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Instituições sociais: um diálogo entre sociologia de Chicago e filosofia pragmatista* * Tradução do francês de Diogo Corrêa e Luana Almeida Martins, a quem o autor agradece muito a ajuda.

Social institutions: a dialogue between sociology Chicago and pragmatist philosophy

Resumo

Este artigo volta às propostas teóricas de Robert E. Park e William I. Thomas sobre o processo de desorganização/reorganização social e a forma como isso foi tratado em algumas das dissertações de sociologia de Chicago na década de 1920. As instituições sociais eram consideradas organismos vivos que nascem, crescem e morrem e que existem através de suas transações com seus ambientes e através da gênese dessas transações. Os processos básicos desta ecologia de instituições sociais, nas ordens biótica e moral, foram apreendidos com as categorias de competição e seleção, isolamento, invasão e sucessão, cooperação, parasitismo e simbiose, conflito, acomodação e assimilação. As descrições e análises estatísticas e cartográficas tornaram possível dar conta de processos ecológicos de diferenciação funcional e territorial, étnica e racial, distribuição e segregação. Esta primeira etapa, nos anos 1920-1930, ajuda a entender como W. F. Whyte, H. Blumer e E. C. Hughes estudaram o processo de institucionalização de hospitais, empresas, sindicatos, igrejas e organizações de movimentos sociais nos anos 1940-1960. Essa perspectiva ecológica clássica é enriquecida aqui através de seu confronto com a filosofia pragmatista - da qual Park e Thomas eram próximos. As instituições sociais, além de sua base ecológica, são tomadas como campos experimentais e matrizes culturais, que crescem em torno de tentativas de definir e dominar os problemas sociais. As noções tomadas emprestadas a Dewey de razão pública, inteligência coletiva e aprendizagem coletiva pelas comunidades de debatedores, investigadores e experimentadores, entram em jogo. As instituições sociais são acumuladores, condensadores e geradores de experiência, know-how e conhecimento: elas empoderam ou desempoderam seus membros ou beneficiários. Tal conjunto de questões nos permite abordar numa nova perspectiva algumas questões de sociologia das organizações.

Palavras-chave:
Instituições sociais; Pragmatismo; Interacionismo; Escola de Sociologia de Chicago; Sociologia das organizações

Abstract

This paper goes back to Robert E. Park and William I. Thomas statements on the process of social disorganization /reorganization and the way this was dealt with in some of the Chicago sociology dissertations in the 1920s. Social institutions were considered to be living organisms which are born, grow and die and which exist through their transactions with their environments and through the genesis of these transactions. The basic processes of this ecology of social institutions, in the biotic and the moral orders, were grasped through the categories of competition and selection, isolation, invasion, and succession, cooperation, parasitism, and symbiosis, conflict, accommodation, and assimilation. The statistical and cartographical descriptions and analyses made it possible to account for ecological processes of functional and territorial, ethnic and racial differentiation, distribution and segregation. This first stage, in the 1920-30s, helps to understand how W. F. Whyte, H. Blumer, and E. C. Hughes studied the process of institutionalization of hospitals, firms, unions, churches, and social movement organizations in the 1940s-60s. This classical ecological perspective is enriched here through its confrontation with pragmatist philosophy - Park and Thomas were close to. Institutions, beyond their ecological grounding, are taken as experiential fields and cultural matrices, which grow up around attempts to define and master social problems. The Deweyan notions of public reason, collective intelligence, and collective learning by communities of debaters, investigators, and experimenters, come into play. Social institutions are accumulators, condensers and generators of experience, know-how and knowledge: they empower or disempower the people. Such a set of questions allows us to tackle in a fresh perspective some issues of sociology of organizations.

Keywords:
Social Institutions; Pragmatism; Interactionism; Chicago School of Sociology; Sociology of organizations

O ponto de partida deste artigo é o tipo de ecologia humana que foi inventado por Robert E. Park, Roderick McKenzie e Ernest W. Burgess, no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, na década de 1920. Park era próximo de William I. Thomas, que o convidou a vir a Chicago e foi o primeiro a analisar processos de organização e desorganização social. Ambos são considerados, dentre outros, inventores dos estudos de campo em sociologia (field studies) - especialmente estudos migratórios, raciais e urbanos, nos quais eles e seus alunos produziram inovações, passando de ensaios mais teóricos a estudos de casos empíricos. Ambos tinham fortes conexões com a filosofia pragmatista. Thomas era um amigo próximo de George Herbert Mead e John Dewey e desenvolveu sua concepção de organização e situação social a partir de seu contato com eles. Park frequentou os cursos de Dewey na Universidade de Michigan e de William James em Harvard, antes de se tornar colega de Mead em Chicago. Todos esses autores contribuíram para a fundação de uma perspectiva original sobre as “instituições sociais”, que pode ser encontrada nas teses de doutorado em sociologia dos anos 1920 e 1930. Eles desenvolveram uma visão de “instituições sociais” como processos de diferenciação e de integração funcional, processos que são dependentes dos ambientes em que operam e acontecem e que se recompõem constantemente por meio dos esforços de seus membros para resolver problemas práticos. Essa tradição permaneceu nos ensinamentos e escritos de Herbert Blumer e Everett C. Hughes e foi renovada de diferentes maneiras por seus alunos - Strauss, Becker, Gusfield, Freidson, Goffman... até o System of professions de Andrew Abbott (1988______. The system of professions: an essay on the division of expert labor. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 1988.), que se baseia neste legado. O texto a seguir propõe uma reconstrução, no sentido de Dewey (1920), de algumas hipóteses seminais dessa sociologia das instituições (Burns 1980BURNS L. R. The Chicago School and the study of organizational-environment relations. Journal of the History of the Behavioral Sciences, v. 16, p. 342-358. 1980.). Ele mistura essas hipóteses com os insights primeiramente desenvolvidos pela filosofia pragmatista - sobre experimentos sociais, inteligência coletiva, experiência criativa, razão pública, aprendizado evolutivo e empoderamento institucional (Ansell, 2011ANSELL, Christopher. Pragmatist democracy: evolutionary learning as public philosophy. Oxford, UK: Oxford University Press, 2011.). Essas hipóteses permearam a sociologia de Chicago - muitas vezes, involuntariamente. Elas apontam na direção de uma perspectiva ecológica e processual sobre organizações, bem diferentes das versões desenvolvidas pela sociologia das organizações a partir dos anos 1970.

História natural de organização e desorganização

Em primeiro lugar, as instituições são vistas como um momento em um processo de organização e desorganização (Cooley 1909COOLEY, Charles Horton. Social organization: a study of the larger mind (Caps. XXVIII-XXX). New York: Charles Scribner’s Sons, 1909.; Thomas & Znaniecki 1919-1920). Elas não são tomadas como estruturas, mas sobretudo como processos. A questão da historicidade é crucial no estudo das instituições, de acordo com Thomas ou Park. É preciso explorar a gênese de uma instituição, voltar aos primeiros instantes de sua fundação para entender quais funções desempenhou em seus primórdios, qual necessidade foi correspondida por ela, quais interesses se uniram por meio dela, e quais conflitos ela criou ou resolveu. Em qualquer comunidade, certas soluções compartilhadas são dadas aos problemas: atividades de codefinição, cooperação e comunicação geram respostas comuns a situações problemáticas e, depois, uma série de processos de invenção de hipóteses, experimento recorrente, difusão coletiva, ratificação mútua, às vezes validação política, formas habituais e formalizadas do processo da vida social (social life-process) crescem e se estabilizam. Elas são chamadas de “instituições sociais” (Dewey & Tufts, 1932DEWEY, John; TUFTS, James Hayden. Ethics. New York: Henry Holt, 1932., Parte III; Dewey, 1935; Mead, 1934MEAD, George Herbert. Mind, self, and society, from the standpoint of a social behavioris. Chicago, IL: University of Chicago, 1934.: 260-273). A sociologia de Chicago acrescentou mais um passo a esta concepção de institucionalização de “habitats” materiais, bem como de “hábitos” - atitudes, maneiras e convenções (Mead, 1934). Park e Burgess (1921) tinham o projeto de capturar os ciclos de vida institucionais e seus estágios típicos de crescimento e declínio. O método que propunham era o de estudar casos específicos, compará-los e tentar abstrair padrões mais gerais de desenvolvimento de um tipo de instituições - com a ambição de descobrir, a longo prazo, as leis universais da gênese das instituições.

Esse processo de institucionalização foi pensado, na esteira de Darwin e Spencer, como uma história natural das instituições. Este conceito de história natural, aplicado por Park (1923______. The natural history of the newspaper. American Journal of Sociology, v. 29, n. 3, p. 273-289, 1923.) à imprensa, por exemplo, ainda estava em uso na sociologia dos problemas sociais (Spector & Kitsuse, 1977SPECTOR, Malcolm; KITSUSE, John. Constructing social problems. Hawthorne, NY: Aldine de Gruyter, 1977.) dos anos 1970. Os cientistas sociais tentaram capturar fases estáveis da vida institucional em seu ambiente - hoje, falaríamos de fases homeoestáticas de um ecossistema - e reordená-las em sequências. Eles descreveram momentos de crise - os pontos de bifurcação nas carreiras das instituições (Hughes 1971______. Going concerns: the study of American institutions. In: RIESMAN, D.; BECKER, H. (Orgs). The sociological eye: selected papers on institutions & race, p. 52-64. Chicago, IL; New York: Aldine-Atherton, 1971.) - e tentaram entender quais eram os mecanismos, atores e fatores eficazes de mudança. O exemplo prototípico era a seita.

As seitas têm suas origens na agitação social (social unrest) a que dão uma direção e expressão em formas e práticas que são em grande parte determinadas pelas circunstâncias históricas; movimentos que a princípio eram impulsos incoerentes e aspirações emergentes gradualmente tomam forma; políticas públicas são definidas, doutrina e dogmas formulados; e eventualmente uma maquinaria administrativa é desenvolvida para efetivar políticas e propósitos (Park & Burgess 1921PARK, Robert Ezra; MILLER, Herbert Adolphus, (& THOMAS, W. I.). Old world traits transplanted, Cap. 6: “Immigrant institutions”. New York: Henry Holt, 1921.: 873; Park, 1927).

Qualquer seita começa como um movimento social - um “movimento de reforma e regeneração social”. Ela surge, muitas vezes, para protestar contra a injustiça ou para reformar os costumes, antes de passar por uma série de etapas de institucionalização.

Um movimento violento, confuso e desordenado, mas entusiástico e popular surge. O movimento toma forma; desenvolve liderança, organização; formula doutrinas e dogmas. Finalmente, ele é aceito, estabelecido, legalizado. O movimento morre, mas a instituição permanece (Park & Burgess 1921PARK, Robert Ezra; MILLER, Herbert Adolphus, (& THOMAS, W. I.). Old world traits transplanted, Cap. 6: “Immigrant institutions”. New York: Henry Holt, 1921., 873-874).

Por exemplo, um movimento religioso começará com o florescimento de comportamentos expressivos e o surgimento de profetas ou fanáticos; ele esfriará e passará por uma dinâmica de estabelecimento de rituais e líderes: o movimento se torna uma seita; finalmente, o ocaso do carisma e a despersonalização de cargos levam à substituição de funções legais e burocráticas pela autoridade pessoal: a seita vira instituição. A efervescência coletiva e a pungência dos primeiros dias se perdem - o movimento social se tornou uma instituição social (Hughes, 1942______. The study of institutions. Social Forces, v. 20, n. 3, p. 307-310, 1942.; 1962). Esse modelo simples será complexificado, mais tarde, pelos estudantes de Hughes nos anos 1950, quando analisarão a inovação profissional e organizacional como movimento social (Bucher & Strauss, 1961BUCHER, Rue; STRAUSS, Anselm. Professions in process. American Journal of Sociology, v. 66, n. 4, p. 325-334, 1961.; Strauss et al., 1964).

As instituições e o seu processo de crescimento e implementação

Muitas instituições - justiça, direito, ética - devem tanto romper com os usos e costumes quanto permanecer enraizadas neles. Elas atendem às necessidades e satisfazem os desejos, estabelecem caminhos e controlam hábitos. O livro Folkways (1906) de William G. Sumner foi nesse aspecto uma referência importante. Os Chicagoanos se basearam no esquema evolutivo proposto no livro, desde os usos e costumes, para os rituais e as convenções, e, por último, para formas institucionais. As instituições são consideradas, ao mesmo tempo, como processos de crescimento e implementação, rebentos naturais e iniciativas racionais, e isso em várias proporções. Elas mantêm um vínculo com a experiência coletiva das comunidades nas quais estão assentadas. Essas comunidades nunca deixam de enfrentar desafios e definir problemas, afirmar valores, lutar em torno de questões, segregar formas organizacionais e culturais - e isso não de forma diferente das formigas ou abelhas, ainda que com uma maior flexibilidade que a permitida pelos instintos - além de projetar propósitos que as instituições assumem (processo de seleção natural). Ao mesmo tempo, as instituições são projetadas com o propósito de cumprir funções específicas: elas são autônomas, têm seus próprios hábitos coletivos de fazer e pensar; estabelecem suas próprias agendas de assuntos e se baseiam em seus próprios padrões de solução de problemas, dependendo de sua percepção e valorização de dinâmicas de meios e fins (processo de seleção racional) (Ansell, 2011ANSELL, Christopher. Pragmatist democracy: evolutionary learning as public philosophy. Oxford, UK: Oxford University Press, 2011.).

Houve, em Chicago, um significado vago da palavra “institucionalização”, que se referia a qualquer processo de coletivização, organização, padronização e formalização de comportamento. O comportamento coletivo, de acordo com Park ou Blumer, pode levar à desorganização - pensemos em manias coletivas (crazes) e multidões enlouquecidas (crowds) - mas, em muitos casos, ele age como uma força motriz produtora de ordem social, incluindo instituições sociais. A maioria das instituições sociais começa como um movimento social. A política antiálcool de 1920-1933 e as leis e instituições de Proibição, por exemplo, foram o resultado das campanhas de mobilização da Women’s Christian Temperance Union ou da Anti-Saloon League (Gusfield, 1954GUSFIELD, Joseph R. Organizational change: a study of the Woman’s Christian Temperance Union. PhD Sociology, University of Chicago, 1954.). O que as pessoas estavam interessadas em Chicago era como essas mobilizações, fluidas no início, tornavam-se cada vez mais complexas e rígidas, formais e impessoais. Observe a contradição entre duas concepções de historicidade:

  1. de acordo com uma versão reta da história natural (Park & Burgess, 1921PARK, Robert Ezra; MILLER, Herbert Adolphus, (& THOMAS, W. I.). Old world traits transplanted, Cap. 6: “Immigrant institutions”. New York: Henry Holt, 1921.: 16ss), as instituições se desenvolvem de forma definida e previsível, de acordo com uma forma pré-determinada ou enteléquia, atualizando processos internos característicos, estágios e mecanismos;

  2. de acordo com a versão pragmatista, ao contrário, o processo institucional é imprevisível e indefinido, sua temporalidade é feita de eventos de emergência (Mead, 1932______. The philosophy of the present. London: The Open Court Company, 1932.), os atos intencionais que compõem esse surgimento envolvem um exercício da imaginação coletiva e acarretam consequências não antecipáveis.

Além desse significado vago, há um uso mais específico da palavra “instituição” para designar unidades institucionais que se pode identificar e que exibem unidade relativa, auto-organização e autorreflexão. Os dois melhores exemplos na sociologia de Chicago dos anos 1920 foram os estudos de Everett C. Hughes sobre o Chicago Real Estate Board (1928-1979) e de Ernest H. Shideler sobre cadeias de lojas em distritos comerciais (1927SHIDELER, Ernest Hugh. The chain store: a study of the ecological organization of a modern city. PhD Sociology and Anthropology, University of Chicago, 1927.). Esses dois casos mostram como uma instituição ou um complexo de organizações se auto-organiza por meio de processos de diferenciação e unificação, dissociação e integração que levam à maior complexidade. Isso implica que as instituições não são consideradas apenas como um conjunto inquebrável. O processo de institucionalização é um processo de diferenciação funcional, agregação e desagregação, com uma divisão de trabalho e especialização de tarefas entre os seus diferentes “órgãos”, que vai de mãos dadas com a produção de hierarquias, técnicas e políticas, de superordenação e subordinação. Naturalmente, tal diferenciação funcional gera áreas de coordenação e intermediação, nas quais a indeterminação favorece atividades de comércio, disputa, investigação, experimentação, tradução, discussão. E isso significa que tais atividades não são apenas processos naturais, mas envolvem um processo de convencionalização numa ordem social, moral e política. Podemos tomar de empréstimo a metáfora de Emirbayer e Mische (1998EMIRBAYER, Mustafa; MISCHE, Ann. What is agency? American Journal of Sociology, v. 103, n. 4, p. 962-1023, 1998.: 968): instituições são “fluxos de eventos aninhados em múltiplos níveis”. Instituições como objetos de estudo nada mais são do que “imagens congeladas” (Strauss, 1993STRAUSS, Anselm. Continual permutations of action. New York: Aldine de Gruyter, 1993.) extraídas de patchworks, arranjos e rizomas de processos interligados e histórias entrelaçadas. As instituições não deixam de acontecer, não como eventos naturais discretos tal como na ontologia temporal de Whitehead, mas como complexos de “emaranhados sobrepostos e interpenetrados de sistemas temporais” (Aviles, 2021AVILES N. B. Pragmatism and social worlds analysis as a lens for studying meso-level processes in STS. In: GROSS, N.; REED, I.; WINSHIP, C. (Orgs.). The New Pragmatist Sociology: Inquiry, Agency, and Democracy. New York: Columbia University Press, 2021 (forthcoming).). O presente institucional, “passing”, se estende “na memória e na história, na antecipação e na previsão” (Mead, 1932______. The philosophy of the present. London: The Open Court Company, 1932.: 23-24) e se desdobra, aqui e agora, como “momentos” em carreiras fluentes de pessoas e objetos (Becker & Strauss, 1956BECKER, Howard S.; STRAUSS, Anselm. Careers, personality, and adult socialization. American Journal of Sociology, v. 62, n. 3, p. 253-263, 1956.), arquiteturas complexas de “redes cooperativas” (por exemplo, em Becker (1981), de conexões entre fornecedores, artistas, vendedores, críticos e consumidores de arte), e “segmentos organizacionais” especializados que incorporam diferentes linhas do tempo (por exemplo, em Strauss et al. (1964), sobre instituições e ideologias psiquiátricas).

As instituições enraizadas em ambientes e permeadas com histórias

As instituições são organizações específicas que parecem atuar como unidades ecológicas dotadas de certa autonomia e individualidade que as tornam reconhecíveis - e até mesmo algum tipo de soberania e autoridade sobre seus membros (Dewey, 1891: 172). A metáfora de um órgão que cumpre uma função fisiológica no corpo social tem, no entanto, seus limites, e isso é ainda mais verdadeiro quando se desce ao nível dos indivíduos tratados como operadores do funcionamento do organismo. ... A divisão do trabalho em organizações humanas não pode ser reduzida à coordenação e à regulação de processos de vida, análoga à complementaridade de mecanismos instintivos observáveis em comunidades de formigas ou abelhas - um ponto que já estava claro para Park. Os sociólogos de Chicago, no entanto, mantiveram essa base biológica em sua ecologia humana - limitando-a à dimensão da competição numa ordem biótica, enquanto os mecanismos de regulação e transformação da competição em processos de conflito, assimilação e acomodação (Park e Burgess, 1921) eram tratados como específicos das sociedades humanas. É um erro tratar os sociólogos de Chicago como porta-vozes do darwinismo social: Park e Thomas e, antes deles, Mead se opuseram fortemente, teórica e politicamente, a qualquer tipo de tese sobre as causas biológicas da pobreza econômica da inferioridade racial.

Vamos agora seguir a intuição de tais autores e considerar essa proposta a partir de uma perspectiva pragmatista. As instituições são organismos assentados em ambientes: suas estruturas, hierarquias, estratégias, interesses e recursos não são examinados per se, mas como elementos processuais de uma teia de vida (web of life). Nela, algumas das formas vivas (living forms) encontram e criam seus nichos, desenvolvem relações de solidariedade e lutam com organizações da mesma espécie, e fora dela, com outras cadeias e complexos de formas vivas. Assim, as instituições são como plantas ou animais: nascem, crescem, florescem, murcham e morrem- caso falhem em “adaptar”-se. Elas respondem às dinâmicas de invasão e sucessão, competição e seleção, acomodação e dominação, cooperação e simbiose. Na esteira da geografia das plantas (Humboldt) e dos animais (Wallace), o trabalho estatístico e cartográfico da sociologia de Chicago teve como objetivo explicar o processo ecológico de diferenciação, distribuição e segregação funcional e territorial, étnica e racial. Os pontos nos mapas ou as figuras nos gráficos, que fizeram boa parte da ecologia das instituições sociais de Chicago - por exemplo, a cartografia histórica e a estatística da distribuição no espaço ao longo do tempo das lavanderias, tomadas como organizações empresariais (Siu, 1953SIU, Paul. The Chinese laundryman: a study in social isolation. PhD Sociology, University of Chicago, 1953.) - são indicações de tais processos de vida - por exemplo, de transformação da comunidade chinesa, de sua ocupação de nichos comerciais, de sua relação com outras comunidades, da situação migratória, econômica e demográfica dos chineses. O que as pessoas chamam de sociedades são tais arranjos ecológicos nos quais diferentes comunidades de vida se entrelaçam (Lee, 1948LEE, Rose Hum. The growth and decline of Chinese communities in the Rocky Mountain Region. PhD Sociology, University of Chicago, 1948.), coabitam e competem, crescem mais complexas, lutam entre si, mas não podem viver uma sem a outra. É em tais comunidades de vida que indivíduos e grupos encontram os rumos e os recursos para ganhar a vida e jogar os jogos sociais.

McKenzie (1968) estava ciente de que as instituições são coisas concretas, feitas de “tijolos e argamassa” - usando, então, uma metáfora de alvenaria - que atualizam propósitos e realizam funções, que associam complexos de objetos e clusters de pessoas. Follett (1924______. Creative experience. New York: Longman, 1924.) indicou que tais “arranjos” materiais não podem ser pensados nem como mera “agregação” de elementos materiais, nem como mero “ajuste” ou “adaptação” às “condições externas”. Eles requerem processos de “experiência criativa”, por meio dos quais se desenrolam processos de autogeração, autossustentação, autorrenovação, autoevolução e autorreflexão da vida (Follett, 1924). As instituições, tomadas como o fluxo de transações entre um organismo social e seus ambientes, não são “assemblages”, no sentido popularizado pela teoria do ator-rede, e não são mais sistemas de funções aos quais correspondem status e papéis específicos. A unidade das instituições, tomadas como comunidades de vida em seu ambiente vivo, é dada como processo de integração entre os diferentes elementos da experiência organizacional, parcialmente feita de “reação circular”, “relação recíproca” e “interações intermináveis” - que geram “sentimentos do grupo”, “vontade do grupo”, “pensamento do grupo” e “consciência do grupo” (Follett, 1918). Não há lugar aqui para desenvolver uma perspectiva tão poderosa - Chris Ansell (2011ANSELL, Christopher. Pragmatist democracy: evolutionary learning as public philosophy. Oxford, UK: Oxford University Press, 2011.) propôs algumas hipóteses nessa direção.

O que se pode apontar aqui, também, é o limite da metáfora ecológica: as instituições sociais são diferentes das comunidades vegetais ou animais. Elas são permeadas por todo tipo de “quadros” (frames) ou “roteiros” (scripts) - são feitas de um nexo de narrativas em curso (ongoing stories). A concepção de uma história natural é, portanto, superada: ela dá lugar a uma ecologia histórica e cultural. As instituições sociais experimentam a sua temporalidade enquanto se projetam em cenários a respeito do futuro e reconstroem a sua história passada (Mead, 1932______. The philosophy of the present. London: The Open Court Company, 1932.). Elas são representadas por líderes tais como porta-vozes no palco, líderes que emergem da dinâmica institucional de integração e se apresentam em nome da própria instituição que representam (Follett, 1918______. The new state: group organization, the solution of popular government. New York: Longmans, Green and Co., 1918.). Elas precisam de muita fala para descrever e avaliar as situações que seus membros devem controlar para lidar com seus fins, meios e valores, e para tornar possível o ato de fazer coisas em conjunto (doing things together). As atividades de elaboração de estratégias, coordenação de uns com os outros, análise de situações problemáticas, garantia de procedimentos e decisões, e relato de resultados incluem necessariamente momentos de “produção de sentido” (sense-making) - para falar como Weick (1995WEICK, Karl E. Sensemaking in organizations. London: Sage, 1995.). As instituições percebem a si mesmas por meio de diferentes narrativas. Uma delas é a ecológica. Outra narrativa comum encena as condições de guerra: de acordo com a metáfora da estratégia, instituições dão ordens para marchar, atacam concorrentes, recrutam membros, disciplinam as tropas, financiam campanhas, lançam operações, montam armadilhas, lutam por seu território, esmagam o inimigo e reclamam a vitória (Weick, 1979: 49). Essa metáfora da estratégia é com frequência combinada com uma metáfora econômica: as instituições checam a relação entre custos e benefícios, visam a um equilíbrio entre ganhos e perdas, poupam seus lucros, buscam o negócio mais lucrativo... e com uma metáfora da engenharia: as instituições são feitas de peças como motores e precisam ser tão racionais, isto é, tão eficazes quanto possível. Essas são várias histórias por meio das quais os membros das instituições organizam sua experiência coletiva. Depois de um processo de naturalização, essas tramas são tomadas como a própria realidade. Mas não se deve perder de vista essa dimensão crucial do processo de ordenação: o enredamento de experiências, ações e situações, projetos e identidades em narrativas (Ricœur, 1984RICŒUR, Paul. Temps et récit, v. 1. Paris: Les Éditions du Seuil, 1984.). O processo coletivo de coprodução de instituições sociais, em parte consciente, em parte inconsciente, envolve séries temporais de sequências de definição e resolução de problemas, que permitem a coemergência e a coconstituição de instituições e ambientes (o que Bentley e Dewey (1949) chamam de “transações”). Essa dinâmica ecológica, por intermédio da qual as instituições sociais emergem, atingem objetivos ou materializam valores, ideias e ideais, pode ser percebida por meio de diferentes lentes - tais como máquinas de guerra, motores bem afinados ou negócios altamente lucrativos, ou como organismos vivos em seus ambientes ecológicos.

As instituições como campos de experiência e matrizes culturais

As instituições têm uma função muito importante na formação dos “campos de experiência” (Mead, 1934MEAD, George Herbert. Mind, self, and society, from the standpoint of a social behavioris. Chicago, IL: University of Chicago, 1934.: 138 e 155) de seus membros, nos quais eles sentem, percebem, avaliam, escolhem, agem e falam: a gama de questões que eles podem pensar e discutir, a gama de atividades e interações nas quais podem se envolver, dependem do que é permitido por seus “campos de experiência”. Esses “campos de experiência” organizam nossa vida privada e comum em “habitats experienciais” (Mead, 1934: 90). Nas transações entre as instituições e seus ambientes são estabelecidos hábitos, procedimentos concretos e práticas convencionais. Os animais humanos moldam seus habitats (Mead, 1934: 349ss) e desenvolvem o que poderíamos chamar, seguindo Park (1936), de ecologias culturais, morais e políticas. Por um lado, eles fazem brotar os contextos de significados, símbolos e ferramentas, nos quais eles vivem: eles fazem os campos de experiência e os universos de discurso que os fazem - parafraseando a famosa frase de Marx sobre a história. Eles estão enredados nas múltiplas teias de significados que teceram, entrelaçadas umas nas outras, mas diferenciadas em casulos específicos; as configurações de suas experiências concretas são “inelutavelmente locais, indivisíveis de seus instrumentos e seus encaixes” (Geertz, 1983GEERTZ, Clifford. Local knowledge. New York: Basic Books, 1983.: 4). Por outro lado, animais humanos têm liberdade suficiente para tentar “controlar conscientemente” as forças ambientais às quais estão submetidos e para reorientá-las por meio da ação. A ecologia humana pode não ser completamente modelada pela ecologia vegetal e animal - “não suficientemente abrangente para incluir todos os elementos que logicamente se enquadram no âmbito da ecologia humana” (McKenzie, 1924: 287-88). A capacidade do ser humano em moldar seu próprio ambiente, sua “capacidade de contornar e adaptar o ambiente às [suas] necessidades”, de se mover e procurar novos habitats, escolher e modificar as condições de sua vida, é fundamental e vital.

Assim, as instituições não são o resultado de mera luta pela vida e sobrevivência dos mais aptos: elas são campos de experiência e matrizes culturais.

Ao falar de “cultura”, nos referimos aos entendimentos convencionais, manifestos em atos e artefatos que caracterizam as sociedades. A “compreensão” são os significados relacionados a atos e objetos. Os significados são convencionais e, portanto, culturais, na medida em que se tornaram típicos para os membros dessa sociedade por causa da intercomunicação entre os membros (Red­field, 1941: 132-33).

Os membros da instituição, líderes e seguidores, clientes e beneficiários vivem em ambientes culturais nos quais e através dos quais inventam e descobrem o sentido das situações. Eles moldam campos de experiência, pessoais e coletivos, em suas transações com seus ambientes. Eles herdam certas configurações de agência cognitiva e normativa que perpetuam ao performá-las e, ao mesmo tempo, transformam esses repertórios de argumentos e narrativas, assim como de fatos e artefatos, projetando novos objetivos no futuro. “A experiência é a dynamo station” ou a geradora (power-house) dos pensamentos, valores e ideais, em particular da vontade, das crenças e dos hábitos coletivos (Follett, 1924______. Creative experience. New York: Longman, 1924.: 85 e 133). A experiência é a base (homebase) na qual diferentes correntes da história organizacional convergem, fundem-se e geram descontinuidades, articulando novas arquiteturas de significado e exigindo novos esforços da práxis, de interpretação e aprendizagem sociais. Ela é o intervalo situado espaço-temporalmente a partir do qual crescem e são extraídos novos horizontes de memória e projetos.

Às vezes, quando as situações se tornam “problemáticas”, as pessoas têm que definir “o que está acontecendo aqui”. Elas discutem, criticam, denunciam, reivindicam - uma atividade coletiva é muitas vezes relacionada à cristalização de novos interesses em torno das linhas de frente, e muitas vezes está relacionada a desafios de direito e de justiça, de liberdade e de equidade. Elas entram em conflitos em torno de questões (issues), que precisam definir e controlar. Os movimentos sociais organizados e as instituições de políticas públicas são cruciais para fazer eco a esses problemas e preocupações, dando-lhes uma forma pública, compreensível e aceitável para o público, seus dirigentes e a imprensa, enquadrando visões de mundo, canalizando emoções coletivas, formulando explicações e interpretações, atribuindo causas e responsabilidades, moldando interesses e identidades. Eles estabelecem o que está em jogo nos conflitos, pontos retóricos em controvérsias ou apostas em jogos estratégicos - articulam uma democracia centrada em torno de situações problemáticas (problem-centered democracy) (Ansell, 2011ANSELL, Christopher. Pragmatist democracy: evolutionary learning as public philosophy. Oxford, UK: Oxford University Press, 2011.). Eles esclarecem as operações de avaliação que ainda estavam confusas e as conectam com outras lutas ou casos anteriores. Eles desdobram repertórios interpretativos e normativos e, com base no aprendizado social anterior, identificam novos problemas, inventam novas hipóteses, submetem-nos a novos testes e projetam novas soluções na esfera pública. As culturas organizacionais e as culturas públicas crescem graças ao exercício da imaginação coletiva, quando as pessoas enfrentam novos desafios. Uma boa parte deste crescimento se deve a processos de discussão, investigação e experimentação sobre questões factuais ou normativas (Follett, 1924______. Creative experience. New York: Longman, 1924.; Lindeman, 1924LINDEMAN, Eduard C. Social discovery: an approach to the study of functional groups. New York: Republic Publishing Company, 1924.; Dewey, 1927______. The public and its problems. New York: Henry Holt, 1927.). E é somente após momentos de turbulência e crise que as organizações alcançam novos estados de relativa estabilidade - isto é, uma validação consensual de perspectivas comuns e de entendimentos comuns sobre expectativas mútuas (“comum” implica aqui uma redução da equivocidade e da discórdia - Weick (1979______. The social psychology of organizing. New York: McGraw-Hill, 1979.) -, mas não significa “desprovido de conflito”).

Instituições, estrutura formal e informal

Dentro das organizações, uma estrutura informal se desdobra abaixo de fluxogramas, regras legais e cargos formais. Isso tem uma consequência metodológica: as instituições só podem ser exploradas por meio de um detalhado trabalho de campo, entrevistas em profundidade e densa investigação documental. A maior parte dos projetos de pesquisa, baseados em surveys quantitativos ou em uma única entrevista com líderes organizacionais passam ao largo da questão. Esse ponto foi crucial nos ensinamentos de Park e Hughes… Seus alunos estavam fazendo trabalho de campo a fim de se tornarem insiders e obterem acesso aos bastidores das instituições - tornarem-se capazes de observar o que estava acontecendo fora do palco e, às vezes, secretamente. Eles tinham que contornar o trabalho de gestão de impressões (Goffman, 1959______. The presentation of self in everyday life. Chicago, IL: The Free Press, 1959.) por equipes de insiders a fim de controlar as facetas públicas das instituições diante do público externo. Diferentemente de Parsons e Merton, os sociólogos de Chicago não estavam interessados em organizações de elites de alto nível, como associações profissionais de advogados e médicos, astutos em projetarem imagens de si mesmos por meio de estratégias de comunicação. Eles também estudaram organizações ocupacionais mais humildes como escolas públicas, sindicatos de funcionários técnicos, departamentos de enfermagem em hospitais, comparando as últimas como as primeiras. Além disso, eles não prestaram atenção apenas às organizações formais. Em uma microperspectiva, a pessoa “atua segundo um cargo (office)” (Cooley, 1909COOLEY, Charles Horton. Social organization: a study of the larger mind (Caps. XXVIII-XXX). New York: Charles Scribner’s Sons, 1909.): ela tem que se comprometer com um objetivo comum e seguir as regras e procedimentos estabelecidos com o objetivo de ser um membro ratificado da instituição. Um cargo é um “conjunto padronizado de deveres e privilégios que recaem sobre uma pessoa em certas situações definidas” (Hughes, 1937). Mas ao fato de uma pessoa ocupar um cargo, determinado pela atribuição de uma função e pelas prescrições explícitas a ela relacionadas, soma-se o fato de que esta pessoa também ocupa um lugar numa ordem moral, na qual os padrões de exigência em relação a qualidades morais, autoridade, ou confiabilidade, por exemplo, não são os mesmos que os dados nas descrições de cargos do organograma. Espera-se que a pessoa “assuma os fardos e desfrute as honras do cargo”, em conformidade com um determinado conjunto de direitos e obrigações que circunscrevem seu papel institucional - oficial e informal. Mas ela nunca se funde com os cargos que ocupa. Apenas uma parte do seu self é oficial, uma vez que ela mantém uma vida externa - como membro de uma família, um clã, uma classe, uma casta, uma raça, um gênero, como veterano, ativista… E até mesmo o seu Self oficial pode ter de fazer avaliações e tomar decisões que não são programadas nem pelo papel típico nem pelo cargo padronizado que ele performa. Os membros das instituições sociais têm uma capacidade de “distanciamento do papel” (Goffman, 1961), graças à qual olham a si mesmos atuando, e são dotados de autonomia. Mesmo em organizações com funcionamento fluido e bem azeitado, espera-se que não sejam meras engrenagens, e que, às vezes, discordem das regras ou das políticas. Isso traz indeterminação no processo organizacional.

Após a Segunda Guerra Mundial, a investigação inspirada por Hughes, bem como por Warner e Whyte, começou no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago a se concentrar em circuitos de cooperação informal ou hierarquias de autoridade, em grandes departamentos de lojas, fábricas ou burocracias, abaixo da encenação de fluxogramas oficiais. Do topo (Dalton, 1949DALTON, Melville O. A study of informal organization among the managers of an industrial plant. PhD Sociology, University of Chicago, 1949.) à base (Roy, 1952ROY, Donald. Restriction of output by machine operators in a piecework machine shop: a preliminary analysis. PhD Sociology, University of Chicago, 1952.) das organizações, pesquisadores de campo descreveram como os membros se organizam em bandos e turmas informais, inventam seus próprios esquemas de cooperação, desenvolvem uma multiplicidade de microculturas, nunca param de criar soluções que reforçam repertórios de rotinas coletivas (Dewey, 1922______. Human nature and conduct: an introduction to social psychology. New York: Henry Holt, 1922.) e, inevitavelmente, contornam as regras quando as coisas deixam de funcionar. De um ponto de vista coletivo, a organização formal vive através dessa constante invenção de novas maneiras de fazer e de fazer-juntos em escritórios e oficinas, do desdobramento concreto de novas relações entre gerentes e funcionários, e do reajuste da estrutura de autoridade por meio de pressões tácitas e negociações coletivas. A dinâmica ecológica não é apenas externa, mas interna à organização: ela continuamente estabelece novos ambientes de experiência e de ação para seus membros. A organização gera seu próprio ambiente. A perspectiva de Chicago era, portanto, diferente da perspectiva funcionalista. Ela levava em consideração como os membros e beneficiários das instituições definem as situações com as quais eles chegam a um acordo, e como a organização de sua experiência está relacionada a atividades situadas. Cada processo de identificação e resolução de problemas envolve um certo tipo de seleção de competências, recursos, papéis e objetivos integrados em uma determinada configuração de dialética fins-meios. Os fluxogramas são apenas capturas instantâneas de estruturas em fluxo e de cenários em movimento (Strauss et al., 1964STRAUSS, Anselm; SCHATZMAN, Leonard; BUCHER, Rue; EHRLICH, Danuta; SABSHIN Melvin. Psychiatric ideologies and institutions. New York: Free Press, 1964.). As instituições se fazem por meio dessa atividade coletiva contínua de autointegração criativa de seus ambientes externos e internos em permanente mudança.

Instituições do Estado, inteligência coletiva e razão pública

Mencionamos anteriormente o papel da imaginação coletiva na constituição de organizações abertas que, como “sociedades abertas”, são capazes de autorreflexão, autointerrogação e auto-organização. De acordo com os pragmatistas, as instituições sociais são dotadas de uma inteligência coletiva (Dewey et al., 1917DEWEY, John; MOORE, Addison W.; BROWN, Harold Chapman; MEAD, George H.; BODE, Boyd H.; STUART, Henry Waldgrave; TUFTS, James Hayden; KALLEN, Horace M. Creative intelligence: essays in the pragmatic attitude. New York: Henry Holt and Co., 1917.) e de uma aprendizagem coletiva (Argyris & Schön, 1978; Ansell 2011ANSELL, Christopher. Pragmatist democracy: evolutionary learning as public philosophy. Oxford, UK: Oxford University Press, 2011.). Assim como os indivíduos podem abandonar o seu regime habitual - costumes, crenças e opiniões aos quais estão habituados - e adotar uma atitude exploratória, as instituições são capazes de sair de suas rotinas e caminhar na direção de processos de investigação, experimentação e discussão (Follett, 1918______. The new state: group organization, the solution of popular government. New York: Longmans, Green and Co., 1918.; 1924; Dewey, 1922; Mead, 1934MEAD, George Herbert. Mind, self, and society, from the standpoint of a social behavioris. Chicago, IL: University of Chicago, 1934.). Essa capacidade de criar soluções ou de inventar melhorias frequentemente vem de “minorias ativas”, que abalam o conformismo da maioria e desenvolvem inovações - pequenas mudanças, que estão mais ou menos silenciosamente integradas às rotinas do dia a dia, ou alternativas maiores, que podem levar à formação de movimentos sociais dentro do ambiente organizacional e, no caso de situações de bloqueio, incentivar estratégias de voz ou saída (Hirschman, 1970HIRSCHMAN, Albert O. Exit, voice, loyalty. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1970.); por exemplo, seitas que rompem com igrejas (Park & Burgess 1921PARK, Robert Ezra; MILLER, Herbert Adolphus, (& THOMAS, W. I.). Old world traits transplanted, Cap. 6: “Immigrant institutions”. New York: Henry Holt, 1921.) ou escolas alternativas que rompem com o sistema estatal (Spector & Kitsuse, 1977SPECTOR, Malcolm; KITSUSE, John. Constructing social problems. Hawthorne, NY: Aldine de Gruyter, 1977.). A imaginação coletiva, por perturbar hábitos e interesses já consolidados, gera conflitos de poder, que podem ser sobredeterminados por variáveis étnicas, de classe, ou de gênero, ou mais simplesmente, pela rotação de gerações (Gusfield, 1954GUSFIELD, Joseph R. Organizational change: a study of the Woman’s Christian Temperance Union. PhD Sociology, University of Chicago, 1954.). De uma forma menos dramática, as instituições sociais são capazes de uma inteligência coletiva na medida em que podem monitorar a si mesmas. Elas têm uma “autonomia organizacional” - conceito que pode ser construído com base nos comentários de Eliot Freidson (1970FREIDSON, Eliot. Profession of medicine. New York: Harper & Row, 1970.) sobre a “autonomia profissional” dos médicos. Elas têm um poder de autorregulação e de autogoverno, elas controlam a situação dos membros e lidam com conflitos entre eles, elas valorizam a qualidade das ações executadas em seus nomes, elas tomam decisões sobre seus investimentos e compromissos, e, a fim de implementá-los, elas mobilizam seus circuitos de cooperação e cadeias de comando. Essa “autonomia organizacional” tem outra dimensão. As instituições podem diagnosticar seus problemas, identificar suas causas e razões e transformar suas comunidades de praticantes em comunidades de investigadores, experimentadores, intérpretes e debatedores (Gross, 2009GROSS, Matthias. Collaborative experiments: Jane Addams, Hull House and experimental social work. Social Science Information, v. 48, n. 1, p. 81-95, 2009.; Ansell, 2011; Hernes, 2014HERNES, Tor. A process theory of organization. Oxford, UK: Oxford University Press, 2014.; Lorino, 2018LORINO, Philippe. Pragmatism and organization studies. Oxford, UK: Oxford University Press, 2018.). Elas evoluem por meio dessa atividade coletiva de pensamento reflexivo, observação, testagem, medição, conhecimento, julgamento, registro, arquivamento e remediação de seus membros.

Isso nos leva, incidentalmente, à concepção de “público” de John Dewey (1927______. The public and its problems. New York: Henry Holt, 1927.). Confrontados com uma situação problemática, indivíduos, grupos e organizações param de sentir, agir, pensar e julgar como estão acostumados e fazem investigações e experimentos juntos, discutem novos fatos e hipóteses. Essa inteligência coletiva, escreve Dewey, é “organizada”. Ela é equipada com todos os tipos de instrumentalidades e distribuída em várias instituições - em primeiro lugar, organizações não governamentais, universidades de ensino superior, sindicatos, movimentos sociais, agências cívicas, meios de comunicação de massa e assim por diante. Essa contínua razão pública é diferente de um mero processo de acomodação e de transigência, ou do uso da força e dominação: ela está embutida na dinâmica ecológica da investigação pública, experimentação e discussão que gera novos ambientes de vida, e provoca uma rearticulação da política, da legislação e da administração. Os públicos renovam o Estado. Park (1929PARK, Robert Ezra. Readings in public opinion: its formation and control. American Journal of Sociology, v. 34, n. 6, p. 1192-1194, 1929.: 1193), em sua avaliação de Public and its problems de Dewey (1927), aprova essa “abordagem naturalística do Estado”: trata-se de uma tentativa de descrever o Estado de forma realista como um affaire en cours, um empreendimento concreto, em andamento, enfrentando todos os tipos de problemas práticos, “em vez de uma abstração filosófica definida em termos legais e normativos”. O Estado é o produto emergente da vontade pública. Ele incorpora alguns dos desejos, crenças, interesses, ideias morais e valores políticos que ganharam alcance público no processo de constituição de problemas públicos. O processo de institucionalização está no cerne da transição do público para o Estado - por meio de métodos de experimental design e problem-solving, incorporados às políticas públicas - de Campbell (1969CAMPBELL, Donald T. Reforms as experiments. American Psychologist, v. 24, p. 409-429, 1969.) a Chisholm (1995CHISHOLM, Donald. Problem solving and institutional design. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 5, n. 4, p. 451-491, 1995.) e Ansell (2011ANSELL, Christopher. Pragmatist democracy: evolutionary learning as public philosophy. Oxford, UK: Oxford University Press, 2011.). Lembrem-se dos conselhos de democracia participativa brasileiros. Claro, as agências de governo e de administração têm sua própria lógica e dinâmica, são projetados e fundados por atos de instituição e seu crescimento depende principalmente do tipo de problemas que encontram e resolvem, de acordo com sua própria racionalidade. Elas têm que cumprir as leis, obedecer às decisões do governo e da burocracia de alto nível, seguir regras e rotinas específicas e estar o mais alinhadas possível com suas performances anteriores. Esse processo autopoiético - tomando emprestado este conceito da descrição por Maturana e Varela da “organização circular de sistemas vivos”, bastante alinhado com a tese de Follett sobre “reação circular”- da administração do Estado, fechado sobre si mesmo, está paradoxalmente acoplado, pelo menos em um regime democrático, a um requisito de responsividade às necessidades e às reivindicações dos cidadãos. As agências do Estado têm de respeitar algumas das manifestações da vontade popular. Elas têm de negociar e intermediar interesses organizados em conflito, registrar no corpo das leis o progresso dos costumes conforme reclamado pelas organizações cívicas, ouvir os porta-vozes de movimentos sociais ou grupos de interesse e estar abertas às propostas e deliberações civis. Esse é um dilema básico entre a eficiência e autoridade estatal e a criatividade e o senso de liberdade, direito e justiça do público. Algumas vezes, no período do pós-Primeira Guerra Mundial, tempo de duras críticas à transcendência e soberania do Estado, os pragmatistas foram tentados pela redução de sua autonomia. Eles queriam fazer do Estado uma expressão “verdadeira” ou “real” da vontade pública - o Estado tinha que se confundir com o público, nada além disso (Follett, 1918; Dewey, 1927) -, pavimentando o caminho para uma democracia participativa na qual as investigações, experimentos e discussões dos cidadãos seriam a fonte viva das instituições estatais. Mais especificamente, isso significa que uma “competição cooperativa” deve existir entre públicos organizados, especialistas e representantes. Pessoas em cargos eletivos, peritos ou funcionários dentro das instituições do Estado devem ser receptivas às consultas e às petições, às reclamações e, por vezes, aos clamores e às iras do público, tendo em conta as questões levantadas pelos conflitos, e devem abrir espaço para a participação cívica, por meio de uma gama de mecanismos de consulta, deliberação e representação. Essas instituições estatais devem contribuir para a organização da experiência pública, isto é, para a definição dos problemas públicos e a configuração dos conflitos públicos, garantindo o Estado de direito e impedindo o domínio esmagador de megagrupos de interesse. Mas em nenhum caso, eles podem suplantar e substituir os públicos.

Instituições e capabilidades: empoderamento e desempoderamento

Aqui, mais uma ligação entre a sociologia de Chicago e a filosofia pragmatista pode ser notada e enfatizada. As instituições sociais - por exemplo, assentamentos sociais: Addams (1899ADDAMS, John. A function of the social settlement. Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 13, p. 33-55, 1899.) ou Mead (1907-1908) - são acumuladoras, condensadoras e geradoras de experiência, de know-how e de conhecimento. Elas contribuem para construir ecologias favoráveis e para aumentar as capacidades de seus membros e, além disso, do público. Em uma “sociedade autoconsciente” (Mead, 1934: 259), elas fomentam a inteligência coletiva, fornecem às pessoas ferramentas de discussão, investigação ou experimentação que as ajudam a encontrarem o seu caminho. Elas promovem a igualdade de oportunidades por meio da educação, redistribuindo raros recursos, ou trazendo novas carreiras. Podem também, no sentido oposto, impedir as pessoas de pensar e agir, moldar hábitos conservadores, espalhando propaganda ou fabricando consentimento. Elas obstruem seu poder de agir. Elas dificultam qualquer tentativa de fazer as coisas andarem. As instituições podem ser fontes de opressão ou de emancipação (Mead, 1934: 262). Elas podem impor estereótipos e bloquear a inovação. Sua “rígida e inflexível não progressividade esmaga ou anula a individualidade, ou desencoraja quaisquer expressões distintas ou originais de pensamento e de comportamento”. Elas podem, ao mesmo tempo, encorajar o amadurecimento de personalidades e incentivar o exercício coletivo da imaginação, proporcionar “muito espaço para originalidade, flexibilidade e variedade” das condutas (Mead, 1934) e deixar brotar novas ideias e dar vida a novos ideais. Entretanto, elas sempre têm um papel crucial nos campos de experiência e ação coletivas. Elas são os pilares do mundo comum e os pivôs e os vetores de uma ecologia das capabilidades.

Muito cedo, Dewey, desde 1891, apresentou fortes hipóteses sobre “capabilidades”. Contra uma concepção demasiadamente psicológica ou cognitivista das capacidades, ele propôs distinguir duas dimensões da “individualidade”. Por um lado, ela significa especial disposição, temperamento, dons, propensão ou inclinação; por outro, significa situação, ambiente, limitações, recursos, constrangimentos, oportunidades. “Ou, digamos, significa capacidade específica e ambiente específico” (Dewey, 1891: 97). O exercício de suas capacidades depende das condições ecológicas, incluindo arranjos sociais, legais e políticos que fornecem suporte, ativos, orientação, incentivos... por meio dos quais o poder de agir se torna realidade. Essas condições ecológicas não existem objetivamente, mas apenas como um “ambiente prático ou moral” (Dewey, 1891: 99), definido e controlado por indivíduos socializados, em ação e em situação. E Dewey insistiu na função das instituições “morais” e “políticas” (família, igreja, escola, cidade...) (Dewey, 1891: 169ss) por meio das quais as pessoas encontram necessidades e fins comuns e se envolvem em “modos de ação cooperativa”. “Essas instituições são moralidade [ouçam Sittlichkeit], real e objetiva; o indivíduo torna-se moral à medida que compartilha desse mundo moral e assume o devido lugar nele”. Essas práticas “expressões de propósitos e ideias comuns” são “vontade e razão públicas” (Dewey, 1891: 170), escreveu Dewey. Em Human nature and conduct (Dewey, 1922), ele enfatizou o poder da liberdade em ação - contra uma metafísica liberdade de escolha (Dewey, 1922: 303). A liberdade inclui “eficiência na ação, capacidade de realizar planos, a ausência de obstáculos impeditivos e restritivos”, “a capacidade de variar planos, de mudar o curso de ação, de experimentar novidades” e, por último, “o poder do desejo e da escolha para ser determinante nos eventos”. A ação requer que a organização seja eficaz, mas a “superorganização” pode ser um obstáculo à liberdade. Ao mesmo tempo, “não há liberdade efetiva ou objetiva sem organização”: não temos liberdade sem costumes civis, instituições sociais, arranjos materiais, bem como modelos formais e leis públicas para nos guiarem. As instituições são “hábitos corporificados” (Dewey, 1922: 108) que podem “petrificar e se rigidificar” (Dewey, 1922: 102), mas que também possibilitam a “plasticidade” e a “criatividade” da ação individual e coletiva (Joas, 1996JOAS, Ernst Troeltsch. The creativity of action. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1996.). Elas fornecem condições concretas para garantir a continuidade e a estabilidade, ao longo do tempo, dos mundos da vida (life-worlds), além de exercitar a imaginação e a inteligência coletivas. As instituições organizam a potência ou a impotência da ação. Portanto, não há mundo social (Dewey, 1927) sem agências que impulsionam, coordenam, pilotam, regulam, registram, refletem, reúnem, pressionam, comunicam, representam, reivindicam, negociam e comprometem. Não há vida coletiva livre de tal ecologia de organizações.

Constelações de instituições: setores funcionais, mundos sociais e arenas públicas

A sociologia de Chicago tem sido frequentemente criticada por seu interesse exclusivo por organizações de comunidades locais, mas esta visão questionável obscurece o fato de que, em muitos estudos, as instituições foram tomadas como nós num fluxo de recursos, dinheiro, pessoas, tecnologias, em escala nacional ou mundial. A ecologia das instituições não era necessariamente paroquial. Em muitos aspectos, antecipou os estudos atuais em etnografia global. A escala relevante de observação e de análise depende da extensão espacial e temporal das transações entre as instituições e seus ambientes. Isso já era verdade na década de 1920: organizações de migrantes (Thomas & Znaniecki, 1919-1920; Park & Miller, 1921PARK, Robert Ezra; MILLER, Herbert Adolphus, (& THOMAS, W. I.). Old world traits transplanted, Cap. 6: “Immigrant institutions”. New York: Henry Holt, 1921.), cadeias de lojas (Shideler, 1927SHIDELER, Ernest Hugh. The chain store: a study of the ecological organization of a modern city. PhD Sociology and Anthropology, University of Chicago, 1927.) ou “sistemas de plantation colonial” (Thompson, 1932THOMPSON, Edgar Tristram. The plantation. PhD Sociology, University of Chicago, 1932.) já foram estudados em correlação com fluxos econômicos, demográficos e tecnológicos em torno da orla do Pacífico ou entre o Velho e o Novo Mundo. McKenzie, já em 1927, ofereceu uma fotografia panorâmica da economia mundial e suas relações de dominação; Andrew Lind (1938LIND, Andrew W. An island community: ecological succession in Hawaii. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1938.) e Clarence Glick (1938GLICK, Clarence E. The Chinese migrant in Hawaii: a study in accommodation. Ph.D. Sociology, University of Chicago, 1938.) escreveram ecologias históricas de assentamentos de migrantes, hierarquias de status, mercados de trabalho ou mudanças urbanas, estudando o caso de Havaí como foco de processos internacionais. Thomas e Znaniecki (1919-1920) conectaram as pequenas associações polonesas que descreveram em Chicago com os movimentos demográficos de pessoas entre os Estados Unidos e a Europa Oriental e descreveram transplantes transnacionais de redes sociais, organizações comunitárias e formas culturais.

Mais especificamente, Hughes escreveu que as comunidades são feitas de “constelações de instituições” em transações entre si. O que é que são essas constelações? As instituições geralmente se agrupam em setores funcionais, muitas vezes situados em áreas urbanas, como no modelo concêntrico de zoneamento de Burgess, no qual compartilham interesses comuns. Elas podem entrar em relações ecológicas de isolamento, simbiose, cruzamento ou predação, mas são orientadas pelos mesmos motivos para os mesmos objetivos. Enormes conglomerados de empresas ou profissões se reúnem, tomam conhecimento e lutam por seus interesses comuns e, além do processo de competição, aliam-se para defendê-los nas negociações com os adversários. No espaço urbano, crescem os distritos de negócios, as zonas industriais ou comerciais, muitas vezes por razões fiscais e legais, mas também para tirar vantagens dos benefícios de estar no mesmo local e de partilhar infraestruturas e serviços.

Mas a constelação de instituições pode tomar outra forma. Como Dewey ou Park demonstraram, instituições também se agrupam em arenas organizacionais em torno de preocupações comuns, mas que também são contestadas como, por exemplo, no caso dos problemas sociais que elas tentam examinar, determinar e dominar (Cefaï 2017______. Públicos, problemas públicos, arenas públicas… O que nos ensina o pragmatismo. Cadernos Cebrap, Part 2, v. 36, n. 2, p. 129-142, 2017.). Nesse caso, elas entram em relações de complementaridade e hostilidade, cooperação e competição em suas tentativas para controlar e resolver situações problemáticas. Quando estas passam a ser percebidas como assuntos de interesse público, várias instituições formam o que Park (1929) e Dewey (1927) chamam de público: diferentes associações lutam em torno de definições e valorações do bem público, buscam soluções práticas, recrutam organizações econômicas, cívicas e religiosas, competem por recursos ou clientelas, propõem esquemas de ação pública, sensibilizam segmentos da administração, partidos e sindicatos e geram fóruns de posições argumentativas. Como visto anteriormente, por meio de novos processos de institucionalização, elas, às vezes, criam novos cargos públicos e novas agências governamentais.

Constelações, mundos, redes, setores ou arenas: os processos ecológicos sustentam a morfodinâmica da vida social e política. Eles ajudam a entender como o mercado ou o Estado, ou o que hoje é chamado de terceiro setor, se desenvolvem, se enraízam, criam nichos, disponibilizam novos bens e serviços, trazem para a existência novas organizações de recursos, de pessoal, de interesses e de valores. Como eles lutam, se dividem, se fundem, se espalham, colonizam, incorporam, abrem falência ou, em outra linha metafórica, brotam, desabrocham, florescem, cruzam, polinizam, murcham e morrem. As instituições estão no centro do processo político. Elas dão vértebras às dinâmicas de problematização e “publicização” por meio do qual novos problemas públicos emergem e novas ações públicas são implementadas. Elas são fundamentos cruciais para a esfera pública, bem como operadoras para canalizar as energias públicas, para transformá-las em campos de experiência e contextos de ação, e para preservar, reinventar e cultivar o interesse público. Não há espaço para desenvolver aqui este ponto, mas a teoria do “público” de Dewey, baseada em processos de associação, comunicação e cooperação, poderia se tornar empiricamente mais convincente se levasse em consideração essa coreografia de transações entre instituições e de instituições com seus ambientes.

Conclusão

A perspectiva ecológica nos estudos sobre organizações foi redescoberta nos Estados Unidos nos anos 1960-1970, embora de uma forma muito mais macrossociológica, formal e econômica, por meio do legado de Amos Hawley (1950HAWLEY, Amos H. Human ecology: a theory of community structure. New York: Ronald Press, 1950.), que substituiu Roderick McKenzie em Ann Arbor, na Universidade do Michigan. Essa ecologia das organizações de Michigan, ironicamente, voltou à Universidade de Chicago nos anos 1960, com Mayer Zald e Morris Janowitz. De alguma forma, eles foram herdeiros da sociologia de Chicago dos anos 1920, ainda que despojados de sua base biológica e espacial. Hawley partiu em 1966 para Chapel Hill, Universidade da Carolina do Norte, onde treinou John Freeman e Michael Hannan (1977HANNAN, Michael T.; FREEMAN John. The population ecology of organizations. American Journal of Sociology, v. 82, n. 5, p. 929-964, 1977.), autores de The population ecology of organizations - uma versão bem diferente da perspectiva de Chicago. Junto-me a Andrew Abbott (2009ABBOTT, Andrew. Organizations and the Chicago School. In: The Oxford handbook of sociology and organization studies: classical foundations, p. 399-420. Oxford, UK: Oxford University Press, 2009.) quando encontra sua inspiração nessa primeira onda da sociologia de Chicago e defende esse modelo ecológico e processual. Esse modelo ainda tem virtudes - talvez agora mais do que nunca. As instituições, sejam elas públicas ou privadas, vivem em ambientes que “flutuam constantemente e estrategicamente” e suas respectivas “ecologias ligadas” (linked ecologies) vêm a ressoar umas nas outras (Abbott, 2005). A resposta delas parece ser a de:

desmontar e remontar o que em meados do século XX teríamos chamado de “organização”, vendendo-a, carregando-a com dívidas, pilhando-a, amalgamando-a, desmontando-a, e assim por diante. Tudo isso com o objetivo de reduzir os custos da força de trabalho, ou economizar impostos, ou transferir lucros para outros países, ou desistir das obrigações de aposentadoria, ou alcançar retornos tecnológicos em escala, ou o que quer que seja (Abbott, 2009ABBOTT, Andrew. Organizations and the Chicago School. In: The Oxford handbook of sociology and organization studies: classical foundations, p. 399-420. Oxford, UK: Oxford University Press, 2009.: 419).

O mesmo é verdade, a meu ver, se considerarmos o fato de que as políticas públicas não são mais de cima para baixo, mas envolvem todo tipo de coletivos, associações, organizações, instituições... governamentais e não governamentais, emergentes ou bem estabelecidas, na coprodução de ações público-privadas, em configurações complexas de cooperação competitiva que a ecologia humana está mais apta a entender do que qualquer modelo funcionalista ou culturalista. A visão de organizações, empresas ou burocracias bem integradas e estabelecidas, que prevaleceu desde os anos 1940 até os anos 1960, está desatualizada. Novas hipóteses, baseadas na teoria dos mundos sociais, nos estudos científicos e tecnológicos (STS), na sociologia cultural, e no neoinstitucionalismo cresceram. A perspectiva de Chicago de uma dinâmica processual e ecológica das instituições, em ambientes em mudança, tem um forte potencial para ampliar e aprofundar estas tentativas.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2021
  • Aceito
    21 Jun 2021
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