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Sobre a prática científica dos economistas brasileiros: entre a virtude epistêmica e a administração da irrelevância

On the scientific practice of Brazilian economists: from epistemic virtue to the administration of irrelevance

Resumo

Os economistas justificam a internacionalização da ciência econômica recorrendo à metalinguagem, de tal modo que a competição é apresentada como o mecanismo “exemplar” de estímulo à qualidade (credibilidade epistêmica) e produtividade da ciência (novos conhecimentos). Entretanto, a competição dos mercados perfeitos da teoria econômica raramente é encontrada no mundo real, muito menos na ciência, onde uma combinação de fatores materiais e simbólicos reforça o caráter desigual e hierárquico da produção científica. Partindo desse entendimento, o presente trabalho lança mão do conceito de “regime de administração da irrelevância” para compreender a ordem indutora de processos científicos nos quais o conhecimento produzido é diminuído a uma condição de inferioridade ante outros contextos. Mais especificamente, o objetivo será evidenciar, a partir de procedimentos conscientes ou não, a prática científica cotidiana dos economistas, elementos que contribuem para a existência de uma dinâmica atencional autodepreciada.

Palavras-chave:
Regime de Administração da Irrelevância; Periferização; Conhecimento Local; Economia; Dinâmicas Atencionais

Abstract

Economists justify the internationalization of economic science using meta-language in such a way that competition is presented as an “exemplary” mechanism which increases the quality (epistemic credibility) and productivity (the absorption of new knowledge) of science. However, competition from the perfect markets of economic theory is rarely found in the real world, much less in science, where a combination of material and symbolic factors reinforces the uneven and hierarchical character of scientific production. Based on this understanding, the present work uses the concept of the ‘Irrelevance Administration Regime’ to understand the inducing structure of scientific processes in which the knowledge produced is considered to be inferior. More specifically, the objective of this paper is to clarify elements that contribute to the existence of a self-deprecated attentional dynamic, focusing on economists’ conscious or unconscious daily scientific practices.

Keywords:
Irrelevance Administration Regime; Periphery; Local Knowledge; Economy; Attentional Dynamics

E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda [música brasileira], e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann.

Machado de Assis, “Um Homem Célebre”

Introdução

Uma literatura crescente (Alatas, 2003ALATAS, Syed Farid. Academic dependency and the global division of labour in the social sciences. Current sociology, v. 51, n. 6, p. 599-613, 2003.; Anderson, 2002ANDERSON, Warwick. Introduction: postcolonial technoscience. Social Studies of Science, v. 32, n. 5-6, p. 643-658, 2002.; Burris, 2004BURRIS, Vall. The Academic Caste System: prestige hierarchies in PhD exchange networks. American Sociological Review, v. 69, n. 2, p. 239-264. 2004.; Ferreira, 2019FERREIRA, Mariana. Periferia pensada em termos de falta: uma análise do campo da genética humana e médica. Sociologias, Porto Alegre, v. 21, n. 50, p. 80-115, 2019.; Neves, 2020NEVES, Fabrício. A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-18, 2020.) vem analisando os aspectos que implicam a diferenciação entre ciência do centro e da periferia. As mais recentes vão além da análise das questões macrossociológicas imbricadas na estrutura econômica desigual do sistema capitalista (Cepal e teorias da dependência, marxistas ou não), ressaltando também os recursos simbólicos que criam as dinâmicas de atenção e ignorância reforçadoras de hierarquias.

A noção de contexto específico tem implicações diretas para a compreensão da relação centro/periferia, ao dar suporte à substituição do objetivismo e universalismo por uma perspectiva em que o espaço importa, com sua caracterização como lugar de interdições não só materiais, mas simbólicas (Livingston, 2003). Em outros termos, o triunfo da ciência, que aparece com as estratégias de replicação de equipamentos, treinamento de observadores, circulação de práticas rotineiras e padronização de métodos, passa a depender tanto de fatores institucionais quanto do local onde o conhecimento é produzido.

O que ocorre quando se nega o caráter local e contextual da ciência, como no caso da estrita adesão a agendas “globais”, é gerar naqueles que apresentam inabilidade de reproduzi-las em nível de excelência e inovação comparáveis ao “centro”, uma ordem científica autodepreciada, de baixa autoestima, periférica e estável, aqui denominada “regime de administração da irrelevância”. Nas ciências naturais, isso aparece emaranhando aspectos cognitivos e materiais, de modo que as necessidades econômicas dos institutos, universidades e laboratórios de pesquisa passam a servir de critério qualitativo de conhecimento, sendo sinônimo para ciência ruim em oposição à ciência boa do centro (Neves, 2020NEVES, Fabrício. A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-18, 2020.). Mas, e para as ciências sociais, com suas especificidades epistemológicas e com a menor dependência da pesquisa em relação a recursos materiais e financeiros, existe essa dinâmica de autodepreciação? Caso exista, quais mecanismos podem estar nela implicados?

O presente trabalho investiga o caso específico da economia. O objetivo é entender, por intermédio da análise das diversas práticas acadêmicas dos economistas brasileiros, a relação com os valores e procedimentos reforçadores do caráter supostamente “periférico” desta ciência no Brasil. É de se esperar, portanto, que haja na economia uma dinâmica que contribui para reproduzir um “regime de administração da irrelevância”, cuja consequência é a redução do conhecimento produzido a uma condição de inferioridade ante outros contextos (Neves, 2020NEVES, Fabrício. A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-18, 2020.). Sugere-se que o conteúdo valorativo expresso por essas práticas pode ser identificado analisando-se quatro elementos: referência atrasada, escolha de objetos, traduções assimétricas e fluxo de pesquisadores e teorias. Todos a apontarem a emulação de padrões científicos supostamente globais baseados em métricas de impactos de classificação internacionais (Kalaitzidakis, Mamuneas & Stengos, 2003KALAITZIDAKIS, Pantelis; MAMUNEAS, Theofanis; STENGOS, Thanasis. European economics: an analysis based on publication in the corejournals. Journal of the European Economic Association, v. 1, n.6, p. 1346-1366, 2003.; Liu & Cheng, 2005LIU, Nian Cai; CHENG, Ying. The academic ranking of world universities. Higher Education in Europe, v. 30, n. 2, p. 127-136, 2005.).

A metodologia consistirá no cruzamento de dados qualitativos e quantitativos. Para a parte qualitativa, discutimos o lugar da economia no Brasil a partir da recuperação do debate sobre internacionalização, além da análise do documento de área do quadriênio de avaliação da Capes 2013-2016. Na parte quantitativa, utilizamos dados do quadriênio 2013-2016 envolvendo publicações científicas A1 de pesquisadores brasileiros em periódicos internacionais de economia1 1 A citação dos artigos foi retirada prioritariamente do Scopus, Web of Science e Crossref. Na ausência dos dados nessas bases, foi utilizado o Google Acadêmico. , contabilizando o impacto desses artigos, com ou sem coautoria internacional, bem como as referências utilizadas de artigos científicos. Para este último caso, também diferenciamos entre referências nacionais e internacionais citadas e artigos que tratam ou não de questões (temas) nacionais. Finalmente, fizemos uma consulta aos dados de bolsistas Capes no exterior, no ano de 2014, para observar o fluxo de pesquisadores que saíram, “para onde foram?” e vieram, “de onde chegavam?” Com esses dados sistematizados, passamos à análise que se segue, na qual identificamos aspectos como a desvalorização dos próprios periódicos nacionais em relação aos internacionais, a adesão a agendas de pesquisa internacionais, a submissão a temas e a objetos estranhos àqueles que ocupam o contexto da pesquisa local e o fluxo assimétrico de pesquisadores.

O presente trabalho está dividido como segue. Além da seção introdutória e da conclusão, consta uma segunda seção em que se apresenta a discussão sobre a diferenciação hierárquica centro/periferia, relacionando-a com a abordagem sobre a prática contextual e localizada da ciência. Apresenta-se ainda uma terceira seção onde são identificados alguns traços gerais do desenvolvimento da ciência econômica no Brasil, os principais centros de pesquisa e divisões teóricas. Na quarta seção chega-se ao cerne do argumento e são apresentados elementos que contribuem para a existência de uma dinâmica atencional autodepreciada.

Alguns aspectos da nova diferenciação centro/periferia nas ciências

Os estudos sociológicos sobre o conteúdo do conhecimento científico emergiram a partir da década de 1970, com a nova sociologia do conhecimento (Bloor, 2009BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora Unesp, 2009.; Longino, 2002LONGINO, Helen. The fate of knowledge. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2002.). O que se consolidou desde então é que a ciência passou a ser considerada atividade prática ordinária, rotineira, e seu produto - a verdade - passou a depender de processos de circulação e expansão de redes sociotécnicas (Latour & Woolgar, 1986LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. Laboratory life: the construction of scientific facts. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1986.; Latour, 2000; Knorr-Cetina, 2005).

De modo mais específico, o que os estudos sobre a recepção do conhecimento (Livingstone, 2003LIVINGSTONE, David. Putting science in its place. Geography of science knowledge. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 2003.; Keim, 2008KEIM, Wiebke. Social sciences internationally: the problem of marginalisation and its consequences for the discipline of sociology. African Sociological Review, v. 12, n. 2, p. 22-48, 2008.; Beigel, 2012BEIGEL, Fernanda (ed.). The politics of academic autonomy in Latin America. Farnham, UK: Ashgate Publishing, 2012.; 2013 e Neves, 2014______. A contextualização da verdade ou como a ciência torna-se periférica. Civitas: Revista de Ciências Sociais, v. 14, n. 3, p. 556-574, 2014.) passaram a mostrar é que a ciência opera em distintos contextos de prática, com o foco sendo transferido de sua racionalidade ou logicidade intrínseca para como o conhecimento que circula por amplos espaços da sociedade mundial. Esse contexto, segundo Helen Longino,

é constituído de pressuposições de fundo e recursos de pesquisa ... [do] conjunto de instituições e interações através das quais pressupostos e recursos circulam e o mais amplo ambiente social ao qual instituições e interações são vinculados (Longino, 2002LONGINO, Helen. The fate of knowledge. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2002., p. 177).

O ambiente mais amplo, no qual a prática científica está estruturada, é aquele que promove a diferenciação simbólica entre ciência do centro e da periferia. De forma esquemática, ao se considerar fazendo ciência na/da periferia, o cientista se coloca mais como receptor que como produtor de ciência, e seu exercício consiste em acompanhar o que fazem no “centro” (Neves, 2020NEVES, Fabrício. A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-18, 2020.); sua sensação é de “falta” (Ferreira, 2019FERREIRA, Mariana. Periferia pensada em termos de falta: uma análise do campo da genética humana e médica. Sociologias, Porto Alegre, v. 21, n. 50, p. 80-115, 2019.). Nesses contextos, o conhecimento científico produzido é julgado inferior, considerando um universo difuso de superioridade que, muitas vezes, não se sabe onde está nem o que é.

A periferização, para que tenha eficácia, deve tornar-se prática rotineira nos espaços de produção de ciência, generalizando-se como parte da cultura2 2 Claro está que a diferença centro/periferia não se coloca nos limites dos Estados nacionais. Há periferização na Suécia e nos Estados Unidos da América e centralização no Brasil, na África do Sul, na Hungria. Periferização/centralização são práticas, rotinas enraizadas em contextos específicos, não necessariamente nacionais. Em trabalhos posteriores será abordada a dinâmica de centralização, a qual não é importante agora. . Tais reforços fundamentam-se nos processos interacionais, políticos e econômicos locais, produzindo “uma ordem científica autodepreciada, de baixa autoestima, periférica e estável, um regime de administração da irrelevância” (Neves, 2020NEVES, Fabrício. A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-18, 2020., p. 2). Regime porque organiza, administra e impõe expectativas estáveis sobre as hierarquias na ciência, no caso, expectativas relacionadas à irrelevância do próprio trabalho, não importando quão inédita ou original seja a pesquisa. Neste ponto vale ressaltar que o lugar importa para esta autodepreciação, fazendo circular determinados pressupostos valorativos, culturalmente organizados, enraizados em várias dimensões do sistema científico local, na política científica e tecnológica, na qualidade das relações científicas, na dinâmica editorial e nas lógicas institucionais que organizam o cotidiano.

No plano da política científica e tecnológica (PCT), criam-se políticas orientadas por tais pressupostos, as quais tendem a considerar a ciência como universal, portanto enquadram a ciência nacional em padrões totalmente estranhos à sua lógica específica. Com um agravante: toma-se como garantido o “lugar central da ciência”, de modo que “quando pensamos em ciência, geralmente restringimo-nos a pensar acerca de um centro, que é pensado normalmente como incorporado em alguma comunidade científica europeia ou norte-americana” (Dasgupta, 2016DASGUPTA, Deepanwita. Scientific practice in the contexts of peripheral science: C. V. Raman and his construction of a mechanical violin-player. Perspectives on Science, v. 24, n. 4, p. 381-395, 2016., p. 382)3 3 Como exemplo, tomemos o caso do Programa Ciência Sem Fronteira, que, entre 2012 e 2016, financiou (por 13 bilhões de reais) aproximadamente 93 mil estudantes brasileiros para estudos e pesquisa no exterior. Sessenta por cento das bolsas foram destinadas a universidades de países supostamente centrais, como Estados Unidos (27,8 mil), Reino Unido (10,7 mil), Canadá (7,3 mil), França (7,2 mil) e Austrália (7 mil) (Marques, 2017), e o restante, a países do norte global. Houve - justiça seja feita - 43 bolsas para o Chile, 18 para o México e 16 para a África do Sul. .

Nas relações cotidianas, tal regime também impõe sua lógica, na desatenção completa à produção do colega vizinho, que refletirá num padrão de publicação que desconhece completamente a produção local e que valoriza a produção alheia. Tal comportamento é reforçado pela avaliação da produção editorial, que pontua mais quem publica internacionalmente4 4 Ainda que com pouco impacto, distribui prebendas acadêmicas e reconhecimento com base em feitos supostamente internacionais. . A “periferização” envolve, de igual modo, certo tipo de comportamento reverente com o porta-voz do pesquisador estrangeiro, o tradutor local dos conhecimentos “atualizados lá fora”, quem se coloca alheio às demandas nacionais porque sua vinculação é, enfim, com a ciência “universal”.

Toda essa dinâmica reforça regimes de administração de irrelevância, “periferiza” a própria produção e centraliza outra, em geral europeia ou norte-americana. Alguns elementos desse regime foram encontrados em pesquisa empírica recentemente divulgada (Neves, 2020NEVES, Fabrício. A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-18, 2020.). São eles:

  1. Referência posterior: a aderência às agendas internacionais (energia nuclear, biotecnologia, comunicação, mudanças climáticas, entre outras) leva-nos a estar sempre atrás da referência já criada e consolidada em outros contextos. Como consequência, a produção anterior receberia mais reconhecimento por circular há mais tempo e, por isso, ter mais impacto.

  2. A escolha do objeto (exotismo): em função do elemento anterior, os objetos escolhidos são localizados pelos cientistas em um espaço liminar entre o exótico e o submisso. Neste espaço, vigoram estratégias de carreira sem orientação clara (“pesquiso cana-de-açúcar ou madeira”, “óleo de soja ou mamona”), sem expectativas de reconhecimento editorial (“publicou lá fora ou aqui”) e a PCT é orientada fragmentária e descontinuamente, sem foco.

  3. Intercâmbio (assimétrico) de pesquisadores: redes acadêmicas são indicadores de excelência, como se costuma dizer. A dinâmica de tais redes é bem documentada: os fluxos (pesquisadores, doutores e pós-doutores) seguem uma direção clara que vai de departamentos de menor prestígio aos de maior prestígio, seja para cursos de curta duração, seja para intercâmbios de pesquisa. Tal fluxo reforça assimetrias, já que departamentos historicamente de maior prestígio tendem a aumentá-lo, reforçando a percepção de “centro” e a autopercepção de periferia. É o caso tipificado por Merton (1968MERTON, Robert. The Matthew Effect in science: the reward and communication system of science. Science, v. 159, n. 3810, p. 56-63, 1968.) como “Efeito Matheus”.

  4. Capacidade de tradução/difusão do conhecimento: a restrição do acesso aos espaços globais de prática, o baixo impacto editorial e os fluxos inexistentes (da “periferia” para o “centro”) produzem “traduções assimétricas” (Medina, 2013MEDINA, Leandro. Objetos subordinantes: la tecnología epistémica para producir centros y periferias. Revista Mexicana de Sociología, v. 75, n. 1, p. 7-28, 2013.) do conhecimento científico entre os espaços globais de prática científica. A capacidade de determinados espaços de “criarem o debate”, “entrarem no debate”, “resolverem controvérsias” é reduzida, produzindo uma ordem científica global em que o debate é monopólio de poucos, mas a atenção é universalizada.

Esses elementos estão presentes no regime de administração da irrelevância onde quer que se verifiquem processos de periferização. Claro está que a periferização se refere à “localização”; e a centralização se refere à “universalização”, ou seja, uma ciência que tem marcas do lugar onde é feita e outra que é circulada e recebida sem que essas marcas sejam indicadas, porquanto são purificadas (Latour, 2000LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000.). Outro ponto a ser ressaltado é que essa dinâmica de periferização leva a uma ordem atencional míope, que tende a valorizar somente uma parte do que se produz em ciência, negligenciando tudo o mais. Daí a sensação corriqueira, em espaços supostamente periféricos, de ser ignorado.

Ignorar os objetos e produções locais na PCT nem sempre é consciente, pelo contrário, a “desatenção” é produto de dinâmicas de periferização em regimes de administração de irrelevância. Eviatar Zerubavel diz que ela “[...] funciona como um holofote. O que quer que esteja dentro de seu foco é bem notado, enquanto o que permanece fora dele é efetivamente ignorado” (Zerubavel, 2015, p. 4). Não se trata somente de experiência sensorial, mas de um modo cognitivo que organiza os interesses na direção das coisas socialmente construídas como relevantes por aquilo que o autor chama de “comunidades de atenção”.

A ignorância científica, característica fundamental de processos de periferização, portanto, se enlaça a processos locais de reconhecimento e valoração de produtos e processos científicos. A “periferia” se caracterizaria por ignorar a si mesma e valorizar os demais.

A ciência econômica no Brasil: aspectos teóricos e institucionais da sua evolução

Dadas as particularidades da ciência no Brasil, como a produção do conhecimento acadêmico em economia relaciona-se com a do resto do mundo? Esta questão é importante, principalmente tendo em vista a existência de uma relação centro-periferia na economia, na qual uma perspectiva teórica ocupa o polo dominante marginalizando as opositoras. Mas essa divisão, inicialmente interna ao próprio campo de produção do conhecimento, sofre influência política e territorial? John Davis (2019DAVIS, John. Economics and economic methodology in a core-periphery economic world. Revista de Economia Política, v. 39, n. 3, p. 408-426, 2019.) sugere que sim, seu caso exemplar é o da perda de interesse da corrente principal situada nos países desenvolvidos pela agenda político-institucional do “desenvolvimento”, no exato momento em que esta deixou de ser percebida como algo significativo no mundo desenvolvido (pós-1950)5 5 Apesar da sugestão, Davis (2019) não desenvolve a noção centro-periferia para a relação entre países, usa o termo “periferia” internamente à economia, ou seja, como polo oposto à corrente dominante, independentemente de onde esteja localizada geograficamente. .

Dois fatos históricos evidenciam e reforçam a conexão entre a geografia e a produção de conhecimento científico em economia. O primeiro é o da relação entre a hegemonia britânica e o nascimento da economia moderna, período em que ocorreu a sistematização de categorias analíticas como valor, excedente e classes sociais (Fonseca, 1981FONSECA, Pedro. Clássicos, neoclássicos e keynesianos: uma tentativa de sistematização. Perspectiva Econômica, v. 11, n. 30, p. 35-64, 1981.). O segundo é que foi também na Inglaterra, e mais tarde nos Estados Unidos, que a economia moderna ganhou seus fundamentos teóricos e sua reputação como profissão. No meio acadêmico foi onde se intensificou, desde a década de 1950, o processo de matematização com os modelos explicativos e preditivos tornando-se sinônimos de rigor científico (Morgan & Rutherford, 1998MORGAN, Mary; RUTHERFORD, Malcon. American economics: the character of the transformation. History of Political Economy, v. 30, n. 5, p. 1-26, 1998.). No plano profissional, deu-se início às novas técnicas de controle operacionais e métodos econométricos que aumentaram a oferta de economistas na assessoria privada das grandes corporações, bem como no planejamento governamental (Coats, 1993COATS, Bob. The sociology and professionalization of economics: British and American essays, v. 2. London; New York: Routledge, 1993.).

O principal argumento dos economistas que defendem a independência do conteúdo da ciência em relação à geografia decorre da perspectiva evolucionista de Karl Popper (1975POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.), com ênfase na importância da competição como mecanismo de seleção das teorias e crescimento do conhecimento. Na prática, contudo, os rumos da profissão ocorrem de outra forma: constata-se a existência de uma “elite” ao estilo de Robert Merton (1968MERTON, Robert. The Matthew Effect in science: the reward and communication system of science. Science, v. 159, n. 3810, p. 56-63, 1968.), que, segundo David Colander (2004COLANDER, David; HOLT, Richard; ROSSER JR., Barkley. The changing face of mainstream economics. Review of Political Economy, v. 16, n. 4, p. 485-499, 2004.), domina as principais instituições acadêmicas de pós-graduação e de pesquisa, concentrando os recursos, e que é responsável pelas mudanças na disciplina. Dado que essa “elite” se situa historicamente nos países desenvolvidos, não se pode subestimar a existência de mecanismos de pressão sobre os pesquisadores periféricos, no sentido de emulação de padrões e adequação a agendas de pesquisa. No caso, qual a consequência disto para países como o Brasil? Não se pode descartar a hipótese que seja a produção de uma ciência de “segunda ou terceira linha”, na forma de uma “ortodoxia” à espera das novas ideias e temáticas vindas do centro.

Abaixo serão apresentadas algumas das linhas gerais sobre o desenvolvimento do pensamento econômico brasileiro e as principais instituições de ensino e pesquisa que lhe deram corpo. Destacamos também o aspecto da disputa pela hegemonia do pensamento econômico no Brasil, que se dá entre uma perspectiva de ciência mais universalista, associada ao mainstream; e outra particularista, associada às diferentes correntes da heterodoxia.

O ensino de economia e política econômica no Brasil

No Brasil, os principais momentos de constituição da economia como campo de conhecimento estão relacionados à diferenciação de outras profissões, como advogados, engenheiros e contadores. Flávio Saes e Roney Cytrynowicz (2000SAES, Flávio; CYTRYNOWICZ, Roney. O ensino de economia e as origens da profissão de economista no Brasil. Locus ‒ Revista de História, v. 6, n. 1, p. 37-54, 2000.) identificam três veículos principiais de difusão do estudo da economia.

O primeiro concerne às escolas de direito e de engenharia, ainda no século XIX. Nos cursos de direito foi onde se estudou de forma mais sistemática a economia, com a introdução do pensamento de John Stuart Mill e Jean-Baptiste Say. Nas escolas de engenharia, existia uma maior orientação prática com forte pendor matemático.

O segundo canal esteve relacionado ao ensino comercial. As escolas de comércio, na cidade do Rio de Janeiro, se consolidaram como núcleo de ensino no Brasil. Eram ensinadas noções gerais de ciência, a teoria do valor, da produção, do salário, da renda e da moeda, bem como noções sobre sistemas bancários, importação e exportação. A amplitude, contudo, era bastante limitada, com poucos alunos, pois se tratava de uma carreira de baixa atração para as classes abastadas. No século XX, ainda de acordo com Saes e Cytrynowicz (2000SAES, Flávio; CYTRYNOWICZ, Roney. O ensino de economia e as origens da profissão de economista no Brasil. Locus ‒ Revista de História, v. 6, n. 1, p. 37-54, 2000.), houve a expansão do ensino comercial com a criação de várias escolas e a pressão de elementos sociais relacionados ao ensino comercial, visando superar as limitações legais a ele impostas6 6 O curso geral passou a conferir o diploma de contador e o superior, o de graduação em ciências econômicas e comerciais, ainda que não se equiparasse ao diploma de medicina, direito e engenharia. . Em 1931 foi criado o curso de três anos, que concedia o diploma de bacharel em ciências econômicas, cujo título oficial era administração e finanças7 7 Não havia uma diferença específica entre os campos da economia enquanto profissional da economia em relação à contabilidade, ao direito e a engenharia. Para cursar administração e finanças exigia-se formação técnica, de nível médio, de perito-contador. O diploma de nível médio garantia exclusividade em inúmeras funções, especialmente no setor público (Saes & Cytrynowicz, 2000). . Em 1945, uma alteração na legislação criou os cursos de ciências econômicas e de ciências contábeis e atuariais, passando estes a constituir cursos superiores equiparáveis a medicina e engenharia. O curso passou a ter duração de quatro anos, com delineações que o diferenciavam da contabilidade e do direito.

O Encontro de Itaipava (1966), reunindo os professores e responsáveis pelas mais importantes instituições de ensino de economia do país, foi decisivo para a consolidação da economia no país, emancipando-a do domínio exercido por outras disciplinas. Entre as recomendações mais importantes, segundo Maria R. Loureiro (2006LOUREIRO, Maria R. A Participação dos economistas no governo. Análise. v. 17, n. 2, p. 345-359, 2006.), constava a renovação dos quadros de professores, mediante implantação de programas de pós-graduação e o envio de estudantes e docentes para doutoramento no exterior. Começava então a fase de “institucionalização”, concomitantemente à fase de “internacionalização”, da ciência econômica no Brasil.

Foram criados, no Brasil da segunda metade da década de 1960, os primeiros centros de pós-graduação em economia, seguindo a tendência de outras disciplinas. Foram eles: a Escola de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas (EPGE/FGV), o Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (Pimes/UFPE), o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG), o Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (IPE/USP), dentre outros8 8 Esses centros são cursos de aperfeiçoamento, cujo objetivo era superar as deficiências dos cursos de bacharelado em economia e preparar quadros para o governo. . Na década de 1970, surgem, numa perspectiva mais crítica, os centros ligados à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IEI/UFRJ).

O terceiro veículo relacionado à formação do campo de atuação dos economistas no Brasil diz respeito a questões políticas alusivas aos grandes problemas nacionais, tais como as crises monetárias e os problemas no balanço de pagamentos. Essa relação com a política, como constata Loureiro (2006LOUREIRO, Maria R. A Participação dos economistas no governo. Análise. v. 17, n. 2, p. 345-359, 2006.), tornou os economistas hegemônicos entre os técnicos numa sequência que se consolida nos anos 1950. Contribuíram para isso os processos de construção do Estado nacional desenvolvimentista, nos quais se apresentam os conselhos técnicos do primeiro governo Vargas, as comissões econômicas internacionais, os grupos executivos do governo Kubitschek e órgãos como o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), órgão criado em 1945, junto ao Banco do Brasil (BB) e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (BNDE).

A crise já assinalada e a reformulação dos currículos trazida pelo Encontro de Itaipava transformaram o curso universitário no principal caminho de formação de economistas e quadros dirigentes para a área econômica, a partir da década de 1970. A expansão dos cursos de economia e do número de alunos, o crescimento da produção acadêmica, o desenvolvimento de um quadro institucional de pesquisa e a criação de novas revistas especializadas são componentes de um mesmo e mais amplo processo, que se pode definir como modernização da ciência econômica no Brasil. Tal modernização ocorreu no contexto da incorporação sistemática, por parte das instituições de ensino e pesquisa do país, dos padrões teóricos e metodológicos em vigor nos países desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos. Assim, a institucionalização da área veio acompanhada de uma maior internacionalização dos marcos analíticos e metodológicos e das dinâmicas institucionais.

Essa penetração de influências internacionais se deu com a vinda de professores norte-americanos para lecionar em cursos de pós-graduação recém-criados no Brasil, nos anos 1960. Usaid e Fundação Ford bancavam, por meio de convênios, a vinda desses professores. Ainda contando com o apoio dessas instituições, professores e estudantes de economia foram enviados aos Estados Unidos para a obtenção de seus doutorados. Quando retornaram ao Brasil, começou a difusão do pensamento econômico recebido no exterior, especialmente quando integrados aos cursos de pós-graduação criados em várias universidades brasileiras. Faz-se notar nesse movimento de internacionalização da ciência econômica no Brasil, conforme assinala Loureiro (1997a______. Os economistas no governo. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997a.), um claro contraste com o padrão do conhecimento econômico da era desenvolvimentista.

As principais linhas do pensamento econômico brasileiro

Para se entender as disputas no campo da economia no Brasil, devemos voltar ao que Livingstone (2003LIVINGSTONE, David. Putting science in its place. Geography of science knowledge. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 2003.) considerou os dois modos de ver a prática científica, o universalista e o particularista. Para o primeiro, a ciência é um processo aberto de produção de conhecimentos críveis, baseado na competição e com a confiabilidade sendo assegurada pelas diversas instituições sociais projetadas para desenvolver a objetividade e a crítica. Subjacente a essa dinâmica está a aceitação quanto à universalidade da linguagem científica, resultado de um processo institucionalizado que opera simultaneamente como sistema de comunicação, de recompensa e de alocação de recursos. A consequência é que, para os universalistas, “o lugar” não importa; a hierarquia na ciência é meramente formal e “contestável”, baseada na competência. Isto é, os profissionais mais capazes são recrutados pelos principais institutos de pesquisa e escolas de pós-graduação, produzindo a pesquisa de ponta que será selecionada para ser publicada pelos periódicos científicos mais bem conceituados.

O segundo modo de ver a ciência - o dos particularistas - assume que “o lugar” importa porque a produção, a circulação e a difusão do conhecimento dependem “de onde” ou do contexto específico em que a ciência é desenvolvida. As teorias, mais do que cópias fiéis da realidade, mediadas por uma linguagem universal, baseiam-se em interpretações contextualizadas. Qual dessas interpretações vai subsistir? Essa é uma questão em aberto. Além dos critérios internos, como consistência interna, capacidade preditiva, simplicidade e consiliência, fatores externos, tais como as virtudes pragmáticas e os interesses sociais em disputa passam a contar. Assim, ao invés de conceber a ciência como baseada na livre competição, os particularistas chamam atenção para a sua hierarquia (fundada em fatores materiais e simbólicos) e para a existência de uma estrutura centro-periferia. Para o centro, além dos recursos materiais, conta a capacidade de concentrar toda a atenção da comunidade científica no que faz, ou seja, de tornar o que faz referência estabelecida e seguida pelos retardatários, a periferia9 9 Para os particularistas, as agendas de pesquisa tendem a refletir mais certas condições e interesses específicos do que qualquer conhecimento geral e de validade irrestrita. Seguir agendas globais diminui custos e incertezas da inovação, pela cópia dos desenvolvimentos do centro; a perda é preterir os problemas e demandas locais, além da permanente frustração em atender aos critérios de excelência, sempre avaliados segundo a régua dos interesses da pesquisa do centro. .

No nosso entendimento, a economia é uma ciência que forjou para si uma dupla divisão centro-periferia. Está organizada, conforme a Figura 1, com a separação no plano horizontal entre uma corrente principal e seguidores (centro do centro e centro da periferia) e uma heterodoxia (periferia do centro e periferia da periferia). No plano vertical apresenta outra divisão, com a oposição entre a economia praticada nos centros desenvolvidos (centro do centro e periferia do centro) e aquela praticada na periferia (centro da periferia e periferia da periferia), no caso, nos chamados países periféricos. O círculo externo na Figura 110 10 As linhas e setas tracejadas mostram menor intensidade no fluxo comparadas às cheias. No plano vertical, o conhecimento tende a ser absorvido de forma bastante desproporcional, indo do centro em direção à periferia. No plano horizontal, há menor transferência de conhecimento entre, de uma lado, as correntes principal e ortodoxa e, de outro, as heterodoxas. A divisão do centro do centro em elite e ortodoxia segue Colander (2004), os primeiros tendem a produzir conhecimentos de fronteira, os segundos formam uma representação estática de conhecimentos estabelecidos. A heterodoxia se opõe à ortodoxia, mas pode influenciar a elite, com hipóteses novas, desde que passíveis de modelagem. A heterodoxia, contudo, é pouca receptiva às ideias da elite, bem como da ortodoxia. Uma checagem no site <https://ideas.repec.org/top/top.journals.all.html> mostra o número de 2838 periódicos ranqueados para o total de 233 países (incluindo os não reconhecidos oficialmente, os principados e protetorados). Acessado em 20 abr. 2021. , ligando os vários diagramas, mostra certo nível de integração global da profissão, com a consequente difusão e compartilhamento de periódicos científicos e interação acadêmica. As setas internas ao circuito mostram a direção do fluxo do conhecimento, e o xis (x), a oposição entre perspectivas teóricas.

Figura 1
Relações Centro-Periferia nas ciências econômicas

No caso da corrente principal ou da elite (na parte superior, centro do centro), sua agenda de pesquisa é bastante ampla, avançando sobre o domínio das outras ciências sociais e configurando aquilo que Uskali Mäki (2000MÄKI, Uskali. Imperialismo da economia. Econômica. v. 7, n. 3, p. 5-33, 2000.) denomina de “imperialismo” da economia. Edward Lazear (2000LAZEAR, Edward. Economic imperialism. The Quarterly Journal of Economics, v. 115, n. 1, p. 99-146, 2000.) justifica esse movimento como algo característico da superioridade da economia, resultado de sua linguagem abstrata rigorosa, que permite a aplicação a uma variedade de caminhos. O mais apropriado, contudo, é considerar a economia como campo com regras institucionalizadas dadas por práticas e convenções, cuja corrente principal amplia a fronteira de seu objeto pela extensão do método de modelagem matemática. Tony Lawson (2015LAWSON, Tony. The nature of the heterodox economics. In: PRATTEN, Steven (org.). Social ontology and modern economics. London: Routledge, 2015.) identifica essa corrente pela adesão a um conjunto de métodos quantitativos substanciados em uma ontologia de sistemas fechados mais do que no apego a qualquer tipo de ideologia política ou a um conjunto de princípios11 11 Essa visão está de acordo com o que os economistas ortodoxos brasileiros, autodenominados “tradicionais”, pensam a respeito de si e de seus opositores. Entendem que a crítica heterodoxa falha por partir de um conjunto de princípios fixos para caracterizar o trabalho deles: princípios que seriam baseados em versões estilizadas de algum modelo, com a consequente generalização de seus resultados para todo o programa de pesquisa. Os economistas “tradicionais”, em contraposição, identificam os heterodoxos como aqueles que desprezam o método e os dados estatísticos. . Colander (2004COLANDER, David; HOLT, Richard; ROSSER JR., Barkley. The changing face of mainstream economics. Review of Political Economy, v. 16, n. 4, p. 485-499, 2004.), como visto, segue nessa mesma direção, salientando o papel de uma elite de economistas abertos a novas experiências, desde que passíveis de modelagem matemática.

Em se tratando da economia praticada na periferia, predomina a visão importada da corrente principal (centro do centro). No Brasil, seus seguidores formam uma ortodoxia (centro da periferia), abraçando a concepção de ciência universalista esposada mais acima, com a reivindicação de que o conteúdo dos cursos de pós-graduação e graduação esteja baseado em livros e artigos contendo material produzido por pesquisadores de alto nível e índice de participação internacional. No dizer de Verlang (Loureiro, 1997b______. 50 anos de ciência econômica no Brasil. Pensamento, instituições e depoimentos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1997b., p. 293), “um pesquisador, professor ou profissional que trabalhe no Brasil tem de ter valor de mercado internacional”. Os centros que historicamente mais veiculam tal perspectiva unindo universalismo, formalismo matemático e “imperialismo” são a EPGE/FVG e a PUC/RIO. O primeiro, além de ter sido marco de resistência ao pensamento autóctone, como no caso do enfrentamento ao estruturalismo cepalino, protagonizou um episódio marcante na própria constituição da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec) na década de 1970, ao contestar de modo eminentemente doutrinário a entrada do IE-Unicamp na associação. O argumento, segundo relato de Paulo Haddad (Loureiro 1997b, 235), foi que a orientação desta última “não era de natureza científica”, por estar baseada no neomarxismo.

O outro polo (periferia da periferia) é constituído a partir da influência das diversas correntes heterodoxas desenvolvidas ao longo do tempo e de regiões do globo, principalmente na América Latina. Do ponto de vista substantivo, predomina no caso brasileiro certa ideologia desenvolvimentista, favorável ao intervencionismo e à industrialização e defensora dos interesses nacionais. As duas setas paralelas em direções opostas na Figura 1 sinalizam que esse polo é mais bem-sucedido na empreitada de relacionar as especificidades locais com a ciência universal (periferia do centro), ao desenvolver abordagens próprias, como o estruturalismo latino-americano, a teoria da dependência e o novo-desenvolvimentismo. Chegam a disputar de maneira bastante competitiva posições nas principais instituições de ensino, no governo e nas demais instâncias decisórias da profissão no país. Os principais institutos representantes dessas correntes são o IE-Unicamp e o IE-UFRJ.

Na próxima seção busca-se sistematizar os elementos de um regime de administração da irrelevância na economia. Um passo nesse sentido é a verificação da autoatribuição negativa, ou seja, especificar a dinâmica atencional (valorização e desvalorização) presente na prática dos próprios economistas, seja através de consulta a artigos científicos e congressos, seja como relatórios oficiais de classificação de cursos de graduação e pós-graduação.

O Regime de Administração da Irrelevância no Brasil: o caso da ciência econômica

Como vimos, subjacente às disputas acadêmicas e impactando o modo como se estrutura a carreira acadêmica em economia no Brasil, há uma tensão entre duas formas de ver a ciência, a saber, a universalista e a particularista. O próprio ritmo do processo de internacionalização da economia é mais um capítulo dessa disputa e reflete o aumento da influência dos seguidores internos da corrente principal (centro da periferia). Apesar de este movimento ter começado ainda na década de 1960, o ponto culminante é o fim da década de 1980, coincidindo não só com a expansão geral dos cursos de pós-graduação, mas com a globalização econômica e a própria virada ideológica que marca o fim do período desenvolvimentista. Tal processo foi acompanhado pela intensificação dos fluxos de doutores formados no exterior e pela adoção de critérios globais de avaliação de performances, com a maior presença de artigos publicados em revistas internacionais e das próprias publicações de artigos em inglês nas revistas nacionais. Uma evidência desta internacionalização são os dados para o quadriênio 2013-2016 (Capes, 2017) da pontuação atribuída no Qualis-Capes aos diversos periódicos nacionais e internacionais. Nesta, do total de periódicos especificamente da economia avaliados pela “Área de Avaliação Economia”, 47,93% são classificados como A1 ou A2; no entanto, nenhum deles é brasileiro12 12 Há uma diferenciação entre “Área de avaliação” e “Campo”. Área de avaliação, como administração pública e de empresas, ciências contábeis e turismo que são propriamente de administração. .

Diante do quadro crescente de internacionalização, analisaremos a seguir a dinâmica atencional que contribui para o estabelecimento dos elementos de um regime de administração da irrelevância na economia. Antes, faremos duas ressalvas metodológicas importantes. A primeira é que a própria forma esquemática com que esses elementos são apresentados constitui-se mais em recurso heurístico do que propriamente sua manifestação real, já que na prática nada autoriza tomá-los de forma estanque e em graus diferenciados de importância causal, ou pensá-los a partir de modelos de causalidade linear; ao contrário, formam um todo unitário, reforçam-se mutuamente de maneira complexa. A segunda é que, apesar da importância dos recursos materiais em ciência, a condição periférica não deve ser tomada como algo definitivo, pois o “centro” do conhecimento mais valorizado pode ser deslocado em função de processos práticos que superem essa condição. Considere-se a recomendação de Colander (2014COLANDER, David. Can european economics compete with US economics? And should it?. In: LANTERI, Alessandro; VROMEN, Jack (orgs.). The Economics of Economists: Institutional Setting, Individual Incentives, and Future Prospects Account. Cambridge,UK: Cambridge University Press. 2014., p. 153) aos economistas europeus, outrora centrais na construção do pensamento global, na qual os exorta a “verem seus pontos fortes”, a abandonarem as métricas da concorrência em uso, para escapar dos danos de “uma posição permanente de segundo nível”.

O primeiro elemento implicado na adesão a agendas globais e que opera para a autopercepção de “irrelevância” da prática científica é denominado de “referência atrasada” (Neves, 2020NEVES, Fabrício. A periferização da ciência e os elementos do regime de administração da irrelevância. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-18, 2020.). Aqui, mais uma vez, ressaltamos as formulações de Colander (2004COLANDER, David; HOLT, Richard; ROSSER JR., Barkley. The changing face of mainstream economics. Review of Political Economy, v. 16, n. 4, p. 485-499, 2004.), segundo as quais a corrente principal dos economistas é aquela que se define por lançar temas de fronteira, temas que levam entre cinco e dez anos para serem integrados à bibliografia da pós-graduação, e em torno de 15 anos para a graduação. Como a “antecedência cria a referência”, aceitar esse critério, como fazem os seguidores da corrente principal no Brasil (centro da periferia), significa atribuir à “periferia” o papel de “segunda linha”, sem o desenvolvimento de teorias próprias e absorvedora de conhecimento defasado, condenada a emular técnicas estranhas ao meio. Cria-se entre nós aquilo que Alfredo Bosi (1992BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.) chamou de “obsessão pelo descompasso”. Se a adesão for baseada nas métricas de publicação de artigos em periódicos internacionais, o agravante é o fato de que quando um artigo sai em um periódico, ele já teve grande parte da influência que terá sobre os pesquisadores “de ponta”13 13 Segundo o autor, pelo menos dois anos atrás do pensamento dos especialistas sobre a ideia. , isso porque muito do debate sobre uma ideia (Estados Unidos) acontece no estágio anterior, nos workshops de pesquisa das melhores universidades (Colander 2014).

Na perspectiva universalista em voga, a solução para o nosso “atraso” em produzir conhecimento de ponta é intensificar os “fluxos de pesquisadores”, aumentar a participação nos espaços internacionais de produção de conhecimento. Espaços esses altamente hierarquizados, como demonstra uma análise recente sobre o predomínio de indivíduos vinculados a instituições norte-americanas e inglesas no corpo editorial das revistas A1 da Área de Avaliação Economia (53% e 13.8% do total de editores, respectivamente) (Fernandes & Manchini, 2019FERNANDES, Gustavo Andrey Almeida Lopes; MANCHINI, Leonardo de Oliveira. How QUALIS CAPES influences Brazilian academic production? A stimulus or a barrier for advancement? Brazilian Journal of Political Economy, v. 39, n. 2, p. 285-305, 2019.)14 14 Ao analisar a origem dos periódicos, destacam-se apenas três locais de origem: Estados Unidos (42.86%), Reino Unido (28.57%) e Países Baixos (28,57%). A presença de editores vinculados a instituições brasileiras continua insignificante nos periódicos A2 da área, representando cerca de 1,4% brasileiros. No caso, a assimetria também se mantém para a origem desses periódicos, com apenas um periódico brasileiro (2,44%), somando à participação da Alemanha (4,88%), Estados Unidos (21,95%), Países Baixos (34,15%) e Reino Unido (36,6%). . O resultado do esforço de maior participação tem sido, contudo, gerar uma assimetria clara entre o que é produzido fora e o que é produzido dentro, levando-se em conta a construção de expectativas que reforçam o lugar do centro como fixo, presentes principalmente na ideia de “autoridade estrangeira”. Nesse sentido, é com frequência que pesquisadores retornam do intercâmbio no exterior passando a atuar como divulgadores do conhecimento produzido fora, seja através da tradução de livros, seja na organização de seminários e congressos para difundir o que foi aprendido. Os dados permitem mostrar bem essa relação assimétrica no fluxo do conhecimento, já que há um número maior de pesquisadores de instituições nacionais indo para o exterior do que de estrangeiros vindo para o Brasil (114 × 154, para o ano de 2014, Tabela 4 em anexo). Da maior parte dos pesquisadores que vai para o exterior, mais de a metade tem por destino países anglo-saxões, no caso, Estados Unidos, 38,31%, e Reino Unido, 18,83%. Em relação à vinda de pesquisadores para o Brasil, apesar de não ter sido encontrada a informação para o caso específico da economia, segundo dados do CNPq (referência), do total de pesquisadores (todas as áreas) que vieram, apenas 4% são dos Estados Unidos e 0,2% do Reino Unido.

Os relatórios de avaliação de área da Capes, principal órgão de fomento da pesquisa no exterior, reforçam a percepção tratada aqui sobre as assimetrias atencionais relacionadas à questão do intercâmbio. Nestes, o incremento de qualidade da pesquisa nacional é correlacionado, de um lado, ao aprendizado de técnicas modernas e de ampliação de redes para publicação no exterior; de outro, à vinda de estrangeiros para aprimoramento e treinamento dos pesquisadores locais. Veja-se, por exemplo, o Relatório de Avaliação Quadrienal da Capes 2013/2016 (Capes, 2017), no qual os termos “internacionalização” e “qualidade” são tomados como equivalentes simétricos. O entendimento é que a internacionalização traz avanços na qualidade da produção dos programas e na excelência acadêmica via

atração de alunos e de pesquisadores estrangeiros... estabelecimento e fortalecimento dos núcleos de pesquisa, [resultando] ... em novos avanços na qualidade da produção dos programas e na excelência acadêmica da área (Capes, 2017, p. 30).

Pressupõe, portanto, aquilo que está em causa, ou seja, a relação entre internacionalização e qualidade.

Seguir agendas internacionais, com critérios de classificação internacionais e fluxo de intercâmbio que privilegie o centro pode implicar outra assimetria, na qual o “local” perde suas características particulares, tornando-se mais uma instância de aplicação do caso geral. Quando as idiossincrasias são recorrentes e persistentes, atribui-se a esses casos o status de anomalia, ou desvio do caso normal, atraindo a atenção mais por seu exotismo (jabuticaba). A incapacidade de concentrar a atenção da comunidade científica internacional em alguns “objetos locais”, tornando-os de interesse universal, pode ser ilustrado checando os seguintes resultados de um estudo já mencionado que analisa 474 artigos publicados nos cinco periódicos com maior impacto (de acordo com o Índice h) da economia. Neste, constatou-se que o objeto de estudo “Brasil” foi abordado em apenas 0,21% (um artigo) e a América Latina em 1,05% dos artigos, ao passo que os Estados Unidos foram abordados em 11,8% (Fernandes & Manchini, 2019FERNANDES, Gustavo Andrey Almeida Lopes; MANCHINI, Leonardo de Oliveira. How QUALIS CAPES influences Brazilian academic production? A stimulus or a barrier for advancement? Brazilian Journal of Political Economy, v. 39, n. 2, p. 285-305, 2019.). Ademais, se tomarmos o caso dos autores literalmente citados acima por Colander (2004COLANDER, David; HOLT, Richard; ROSSER JR., Barkley. The changing face of mainstream economics. Review of Political Economy, v. 16, n. 4, p. 485-499, 2004.) - como parte da elite dos economistas -, o resultado é emblemático e ilustrativo a respeito da falta de interesse nas questões locais. Quando se olha para a produção dos referidos autores, nenhum deles trabalhou com temas ou problemas brasileiros ou publicou os artigos que viriam a ser seminais em periódicos brasileiros15 15 Paul Samuelson, Kenneth Arrow, Robert Solow, Thomas Schelling, Amartya Sen, Joseph Stiglitz, Chris Sims, Michael Woodford, George Akerlof, Richard Thaler, Anne Krueger e Jagdish Bhagwati. . Mesmo em termos de temática, aquele que mais se aproxima das questões voltadas aos problemas do Brasil é Amartya Sen, um indiano que ganhou o Prêmio Nobel em 1998 por sua contribuição teórica fundamental para a economia do bem-estar, entre outras coisas, nos países em desenvolvimento.

No caso aqui tratado, em que há restrições ao acesso a espaços globais (“centrais”) de prática, com baixo impacto editorial das revistas, dificuldade em propor agendas globais de pesquisa e fluxos assimétricos de pesquisadores, predomina o último elemento, chamado de “traduções assimétricas” do conhecimento científico (Medina, 2013MEDINA, Leandro. Objetos subordinantes: la tecnología epistémica para producir centros y periferias. Revista Mexicana de Sociología, v. 75, n. 1, p. 7-28, 2013.). Isso pode ser demonstrado pesquisando-se as principais publicações científicas A1 de autores vinculados a instituições nacionais no mesmo quadriênio (Tabela 1 em anexo). Constata-se que do total dos 150 artigos identificados (periódicos explicitamente vinculados à economia), 89,01% das referências bibliográficas são estrangeiras e, quando autores vinculados a instituições de pesquisa locais são citados, a preferência foi por artigos ou livros publicados em fontes de pesquisa estrangeiras. Mesmo entre os artigos que abordam questões relativas à realidade brasileira, a utilização de referências estrangeiras é majoritária (85,24%), deixando a sugestão de que o arcabouço teórico-metodológico também é importado (Tabela 2, em anexo)16 16 Dado o menor número de artigos locais em relação aos artigos produzidos pelo resto do mundo, seria de se esperar que a proporção de citações estrangeiras superasse as referências locais. O que a literatura indica é que em países da Europa e nos Estados Unidos, a proporção de artigos estrangeiros citados é muito menor do que em países do Sul Global, ou seja, sua “cultura de citação” é altamente endógena. Ver Antonio da Silveira Brasil Jr. e Lucas Correia Carvalho (2020). .

Outro dado que reforça a percepção da existência de relações assimétricas que dificultam o estabelecimento de agendas de pesquisa é que os artigos produzidos por pesquisadores locais são consideravelmente menos citados do que aqueles escritos em coautoria com pesquisadores estrangeiros, isso considerando artigos publicados em periódicos internacionais A1 de economia entre 2013 e 2016. Os artigos sem coautoria internacional, publicados por autores brasileiros, tratando ou não da realidade nacional, têm pouco impacto comparativo, respectivamente 7,03 contra 15,65 (Tabela 3, em anexo). Assim, a colaboração pode redundar em maior impacto, embora, como posto acima, possa também representar adesão a agendas de pesquisas internacionais. Em resumo, o que os dados permitem afirmar é que a lógica atencional da pesquisa em economia no Brasil é caracterizada pelo claro viés de preterir a produção local e os autores locais, o que corrobora a expectativa de que o impacto da produção brasileira continue baixa, reforçando o padrão de hierarquização científica centro/periferia.

Cabe finalmente ressaltar, caso predomine a visão universalista de ciência, como parece ser o caso, com a adesão dos economistas brasileiros a critérios globais para avaliar a própria disciplina, principalmente aqueles baseados em índices de impacto de publicações em periódicos internacionais, o resultado mais provável será o de se criar uma ordem científica interna autodepreciada. Os problemas com esses critérios são evidentes e ocorrem principalmente porque eles não permitem captar os aspectos multidimensionais do conhecimento, mormente quando se leva em conta as necessidades locais. Basta pensar que, no Brasil, a profissão de economista esteve voltada historicamente à produção de conhecimentos que se mostraram relevantes para a solução dos problemas do país, sobretudo na orientação da promoção do desenvolvimento econômico.

Conclusão

A disputa entre uma visão mais universalista e uma mais particularista de ciência também está presente na economia, campo onde a corrente principal busca estender a lógica dos mercados competitivos a ponto de abarcar a própria compreensão da prática científica. No caso do Brasil, a adesão a agendas de pesquisa e critérios de avaliação internacionais assume o papel de mecanismo “natural” de elevação da qualidade da ciência, tanto pela possibilidade de aprendizado quanto pela segurança epistêmica que a inserção num mercado de ideias mais amplo ofereceria à produção de conhecimentos críveis.

No mundo real, poucos mercados têm a estrutura concorrencial preconizada pelos modelos econômicos da teoria econômica ideal. No campo científico, além das desigualdades materiais (desproporção em termos de recursos financeiros), que se constituem em verdadeiras barreiras à entrada, há também elementos simbólicos, como os fatores atencionais, que hierarquizam temáticas e classificação de instituições e de pesquisas. É na interação complexa entre esses elementos materiais e simbólicos que se deve, portanto, buscar o entendimento da estrutura centro-periferia da produção científica global, bem como da constituição dos regimes de administração da irrelevância.

No caso da produção científica em economia, constatou-se que a tendência de seguir a lógica universalista de ciência, ao invés de aumentar o apelo global da produção local, tende a contribuir para gerar uma ciência autodepreciada, de “segundo linha”. Diferentes elementos foram analisados. O primeiro é a dificuldade de os autores nacionais evidenciarem os objetos relacionados aos problemas brasileiros, com a consequente adesão tácita a agendas internacionais, supostamente em função das possibilidades de maior projeção. Essa estratégia está relacionada ao segundo elemento destacado, referência atrasada, com os pesquisadores fazendo citações posteriores, reproduzindo, menos que criando, marcos de conhecimento. Como as publicações pioneiras que nos servem de referência são estrangeiras, nossa reduzida capacidade de liderar é responsável também pelo fluxo assimétrico de pesquisadores, em que os brasileiros buscam aperfeiçoamento fora enquanto poucos estrangeiros se interessam em vir em missões de pesquisa. Finalmente, o artigo discutiu a capacidade de esses pesquisadores produzirem conhecimento que lhes permita participar de igual para igual em controvérsias científicas. Em decorrência da autoimposição das dinâmicas de periferização, que diminui o valor do próprio conhecimento ou dos pares próximos, processo que chamamos de traduções assimétricas, tem-se a baixa capacidade de fazer circular conhecimento para além de seu próprio contexto. Ou seja, fazemos claramente circular entre nós conhecimento alheio e ignoramos o que nós mesmos produzimos.

Os apontamentos feitos acima não devem ser tomados como sentença condenatória, pela qual a economia nacional estaria destinada a uma permanente condição periférica, até porque um regime de administração da irrelevância não pode ser tomado como condição científica definitiva. A ciência é dinâmica e, de tempos em tempos, o “centro” do conhecimento mais valorizado é deslocado em função de processos práticos que superem a condição de periferização. Claro que não se trata de isolar-se num contexto científico global cada vez mais interconectado. Um exercício que, suspeitamos, renderá frutos é mostrar-se mais atento ao que se produz em contextos mais próximos, superando a ignorância do vizinho, do par imediato. Ignorância, que no caso aqui tratado, se confunde com irrelevância.

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  • 1
    A citação dos artigos foi retirada prioritariamente do Scopus, Web of Science e Crossref. Na ausência dos dados nessas bases, foi utilizado o Google Acadêmico.
  • 2
    Claro está que a diferença centro/periferia não se coloca nos limites dos Estados nacionais. Há periferização na Suécia e nos Estados Unidos da América e centralização no Brasil, na África do Sul, na Hungria. Periferização/centralização são práticas, rotinas enraizadas em contextos específicos, não necessariamente nacionais. Em trabalhos posteriores será abordada a dinâmica de centralização, a qual não é importante agora.
  • 3
    Como exemplo, tomemos o caso do Programa Ciência Sem Fronteira, que, entre 2012 e 2016, financiou (por 13 bilhões de reais) aproximadamente 93 mil estudantes brasileiros para estudos e pesquisa no exterior. Sessenta por cento das bolsas foram destinadas a universidades de países supostamente centrais, como Estados Unidos (27,8 mil), Reino Unido (10,7 mil), Canadá (7,3 mil), França (7,2 mil) e Austrália (7 mil) (Marques, 2017), e o restante, a países do norte global. Houve - justiça seja feita - 43 bolsas para o Chile, 18 para o México e 16 para a África do Sul.
  • 4
    Ainda que com pouco impacto, distribui prebendas acadêmicas e reconhecimento com base em feitos supostamente internacionais.
  • 5
    Apesar da sugestão, Davis (2019) não desenvolve a noção centro-periferia para a relação entre países, usa o termo “periferia” internamente à economia, ou seja, como polo oposto à corrente dominante, independentemente de onde esteja localizada geograficamente.
  • 6
    O curso geral passou a conferir o diploma de contador e o superior, o de graduação em ciências econômicas e comerciais, ainda que não se equiparasse ao diploma de medicina, direito e engenharia.
  • 7
    Não havia uma diferença específica entre os campos da economia enquanto profissional da economia em relação à contabilidade, ao direito e a engenharia. Para cursar administração e finanças exigia-se formação técnica, de nível médio, de perito-contador. O diploma de nível médio garantia exclusividade em inúmeras funções, especialmente no setor público (Saes & Cytrynowicz, 2000).
  • 8
    Esses centros são cursos de aperfeiçoamento, cujo objetivo era superar as deficiências dos cursos de bacharelado em economia e preparar quadros para o governo.
  • 9
    Para os particularistas, as agendas de pesquisa tendem a refletir mais certas condições e interesses específicos do que qualquer conhecimento geral e de validade irrestrita. Seguir agendas globais diminui custos e incertezas da inovação, pela cópia dos desenvolvimentos do centro; a perda é preterir os problemas e demandas locais, além da permanente frustração em atender aos critérios de excelência, sempre avaliados segundo a régua dos interesses da pesquisa do centro.
  • 10
    As linhas e setas tracejadas mostram menor intensidade no fluxo comparadas às cheias. No plano vertical, o conhecimento tende a ser absorvido de forma bastante desproporcional, indo do centro em direção à periferia. No plano horizontal, há menor transferência de conhecimento entre, de uma lado, as correntes principal e ortodoxa e, de outro, as heterodoxas. A divisão do centro do centro em elite e ortodoxia segue Colander (2004), os primeiros tendem a produzir conhecimentos de fronteira, os segundos formam uma representação estática de conhecimentos estabelecidos. A heterodoxia se opõe à ortodoxia, mas pode influenciar a elite, com hipóteses novas, desde que passíveis de modelagem. A heterodoxia, contudo, é pouca receptiva às ideias da elite, bem como da ortodoxia. Uma checagem no site <https://ideas.repec.org/top/top.journals.all.html> mostra o número de 2838 periódicos ranqueados para o total de 233 países (incluindo os não reconhecidos oficialmente, os principados e protetorados). Acessado em 20 abr. 2021.
  • 11
    Essa visão está de acordo com o que os economistas ortodoxos brasileiros, autodenominados “tradicionais”, pensam a respeito de si e de seus opositores. Entendem que a crítica heterodoxa falha por partir de um conjunto de princípios fixos para caracterizar o trabalho deles: princípios que seriam baseados em versões estilizadas de algum modelo, com a consequente generalização de seus resultados para todo o programa de pesquisa. Os economistas “tradicionais”, em contraposição, identificam os heterodoxos como aqueles que desprezam o método e os dados estatísticos.
  • 12
    Há uma diferenciação entre “Área de avaliação” e “Campo”. Área de avaliação, como administração pública e de empresas, ciências contábeis e turismo que são propriamente de administração.
  • 13
    Segundo o autor, pelo menos dois anos atrás do pensamento dos especialistas sobre a ideia.
  • 14
    Ao analisar a origem dos periódicos, destacam-se apenas três locais de origem: Estados Unidos (42.86%), Reino Unido (28.57%) e Países Baixos (28,57%). A presença de editores vinculados a instituições brasileiras continua insignificante nos periódicos A2 da área, representando cerca de 1,4% brasileiros. No caso, a assimetria também se mantém para a origem desses periódicos, com apenas um periódico brasileiro (2,44%), somando à participação da Alemanha (4,88%), Estados Unidos (21,95%), Países Baixos (34,15%) e Reino Unido (36,6%).
  • 15
    Paul Samuelson, Kenneth Arrow, Robert Solow, Thomas Schelling, Amartya Sen, Joseph Stiglitz, Chris Sims, Michael Woodford, George Akerlof, Richard Thaler, Anne Krueger e Jagdish Bhagwati.
  • 16
    Dado o menor número de artigos locais em relação aos artigos produzidos pelo resto do mundo, seria de se esperar que a proporção de citações estrangeiras superasse as referências locais. O que a literatura indica é que em países da Europa e nos Estados Unidos, a proporção de artigos estrangeiros citados é muito menor do que em países do Sul Global, ou seja, sua “cultura de citação” é altamente endógena. Ver Antonio da Silveira Brasil Jr. e Lucas Correia Carvalho (2020).

Anexos

Tabela 1
Referências dos artigos publicados em periódicos internacionais A1 de economia entre 2013-2016.

Tabela 2
Referências dos artigos que abordam questões relativas ao Brasil publicados em periódicos internacionais A1 de economia entre 2013-2016

Tabela 3
Impacto médio dos artigos publicados em periódicos internacionais A1 de economia entre 2013-2016

Tabela 4
Fluxo de bolsistas da Capes no ano 2014. Área de Avaliação e do Conhecimento Economia

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2022
  • Aceito
    11 Out 2023
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