero; Saúde das mulheres; Violência doméstica

ABSTRACT

The study aimed to discuss the effects of the Covid-19 pandemic, caused by the new coronavirus (2019-nCoV), specifically on women’s work and health conditions, with a focus on gender dynamics. The discussion was based on women health and epidemics literature, data about the condition of women during the Covid-19 pandemic, in 2020, especially in Brazil, but also in other countries with different socioeconomic characteristics. The analysis exposed three central aspects in which the Covid-19 pandemic affects women’s health: the exposure of care professionals, health workers, and domestic workers; reproductive rights; and domestic violence. The work contributed to understand the ways in which epidemics can expose the health of women, whether in precarious working conditions, in the suspension of their rights in health care, or in the increase of violence in the context of social isolation.

KEYWORDS
Covid-19; Gender; Women’s health; Domestic violence

Introdução

A pandemia da Covid-19, causada pelo novo coronavírus (2019-nCoV), tem trazido enormes impactos em diversos aspectos da vida social. Seja pelo efeito direto na vida das pessoas e na sobrecarga dos sistemas de saúde, seja pela acentuação da crise econômica e a política de isolamento social como tentativa de contenção da disseminação do vírus, a pandemia tem exigido a manifestação de novos modos de relacionar, trabalhar e construir saúde.

Tais efeitos sobre a vida são atravessados por marcadores sociais, como os de classe, geração, gênero; e tornou-se evidente, desde o início da pandemia, a maior vulnerabilidade de certos grupos sociais neste cenário. No Brasil, assim como em outros países, as maiores taxas de mortes se concentram entre populações pobres e negras1, assim como entre populações indígenas e imigrantes, as quais, historicamente, encontram-se em situação de precariedade quanto a moradia, trabalho e acesso à saúde2.

No que diz respeito à questão de gênero, a necessidade de analisar as epidemias sob essa perspectiva ficou evidente com a epidemia do zika vírus, iniciada no Brasil em 2015. Nesse contexto, reconheceu-se a maior vulnerabilidade das mulheres pelo fator biológico que acarreta microcefalia em bebês cujas mães grávidas são infectadas, mas também, e sobretudo, pelo fato de que essas mulheres, pobres e, na maioria das vezes, sozinhas, encontraram-se ainda mais vulneráveis diante da demanda de cuidados totalmente voltados para essas crianças, impedindo-as de trabalhar3.

Tal realidade reflete a divisão social do trabalho do cuidado, historicamente realizado por mulheres, principalmente negras e pobres, e ainda pouco distribuído socialmente de modo equitativo. O cuidado diretamente relacionado com a saúde revela a desigualdade de gênero no exercício profissional, particularmente das profissões de menor prestígio, no ambiente doméstico e, também no autocuidado4. As diferenças de condições de saúde entre mulheres e homens expressam, para muito além das diferenças fisiológicas, as diferenças comportamentais, seja com a ausência de autocuidado no caso dos homens ou com a alta exposição à própria saúde no cuidado do outro no caso das mulheres.

Durante a pandemia da Covid-19, tem sido observada, em diferentes contextos, uma maior resistência dos homens a utilizar máscara de proteção5. No extremo oposto, o trabalho conduzido pela pesquisadora Denise Pimenta6 durante a epidemia de ebola em Serra Leoa revelou a associação do maior número de mortes entre mulheres à alta exposição gerada pelo trabalho de cuidado, o que levou a pesquisadora a cunhar o termo cuidado perigoso.

Observa-se, portanto, que as desigualdades de gênero revelam contornos específicos durante o período de pandemia, as quais têm acentuado os efeitos sobre os grupos mais vulneráveis. Em decorrência disso, a Organização das Nações Unidas - Mulheres (ONU - Mulheres) publicou um documento com recomendações centrais no enfrentamento da pandemia direcionado à saúde das mulheres, entre os quais constam a mitigação do impacto econômico, a preservação de serviços essenciais ameaçados durante esse contexto, a garantia de proteção à violência, entre outros7.

Pensar a realidade das mulheres no contexto da pandemia remete à reprodução de diversas questões históricas. No que diz respeito à violência simbólica, o excesso de piadas sobre o risco de as mulheres engordarem estando mais tempo em casa com a política de isolamento reacendeu o debate sobre gordofobia, por exemplo, que denuncia as exigências de correspondência a padrões de beleza direcionados mais acentuadamente sobre as mulheres. Não se trata de um detalhe menor, mas de uma cobrança que se soma para as mulheres em um contexto já bastante exigente.

Com respeito às condições de trabalho, a vulnerabilidade das mulheres se manifesta tanto no fato de elas serem a maioria entre trabalhadoras informais quanto pela sobrecarga de trabalho no ambiente doméstico no contexto de isolamento, o que faz com que estejam mais desamparadas economicamente ou exercendo trabalhos em piores condições. Para além disso, observa-se ainda, nesse contexto, a interrupção de serviços essenciais à saúde das mulheres, o aumento da vulnerabilidade no contexto da saúde reprodutiva e a violência doméstica.

O objetivo deste trabalho é discutir os efeitos da pandemia da Covid-19 às condições de trabalho e de saúde das mulheres, com foco nas dinâmicas de gênero. Serão abordados, de modo específico, as condições de trabalho das profissionais do cuidado: trabalhadoras domésticas e da saúde, os direitos reprodutivos e a violência contra as mulheres no contexto da pandemia. A escolha das temáticas abordadas relaciona-se à centralidade delas para o debate de gênero, bem como à potência que estas têm de gerar reflexões para compreensão de outras problemáticas nesse campo.

Trabalhadoras domésticas e da saúde

Donna Haraway8, em seu brilhante texto Manifesto Ciborgue, alerta para o fato de que o ‘trabalho feminizado’ é uma forma de caracterizar um trabalho vulnerável, “capaz de ser desmontado, remontado, explorado como uma força de trabalho de reserva”8(69), que pode ser realizado tanto por mulheres quanto por homens. A questão não é o sexo de quem o realiza, é a marcação de gênero: o feminino ou feminizado, como quase sinônimo de desqualificado, precário.

Nesse sentido, quando se refere aqui à feminização do trabalho, não se aponta apenas para o sentido clássico de uma maior incorporação das mulheres ao mundo do trabalho, mas questiona-se de que forma essa assimilação acontece e sob quais condições.

A dualidade hierárquica masculino/feminino, constituída por e constituinte do machismo e do patriarcado9,10 atribui qualidades diferenciadas para o masculino e para o feminino. Ainda que a Teoria Queer11-15 já tenha mostrado o quanto masculino e feminino são gêneros que não são tidos como inerentes a corpos de homens e corpos de mulheres, as expectativas de gênero marcam os corpos, comportamentos e práticas. Nesse contexto, o feminino é associado a um conjunto de características sempre desvalorizadas (mesmo que seja por meio do discurso da suposta complementaridade) em relação ao masculino. Portanto, como bem mostra Butler12,13, o gênero não se resume a corpos, mas a performatividades que se materializam nos corpos. Strathern16 também ajuda a entender a questão em um contexto não ocidental, mostrando como o gênero circula nas coisas, nas práticas, nas relações.

A feminização do trabalho, nessa ótica, diz respeito a trabalhos precarizados, desqualificados (que seriam características associadas ao feminino), um “subemprego estrutural”17(72). No contexto ocidental, essa feminização/precarização marca certas profissões e funções nas quais o cuidado é central, como o magistério, a enfermagem, a prostituição, o trabalho doméstico, o trabalho das cuidadoras, entre outros. Ou seja, profissões e funções subvalorizadas, ocupadas predominantemente por mulheres, e de extremo desgaste físico e emocional. Como bem pontua Haraway8, nos trabalhos feminizados, as pessoas são mais vistas como servas que como trabalhadoras. Além disso, bem conhecidos são a literatura e os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE)17 sobre a realidade das famílias chefiadas por mulheres no Brasil, como a pesquisa de Cavenaghi e Alves18 corroboram, ao apontar um crescimento de 105% entre 2001 e 2015 no número de famílias chefiadas por mulheres no Brasil19.

A feminização do trabalho, portanto, está intrinsecamente ligada à ‘feminização da pobreza’. Haraway8 se utiliza desse termo para pensar em um cenário internacional, mas aqui se utilizam conceitos para pensar a realidade brasileira, sobretudo em tempos de Covid-19. A autora8 dá o exemplo das mulheres negras estadunidenses que conseguiram se desvencilhar do trabalho doméstico para se tornarem assalariadas sob condições precárias em escritórios e empresas, o que gera, para as pessoas negras, a pobreza com emprego. Haraway8 então já aponta para questões de gênero, raça, classe quando debate sobre a feminização do trabalho e a feminização da pobreza.

Aqui se chega ao ponto-chave desse item: no Brasil hoje, em plena pandemia da Covid-19, quem são as mulheres que estão encarregadas do trabalho precarizado, expondo a si mesmas e as suas famílias porque não têm a opção de simplesmente ficar em casa: as trabalhadoras da saúde, as domésticas e faxineiras terceirizadas. Ainda que haja outras profissões/ocupações de mulheres extremamente precarizadas, a análise será focada nessas duas categorias mencionadas.

As trabalhadoras da saúde compõem um grupo bastante heterogêneo: médicas, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, faxineiras terceirizadas em hospitais, entre outras. Em termos de classe social, a profissão/ocupação já fala por si mesma, pois há notadamente um fosso socioeconômico entre uma médica e uma faxineira terceirizada que retira o lixo dos quartos do hospital.

Já em termos de raça, ainda que as pessoas negras estejam mais presentes na universidade, não necessariamente estão em um curso de medicina. É evidente que várias existem e resistem nesses espaços, mas longe de terem alcançado uma igualdade racial. Também se sabe que há faxineiras brancas, sobretudo em estados do Sul e Sudeste, o que não anula o fato de que, no Brasil, raça e classe não se separam, ou seja, a grande maioria da população pobre é negra. Esse é um dos legados de um sistema escravocrata, e de um capitalismo que aprendeu a coadunar a desigualdade socioeconômica com a desigualdade racial20, casamento dissimulado sob o manto do mito da democracia racial21. Nesse sistema, como problematiza Carneiro22, há uma objetificação e desqualificação das mulheres negras.

Borges e Detoni23 realizaram uma pesquisa em um hospital na Serra Gaúcha sobre a feminização do trabalho hospitalar. As entrevistas foram feitas com mulheres de nível de escolaridade e ocupações diferenciadas dentro da estrutura hospitalar. Na mesma direção dos apontamentos de Haraway8, as autoras oferecem a seguinte análise:

A partir das narrativas das trajetórias de vida, analisaram-se os discursos que emergiram dentro da interlocução de gênero e trabalho das mulheres trabalhadoras hospitalares, em que são destacados: o trabalho como possibilidade de autonomia e sustento; o trabalho feminino precarizado diante da divisão sexual do trabalho e no início da carreira; o trabalho feminino doméstico como pouco reconhecido e obrigatório; a duplicidade de jornada em ser mãe e trabalhadora; e o cuidado como atribuição naturalizada das trabalhadoras da saúde23(148-149).

Esse quadro se complexifica ainda mais em tempos de pandemia. Já não bastam os problemas elencados acima, com os quais essas mulheres têm que lidar em seu cotidiano entre a casa e o hospital, agora precisam optar entre o risco de se expor ao vírus (e de expor seus familiares) e a necessidade de manter o emprego e o sustento. Ademais, o risco de expor não está apenas no transporte coletivo, mas no próprio ambiente de trabalho. As enfermeiras e os enfermeiros são as pessoas que fazem o trabalho socialmente desqualificado24, bem como as técnicas de enfermagem, as faxineiras dos hospitais, as funcionárias do laboratório de análises clínicas, entre outras.

Além da materialidade do risco nas práticas dessas trabalhadoras, há ainda a discrepância de remuneração e de condições de trabalho. No estado de Minas Gerais, por exemplo, foi publicado, em 10 de abril de 2020, o Decreto nº 47.914 que cria gratificação temporária apenas para a categoria médica.

Entretanto, não apenas o lugar da realidade mais imediata da doença (os hospitais), mas também outras instituições oferecem subsídios para refletir sobre as condições de trabalho das mulheres durante a pandemia, como, por exemplo, a universidade. As universidades públicas brasileiras (federais e estaduais) aderiram à quarentena de acordo com as instruções do Ministério da Saúde. As universidades públicas estaduais de São Paulo foram uma das primeiras a aderir, buscando formas de trabalho remoto para o corpo docente, técnico-administrativo e discente.

Durante a pandemia da Covid-19, ao mesmo tempo que o Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo se torna uma referência para detecção e tratamento da Covid-19, o Esquerda Diário publica a matéria ‘Trabalhadoras terceirizadas da Universidade de São Paulo: Vão esperar até quando para liberar a gente? Quando tiver uma trabalhadora morta?’. De acordo com a matéria25, trabalhadoras terceirizadas responsáveis pela limpeza dos prédios do Campus da Universidade de São Paulo (USP) (incluindo as dependências do hospital), na sua maioria mulheres negras, denunciam que ‘recebem salários baixíssimos, com constante atraso e erros, além de condições precárias e da enorme sobrecarga de trabalho’. A pauta da matéria era pela liberação das trabalhadoras que não estivessem em atividades consideradas essenciais, sem transferências ou punições, com pagamento integral do salário e benefícios.

Esta tem sido uma pauta corrente quando se trata de direitos das trabalhadoras domésticas e terceirizadas, que sejam liberadas sem perdas de nenhuma natureza. Contudo, em um país marcado pelo patriarcado branco e pela feminização da pobreza, as vidas dessas mulheres estão em um plano bastante inferior. Desde 2018 que a Secretaria de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) questionava a reitoria a respeito das condições de trabalho das terceirizadas da USP25,26. A história da precarização das condições de trabalho dessas mulheres é bem anterior, e pode ser compreendida com mais detalhes na obra organizada por Assunção27.

Mulheres negras e de periferia, na sua maioria chefes de família e mães solo, são punidas não somente por serem obrigadas a se expor ao vírus, mas a exporem a veracidade de um sistema em que certas vidas valem mais que outras. Não por acaso, uma das primeiras vítimas da Covid-19 no Brasil foi uma empregada doméstica, Cleonice Gonçalves. A patroa, do Leblon, sobreviveu; Cleonice, não. Em tempos de crise epidemiológica e econômica, o subemprego estrutural revela mais acentuadamente as marcas da precarização de trabalhos feminizados e racializados.

O foco na relação social entre a empregada doméstica e a patroa (e a família empregadora) revela os efeitos de uma diferenciação de categorias que expressam e escondem marcas de gênero. Nem todos compreensíveis apenas pela atuação direta da desigualdade, mas, por ela também ressemantizadas. Assim, tal relação pode nos sugerir como ela concentra sobremaneira alguns dos sentidos do tipo de dominação (e, assim, muito bem os revela) que marcam as relações de desigualdade na sociedade brasileira28.

Direitos reprodutivos

A atenção ao parto e nascimento no Brasil representa um importante problema de saúde pública relacionado com a qualidade da assistência, predominantemente hospitalar, assistidas por médicas e médicos e com acesso a tecnologias29, condições consideradas, por muito tempo nas sociedades ocidentais, como sendo as mais seguras para nascer. A proporção de nascimentos cujas mães fizeram consultas de pré-natal aumentou, bem como a escolaridade das mães, o que também poderia representar um avanço30. Contudo, as elevadas taxas de morbimortalidade materna e perinatal demonstram que ainda se está realizando uma assistência às mulheres e crianças de baixa qualidade, possivelmente relacionada com práticas obsoletas e iatrogênicas e com baixa autonomia das mulheres, o que configura o chamado paradoxo perinatal29.

Tal assistência, constituída por intervenções assistenciais abusivas, qualifica parte do que se denomina por violência obstétrica30 e torna o Brasil um dos países com as maiores taxas de cesarianas no mundo. Em 2016, 46% das vias de nascimento no Sistema Único de Saúde (SUS) e 88% nos serviços suplementares eram cesarianas, resultando em uma média de 52%, quase três vezes superior à taxa de 15% recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)31.

A medicalização do parto e nascimento tem repercutido de forma intensa sobre os modos de nascer no Brasil, dimensões que se exacerbam em tempos de pandemia. Movimentos de humanização do parto e do nascimento alertaram para a possibilidade de a crise gerar aumento de taxas de cesarianas realizadas sem indicação, privação do direito ao acompanhante e o aumento da violência obstétrica de modo geral32.

Logo no início da pandemia no Brasil, a gestação e o puerpério de até duas semanas pós-parto, incluindo do aborto ou perda fetal, foram considerados condições e fatores de risco33 para possíveis complicações da infecção Covid-19. A inclusão de gestantes e puérperas no grupo de risco para essa doença, em um momento de pesquisas ainda muito incipientes sobre Covid-19 e gestação, relacionava-se com a hipótese de que as especificidades metabólicas e adaptativas do corpo nessas condições poderiam levar ao desenvolvimento de formas mais graves da doença34.

Em decorrência disso, compreendeu-se que um dos cuidados voltados para esse grupo incluiria a prioridade de testagem34,35, a manutenção das consultas de pré-natal34,35, com presença e apoio de acompanhante34,35 bem como redução do tempo de internação hospitalar com vistas à menor exposição à Covid-1935,36; ainda, manutenção do planejamento familiar, de acesso à anticoncepção de emergência e aos serviços de aborto35,36.

Embora o Ministério da Saúde tenha reconhecido essas prioridades de assistência à saúde reprodutiva, tal dimensão do cuidado permaneceu sendo disputada e com fragilidades para ser efetivada. Contudo, em junho de 2020, no pico da pandemia no Brasil, o ministro interino da Saúde Eduardo Pazuello demitiu dois funcionários de carreira do Ministério da Saúde por assinarem as recomendações que consideravam os serviços de saúde sexual e saúde reprodutiva como essenciais37.

Nessa direção, os serviços de aborto legal foram um dos que mais se fragilizaram com a pandemia, o que repercutiu sobre os direitos já positivados37,38 no Brasil e, também, em outros lugares do mundo39. Exemplo dessa situação foi a violência sofrida por menina de 10 anos grávida no País40, que teve sua assistência ao aborto negada, com encaminhamento para outro serviço no qual foi acolhida pela equipe de saúde. Essa situação repercutiu em ataques de grupos religiosos fundamentalistas e em apoio de movimentos feministas de todo Brasil, que se organizaram para auxiliar na efetivação do direito. Esse caso não se trata de uma exceção. De acordo com o Anuário de Segurança Pública do Brasil de 201941, em 2018, o País teve 66 mil vítimas de estupro, das quais 53,8% eram crianças do sexo feminino de até 13 anos. Essa situação se agrava em decorrência de medidas de isolamento social39.

Os problemas relacionados com os direitos reprodutivos se agravaram; e, embora tenha reconhecido as gestantes e puérperas como público prioritário para assistência à Covid-19, o Brasil passou a liderar o número de mortes de gestantes por essa doença42. A Síndrome Respiratória Aguda, causada pela Covid-19, foi diagnosticada no Brasil - de fevereiro a junho de 2020 - em 978 mulheres grávidas e puérperas e resultou em 124 mortes, o que significa um número quase quatro vezes maior do que o total de mortes em gestantes e puérperas no mundo42. Tal mortalidade está relacionada com a qualidade da assistência obstétrica e, sobretudo, com uma possível negligência diante das condutas preconizadas. Quase 30% das mulheres que morreram sequer chegaram a receber tratamentos intensivos. O maior número de vítimas são mulheres negras, o que reforça o racismo institucional atrelado à violência obstétrica e de gênero43.

Assim, barreiras para acesso aos serviços de saúde tornam-se ainda mais agressivas para mulheres pobres, negras, periféricas, indígenas, entre outras vulnerabilidades sociais. Sabe-se que essas mulheres, no contexto da pandemia, têm encontrado ainda dificuldades para que suas escolhas sejam escutadas, acolhidas e respeitadas pelos serviços e profissionais da saúde, o que gera impactos na qualidade da atenção da sua saúde reprodutiva34.

Violência doméstica

A compreensão de que a saúde das mulheres é diretamente afetada pela violência de gênero existe no campo da saúde pública no Brasil há, pelo menos, uma década. As taxas de morbimortalidade feminina no País são afetadas expressivamente pelos agravos de causas externas, como agressões, homicídios e lesões autoprovocadas. A notificação compulsória das violências foi estabelecida no sistema de saúde nacional a partir de 2011, como um dos mecanismos de controle e prevenção desses agravos44.

A análise dos dados de 2018 pelo Ministério da Saúde revelou que, entre mulheres com notificação de violência e morte por causas externas, a residência foi o principal local de ocorrência dessas violências para todas as faixas etárias45.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 201946 demonstrou que aproximadamente 90% dos feminicídios, entre 2017 e 2018, foram cometidos por companheiros e ex-companheiros das mulheres, e as maiores taxas foram para aquelas em idade reprodutiva, negras e com menos anos de estudo.

A violência contra a mulher é, portanto, preponderantemente doméstica, ocorrendo no âmbito das relações afetivas e das residências, principalmente das mulheres mais vulneráveis, ainda que não se restrinja a elas.

Os estudos feministas e de gênero têm trazido importantes contribuições, particularmente na defesa da necessidade de adotar a perspectiva interseccional tanto na análise desses fenômenos como na formulação e execução de políticas públicas. Nesse sentido, Crenshaw47 discute, a partir da experiência de mulheres não brancas em situação de violência, as especificidades de grupos minoritários que os tornam mais vulneráveis, que vão desde o ato da denúncia da violência até as demandas por saírem dessa situação. As diversas barreiras que se acumulam no caso das mulheres não brancas, em geral, iniciam-se ao serem desacreditadas no ato da denúncia e se estendem a dificultadores como a falta de domínio da língua, como no caso de imigrantes, além da própria instabilidade da permanência legal no país em que vivem, que acabam por expô-las ainda mais a diferentes modos de violência.

A violência doméstica e familiar no Brasil é tipificada, segundo a Lei Maria da Penha, de 200648, como física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. Cada uma dessas tipificações apresenta impactos físicos e emocionais para a saúde das mulheres, compreendida em sua integralidade.

A pandemia da Covid-19 expôs um aumento expressivo de violência doméstica em diversos países, o que pode ser relacionado principalmente com dois fatores: o primeiro deles é o aumento do tempo de convivência no local de residência; o segundo fator relaciona-se à crise financeira consequente da paralisação das atividades econômicas.

A violência é, entretanto, um fenômeno psicossocial complexo, sobre o qual os estudos feministas trouxeram importante contribuição. A socióloga brasileira Heleieth Saffioti49, por exemplo, expôs a falha na atribuição da violência doméstica à crise econômica e ao alcoolismo. Se é verdade que existe uma relação positiva entre esses fatores, não pode ser atribuída a ela causalidade. A violência contra a mulher é impulsionada pelo aumento do estresse e pela diminuição da autocensura com o uso do álcool, mas não pode ser explicada por eles. Um exemplo disso é que, mesmo sob as mesmas condições, é muito raro que a agressão ocorra no sentido contrário49.

A violência doméstica configura-se como violência de gênero e, como tal, manifesta-se tanto, simbolicamente, publicamente como no âmbito das relações privadas - no processo de introjeção e reprodução de valores e comportamentos pelos sujeitos. Trata-se de fenômeno social, que pertence às relações sociais de modo estrutural, sendo nossa sociedade marcada pela assimetria49.

Ainda que persista a concepção de que a violência doméstica é um problema da esfera privada, a Lei Maria da Penha trouxe uma importante conquista no que diz respeito a seu reconhecimento no âmbito legal brasileiro, fruto de um processo histórico de politização da violência. No campo da execução da lei, entretanto, há permanentes desafios quanto ao acolhimento e à proteção das mulheres em situação de violência, dadas as fragilidades do sistema intersetorial de proteção50.

Embora profissionais da saúde tenham a notificação da violência como dever, podendo inclusive, responder por omissão, o desconhecimento da importância da ficha de notificação como instrumento epidemiológico, a associação à denúncia e a naturalização da violência ainda implicam subnotificação. Além disso, o diagnóstico da violência nem sempre é evidente. Na maior parte dos casos, relatos e demandas não são espontâneas, exigindo de profissionais da saúde maior sensibilidade e apuração no cuidado para que tais questões emerjam e sejam bem conduzidas51,52.

O contexto de pandemia da Covid-19 e o isolamento social mostraram impactos não só no aumento da exposição das mulheres à violência como também em dificultar a denúncia e a fragilizar da rede de proteção, já que a grande maioria dos serviços públicos passou a funcionar em escala reduzida.

A representante colombiana da ONU - Mulheres, Ana Güezmes, afirmou que a quarentena utilizada como mecanismo de contenção da propagação do vírus expõe as mulheres a cinco tipos de violência, a saber: a familiar e sexual; a exploração sexual; o tráfico; a cibernética; e, ainda, em determinados países, o risco à vida das defensoras dos direitos humanos. O aumento da exploração sexual tem como alvo mulheres migrantes e trabalhadoras informais, que passam a estar mais expostas a redes de exploração ao perderem suas fontes de renda. A violência oriunda do tráfico é prevista pela intensificação das atividades com o fechamento das fronteiras. O aumento da violência cibernética é presumido do crescimento da sociabilidade por meio virtual. Também, em países como a Colômbia, o contexto da pandemia facilita o controle territorial por grupos armados que expõe ainda mais líderes sociais53.

Os modos como mulheres passam a estar expostas em contextos de epidemias correspondem às particularidades locais, sendo observada, muitas vezes, a intensificação de questões já históricas. Na República Democrática do Congo, por exemplo, onde a epidemia de ebola, em 2018, também representou grave aumento da violência de gênero, houve denúncia de que a vacina estava sendo oferecida a mulheres e crianças em troca de favores sexuais54.

Durante a pandemia da Covid-19, o aumento expressivo de violência doméstica em diversos países teve repercussões tanto no campo legislativo e em políticas públicas emergenciais correspondente aos contextos sociopolíticos locais como nos movimentos sociais, observados nas mídias digitais.

Na França, foi relatado aumento de mais 30% de intervenções policiais em casos de violência doméstica. Na Itália, entretanto, as denúncias tiveram queda de mais de 50% nas primeiras semanas de isolamento, revelando o desafio para as mulheres pedirem ajuda nessas condições55. No Brasil, as estatísticas de violência doméstica durante a pandemia revelaram diferenças entre os estados, cuja explicação mais provável é o aumento da violência, mas também da dificuldade da denúncia, seja pela presença do marido em casa ou pela dificuldade e risco do deslocamento.

Durante a pandemia da Covid-19, a medida adotada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos com relação à violência foi o desenvolvimento de um aplicativo de facilitação de denúncias56. O uso do código máscara 19, solicitada por mulheres em farmácias, foi uma estratégia elaborada para comunicar violência doméstica na França e na Espanha, que partiu de campanha governamental desses países55. Na Argentina, iniciativa governamental similar foi adotada por meio da campanha do uso do lenço vermelho57.

A disponibilização de hotéis para mulheres em situação de violência foi uma medida adotada na França58. Tal estratégia de proteção também foi proposta no Brasil59, para além de um conjunto de medidas que visam tornar a atenção às mulheres serviço essencial bem como ampliar campanhas de prevenção à violência60.

Diferentes formatos de manifestações em oposição à violência contra as mulheres foram observados, da campanha na internet com o uso de hashtags e os dizeres ‘contra violência doméstica durante epidemia’ na China a protestos convocados pelo movimento feminista Nem uma a menos na Argentina.

No Brasil, para além de as estratégias políticas se restringirem à questão da denúncia, conforme analisa a antropóloga Beatriz Accioly Lins61, enfocam diversos tipos de violência doméstica, embora a violência contra a mulher represente a grande maioria deles, negando diretamente que ela tenha viés de gênero.

Além disso, a violência doméstica também chegou a ser usada politicamente em oposição à medida de isolamento social. O presidente Jair Bolsonaro, que desde o início da pandemia se opôs às políticas de isolamento, disse em entrevista que todos brigam quando há crise, e usou o dado de aumento da violência doméstica para justificar a necessidade de as pessoas voltarem a trabalhar62. Além de reproduzir a falsa dicotomia entre economia e saúde, o presidente brasileiro omitiu o caráter de desigualdade de gênero da violência, igualando a condição das mulheres e dos homens nessas situações.

O aumento da exposição e do desamparo das mulheres em situação de violência durante a pandemia da Covid-19 expôs a necessidade de avanços na política de proteção, sobretudo em períodos críticos. Tais avanços precisam caminhar no sentido de garantir, a partir de um orçamento próprio, campanhas preventivas e informativas, tecnologias que facilitem a denúncia, por exemplo, por mensagens, de modo a dispensar o uso do telefonema e da voz, e abrigos para mulheres em contextos de grande aumento da demanda. Atendimentos virtuais e físicos que abranjam distintos setores, como jurídico, psicológico, socioassistencial e médico, devem ser serviços públicos universalizados, sem que dependam de voluntariado. Além disso, é preciso garantir que atendimento à saúde e rede de proteção não fiquem comprometidos nesses períodos, para que as mulheres não sejam revitimizadas.

Considerações finais

A pandemia do da Covid-19 incide de forma diferente e desigual na vida das pessoas. As mulheres, sobretudo as mulheres pobres e cuidadoras, estão ainda mais expostas a riscos em seus locais de trabalho e, também, a riscos em suas casas. Do mesmo modo, notam-se a fragilização da qualidade da assistência à saúde a essas mulheres e um contexto precário nas diversas esferas da vida.

Em tempos de tantas incertezas, é certo que a construção desses novos modos de relacionar, trabalhar, consumir, entre outras atividades, deve seguir pautada pelos direitos humanos e comprometida com a equidade de gênero, de raça, de geração e de classe. É fundamental a presença de um SUS forte e atuante, que possa potencializar suas trabalhadoras e trabalhadores e usuárias e construir a saúde, no sentido mais amplo, este, que consolidou suas bases.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2020
  • Aceito
    28 Set 2021
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