RESUMO
Este trabalho teve como objetivo analisar de que maneira as práticas corporais podem servir como instrumentos de controle dos corpos na Atenção Primária à Saúde, avaliando os discursos de profissionais da saúde que compõem uma Unidade Básica de Saúde, a partir dos conceitos de biopoder e biopolítica levantados por Michel Foucault. Trata-se de um estudo qualitativo, caracterizado como um estudo de caso. Foram realizados cinco grupos focais, um com a equipe do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica e quatro com as equipes de Saúde da Família. Para a apreciação dos dados foi utilizada a Análise Temática. A pesquisa revela uma aplicação das práticas corporais ainda pautada em uma matriz biomédica, voltadas para a prevenção, o controle e o tratamento de doenças, com foco nas crônicas não transmissíveis. Tais práticas acabam por configurar dispositivos do biopoder e da biopolítica na Atenção Primária à Saúde, como controladoras dos corpos e como componentes estratégicos de uma medicalização social. No entanto, ao fim, também aponta para as possibilidades de exercícios de resistência e fissuras nas relações de poder estabelecidas nas práticas corporais, tomando-as potências de recriação de outros sentidos, para além daqueles hegemônicos, calcados em discursos biologicistas.
PALAVRAS-CHAVE:
Medicalização; Atenção Primária à Saúde; Atividade física; Estratégia Saúde da Família
ABSTRACT
This work aimed to analyze how body practices can serve as instruments to control bodies in Primary Health Care, evaluating the speeches of health professionals of a Basic Health Unit based on the concepts of biopower and biopolitics raised by Michel Foucault. This is a qualitative study, characterized as a case study. Five focal groups were carried out, with the Extended Family Health and Primary Care Center team and four as Family Health Teams. Thematic Analysis was used to approve the data. The research reveals that body practices continue to be a biomedical tool, aimed at prevention, control and treatment of diseases, focusing on chronic non-communicable diseases. Such practices end up configuring biopower and biopolitics devices in Primary Health Care, as body control and as strategic components of a social medicalization. However, in the end, it also points to the possibilities of resistance exercises and fissures of power relations established in body practices, taking these as a power to recreate other senses in addition to those hegemonic ones based on biologicist discourses.
KEYWORDS:
Medicalization; Primary Health Care; Motor activity; Family Health Strategy
Introdução
Ainda que as Práticas Corporais (PC) e atividades físicas já existissem e fossem utilizadas por profissionais da área, especialmente na Atenção Primária à Saúde (APS), sua inserção torna-se mais intensa no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da implementação da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), em 2006, e com a implantação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), em 2008, que, através da Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017, teve seu nome alterado para Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB)11 Gonzales FJ. Práticas corporais e o Sistema Único de Saúde: desafios para a intervenção profissional. In: Gomes IM, Fraga AB, Carvalho YM. Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação. Porto Alegre: Rede Unida, 2015, p. 135-162.. Então, o aumento da oferta dessas práticas justifica a necessidade de uma reflexão crítica sobre o modo como atualmente estão inseridas no SUS, em especial, no cotidiano da APS.
Algumas controvérsias são identificadas quando se pensa em PC e atividades físicas inseridas na saúde pública: por um lado, como na PNPS, há o entendimento de que o processo saúde-doença é resultante dos determinantes sociais, o que coloca as PC e atividades físicas como ações prioritárias; por outro lado, existe uma concepção reducionista, pautada em parâmetros biológicos e fatores de risco, atrelando as PC a comportamentos passíveis de mudança com responsabilização dos indivíduos22 Carvalho FFB, Nogueira JAD. Práticas Corporais e atividades físicas na perspectiva da Promoção da Saúde na Atenção Básica. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1829-1838..
A delimitação teórico-conceitual adotada neste trabalho referente ao conceito de PC se dá em uma perspectiva que não desconsidera as ciências naturais, mas que busca uma aproximação com as ciências sociais e humanas com o intuito de ampliar as possibilidades das PC no campo da saúde. Carvalho33 Carvalho YM. Promoção da Saúde, práticas corporais e atenção básica. Revista Saúde Família 2006; 7(2):33-45.(33-34) descreve que:
Essas práticas ampliam as possibilidades de encontrar, escutar, observar e mobilizar as pessoas adoecidas para que, no processo de cuidar do corpo, elas efetivamente construam relações de vínculo, de corresponsabilidade, autônomas, inovadoras e socialmente inclusivas, de modo a valorizar e otimizar o uso dos espaços públicos de convivência e de produção de saúde, que podem ser os parques, as praças e as ruas.
Deste modo, as PC são pensadas como um modelo alternativo, se diferenciando da concepção restritiva de atividade física/exercício físico pautada em uma racionalidade biomédica. Apesar das grandes possibilidades das PC, sua concepção na saúde pública muitas vezes parte de parâmetros comportamentais, atrelados a transições demográficas, epidemiológicas e nutricionais, sendo as atividades físicas apontadas como fatores de proteção contra as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT). Deste modo, as ações são voltadas para a promoção de um estilo de vida ativo e saudável, com atuações preventivas, baseadas no comportamento e na ação individual44 Carvalho FFB. Análise crítica da carta brasileira de prevenção integrada na área da saúde na perspectiva da Educação Física através do enfoque radical de promoção da saúde. Saúde Soc. 2019; 18(1):227-236.,55 Bagrichevsky M, Castiel LD, Vasconcellos-Silva PR, et al. Discursos sobre comportamento de risco à saúde e a moralização da vida cotidiana. Ciênc. Saúde Colet. 2010; 15(supl1): S1699-S1708. , partindo de um modelo centrado na dimensão biológica. E isto se dá pelo fato de que este modelo é fortemente reproduzido na formação de grande parte dos cursos das áreas da saúde66 Félix J, Silva AM, Silva MS. As diretrizes do NASF e a presença do profissional em Educação Física. Motrivivência 2014; 26(42):222-237..
Essa concepção biologicista, voltada para as ações do corpo individual, e dos hábitos e estilos de vida das famílias e comunidades, se atrela à discussão da medicalização social, através da qual se pode compreender que tal processo acontece quando o modo de vida das pessoas é apropriado pela medicina, influenciando diretamente na moral, nas normas, nos comportamentos sociais e costumes populares. Assim, o modelo de vida dessas pessoas acaba sendo influenciado por um pensamento medicalizante, mediado por um viés de pensamento e uma matriz biomédica77 Foucault M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1999.
8 Gaudenzi P, Ortega F. O estatuto de medicalização e as interpretações de Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estudo da desmedicalização. Interface Botucatu 2012; 16(40):21-34.
9 Caponi S. Biopolítica e medicalização dos anormais. Physis: revista de saúde coletiva 2009; 19(2):529-549-1010 Manske GS, Barcelos TS. Práticas corporais medicalizantes: diagnosticando a revista vida simples. Rev. Movimento 2016; 22(1):233-246..
Em uma sociedade de normas, a medicina se mostra como uma técnica de intervenção que possui essa função normalizadora; seu efeito disciplinar sobre os corpos orgânico e biológico tem poder regulamentar sobre a população. Deste modo, o poder sobre a vida perpassa desde uma disciplina voltada para o corpo individual, até uma regulação da população1111 Foucault M. Aula de 17 de março de 1976. In: Foucault M. Em defesa da sociedade: cursos no Collège de France (1975/1976). 4. ed. São Paulo: Mantins Fontes; 2005, p. 285-315.,1212 Sousa C, Baracuhy R. Biopolítica, biopoder e cuidado de si na campanha antitabagista das embalagens de cigarro. Ilha Desterro 2015; 68(3):131-146.. Então, as duas formas de poder levantadas por Foucault1111 Foucault M. Aula de 17 de março de 1976. In: Foucault M. Em defesa da sociedade: cursos no Collège de France (1975/1976). 4. ed. São Paulo: Mantins Fontes; 2005, p. 285-315. , o biopoder e a biopolítica, têm se mostrado fundamentais nas relações entre o Estado e a população, pois, através do poder do corpo individual, pelas normas e comportamentos, se obtém o poder sobre o corpo social.
Através da disciplina, a medicina passa a exercer um papel de controle, determinando as condutas individuais e coletivas, não somente com relação à doença, mas também nos comportamentos, como sexualidade, fecundidade e fertilidade, entre outros88 Gaudenzi P, Ortega F. O estatuto de medicalização e as interpretações de Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estudo da desmedicalização. Interface Botucatu 2012; 16(40):21-34.. Deste modo, ela controla diversos acontecimentos dos campos social, coletivo, individual e até mesmo político.
Sendo assim, dependendo da maneira como são utilizadas, as PC no âmbito da saúde podem ser instrumentos de poder e controle dos corpos, pois os discursos dos profissionais são passíveis de controlar a existência das pessoas, de modo a prevenir o desgaste do corpo biológico. Para isto, a pessoa deve ter governo sobre si, controlar seus hábitos, suas práticas e seus comportamentos, porque estes envolvem não só sua vida, mas as de toda a população. Se há muitos indivíduos adoecendo, isto é sinal de que o Estado não está cuidando das pessoas e nem conseguindo fazer com que elas cuidem de si mesmas1212 Sousa C, Baracuhy R. Biopolítica, biopoder e cuidado de si na campanha antitabagista das embalagens de cigarro. Ilha Desterro 2015; 68(3):131-146..
Mediante uma noção foucaultiana de biopoder, percebe-se que o discurso científico exerce domínio e controle sobre as pessoas, pois, através dele, estas são examinadas e classificadas, tendo suas verdades estabelecidas por outros sujeitos1313 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1989.,1414 Moreira J, Santos HR, Teixeira RF, et al. Educação popular em saúde: a educação libertadora mediando a promoção da saúde e o empoderamento. Contrapontos 2009; 7(3):507-521.. Através desse discurso, as pessoas passam a ser culpabilizadas e responsabilizadas por sua situação de saúde, que, na maioria das vezes, é de cunho social, e está fora de sua governabilidade. Desse modo, ‘criou-se’ uma educação em saúde autoritária, através da qual os técnicos e profissionais transmitem seus saberes biomédicos e reducionistas, por meio de imposições verticais sobre o que consideram sadio, assim moldando os comportamentos através de normas para estilos de vida ativos e saudáveis55 Bagrichevsky M, Castiel LD, Vasconcellos-Silva PR, et al. Discursos sobre comportamento de risco à saúde e a moralização da vida cotidiana. Ciênc. Saúde Colet. 2010; 15(supl1): S1699-S1708.,1414 Moreira J, Santos HR, Teixeira RF, et al. Educação popular em saúde: a educação libertadora mediando a promoção da saúde e o empoderamento. Contrapontos 2009; 7(3):507-521.,1515 Carvalho YM, Edison JM. A survey of body practices and primary health care in a district of São Paulo, Brazil. Motriz: rev. educ. fis. 2015; 21(1):75-83..
Com base nisso, o objetivo do presente trabalho foi de analisar como as ações relacionadas às PC na APS podem ser dispositivos de controle dos corpos, considerando os conceitos de biopoder e biopolítica de Michel Foucault.
Percurso metodológico
Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido com profissionais que compõem as quatro equipes de Saúde da Família (eSF) e os profissionais da equipe de Nasf-AB de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do município de Itajaí (SC). Ao todo, 38 profissionais de saúde atuantes na APS participaram da pesquisa: 27 compunham as 4 equipes de eSF da UBS - 4 médicos, 4 técnicas de enfermagem, 17 Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) e 2 enfermeiros (1 homem e 1 mulher). Ainda, participaram 11 profissionais que compunham a equipe de Nasf-AB prestadora de apoio para as 4 eSF, sendo 2 fonoaudiólogos (1 homem e 1 mulher), 3 psicólogas, 2 fisioterapeutas, 1 farmacêutica, 1 nutricionista (mulher), 1 profissional de educação física e 1 terapeuta ocupacional (mulher).
A totalidade dos profissionais da APS foi incluída porque eles entenderam que, com uma maior ou menor atuação, todos acabam lidando com as PC, seja através de aconselhamentos, orientações ou prescrições, já que esta é uma modalidade de prevenção e promoção da saúde bastante utilizada no campo da saúde pública, especialmente na APS.
Foram realizados cinco Grupos Focais (GF): quatro com as equipes de eSF e um com a equipe de Nasf-AB que lhe presta apoio matricial, abarcando, assim, todos os atores que fazem parte da UBS em questão.
O GF foi escolhido por se tratar de um método utilizado para o entendimento de como se formam diferentes percepções e atitudes sobre um fato, uma prática, um produto ou serviço. Pode ser considerado uma espécie de entrevista de grupo, e seu intuito é apoiar a interação dos participantes, a fim de colher dados. Uma das maiores vantagens do GF é se basear na tendência humana de formar opiniões e atitudes na interação com outros indivíduos, diferentemente do que acontece nas entrevistas e nos questionários individuais1616 Carlini-Cotrim B. Potencialidades da técnica qualitativa grupo focal em investigações sobre abuso de substâncias. Rev. Saúde Pública. 1996; 30(3):285-293..
Os grupos foram norteados por um roteiro de debate dividido em duas partes: a primeira, envolvendo questões relacionadas ao perfil dos participantes; e a segunda, promovendo uma discussão coletiva quanto à percepção dos participantes em relação às concepções de PC, e à maneira como eram utilizadas na APS. As intervenções foram registradas por meio de gravador digital e transcritas na íntegra, com média de duração de 45 minutos cada.
Para a apreciação dos dados transcritos, foi utilizado o método da Análise Temática1717 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco; 2010.. Conforme apresentado por Minayo1717 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco; 2010. , ela compreende três etapas: 1ª) pré-análise mediante a escolha dos documentos que serão analisados; retomada das hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa, podendo reformulá-las, confrontando-as com o material coletado e na elaboração de indicadores que possam orientar a interpretação final dos dados; 2ª) exploração do material, quando o investigador busca categorias que configurem expressões ou palavras com significados relativos ao conteúdo de uma fala - esta categorização consiste em um processo de redução do texto às palavras e expressões significativas; 3ª) tratamento e interpretação dos resultados obtidos.
Durante o percurso da análise, as seguintes etapas foram concluídas: leituras flutuantes das fontes de pesquisa (conjunto de gravações/transcrições dos GF); identificação de núcleos temáticos; discussão dos temas encontrados que apresentavam o referencial teórico trabalhado anteriormente; e estabelecimento de conclusões com base nos resultados do estudo.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (parecer 3.230.229).
Resultados e discussão
Concepções de práticas corporais levantadas pelos profissionais da Atenção Primária à Saúde
O debate referente às diferenças e tensões sobre as noções de atividades físicas e PC tem ocupado espaço relevante nas produções acerca desses termos no campo da saúde, nos últimos anos11 Gonzales FJ. Práticas corporais e o Sistema Único de Saúde: desafios para a intervenção profissional. In: Gomes IM, Fraga AB, Carvalho YM. Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação. Porto Alegre: Rede Unida, 2015, p. 135-162.
2 Carvalho FFB, Nogueira JAD. Práticas Corporais e atividades físicas na perspectiva da Promoção da Saúde na Atenção Básica. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1829-1838.-33 Carvalho YM. Promoção da Saúde, práticas corporais e atenção básica. Revista Saúde Família 2006; 7(2):33-45.. Tais apontamentos expõem, sobretudo, a atribuição de sentidos possíveis em torno dessas concepções, destacando um caráter mais prescritivo e biologicista para as atividades físicas, e outro, com maior valorização cultural, que advoga pela autonomia dos usuários, vinculado às PC. Estes discursos, na medida em que conformam redes de saber-poder nas quais profissionais se valem para atuar, medeiam as propostas e os registros das entrevistas aqui realizadas, como se poderá perceber nos trechos selecionados a seguir.
Entre as principais concepções levantadas no GF dos profissionais do Nasf-AB, as PC foram relacionadas, em grande parte, ao movimento humano, atreladas ao exercício físico sistemático, de maneira prescritiva, terapêutica, para prevenção de doenças e promoção da saúde, tendo sido levantada também a possibilidade da criação de vínculos por meio das práticas:
Práticas corporais é toda e qualquer manifestação do movimento humano, ou seja, dança, ou jogo, uma luta, o exercício físico, a caminhada, a corrida, toda ação humana que gera uma cultura corporal. (GF Nasf-AB).
É importante salientar que a promoção da saúde levantada pelos profissionais foi relacionada à prevenção de doenças, ainda com foco no controle das DCNT.
Além de estratégias terapêuticas e de vínculo, também vejo como estratégia de prevenção de agravos e de promoção de saúde, para melhorar a qualidade de vida das pessoas, tanto coletivamente quanto individualmente. (GF Nasf-AB).
Assim como no GF do Nasf-AB, os grupos da eSF também apontaram as PC como relacionadas ao movimento humano em geral, sendo entendidas como atividade física e exercício físico. Deste modo, fica claro que o conceito de PC se dá de forma mais restrita no âmbito teórico, sendo que, no campo da vida prática, os profissionais, de maneira geral, não diferenciam os conceitos de exercício físico, atividade física e PC, utilizando-os como sinônimos e encarando todas as formas de movimentos corporais dentro destas macrocategorias. Poucas vezes foram mencionadas as PC sob a perspectiva sugerida por Carvalho33 Carvalho YM. Promoção da Saúde, práticas corporais e atenção básica. Revista Saúde Família 2006; 7(2):33-45. , mencionada anteriormente neste trabalho, principalmente entre os profissionais da eSF. Esta análise demonstra que, apesar de existir uma diferenciação entre os termos, inclusive nos documentos oficiais (como, por exemplo, na PNPS), percebe-se que tal diferenciação ocorre com predominância no campo ortográfico.
Me lembra atividade física, movimento, algo como sinônimo de atividade física; qualquer coisa que você vá exercitar no seu corpo; a movimentação do corpo, os exercícios laborais, tudo aquilo que envolve algum tipo de movimento. (GF eSF 04).
Nesse sentido, cabe destacar que, para os profissionais investigados, embora a distinção entre os termos e as concepções possa ocorrer mais no plano teórico do que nos sentidos atribuídos às PC realizadas de forma empírica, isto não significa, necessariamente, que, para os usuários, tais ações não tenham diferentes benefícios e efeitos, incluindo o de autonomia, mesmo diante de atividades prescritivas de cunho biologicista. Tais registros indicam a necessidade da abordagem de pesquisas sobre essa temática do ponto de vista dos usuários, para além dos profissionais envolvidos, assim como da ampliação das pesquisas desenvolvidas em âmbito acadêmico.
Também foram mencionadas as práticas com o intuito de integrar, de oportunizar vivências de novas culturas e facilitar mudanças de hábitos. Mesmo em uma perspectiva mais pontual, tais aspectos retratam uma compreensão das PC aproximada de uma concepção ampliada de saúde, considerando as diversas potencialidades destas ferramentas, pois, os benefícios das PC em uma perspectiva biológica e individual, com um viés de tratamento e prevenção das diversas disfunções do corpo biológico, estão mais do que consolidados. No entanto, outras dimensões que consideram as potencialidades biopsicossociais também foram consideradas.
Nesse contexto, fica perceptível que, apesar de os profissionais associarem outros benefícios oriundos das PC, seu maior intuito ainda é voltado para os benefícios atrelados à melhoria da condição física, e os demais benefícios acabam ficando em segundo plano. Mas a maioria das demandas que se utilizam das PC ainda parte de uma escuta técnica e voltada para o corpo biológico.
Entendo essas práticas como uma possibilidade para adquirir hábitos saudáveis, atrelados a uma boa alimentação, qualidade de sono; auxilia para pessoas que precisam modificar hábitos prejudiciais, como parar de fumar, ajuda para fazer amizades. Então, essas práticas, além de se exercitar, podem promover outros benefícios. (GF eSF 02).
A partir das concepções elaboradas, tanto nos GF das eSF quanto nas do Nasf-AB, percebe-se uma concepção das PC predominantemente baseada no modelo biomédico, atrelando-as ao comportamento, estilo de vida e movimento geral, com finalidades voltadas à prevenção e/ou tratamento de doenças. Ceccim et al.1818 Ceccim RB, Bilibio LF. Singularidades da educação física na saúde: desafios à educação de seus profissionais e ao matriciamento interprofissional. In: Fraga AB, Wachs F, organizadores. Educação física e saúde coletiva: políticas de formação e perspectivas de intervenção. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2007, p. 47- 62. apontam que os profissionais que aplicam as PC pautadas neste modelo realizam um trabalho fundamentalmente técnico e com pouco espaço para escuta; com foco na dimensão orgânica, buscando prevenir doenças, aumentar aptidão, ou a prescrição do exercício como medicamento. Isto restringe as potencialidades das PC, que, para além de benefícios biológicos, podem trabalhar na efetivação de direitos, de cidadania, e na produção da autonomia de sujeitos e coletividades, quando da tomada de decisões sobre suas vidas e sobre sua saúde.
Nessa lógica, não se trata de orientar que as pessoas se movimentem mais, ou que aumentem seu gasto energético, mas que elas tenham autonomia para acessar e lutar por seus direitos - como o lazer, por exemplo -, bem como por um maior envolvimento nos espaços de construções coletivas, para melhoria das condições de vida e saúde11 Gonzales FJ. Práticas corporais e o Sistema Único de Saúde: desafios para a intervenção profissional. In: Gomes IM, Fraga AB, Carvalho YM. Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação. Porto Alegre: Rede Unida, 2015, p. 135-162..
Nesse sentido, se mostra fundamental a atuação a partir de um cuidado integral, conciliando as ações que tenham benefícios na saúde individual das pessoas, a partir de um viés biológico, aplicando os conhecimentos e técnicas de ordem fisiológica, mas que estas ações também considerem aspectos da promoção da saúde e se alinhem aos princípios do SUS e aos preceitos da saúde coletiva1919 Oliveira Junior JB, Wachholz LB, Manske GS, et al. Promoção da saúde através da educação popular e práticas corporais: potencializando o cuidado e fortalecendo os vínculos sociais. Motrivivência 2020; 32(62):01-15..
Práticas corporais como dispositivo do biopoder e da biopolítica
Ao se referirem sobre as potencialidades e o modo como utilizam as PC enquanto ferramentas na APS, os profissionais trazem um discurso carregado por uma concepção biológica, pontuando sua utilização principalmente para a prevenção, o tratamento ou o controle das DCNT.
[...] as atividades corporais aparecessem como aliado no tratamento e acompanhamento de alguns pacientes, principalmente hipertensos, diabéticos, obesos, pacientes com dores crônicas, pacientes que precisam melhorar a qualidade de vida. (GF eSF 01).
Nesse sentido, as PC passam a ser encaradas como dispositivos de medicalização social, pois surgem como estratégias de controle dos corpos, sendo utilizadas como intervenções para o combate aos comportamentos considerados indesejados, controlando e medicalizando as condutas e atitudes das pessoas.
Assim como nos grupos das eSF, os profissionais do Nasf-AB associam as potencialidades e o uso das PC, principalmente, nas DCNT, a fim de modificar os comportamentos dos indivíduos e das famílias, favorecendo a inserção de hábitos ‘saudáveis’, bem como associam as PC a técnicas terapêuticas voltadas à reabilitação.
As equipes, na verdade, pelo que eu vejo nas solicitações, é mais quando tem alguma doença crônica, para prevenção, diabetes, obesidade. É nesse momento que elas lembram dessa parte. Aquele velhinho que não sai de casa... E não sei se eles associam isso como uma atividade física, ou como uma prática corporal, mas associam isso simplesmente como: ‘Vai dar uma voltinha para ficar melhor’. Mas, geralmente, pelo que eu vejo, é esse público específico. Aí chamam o PEF [Profissional de Educação Física] porque é obeso, ou tem diabetes, hipertensão, ou porque quer emagrecer. É mais nesse sentido que eu vejo. (GF Nasf-AB).
Nesse caso, as PC se mostram como técnicas de controle sobre a vida das pessoas, com uma função normalizadora e o efeito de regulamentar a vida da população. Para Foucault77 Foucault M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1999. , a sociedade atual está vivendo uma biopolítica evidenciada pela estatização do biológico, que se preocupa com a vigilância, o controle, as ordenações, intervenções que visam ao bem-estar da população. Desta forma, as doenças devem ser tratadas e prevenidas, pois diminuem a força e o tempo de trabalho, impactando na economia. Com a biopolítica, as intervenções biomédicas passam a medicalizar as pessoas e a discipliná-las, através de campanhas de aprendizado, com o intuito de uma higiene pública. A partir desta discussão, considera-se que, dependendo da maneira como as PC são trabalhadas na APS, elas podem ser inseridas no quadro de uma estratégia biopolítica, promovendo o controle da vida das pessoas, com o intuito de diminuir os riscos de ocorrências de doenças, o que torna a inatividade física e o sedentarismo fatores de risco.
Nesse sentido, as PC fazem parte dessa estratégia de poder, que atua diretamente no corpo dos indivíduos. Foucault1313 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1989.(82) aponta que:
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica.
Além disso, nos GF das eSF, foi mencionada a utilização das PC relacionadas à saúde mental, e muitos profissionais relataram a necessidade da utilização destas como ferramentas para a saúde do trabalhador.
A saúde mental dos pacientes melhora bastante, e isso está comprovado: que, para os pacientes com saúde mental, você inserir a atividade física, você tem resultados bem positivos. Começa a socializar o usuário, começa a inserir ele nessas atividades. (GF eSF 04).
Acho que isso está fazendo falta para a gente enquanto funcionário também, porque antes, tínhamos esse espaço, onde a gente relaxava, se alongava, e isso fazia muito bem, isso ajudava muito no estresse do dia a dia. Às vezes, você estava bem estressada, depois faz um relaxamento e já melhorava. O dia e o trabalho rendem mais, as coisas funcionam melhor, porque está todo mundo assim, na gota. (GF eSF 03).
A preocupação demonstrada pelos profissionais, com o cuidado de si como profissionais de saúde, através de algumas práticas mencionadas, parte de um discurso interiorizado, de vigilância sobre as suas práticas sociais relacionadas à própria saúde, com o intuito de obterem mais rendimento no trabalho. Desse modo, assim como a biopolítica, o biopoder também estatizou o biológico; a morte deve ser evitada, através de cuidados com o corpo, que devem ser tomados para resistir e negá-la, ou à sua aproximação77 Foucault M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1999.. Esses discursos de vigilância passam a controlar a existência das pessoas, e elas subjetivam que devem governar a si mesmas, controlando suas práticas e seus hábitos para se distanciarem do adoecimento.
Para além de parâmetros biológicos, os profissionais da eSF relataram as PC como dispositivos de disciplina sobre o corpo, mas, dessa vez, deslocados do controle voltado para o corpo biológico, de fato, partindo para um controle do corpo enquanto ser político e social, mencionando os jovens e adolescentes como públicos-alvo, controlando, assim, suas atitudes, suas condutas, ensinando valores impostos socialmente, com um objetivo final de corpos economicamente rentáveis e normatizados.
Se quiser disponibilizar alguma coisa no período da tarde, o que tem de molecada à toa... Quanto que custa para contratar dois professores, por exemplo, de ‘taekendo’ e ‘konf-fu’, para colocar essa molecada a começar a ter disciplina, começar a ter respeito, e, ao mesmo tempo, expor não só à prática de um esporte, mas também a uma cultura... Tem que fazer uma prática com algo de cultura oriental, porque as pessoas são movidas muito por curiosidade. Você põe algo diferente, começa expor a filosofia, a comida deles diferente. Pelo menos, ganha um gás maior de pessoas, do que com algo que já é mais batido. (GF eSF 03).
[...] e também penso que o esporte pode ser utilizado com os jovens, para que, ao invés de eles estarem na praça fazendo o que não deve fazer, possam estar praticando uma atividade física. (GF eSF 04).
Entender os esportes como dispositivos para ‘educar’ os jovens possibilita uma concepção ainda mais voltada para a disciplinarização dos corpos. Soares2020 Soares CL. Pedagogias do corpo: higiene, ginásticas, esporte. In: Rago M, Veiga Neto, A, organizadores. Belo Horizonte: Autêntica; 2006. p. 75-85. aponta que os esportes foram e continuam sendo modos eficazes encontrados pela biopolítica para executar a produção do corpo-espécie, além de fabricarem seres generificados, através das normas sexistas, sempre presentes nas práticas esportivas. Esse controle sobre a vida também se mostra nas relações de gênero, pois o esporte tornou-se algo ainda mais separador, sexista e difusor da heteronormatividade. Essas afirmações podem ser comprovadas em diversos outros trabalhos, nos quais seus autores apontam que os esportes configuram um território masculino por excelência2121 Anderson E. In the game: gay athletes and the cult of masculinity. Albany: State University of New York; 2005.
22 Rosa RBC. Homofobia e esporte na produção da educação física brasileira (1979-2007). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2008. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Educação Física) - Faculdade de Educação Física.-2323 Moraes e Silva M. Escola e Educação Física: Maquinaria disciplinar, Biopolítica e generificante. Rev. Bras. Ciênc. Esporte 2012; 34(1):343-357..
Outro ponto levantado, tanto no GF do Nasf-AB quanto nos GF das eSF, foi a centralização das PC em profissionais que as tinham como técnicas, mais fortemente atribuídas aos profissionais de educação física, e, algumas vezes, relacionadas aos fisioterapeutas. Pode-se observar que, mesmo as PC sendo cotidianamente trabalhadas por toda a APS, os membros das equipes ainda carregam uma concepção bastante técnica e centrada no profissional, desconsiderando essa proposta de trabalho na APS, que visa a um trabalho pautado no compartilhamento, na troca e na articulação entre os profissionais do Nasf-AB e eSF2323 Moraes e Silva M. Escola e Educação Física: Maquinaria disciplinar, Biopolítica e generificante. Rev. Bras. Ciênc. Esporte 2012; 34(1):343-357..
Para o profissional de educação física, até culturalmente, não tem como desvincular da prática corporal. E até como uma forma de concretizar a política pública de promoção da saúde, que incentiva e, na verdade, inclui as práticas corporais/atividades físicas como uma estratégia de enfrentamento às doenças crônicas não transmissíveis. Então, está muito interligado na prática profissional e, principalmente, na formação de grupos, ou na prática em grupos, que seria, em termo de proporção, em torno de 90% da participação em grupos, com atividades lúdicas ou exercícios sistemáticos. E aí, 10% em consultas, em visitas, em orientações e matriciamento, que é muito pouco. (GF Nasf-AB).
É importante pensar que essas relações de poder exercidas pelos profissionais de saúde não se demonstram de maneira intencional ou calculada. Os profissionais passam a utilizar as variadas ferramentas de saúde com a intenção de promover saúde a determinadas pessoas e comunidades, assim como foram ensinados, mas acabam reproduzindo uma relação de poder encontrada em todas as instituições disciplinares. Foucault aponta que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas, e, mesmo sendo inteligíveis, elas não resultam da escolha ou decisão de um sujeito ou uma equipe¹³.
Desse modo, a formação dos profissionais de saúde é um ponto crucial, ainda bem distante do ideal para uma prática voltada ao cuidado integral, sendo pautada na doença, na clínica tradicional e no especialista. Desta forma, ainda se encontra nos serviços de saúde uma especialização dos cuidados, de caráter curativo e imediatista, centrado na figura do médico, ocasionando um distanciamento do profissional e do paciente. Cabe destacar que tais relações não são totalitárias, e é no espaço dos encontros que se estabelece, entre os sujeitos, que se pode pensar e agir de maneiras distintas, muitas vezes, inclusive, isto se traduzindo na postura de um usuário requerer para si justamente a posição de sujeito que envolve ser direcionado. Talvez, aqui, resida uma forma de autonomia regulada.
Silva et al.2525 Silva PA, Silva GML, Rodrigues JD, et al. Atuação em equipes multiprofissionais de saúde: uma revisão sistemática. ConScientia e Saúde. 2013; 12(1):153-160. apontam, através de uma revisão sistemática, que a formação dos profissionais da saúde ainda é focada na atenção curativo-individual, e desconsidera os aspectos socioculturais e o contexto das famílias que atendem. Os autores ainda apontam que os acadêmicos de saúde têm uma visão de que as pessoas são leigas, e que elas precisam ser curadas, prevalecendo na APS uma hierarquia de saberes.
Deste modo, a formação dos futuros profissionais da saúde, bem como a educação permanente e a formação continuada dos profissionais que já estão inseridos nos serviços de saúde se mostram como imprescindíveis para que seja possível pensar uma maneira ampliada de fazer saúde, tendo profissionais que considerem os aspectos sociais e humanos, ampliando, de fato, as possibilidades de intervenção, adequando-as às realidades das pessoas e comunidades.
Práticas corporais como ferramentas para a consolidação da APS
Como analisado nos tópicos anteriores, as ações relacionadas às PC na APS apareceram nos GF realizados com predominância do controle do corpo biológico, servindo como dispositivo do biopoder e da biopolítica, quando se relacionam com os conceitos desenvolvidos por Michel Foucault.
Entretanto, algumas falas no GF dos profissionais do Nasf-AB foram de encontro ao conceito de PC desenvolvido por Carvalho, já citado anteriormente, tornando esta ferramenta condizente com os princípios do SUS e da APS, demonstrando que tais profissionais percebem as PC levando em consideração a determinação social no processo saúde-doença das pessoas, assim ampliando as possibilidades dessas práticas na APS.
Acho que outra potencialidade que eu vejo nas práticas corporais é até a questão da formação política nesse sentido de que é meu e o que eu posso fazer a respeito disso, e de que forma me relacionar com esse território e com as pessoas que estão aqui. Então, eu vejo uma potencialidade também na formação política, no controle social, tudo isso. (GF Nasf-AB).
E até da possibilidade de vínculos que são construídos a partir disso, porque muitas dessas práticas são feitas coletivamente, e elas ganham outro sentido quando é feito coletivamente também. Então, o vínculo se estabelece nesses movimentos, e dão outro sentindo para a pessoa na sua saúde. (GF Nasf-AB).
A valorização cultural das pessoas e do território foi um ponto bastante abordado no GF do Nasf-AB, onde os profissionais apontaram que, por meio desses aspectos, se pode estabelecer uma problematização da realidade dos indivíduos, além de uma construção compartilhada dos conhecimentos, assim demonstrando uma valorização dos aspectos sociais no processo de saúde e doença das pessoas.
A valorização da cultura daquela população, daquele território, a integração dessas pessoas na comunidade, com a Unidade Básica de Saúde e com outros serviços, como a cidade em si. Fazer uma clínica também coletiva, diferente, com várias técnicas, corporais ou não; várias dinâmicas que considerem a importância da territorialização e de toda a questão social, psicossocial que existe, e que necessita, na socialização, na interação da comunidade, no protagonismo, a autonomia, enfim, da clínica, da saúde. Precisa, enfim.... Não é só isso aqui. (GF Nasf-AB).
A fala acima corrobora os achados de Beccalli et al.2626 Becalli MB, Gomes IM. Práticas corporais/atividade física e saúde: da mobilização do sujeito ao movimento da constituição de espaços. In: Wachs F, Almeida UR, Brandão FFF. Educação física e saúde coletiva: cenários, experiências e artefatos culturais. Porto Alegre: Rede Unida; 2016, p. 199-222. , ao afirmar que as PC, no campo da Saúde Coletiva, têm um papel amplo, não se reduzindo ao tratamento de doenças, podendo fazer com que as pessoas se apropriem dos espaços sociais presentes no território, como praças, parques e calçadas, entre outros. E que esta apropriação se dê para além do espaço geográfico propriamente dito, como um espaço de produção de sentidos e subjetividades, sendo um espaço de promoção de saúde.
É importante ressaltar que tais apontamentos não retiram das PC o seu caráter também biológico e, consequentemente, seus benefícios físico-corpóreos. Pelo contrário, ressalta-se, também, que as PC possuem elementos discursivos e empíricos relacionados a concepções biologicistas e os efeitos que destas decorrem. Porém, as PC não se apresentam de forma restritiva a uma única concepção, sendo, portanto, mais abrangentes. Assim, quando as PC se relacionam a noções culturais e biológicas - incluindo o entendimento de que a própria biologia é também cultural -, tal concepção se aproxima mais da noção de saúde ampliada, e pode promover, nessas relações, reflexões, práticas e sentidos atrelados ao desenvolvimento de autonomia, por exemplo.
Nesse contexto, se mostra a importância dos profissionais do Nasf-AB, no sentido de consolidar a APS, não só ampliando ações e serviços, mas também qualificando o trabalho, através de um olhar ampliado em saúde, e de um suporte às eSF pautado nos princípios da APS, levando em conta o território, o trabalho em equipe, a ação interdisciplinar e intersetorial, bem como se preocupando com a autonomia individual e coletiva da população.
Nesse sentido, como levantado por Foucault¹³, em seu termo amplo, as PC podem ser encaradas como formas de resistência ao poder, tensionando os modos de vida, inflamando certos hábitos e comportamentos que não são tão modificáveis quanto o sugerido pelo modelo comportamental, tensionando também as diversas maneiras de vida, desigualdades e tipos de comportamento.
Considerações finais
Este trabalho relacionou a utilização das PC na APS com o conceito de biopoder e biopolítica, na perspectiva de Michel Foucault, problematizando como tais ferramentas vêm sendo utilizadas, na maioria das vezes, em desacordo com os princípios do SUS e da própria APS.
Através dos achados deste trabalho, foi possível verificar que as ações que envolvem as PC ainda são realizadas predominantemente voltadas para o biológico, com o intuito de controle e prevenção das doenças, assim regulando a vida das pessoas, normatizando seus comportamentos, seus hábitos e suas práticas de vida.
Mesmo se tratando de uma PC, ela ainda é medicalizada por conta da formação dos profissionais, pautada na fragmentação dos problemas de saúde das pessoas, com pouca formação interdisciplinar e com foco mais especializado, dificultando um olhar integral e voltado para o trabalho em equipe.
Apesar da grande predominância das PC pautadas em uma matriz biomédica, em todos os GF, os profissionais do Nasf-AB mencionaram algumas perspectivas pautadas em uma concepção de saúde mais ampliada, se aproximando do conceito de PC utilizado neste trabalho, demonstrando a importância desses profissionais no âmbito da APS, com o intuito de consolidá-la e ampliar as possibilidades das eSF.
É importante salientar que não se pode desconsiderar a importância da dimensão biológica na saúde das famílias e comunidades, pois os parâmetros fisiológicos são fundamentais e devem fazem parte do trabalho em saúde na APS. Porém, restringir-se a esses parâmetros, utilizando as PC de forma prescritiva e reducionista, é tornar tais ferramentas dispositivos do biopoder, controlando os indivíduos e os culpabilizando por seus processos de saúde-doença. Além disso, as PC se mostraram como técnicas de controle sobre a vida das pessoas, com uma função normalizadora e um efeito de regulamentar a vida da população. Vale ressaltar que existe uma demanda por maiores investigações sobre o que foge e resiste à perspectiva reducionista, especialmente em relação a como as PC, na APS, podem vir a contribuir para construir/consolidar autonomias, tal como foi identificado em algumas falas dos profissionais de saúde.
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Suporte financeiro: não houve
Referências
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26Becalli MB, Gomes IM. Práticas corporais/atividade física e saúde: da mobilização do sujeito ao movimento da constituição de espaços. In: Wachs F, Almeida UR, Brandão FFF. Educação física e saúde coletiva: cenários, experiências e artefatos culturais. Porto Alegre: Rede Unida; 2016, p. 199-222.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Maio 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2021
Histórico
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Recebido
05 Mar 2020 -
Aceito
19 Out 2020