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A contemporaneidade dos clássicos: viradas praxiológicas em Marx e Durkheim

The contemporaneity of the classics: praxeological turns in Marx and Durkheim

Resumo

Em um movimento inverso aos frutíferos esforços de demonstrar a presença das problemáticas clássicas na teoria social recente, buscaremos aqui reler os clássicos, em particular Marx e Durkheim, a partir de uma gramática contemporânea. Pretendemos, mais especificamente, demonstrar como aquilo que tem sido alcunhado de “virada praxiológica” na teoria social contemporânea é também um movimento detectável no corpus marxiano e durkheimiano e que se consolida sobretudo em suas últimas obras, O capital e As formas elementares da vida religiosa: no caso de Marx, em seu conceito de fetichismo; no caso de Durkheim, na centralidade dada às práticas rituais e à efervescência para pensar a conformação do social.

Palavras-chave:
Teoria sociológica; Marx; Durkheim; Virada praxiológica

Abstract

In a reverse movement to the fruitful efforts of demonstrating the presence of classical issues in recent social theory, we aim to reread the classics, particularly Marx and Durkheim, through a contemporary grammar. Specifically, our intention is to show how what has been labeled as the "praxeological turn" in contemporary social theory is also a detectable movement within the Marxian and Durkheimian corpus, particularly in their later works, Capital and The Elementary Forms of Religious Life. In the case of Marx, this can be seen in his concept of fetishism, while in the case of Durkheim, it lies in the centrality attributed to ritual practices and social effervescence in understanding social formation.

Keywords:
Sociological theory; Marx; Durkheim; Praxeological turn

Introdução

Se o(a) leitor(a) nos permite iniciar com premissas um tanto triviais, importa de imediato evidenciar o caráter fundamentalmente contrastivo das dinâmicas teóricas inscritas em termos como “guinada”, “giro”, “virada”. Por mais continuísta ou descontinuísta, gradual ou disruptivo que seja o movimento assim enquadrado, trata-se sempre de demonstrar a passagem de uma configuração teórico-conceitual e metodológica anterior para outra, passagem essa a tal ponto explícita e significativa que permite aos que trabalham com a teoria afirmar: viramos, éramos de tal modo, hoje outros somos.

A chamada virada praxiológica nisso enquadra-se plenamente. Diriam os trabalhadores da teoria: estávamos imersos em um ambiente no qual o léxico e a semântica de apreensão dos fenômenos sociais eram fortemente marcados pelos problemas da consciência, do sujeito, da representação, de substâncias e essências; parecíamos sempre cindidos e ocupados em defender, para uns, o partido do indivíduo, da ação e do sentido, para outros, a defesa do partido da sociedade, da estrutura e da coação. Ao menos esse seria o status quo ante se tomarmos como parâmetro a luta de Pierre Bourdieu e Anthony Giddens contra a polarização da teoria social em objetivistas e subjetivistas, assim como a descrição de Jeffrey Alexander do que seria o velho que precede o “novo movimento teórico” (Alexander, 1987______. O novo movimento teórico. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 2, n. 4, São Paulo, 1987.), no qual aqueles estão inseridos. Esse novo, no que diz respeito especificamente à chamada “teoria da prática” (Ortner, 2007ORTNER, Sherry. Uma atualização da teoria da prática. In: CORNELIA ECKERT, Miriam Pillar. Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas, p. 19-44. Blumenau, SC: Nova Letra, 2007.) ou “virada praxiológica” (Peters, 2020PETERS, Gabriel. A virada praxiológica. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 123, p. 167-188, 2020.), seria marcado, sem nenhuma surpresa, pelo foco nas práticas sociais. É quando nos concentramos no espaço-tempo processual e relacional das práticas e nas propriedades que aí atuam ou emergem que podemos - afirma o novo discurso - livrar-nos dos impasses dualistas legados pela filosofia do sujeito e da consciência à teoria social. “Trata-se de uma teoria geral da produção de sujeitos sociais por meio da prática no mundo e da produção do próprio mundo por intermédio da prática” (Ortner, 2007, p. 38).

Por certo, não demorou a aparecer comentadores para demonstrar que a situação não era tão dualista assim e que os clássicos ou estavam claramente preocupados com problemas de síntese (Tavolaro, 2007TAVOLARO, Sergio. Variações no interior de um discurso hegemônico? Sobre a tensão “ação-estrutura” na sociologia contemporânea. Teoria & Pesquisa, v. 16, n. 1, 2007.) - o que é particularmente explícito na própria definição do âmbito da sociologia em Simmel (2006SIMMEL, Georg. Questões fundamentais de sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.) - ou que as contribuições dos clássicos poderiam ser relidas e rearticuladas a partir dos problemas ensejados pelo novo movimento teórico. Neste artigo, inserimo-nos nesse vetor de trabalho teórico que, de certo modo, estraga a festa da novidade ao indicar que o novo não é tão novo assim ou que, para sermos mais justos, busca demonstrar que o velho merece ser relido a partir dos novos enunciados para assim evidenciar que no torvelinho de ambivalências das obras clássicas é possível extrair, ainda, mais frescor que bolor, mais aurora que ocaso.

Em curta frase, numa postura explicitamente anti-historicista, trata-se de pensar menos a presença dos clássicos nos contemporâneos do que a contemporaneidade dos clássicos. No sentido exato do que está implicado quando se fala em “virada”, buscaremos demonstrar, numa abordagem diacrônica e sintética, como é possível detectar em Karl Marx e em Émile Durkheim aquele tipo de passagem que permite dizer, quando analisamos momentos distintos de suas obras: não estamos mais exatamente no mesmo terreno.

Nas páginas subsequentes buscaremos reler Marx e Durkheim a partir de uma teoria da prática. Na primeira seção, após esta Introdução, reconstruiremos o percurso marxiano de passagem de uma concepção de práxis ainda ligada aos pressupostos de uma filosofia do sujeito e da consciência para um foco nas práticas presentes no conceito de fetichismo. Releitura do chamado Marx maduro que se ampara especialmente nos trabalhos de Étienne Balibar (1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.), Moishe Postone (2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014.) e Slavoj Žižek (1996ŽIŽEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In: ______ (org.). Um mapa da ideologia, p. 297-331. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.). Na segunda seção, sugerimos que Durkheim seguiu trilhas semelhantes com suas categorias fenomenológicas da efervescência e da dinamogênese, forjando uma teoria dos afetos ainda entre os anos de 1901 e 1903, e dando acabamento sistemático em escritos de 1912 a 1914. No curso de nossas reinterpretações, defenderemos como a teoria da prática presente nos clássicos aqui tratados permite uma maior delimitação entre prática (nível pré-reflexivo) e cultura (mediada reflexivamente) ao pensar a (re)produção social e, portanto, numa clara distinção em relação à “virada praxiológica” contemporânea, não concebe a praxiologia como um tipo de culturalismo.

O fetichismo como praxiologia

É de amplo conhecimento a influência da obra de Ludwig Feuerbach no trabalho intelectual do jovem Marx, em particular o modelo da inversão sujeito-predicado forjado na crítica da religião do primeiro para a crítica do direito, do Estado, do estranhamento/alienação e da ideologia, neste último caso com uma dose maior de tensão ou de corte com o legado do riacho de fogo. Como escreveu na Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel: “A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra...” (Marx, 2005, p. 146). Nesse mesmo texto de 1843-1844, é na terra da sociedade civil que se encontra o fundamento sócio-histórico, e não lógico, do direito e do Estado.

Nos Manuscritos de 1844, a terra, na guinada que vai da anatomia para a fisiologia do corpo social, é a “relação essencial do trabalho”, a “relação do trabalhador com a produção” (Marx, 2004______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 82). É para onde deveríamos olhar, em particular para o estranhamento constituinte do processo de trabalho capitalista, para compreendermos os fenômenos mais amplos da sociedade burguesa: “é de se notar - afirma Marx (2004, p. 90) - que tudo o que aparece no trabalhador como atividade da exteriorização, o estranhamento , aparece no não trabalhador como estado da exteriorização, do estranhamento1 1 Aspecto este levado às últimas consequências pela tradição que vai do jovem Georg Lukács (2003) a Itsván Mészáros (2006), para quem a “síntese in status nascendi” presente nos Manuscritos de 1844 esboça “as linhas gerais de uma vasta e abrangente concepção da experiência humana em todas as suas manifestações; mais abrangente, de fato, do que qualquer coisa anterior a ela, inclusive a grandiosa visão hegeliana” (Mészáros, 2006, p. 21). .

Em A ideologia alemã (Engels & Marx, 2007ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.), a terra é a história das modulações da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual que permite tanto a aparência de que as ideias são, à moda de Luhmann, autopoiéticas (criam-se a partir de seus próprios recursos), como igualmente a função de dominação que podem ter certas ideias que aparentemente pairam no ar: como a religião, a filosofia, o direito, o Estado etc. A articulação entre esses dois atributos da ideologia exprime já um certo tateio com a concepção, amadurecida em O capital, como veremos, de que há um domínio particular da “necessidade da aparência” (Balibar, 1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.), algo que Bourdieu (2010______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.) chamaria de illusio.

Ainda no contínuo desses três textos, incluamos as Teses sobre Feuerbach. Observa-se a progressiva clareza de que a terra - tanto fundamento que desvela a apreensão distorcida dos fenômenos, como princípio de superação das condições mesmas que permitem tais distorções - é a prática ou a práxis. Haveria, portanto, uma virada praxiológica em Marx desde os seus primeiros textos?

A resposta negativa à pergunta é previsível por duas principais razões. Primeiramente, aquilo que se concebe como prática ou práxis, nesse momento da obra de Marx (e Engels), é particularmente distinto da semântica da prática presente na virada praxiológica. Por um lado, a práxis denota uma prática simultaneamente restrita e abrangente. Restrita pois diz respeito, fundamentalmente, à produção da vida material humana como produção dos meios que a possibilitam; à práxis do trabalho, da “atividade vital consciente” do ser genérico por excelência que é o humano. Abrangente porque, a despeito das intrigas e fundamentais diferenças, a práxis do trabalho é tomada como modelo das práticas sociais em geral para tradições díspares como a lukácsiana (para uma síntese, ver Antunes, 1999ANTUNES, Ricardo. Capítulo VIII. Excurso sobre a centralidade do trabalho: a polêmica entre Lukács e Habermas. In: ______. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.) e a althusseriana (Althusser, 1979______. De O capital à filosofia de Marx. In: ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Étienne; RANCIÈRE, Jacques. Ler o capital, v. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., 2015).

Por outro lado, a prática/práxis é o princípio de uma (anti)filosofia do futuro, para sermos coerentes com a Tese XI, um princípio de atividade e organização para a transformação do mundo: as duas dimensões são complementares - é o momento de liberdade intrínseco à própria “atividade vital consciente” do trabalho humano que nos lança permanentemente para além do reino da necessidade.

Resta que tal noção de práxis ou prática se encontra ainda particularmente dependente de certos aspectos da filosofia da consciência e do sujeito. Em 1843-1844, o proletariado substitui o Stand universal que Hegel via se realizar no complexo jurídico-político prussiano (Tible, 2014TIBLE, Jean. Marx e os outros. Lua nova, n. 91, p. 199-228, 2014.). O proletariado não é, aí, muito mais do que o inverso da ideia, e nessa mera inversão não deixa de pairar no ar como sujeito-objeto idêntico do processo histórico, enquadrando-se plenamente naquele progresso que se faz pelo “lado mau” (Balibar 1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.):

uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade sem emancipá-las a todas - o que é, em suma, a perda total da humanidade, portanto, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado (Marx, 2005______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 156).

Em 1844 (nos Manuscritos), a despeito de já antecipar a crítica da concepção estática e contemplativa da concepção feuerbachiana do homem sensível, que se projeta e se perde na religião, a herança idealista e essencialista, mesmo que fundamentada numa ontologia do trabalho, aparece como premissa explícita e como referente normativo para a crítica do estranhamento e do trabalho assalariado (mediação de segunda ordem, Mészáros, 2006MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação de Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.). Contra este, o trabalho como exteriorização (mediação de primeira ordem) é, antes de tudo, autoatividade: para o humano, que “se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico ”, “a natureza aparece como a sua obra e a sua efetividade (Wirklichkeit)” (Marx, 2004______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004., p. 85). István Mészáros, mesmo tentando separar Marx das concepções essencialistas (religiosas e filosóficas) historicamente precedentes de alienação, não é de todo exitoso nesse fim.

Essa abordagem - cujo centro de referência é a atividade produtiva ou práxis - encerra em si que o que emerge como sendo a “essência da natureza humana” não é o egoísmo , mas a socialidade (isto é, “o conjunto das relações sociais”, como coloca Marx em sua sexta tese sobre Feuerbach). [...] a realização adequada da natureza humana não pode ser a concorrência - essa “condição inconsciente da humanidade” que corresponde ao egoísmo e ao bellum omnium contra omnes hobbesiano -, mas a associação consciente (Mészáros, 2006MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação de Marx. São Paulo: Boitempo, 2006., p. 138).

As antinomias de uma crítica da natureza humana que supõe uma concepção de natureza humana 2 2 Adolfo Sánchez Vázquez (1977)formulou de maneira precisa o que aqui chamamos de uma antinomia presente no Marx de 1844: “Vemos por conseguinte que: a. o homem tem uma essência; b. sua essência é o trabalho; c. essa essência só se manifesta em sua existência como essência alienada; d. portanto, a essência do homem está divorciada de sua existência [...]. e. a essência do homem nunca se manifestou efetiva, real ou historicamente” (Vázquez, 1977, p. 416). não parecem, de fato, ser algo que Mészáros impõe ao jovem Marx, no qual coexistem e se interpenetram uma crítica dos essencialismos, de um lado, e, do outro, a tentativa de demonstrar que os fundamentos do ser genérico humano são antitéticos à forma capitalista do processo de trabalho. Como tão bem formulado pelo jovem Rancière: “Do mesmo modo que é o substantivo homem que devemos encontrar em cada objeto, é uma teoria do homem que verificamos em cada uma das teses nas quais se exprime a teoria crítica do jovem Marx” (Rancière, 1979, p. 98). Teoria crítica que se mantém em uma “concepção da contradição como cisão entre o sujeito e a sua essência e inversão do ato do sujeito” (Rancière, 1979, p. 98).

Em 1845-1846, mesmo com a dinamite aforística de que a essência do homem é o conjunto das relações sociais (percebida, acima, de forma demasiado unilateral por Mészáros), é o problema do falseamento da realidade que mantém Marx tanto em um terreno ambíguo no que se refere à filosofia da consciência, como em uma apreensão ainda fundamentalmente ideal da problemática da reprodução social. Por um lado, a compreensão da ideologia como consciência distorcida - falseadora das reais relações dos indivíduos e grupos sociais com a realidade - mantém-se em um marco iluminista de oposição entre a Treva e a Razão, o Opaco e as Luzes. Por outro lado, e ainda mais importante para a nossa discussão, se o falseamento da realidade tem um vínculo fundamental com a reprodução de relações de dominação, resta que esta reprodução é um problema de mediação ideal entre as estruturas de dominação e os agentes sociais, individuais e coletivos3 3 Não por acaso, a reformulação althusseriana (Althusser, 1985) do conceito de ideologia buscou exatamente desvinculá-lo de todo resquício idealista (leia-se, de toda filosofia do sujeito). Em Althusser, o terreno da ideologia é o terreno da prática em um duplo sentido: as representações ideológicas só perduram e são eficazes quando produzidas e reproduzidas por meio de aparelhos e o seu efeito fundamental é a formação de sujeitos praticamente engajados com a atuação e a dinamização de certa estrutura social historicamente delimitada. Mas aí temos um tipo de praxiologia marxista - com forte acento reproducionista ou estruturalista, por certo - que é uma releitura do corpus marxiano. .

Na prática como práxis marxiana, pode-se dizer, seguindo Balibar (1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.), que

o único verdadeiro sujeito é o sujeito prático ou o sujeito da prática, ou, melhor ainda, que o sujeito não é outra coisa senão a prática que, sempre, já começou e prossegue indefinidamente. Mas, com isso, saímos do idealismo? De modo algum, precisamente porque “idealismo”, historicamente falando, engloba ao mesmo tempo o ponto de vista da representação e o da subjetividade. Na verdade, trata-se de um círculo, ou de um comutador teórico, que funciona nos dois sentidos. É possível dizer que Marx, identificando a essência da subjetividade com a prática, e a realidade da prática com a atividade revolucionária do proletariado (que faz parte da sua própria existência), transferiu a categoria de sujeito do idealismo para o materialismo. Mas também é igualmente possível afirmar que, com isso, ele preparou a possibilidade permanente de representar o proletariado como um “sujeito”, no sentido idealista do termo [...] (Balibar, 1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 37).

As produtivas ambivalências da noção de práxis de modo algum desaparecem na obra tardia de Marx. É evidente o trato com uma ontologia do trabalho, da práxis produtiva, em O capital 4 4 Por exemplo: “O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem - quaisquer que sejam as formas de sociedade -, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana” (Marx, 2008, p. 64-65). . Igualmente evidente é que a práxis transformativa enquanto compromisso tenso entre ciência e revolução, a partir dos atributos daquela mesma concepção de práxis produtiva (necessidade e liberdade, exteriorização e autorrealização, objetividade e subjetividade, natureza e atividade), marcam o trabalho intelectual e político de Marx até o fim dos seus dias.

Neste artigo, em seu fim de ler aspectos da dita “virada praxiológica” em Marx e Durkheim, não se trata, no caso do primeiro, de explorar a compreensão da prática como práxis. Não seguiremos esse caminho por motivos já explícitos na precedente exposição: a despeito de sua riqueza, a prática como práxis é pensada e, constantemente praticada (vide a força da noção de Progresso de Marx aos socialismos reais), no terreno da filosofia da consciência5 5 “O empreendimento teórico de interpretação do marxismo como historicismo não sai dos limites absolutos nos quais se efetua desde Feuerbach essa ‘inversão’ da especulação na práxis, da abstração no ‘concreto’: esses limites são definidos pela problemática empirista, sublimada na especulação hegeliana e da qual nenhuma ‘inversão’ pode nos livrar” (Althusser, 1979, p. 82). , terreno do qual a praxiologia buscou explicitamente se deslocar. O tateio para além do terreno da filosofia da consciência, nos parece, é realizado por Marx quando, em seu conceito de fetichismo, elabora-se, talvez como consequência imprevista, uma concepção praxiológica da (re)produção social. É o que buscaremos defender a seguir.

Há algo de uma inquietude inevitável quanto ao começo de O capital com o capítulo sobre a mercadoria que é finalizado com a seção sobre o fetichismo. Por que, afinal, não começar do começo? Por que não começar, por exemplo, pela acumulação primitiva (capítulo XXIV) e sua exposição das pré-condições necessárias para o modo de produção capitalista (expropriação dupla, colonial/externa e cercamentos/internos), para então adentrar nos conceitos pertinentes a uma sociedade capitalista consolidada, na qual o mercado é o dínamo das atividades ordinárias de indivíduos e de coletividades, a mediação obrigatória para a satisfação de necessidades e para a geração de mais-valor e lucro?

Por um lado, estamos de inteiro acordo com a chamada Nova Leitura de Marx, que identifica na crítica da economia política o abandono de uma “concepção substancialista do valor, como se este fosse uma qualidade interna e independente das mercadorias” (Barreira, 2022BARREIRA, César Mortari. A “nova leitura de Marx”: um mapeamento de suas premissas e desenvolvimentos. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 63, p. 11-40, 2022., p. 24), uma “‘crítica às teorias pré-monetárias do valor’” (Backhaus, 1997BACKHAUS, Hans-Georg. Dialektik der Wertform: Untersuchungen zur Marxschen Ökonomiekritik. Freiburg, DE: Ça Ira, 1997., p. 94 apud Barreira, 2022, p. 25) e a proposição de uma teoria monetária do valor (Heinrich, 2004HEINRICH, Michael. An introduction to the three volumes of Karl Marx’s Capital. New York: Monthly Review Press, 2004.)6 6 Teoria monetária do valor explicitada por Marx na seguinte passagem dos Grundrisse: “No decorrer da nossa exposição ficou evidenciado como o valor, que apareceu como uma abstração, só se torna possível enquanto tal abstração quando é posto o dinheiro...” (Marx, 2011, p. 651). . Logo, o começo de O capital exige um esclarecimento sobre o enigma-dinheiro, uma desmistificação de suas qualidades mágicas, evidenciando a relação fundamental entre dinheiro e valor para assim ter as condições teóricas para elaborar, alternadamente, uma lógica e uma história da acumulação capitalista. Nesse sentido, a exposição progressiva das formas do valor (da forma-simples à forma-dinheiro) é o inverso da constituição do valor: é só quando o dinheiro assume a forma de uma propriedade natural que o valor é efetivamente posto e, assim, inteligível. Afinal, como defende Moishe Postone (2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014.), diferente de uma categoria trans-histórica,

a categoria do valor expressa as relações básicas da produção do capitalismo - as relações sociais que caracterizam o capitalismo como modo de vida social - bem como o fato de a produção no capitalismo se basear no valor. Em outras palavras, valor, na análise de Marx, constitui a “fundação da produção burguesa” (Postone, 2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 40).

Por outro lado, o capítulo primeiro de O capital, na medida em que parte do presente - evidentemente um presente purificado com o artifício da abstração, mas ainda assim o presente “das sociedades onde rege a produção capitalista”, caracterizadas por uma “imensa acumulação de mercadorias” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 57) - é também o que poderíamos chamar de uma teoria elementar da (re)produção social: o conceito de fetichismo exprimindo a forma como as sociedades capitalistas se (re)produzem em um nível pré-reflexivo, pré-ideológico e, portanto, prático.

Por certo, não são poucos os elementos que permitem uma leitura do fetichismo como uma modulação das inquietações do jovem Marx, mestre da crítica às inversões sujeito/predicado ao modo feuerbachiano. Em 1844 e em 1867 não é exatamente a religião o modelo para entender o estranhamento (ver Marx, 2004, p. 83) e o fetichismo (ver Marx, 2008, p. 94)? Afinal, não seria exatamente mais uma inversão essa aparência, para os produtores de “trabalhos privados”, de que suas “relações sociais” são “relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não... relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos” (Marx, 2008, p. 95)?

Essa aproximação é necessária caso o conceito de fetichismo lance luz, retrospectivamente, aos conceitos anteriores, ou seja, caso se leve às últimas consequências a afirmação de Marx de que, no fetichismo - agora trago todo o trecho -,

[as relações sociais] aparecem de acordo com o que realmente são , como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não como relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 95, destaques nossos).

Logo, o fetichismo não diz respeito a um predicado do sujeito humano que se perde e retorna de forma autônoma e hostil, nem a opacidade da troca mediada pelo dinheiro na sociedade burguesa é uma consciência distorcida, falseadora das relações concretas dos homens entre si e com a natureza. O fetichismo é uma teoria dos processos reais “numa sociedade em que a forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho, e, em consequência, a relação dos homens entre si como possuidores de mercadorias é a relação social dominante” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 82).

Como se sabe, já no capítulo primeiro de O capital, Marx escreve que foi o primeiro a colocar em evidência dois problemas científicos fundamentais no campo da economia política: o primeiro é o duplo caráter do trabalho materializado nas mercadorias: como “trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias”; como “dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim”, é “trabalho útil e concreto, produz valores-de-uso” (Marx, 2008, p. 68).

A segunda originalidade - após ter refinado, amparado na economia política clássica, a análise da substância (trabalho humano abstrato) e da magnitude (tempo de

trabalho socialmente necessário) - é a análise da forma do valor, terreno a partir do qual é possível definir o fetichismo da mercadoria e do dinheiro:

Importa realizar o que jamais tentou fazer a economia burguesa, isto é, elucidar a gênese da forma dinheiro. Para isso, é mister acompanhar o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor existente entre as mercadorias, partindo da manifestação mais simples e mais apagada até chegar à esplendente forma dinheiro. Assim, desaparecerá o véu misterioso que envolve o dinheiro (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 70).

São quatro as formas do valor analisadas por Marx:

  1. A forma simples (singular ou fortuita), que confronta duas mercadorias, uma relativa à esquerda e outra equivalente à direita, como na fórmula 20 metros de linho = 1 casaco.

  2. A forma total (ou extensiva do valor) - um “mosaico multifário de expressões de valor díspares, desconexas” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 86) - confronta uma diversidade de mercadorias que ora funcionam como relativas ora funcionam como equivalentes, sem qualquer estabilidade, tal qual a fórmula 20 metros de linho = 1 casaco, ou = 10 quilos de chá, ou = 40 quilos de café, ou = 1 quarta de trigo, ou = etc.

  3. A forma geral do valor que, em um conjunto diverso de mercadorias assume uma delas como equivalente geral frente à qual todas as outras serão relativas, como na fórmula 1 casaco, 10 quilos de chá, 40 quilos de café, 1 quarta de trigo, x de mercadoria A = 20 metros de linho. Aqui, a “forma natural” da mercadoria equivalente geral aparece como “a figura comum do valor” do mundo das mercadorias, “sua forma corpórea” é “a encarnação visível, a imagem comum, de todo trabalho humano” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 89).

  4. A forma dinheiro do valor, que “só difere da forma geral por possuir o ouro, em vez do linho, a forma de equivalente geral” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 92). “O progresso consiste”, continua Marx (2008, p. 92), “em se ter identificado agora, definitivamente, a forma de direta permutabilidade geral ou forma de equivalente geral com a forma específica da mercadoria ouro, por força de hábito social”, como na fórmula 20m de linho,1 casaco, 10 quilos de chá, 40 quilos de café, 1 quarta de trigo, ½ tonelada de ferro, x de mercadoria A = 2 onças de ouro.

Todo o trajeto, da forma simples à forma dinheiro, figura como logicamente necessário para demonstrar que “a forma mercadoria, isto é, a mercadoria equivalente da forma simples do valor, é o germe da forma dinheiro” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 92); que as características fundamentais já encontradas na forma simples também se apresentam na forma dinheiro e que o dinheiro, portanto, não tem qualquer propriedade mágica ou natural quando, no ato da troca, confere valor a esta “imensa acumulação de mercadorias” (Marx, 2008, p. 57) em que vivemos. Tais características fundamentais já isoladas na forma simples, que articulam interpretativamente as duas originalidades conceituais de Marx no capítulo, são as seguintes:

  1. o valor-de-uso da forma equivalente torna-se manifestação de seu contrário, o valor, o corpo físico da forma equivalente revela uma propriedade que não é natural (como o peso, a extensão, a cor), mas social, o valor;

  2. o trabalho concreto torna-se manifestação do seu contrário, o trabalho humano abstrato;

  3. o trabalho privado aparece na troca como o seu contrário, trabalho diretamente social.

Antes de adentrarmos propriamente no conceito de fetichismo, já na análise da forma do valor são perceptíveis elementos caros a qualquer praxiologia, em especial o caráter radicalmente relacional e antissubstancialista da chamada teoria monetária do valor. Ao desenvolver os atributos da forma simples, Marx escreve que só

a expressão da equivalência de mercadorias distintas põe à mostra a condição específica do trabalho criador do valor, porque ela realmente reduz à substância comum, o trabalho humano, simplesmente, os trabalhos diferentes incorporados em mercadorias diferentes (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 72-3, destaque nosso).

Mais à frente, Marx escreve que na forma total do valor torna-se evidente “que não é a troca que regula a magnitude do valor da mercadoria, mas, ao contrário, é a magnitude do valor da mercadoria que regula as relações de troca” (Marx, 2008, p. 85).

Ao observar em conjunto essas considerações, vê-se uma relação complexa entre fundo e fachada, entre substância/magnitude e forma, análoga à relação entre habitus (disposições) e práticas em Bourdieu (2021BOURDIEU, Pierre. Sociologia geral, v. 2 “Habitus e campo”. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.)7 7 Moishe Postone (2014, p. 160, nota 51), em importante nota de rodapé, sugere uma semelhança entre “a teoria marxiana” e o “tipo de teoria da prática delineada por Pierre Bourdieu” em passagem que trata da relação entre valores e preços: “a relação entre o que é apreendido pelo nível analítico de valor e pelo de preço pode ser entendido como constituindo uma teoria (nunca integralmente completada) da constituição mútua das estruturas profundas e de ação e pensamento diários” (Postone, 2014, p. 160). : se de fato, como a segunda passagem torna patente, Marx está em busca de uma formação do valor que não reduza este à esfera da circulação de mercadorias e que, portanto, esclareça os elementos que estão por detrás da relação de troca, a primeira passagem evidencia que a relação de troca não pode ser tomada como mero acessório no qual a substância do valor simplesmente encarna. Pelo contrário, o valor como trabalho humano abstrato cristalizado só existe, deixa de ser mera “abstração” analítica, quando as mercadorias são realmente trocadas. A própria determinação da magnitude do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário só é possível quando os produtores e suas mercadorias de fato se encontram na esfera da circulação, o que leva a uma padronização do tempo de produção de uma determinada mercadoria a partir de um estado particular da produtividade.

Esse caráter relacional e antissubstancialista da relação entre substância e forma perpassa todo o conceito de fetichismo. Como bem sabemos, o fetichismo reside na forma-valor; repousa no fato, específico da sociedade burguesa, de que

os trabalhos privados atuam como partes componentes do conjunto do trabalho social, apenas através das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, entre os produtores (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 95).

A despeito dessa descoberta, na prática da troca,

passa-se a considerar, por exemplo, que 1 tonelada de ferro e 2 onças de ouro têm igual valor, do mesmo modo que 1 quilo de ouro e 1 quilo de ferro têm igual peso, apesar das diferentes propriedades físicas e químicas (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 96).

Descobrir cientificamente esse mistério - Marx faz questão de enfatizar - “não dissipa de nenhum modo a fantasmagoria que apresenta, como qualidade material dos produtos, o caráter social do trabalho” (Marx, 2008, p. 96). Por mais que se saiba do fetichismo, ou melhor, que se eleve o fetichismo à articulação teórica, ele será reproduzido praticamente.

Pois a análise científica segue a “rota oposta” do “verdadeiro desenvolvimento histórico”. As mercadorias são analisadas depois que elas “já possuem a consistência de formas naturais da vida social” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 97).

[E é] essa forma acabada do mundo das mercadorias, a forma dinheiro, que realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em consequência, as relações sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 97).

Portanto, o fetichismo é histórico, típico da sociedade capitalista, na qual o valor é o fim das transações sociais e “os valores-de-uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-de-troca” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 58), na qual a utilidade das coisas são meios para um fim que se encontra na troca. “Somente no capitalismo o trabalho social tem duplo caráter e o valor existe como forma social específica de atividade humana” (Postone, 2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 153). No feudalismo (o principal referente de comparação para Marx), os produtos do trabalho tinham forma diretamente social, movimentavam-se de uma mão a outra para realizar explicitamente as obrigações de relações de dominação pessoal. Também na família camponesa - argumenta Marx -, os produtos de trabalhos diferenciados são diretamente “funções sociais”, por serem “funções da família” (Marx, 2008, p. 100). No capitalismo, porém, os produtos do trabalho têm uma forma indiretamente social, por isso são enigmáticos. Assumem uma forma social apenas quando são trocados e é somente na troca que, num fiat, eles revelam sua comensurabilidade, como se o dinheiro portasse alguma propriedade sobrenatural capaz de equiparar socialmente coisas qualitativamente distintas, produtos de trabalhos concretos distintos e privados.

No jogo relacional entre substância/magnitude e forma do valor - “objetividade elementar” (Balibar, 1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 72) da sociabilidade capitalista - realiza-se um duplo trabalho teórico:

Ao primeiro movimento da crítica, que consiste em dissolver a aparência de objetividade do valor de troca, deve-se então acrescentar outro, que na verdade o condiciona, e mostra a constituiçãoda aparência na objetividade ” (Balibar, 1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 77).

Ao mesmo tempo que, ao gosto da crítica da ideologia, se explica a relação social que está por detrás desse aparente ente místico chamado dinheiro, demonstra-se a realidade da aparência (a aparência necessária) que é o fetichismo. Ainda com Balibar, cujos fins não passam por apontar uma praxiologia em Marx, mas que suporta a leitura aqui feita,

o mecanismo do fetichismo é, em certo sentido, uma constituição do mundo: o mundo social, estruturado pelas relações de troca, que representa evidentemente o essencial da “natureza”, na qual vivem, pensam e agem hoje os indivíduos humanos (Balibar, 1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 82)8 8 Sobre isso, vale relembrar que, no caso de Theodor Adorno, o próprio conceito de sociedade é definido a partir do conceito de troca: “a sociedade socializada, justamente não é apenas um tal nexo funcional entre homens socializados, mas é, como pressuposto, essencialmente determinada pela troca” (Adorno, 2008, p. 106). .

Acrescentaríamos a isso, contra implicações demasiado ontológicas e em favor de uma leitura eminentemente histórica, que a “objetividade elementar”, operada pelo fetichismo, constitui sim um mundo, mas o mundo capitalista, no qual a dinâmica mercantil ganha um caráter de segunda natureza.

É precisamente por tomar a crítica da economia política como teoria específica do capitalismo e da modernidade, e não uma lógica trans-histórica do valor, que Postone (2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014.) explicitamente aproxima as obras tardias de Marx de uma “teoria da prática” (Postone, 2014, p. 18 e 160):

a análise da mercadoria com que Marx inicia a sua crítica é a análise de uma forma social historicamente específica. Ele passa a tratar a mercadoria como uma forma estruturada e estruturante de prática que é a determinação inicial e mais geral das relações sociais da formação social capitalista (Postone, 2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 154).

A “sociedade de produtores de mercadorias” é uma “formação social em que o processo de produção domina o homem, e não o homem o processo de produção” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 102). Lógico que isso imediatamente nos leva de volta aos conceitos de alienação e ideologia - de poderes humanos que se estranham e se voltam contra o humano -, mas há algo de fundamentalmente novo. No conceito de fetichismo da mercadoria, como captura astuciosamente Slavoj Žižek, Marx está apontando para “uma ilusão, um erro, uma distorção que já está em funcionamento na própria realidade social, no nível daquilo que os indivíduos fazem , e não do que pensam ou sabem estar fazendo” (Žižek, 1996, p. 314). Por mais que saibamos que por trás do valor está o trabalho humano, sempre que utilizamos o dinheiro em nossas práticas corriqueiras realizamos o fetichismo, utilizamos um mero artefato social como se tivesse a propriedade mágica de tornar todas as coisas mensuráveis e intercambiáveis.

Temos, assim, um profundo ir além, no conceito de fetichismo, de uma filosofia do sujeito e da consciência, pois revela-se em um nível puramente prático (pré-reflexivo e pré-ideológico) como uma formação social historicamente específica é produzida e reproduzida continuamente. Essa “teoria da constituição do mundo”, ou como preferimos chamar, essa teoria elementar da (re)produção social, “não procede da atividade de nenhum sujeito, de qualquer forma de nenhum sujeito que seja pensável a partir do modelo de uma consciência” (Balibar, 1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 83). Mais que isso - continua Balibar (1995, p. 83) -

se a constituição da objetividade no fetichismo não depende do dado prévio de um sujeito, de uma consciência ou de uma razão, por outro lado ela constitui sujeitos, que são parte da própria objetividade, isto é, eles são dados na experiência ao lado das “coisas” , das mercadorias, e em relação com elas.

A produção de sujeitos na prática das trocas é uma produção que se faz através de corpos e objetos em movimento e em relação.

Marx chega, assim, a um nível de explicação de como se dá a reprodução das relações sociais que está para além dos pares binários ideológicos (no sentido da mediação necessariamente ideal ou de sentido entre estrutura e agência) coerção/hegemonia ou violência/legitimidade. É em nossa prática de todos os dias que se realiza a aceitação tácita de relações fundadas na exploração e na dominação. Isso não quer dizer que tal teoria prática da reprodução social suplante ou seja superior a uma teoria ideológica com o mesmo fim. Ambas são fundamentais, explicativa e normativamente, pois, tanto a dominação como a “liberação” são, para remeter uma última vez à leitura brilhante de Balibar (1995BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 95), “ao mesmo tempo uma questão de ideias e uma questão de hábitos”9 9 Embora a releitura de Marx feita neste artigo seja explicitamente heterodoxa e herética, na medida em que busca, nos marcos de um trabalho de teoria social, capturar elementos de praxiologia em Marx sem identificar-se a uma ou outra vertente marxista particular, este esforço não deixa de se atrelar a um interesse crítico de conhecimento. Apontar para os elementos praxiológicos da (re)produção social presentes na obra de Marx é exigir uma dupla crítica do presente: crítica das ideologias e crítica das práticas. Essa observação permite apontar para uma diferença pontual, mas significativa, da leitura aqui realizada em relação ao trabalho de Postone: não concebemos a “teoria da prática” presente em Marx, que Postone (2014, p. 186) prefere chamar de “forma de dominação abstrata e impessoal”, como um “nível mais fundamental” (Postone, 2014, p. 46) de crítica, mas como perspectiva que, dentro das preocupações marxistas, deve se desenvolver em colaboração com as análises dos processos de expropriação, de exploração de mais-valor e das formas econômicas, ideológicas, estatais e jurídicas de dominação e luta de classes. . Por certo, tal teoria elementar da reprodução social poderia facilmente ser acusada de dar primazia às tendências estruturais em detrimento dos indivíduos, mas essa acusação não minaria o caráter fundamentalmente prático, corpóreo, objetal, relacional e dinâmico (para remeter a alguns dos atributos típico-ideais da “virada praxiológica” segundo Gabriel Peters, 2020PETERS, Gabriel. A virada praxiológica. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 123, p. 167-188, 2020.) daquelas tendências estruturais.

A “virtude dinamogênica” da experiência religiosa: uma virada afetiva como praxiologia radical no “Durkheim tardio”

Depois de experimentar um estado de “revelação” no ano de 1894, Émile Durkheim publicaria sua obra magna As formas elementares da vida religiosa em 1912 e refutaria não apenas as teses de e Lévi-Brühl sobre a suposta mentalidade pré-lógica dos povos tribais como defenderia que a religiosidade desses povos revelaria aspectos que seriam profundamente universais a todo modo humano de existência (Durkheim, 2022). Também a etnologia das sociedades totemistas da Austrália Central revelaria que rituais e cerimônias coletivas são mais do que momentos de religiosidade cultuada. Se se quisesse traduzir as intuições do sociólogo da Sorbonne em linguagem teórica familiar a todos nós hoje, diríamos que nos rituais habitariam “práticas epistêmicas” (Rawls, 2001______. Durkheim’s treatment of practice: croncrete practice vs representations as the foundation of reason. Journal of Classical Sociology, v. 1, n. 1, 2001.; 2005) e experiências corpóreo-afetivas compartilhadas de gênese e realização de uma “estética total” (Miller, 2013MILLER, William Watts. Total aesthetics: art and the elemental forms. In: RYLEY, Ale­xander; PICKERING, W. S. F.; MILLER, William W. Durkheim, the Durkheimians, and the arts, p. 16-42. New York: Durkheim Press, 2013.).

O que poderia ter sido compreendido como a antecipação de um futuro bem presente para quem é hoje contemporâneo da teoria social deste século XXI não foi o entendimento dominante que prevaleceu naquelas primeiras quatro décadas do jovem século XX. Antes, As formas elementares foi lida como obra de sociologia da religião e mesmo de interesse quase excêntrico dos (as) antropólogos(as). Assim o fez Talcott Parsons, em 1937, bem fiel ao seu modo pessoal e interessado em ler/forjar os “clássicos”, concebendo o escrito tardio durkheimiano como sendo o coroamento de uma guinada “idealista” e mesmo “kantiana” na rota anteriormente percorrida pelos jardins mágicos de um positivismo precocemente abatido (Parsons, 2010). Incapaz de reconhecer os alicerces de uma teoria da gênese dos “fatos sociais totais”10 10 Ainda em 1899, em “Prefácio” ao L’Année sociologique, Durkheim trataria nesses mesmos termos a experiência religiosa. , Parsons optou por salientar aquilo que lhe era mais aparente - a teoria da religião e a sociologia do conhecimento -, ocultou o “místico” da religiosidade subjetiva e o macaqueou com face de “padre” da religião objetiva que caminharia entre duas vias de entrada no mesmo reino do idealismo11 11 Como a ironia parece sempre preencher o tinteiro usado pelos sociólogos, no mesmo escrito de 1937, o próprio Parsons chegou a reconhecer na teoria durkheimiana do ritual uma leve inclinação “na direção do pragmatismo” (Parsons, 2010, p. 519), o que contrariava francamente sua conclusão sobre a suposta guinada idealista no “Durkheim tardio”. .

Talvez a visita de Alfred Radcliffe-Brown na Universidade de Chicago, seu antigo professor dos tempos de estudante na London School of Economics, tenha prenunciado a interpretação parsoniana. Afinal, o renomado antropólogo britânico, que dizia se sentir mais à vontade com Durkheim do que com seu colega de universidade Bronisław Malinowski, já havia atribuído - erroneamente12 12 Nesse sentido, a releitura que Lynn Badya (2016) fez do significado das noções de “força” e “energia” na teoria do sagrado de Durkheim é ilustrativa do quão equivocado parecia estar Brown em seu esforço de corrigir seu mestre francês numa espécie de inversão “materialista” do princípio totêmico. Bem ao estilo Feuerbach, Radcliffe-Brown (2013) defendeu um materialismo de epiderme sem entender que o que estava sendo proposto pela teoria do sagrado de Durkheim era outro tipo de materialismo, ainda mais sanguíneo e nevrálgico, posto que lidava com forças e energias encarnadas em corpos reunidos e afetados. - um sobrepeso simbolista na teoria durkheimiana do sagrado, chegando a propor a confusa substituição de uma teoria dos afetos recíprocos por uma teoria dos rituais.

Feito ele mesmo um “clássico” e um breve “Totem” da teoria social, Parsons tabuizou então sua interpretação pessoal dos clássicos e pautou as leituras posteriores da obra e do pensamento de Durkheim que atravessaram quase todo o século XX, fabricando mais ventrículos seus do que novos intérpretes (Lukes, 1973LUKES, Steven. Durkheim, Émile. His life and work. New York: Penguin Books, 1973.; Ortiz, 1989; Pickering, 2000PICKERING, William Stuart Frederick (org.). Durkheim and representations. New York: Routledge, 2000.; Pinheiro Filho, 2004), chegando a alcançar e sugestionar - consciente ou inconscientemente - as leituras mais contemporâneas que acreditavam sinceramente estarem refundando o “clássico” francês ao atribuir a ele a persona de um virtuosi de programa de “sociologia cultural” (Alexander, 1988______. Durkheimian sociology: cultural studies. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1988.; 1989; 2003)13 13 Raquel Weiss (2019) pôs Alexander num “divã” e desvelou a sombra olímpica de Parsons como “Pai-Totem” sempre presente e íntimo de seus esforços de superação através da celebração do “Durkheim tardio” como “profeta” da boa nem tão nova sociologia cultural. .

Mesmo em terra pátria, tão irritantemente persistente quanto o mito estadunidense do “sociólogo da ordem”, o mito do “sociólogo idealista” cultivado por quase um século entre intérpretes e estudiosos, de fato parece ter encontrado seu fermento continuamente renovado, seja no folclore em torno do encontro (imaginário) entre Durkheim e Saussure14 14 Este último já velho, segundo a lenda fantástica, chegando a ter acompanhado pessoalmente as conferências do ainda jovem sociólogo francês na Sorbonne - tornando assim o primeiro um também profeta da teoria do significado e do estruturalismo linguístico. Ao encontrando seu ato fundador na distinção entre langue (língua) e parole (discurso) estabelecida por Saussure, a semiologia, a linguística e o estruturalismo celebraram e cultuaram a natureza arbitrária dos signos linguísticos, o autor-referenciamento da língua e o imperialismo da forma em desfavor do conteúdo, tornando assim por ato de consagração a linguística um pêndulo entre ser uma “ciência-piloto sem avião” ou uma locomotiva sem maquinista (uma maldisfarçada recuada aos reinos celestes de uma razão transcendental pré-hegeliana). , seja no monopólio concedido aos antropólogos britânicos e franceses que, nos anos de 1940, com entusiasmo viviam sua “revolução copernicana” com a nascente “antropologia simbólica” (Smith, 2020SMITH, Philip. Durkheim and after: the Durkheimian tradition 1893-2020. Cambridge, UK: Polity Press, 2020.). Rejeitado pelos sociólogos e apropriado pelos antropólogos numa atmosfera de ênfase no simbolismo, de fato, foram muitas as leituras da época que procuraram ter confirmada em As formas elementares um tratado da ideologia ou ainda de uma teoria das representações simbólicas. Em consonância com o espírito da época, o “Durkheim tardio” logo passou a ser lido como sendo o teórico do simbolismo por excelência, o que reforçou e retroalimentou a inércia do mito de sociólogo idealista (Rawls, 1996).

Claro, raríssimas e heroicas exceções existiram em tempos de hegemonia funcionalista e estruturalista nas ciências sociais. Às margens do rio Reno, na Universidade de Colônia, Alemanha, ainda em 1937, René König publicava Kritik der historisch-existenzialistischen e se apresentava talvez como um dos únicos a conceber outra imagem de Durkheim bem distante daquela propagada por Parsons. Enquanto Parsons lia Durkheim a partir da oposição entre utilitarismo e normativismo, König lia o mesmo sociólogo francês como alguém também envolvido em oferecer respostas alternativas aos dilemas políticos e morais postos pela tradição alemã da Lebensphilosophie (Joas, 1996). Na leitura alternativa de König, Durkheim parecia muito mais atento às críticas ao racionalismo cientificista que foram desenvolvidas pela filosofia da vida. Foi em face dessas críticas que o sociólogo francês procurou levar adiante o seu projeto de um racionalismo reconstruído que, ao final, se parecia mais próximo do vitalismo de Henri Bergson e Georges Sorel do que o próprio sociólogo costumava admitir (Joas, 1996; Brandom, 2010BRANDOM, Eric. Georges Sorel, Émile Durkheim, and the social foundations of la morale. Journal of The Western Society for French History, v. 38, 2010.).

O mesmo vitalismo durkheimiano, na França, foi identificado e explorado pelo ainda desconhecido Georges Bataille que, em 1943, publicara A experiência interior, título que já revelaria gritante “afinidade eletiva” com o que pensava Durkheim sobre a fonte primeira das ideias e noções lógicas:

Se a experiência externa não tem nenhuma influência na gênese dessas ideias (de força, do princípio totêmico), bem como, por outro lado, é inadmissível que nos sejam dadas já prontas e acabadas, é preciso supor que elas nos venham da experiência interior (Durkheim, 2022DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Edipro, 2022 [1912]., p. 433, grifo nosso).

Como “um novo místico” (chamado pejorativamente assim por Sartre), Bataille escreveria ainda Teoria da religião em 1948 e novamente se serviria de uma leitura vitalista dos escritos durkheimianos sobre o sagrado, confirmando mais uma vez as suspeitas de König sobre ser o sociólogo francês um vitalista contido que tentou secularizar o “místico” a partir de um racionalismo reconstruído:

O sagrado é essa efervescência pródiga da vida que, para durar, a ordem das coisas encadeia e que o encadeamento transforma em desencadeamento, ou, em outros termos, em violência. [...] Émile Durkheim me parece hoje injustamente desacreditado. Afasto-me de sua doutrina, mas não sem manter o essencial dela (Bataille, 2016BATAILLE, Georges. Teoria da religião, seguida de Esquema de uma história das religiões. Belo Horizonte: Autêntica, 2016 [1947-1948]., p. 44 e p. 86, grifo nosso).

Do outro lado do Atlântico e à margem do mainstream, o ainda “marginal” Erving Goffman - discípulo de William Lloyd Warner, um desconhecido durkheimiano que decidiu fazer de nós, modernos, o “outro” exótico da etnologia - aprendeu a introduzir a abordagem durkheimiana dos rituais nas face-to-face interaction cotidianas e reteve das suas leituras dissidentes de As formas elementares aqueles elementos mais “praxiológicos” para então investigar as formas ordinárias e seculares do sagrado:

Na medida em que uma representação ressalta os valores oficiais comuns da sociedade em que se processa, podemos considerá-la, à maneira de Durkheim e Radcliffe-Brown, como uma cerimônia, um rejuvenescimento e reafirmação expressivos dos valores morais da comunidade (Goffman, 2014GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 48, grifo nosso).

Na mesma década de 1950, paradoxalmente, Claude Lévi-Strauss, arauto do estruturalismo francês e talvez o mais interessado na dimensão simbólica estudada por Durkheim, não disfarçava seu desacordo com seu compatriota da sociologia, anunciando como “fracassada” a tradição durkheimiana da sociologia religiosa que insistiu na hipótese do velho mestre da Sorbonne:

[...] as crenças e o ritual foram diretamente ligados a estados afetivos; [...] Durkheim pretende derivar da ordem social as categorias e as ideias abstratas que, para se dar conta desta ordem, não encontra à sua disposição mais do que sentimentos, valores afetivos, ou ideias vagas, como as de contágio e de contaminação (Lévi­Strauss, 2018, p. 341 e 106, grifos nossos).

Se, como já foi dito, o mito do sociólogo idealista foi mais perene do que o outro mito (sociólogo da ordem) - este último que teve sua morte enfim decretada com a também morte da hegemonia parsoniana, nos anos de 1960 -, quando então o primeiro se revelou apenas “mito”? Quando, ao final dos anos de 1990, uma nova geração de leitores e intérpretes dos escritos durkheimianos, não mais alinhados com o “culturalismo” e mesmo se colocando como seus críticos, resolveu investir em novas leituras e releituras da obra tardia do sociólogo francês.

Foi preciso a teoria social efetuar seus exercícios ginasiais de múltiplos giros epistemológicos e ontológicos no curso do século XX para então se reaproximar e buscar a unidade entre práticas e afetos. Somente na nova atmosfera metateórica deste século XXI pode-se observar os esforços de resgate de uma “teoria afetiva do sagrado” - assim nomeada por Lévi-Strauss (2018, p. 80) - nos escritos de Durkheim.

Esboçada em 1903, a teoria afetiva do sagrado foi explorada inicialmente por Durkheim na companhia de Marcel Mauss (Durkheim & Mauss, 2013DURKHEIM, Émile; MAUSS, Marcel. Algumas formas primitivas de classificação. In: BOTELHO, André (org.). Essencial sociologia, p. 222-290. São Paulo: Penguin Clas­sics; Companhia das Letras, 2013.), sistematizada em As formas elementares da vida religiosa (1912), e reafirmada, durante conferências de 1913 e 1914, em notável linguagem “vitalista” dos termos “virtude dinamogênica” (Durkheim, 2012b, p. 30), “tom vital” (Durkheim & Mauss, 2013, p. 304), “fluxo de vida” (Durkheim, 1975b, p. 283) e “influência dinamogênica” (Durkheim, 1975b, p. 284; 2013, p. 304). Mais atraída e absolvida com questões metateóricas da “teoria social hoje”, a nova geração de leitores(as) passou a revisitar As formas elementares e nela escavar uma “virada praxiológica-afetiva” (Bellah, 2008BELLAH, Robert. Durkheim and ritual. In: ALEXANDER, Jeffrey C.; SMITH, Philip. The Cambridge companion to Durkheim. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2008.; Collins, 2004COLLINS, Randall. Interaction ritual chains. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2004.; Joas, 1998______. Durkheim y el pragmatismo. La psicología de la conciencia y la constitución social de las categorías. El pragmatismo y la teoría de la sociedad. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas, 1998.; Jones, 2001JONES, Susan Stedman. Durkheim reconsidered. Cambridge, UK: Polity Press, 2001.; Miller, 2005______. Dynamogénique and Élémentaire. Durkheim Studies, v. 11, p.18-32, 2005.; 2013; Rawls, 1996; 1997; 2001; 2005; Weiss, 2013______. Efervescência, dinamogenia e a ontogênese social do sagrado. Mana, v. 19, n. 1, 2013.).

Redescobriram outro Durkheim, mais “materialista” se, em concordância com Henri Bergson (2019), entendermos por “materialidade” não apenas a matéria inerte reduzida ao “tocar”, mas também aquela materialidade “sentida” do movimento criativo. O que é a “virtude dinamogênica” dos momentos de efervescência coletiva senão uma ginástica-dança-drama carregada de afetividade compartilhada e que mantém com o mundo uma relação de “transcendência imanente”15 15 Sem oferecer uma resposta conclusiva sobre as influências externas do conceito durkheimiano de efervescência coletiva, William Stuart Pickering (2009), contudo, observou que é fato o crescente interesse de Durkheim pelos fenômenos da “espontaneidade e da vitalidade social”, o que acabava o aproximando de vertentes teóricas da psicologia das multidões e da filosofia da vida. , de intimidade engajada?

Do exame de cerimônias religiosas como o corrobbori, o culto à serpente Wollunqua e as cerimônias do fogo entre os Warramunga, Durkheim esboçou uma prototeoria praxiológica dos coafetos corporais: em circunstâncias de encontros de corpos que afetam e se afetam mutuamente, ocorreria a perda do autocontrole físico e emocional dos indivíduos e uma aglomeração que atua como um “excitante excepcionalmente poderoso”; corpos humanos reunidos liberam uma “[...] eletricidade que os transporta rapidamente a um grau extraordinário de exaltação” (Durkheim, 2022, p. 268); uma experiência sensorial e emocional reciprocamente compartilhada; “[...] paixões tão intensas e libertadoras de controle [...]”; “[...] por todo canto, são gestos violentos, gritos, verdadeiros urros, ruídos ensurdecedores [...]” (Durkheim, 2022, p. 269); todos esses “afetos” corporais contribuindo juntos para intensificar ainda mais o estado de excitação coletiva; inicialmente caótico, logo encontra uma ordem que tende a coordenar e realizar os movimentos corporais de maneira ritmada e regulada. Quando isso ocorre, gestos e gritos ritmizados e rotinizados dão origem aos primeiros cantos e danças; sem perder sua “violência natural”, contudo, o tumulto regulado permanece tumulto. Diante da insuficiência de uma voz humana afetada, logo há também o reforço dos afetos dos não humanos: “[...] a ação é reforçada por procedimentos artificiais” de objetos como os batidos dos “bumerangues” e os giros dos bull-roarers, instrumentos acionados que traduzem a “agitação sentida”, as “paixões liberadas”, enfim, a “efervescência” experimentada nas cerimônias religiosas e que determina uma “superexcitação tão violenta de toda a vida física e mental” (Durkheim, 2022, p. 269) da sociedade tribal australiana.

Para chegar a essa teoria dos afetos corporais, Durkheim precisou antes mergulhar profundamente em águas intercruzadas do rio doce da moralidade e do mar salgado da religiosidade. No lado da moralidade, o sociólogo logo se convenceu que havia algo nela de religiosidade retida. Do lado da religiosidade, vislumbrou uma moralidade antecipada (Durkheim, 2020, p. 59-60). Intimamente relacionadas, moralidade e religiosidade compartilhavam uma mesma “dobradiça” chamada de “sagrado”. Ao compartilhar com a moralidade uma “duplicidade” constitutiva (feito de “obrigação” e “desejabilidade”), o sagrado é tudo aquilo (coisas, ideias, seres humanos e não humanos) que é heterogêneo e tem valor incomensurável, que desperta sentimentos coletivos excepcionais imbuídos de prestígio, força e ascendência moral. Heterogêneo e incomensurável, o sagrado é “posto à parte”, “separado”, não podendo misturar-se ao “profano”, ao preço de perder sua sacralidade (Durkheim, 2020, p. 89). Assim o sociólogo francês já entendia a relação entre moralidade, sacralidade e religiosidade em 11 de fevereiro de 1906, quando então expôs sua teoria do sagrado para um público de filósofos da Societé Française de Philosophie.

O sagrado seria então a obra de consagração da sociedade - “exterior e superior a nós”, mas que “nos é interior”, “existe em nós”. Feita do(s) indivíduo(s) associado(s), transcendente e imanente ao indivíduo, a sociedade seria a “grandeza material” e a “grande potência moral” que ultrapassa as consciências individuais sem deixar de lhes ser imanente.

A religião - sustentava Durkheim - seria a fonte das ideias essenciais do espírito humano, daquelas noções mais elementares do pensamento, das milenares “categorias do entendimento”, objeto de estudo da moderna epistemologia formulada por Kant. Sem negar a universalidade e a função lógica das categorias do pensamento, Durkheim advertia, contudo, que as mesmas não eram inatas nem muito menos transcendentais. Sua gênese repousava em relações sociais, de um vínculo sociogenético existente entre sistemas de classificação e formas de organização e agrupamento dos coletivos humanos (Durkheim, 2022, p. 37).

Compreendida a relação entre moralidade, sacralidade e religiosidade, Durkheim passou então a procurar equivalentes funcionais da antiga “religiosidade teológica” nas modernas “religiosidades morais”, estas devidamente entendidas como aquelas moralidades que, apesar de seculares, reteriam o caráter de sagrado. Sentidas como valores superiores e absolutos, essas moralidades seculares também seriam as verdadeiras “religiões seculares” ou “religiões civis” das quais tratou Jean-Jac­ques Rousseau:

[...] uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos cabe ao Soberano estabelecer não como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser bom Cidadão ou súdito fiel (Rousseau, 2020ROUSSEAU, Jean-Jacques. Escritos sobre a política e as artes. São Paulo: Ubu, 2020., p. 647, grifos nossos).

Em épocas de crises e de grandes agitações, são potencialmente possíveis de nascer, e as que já existem, parecem pender muito mais para o polo do bem do que para o polo da obrigação (Durkheim, 2020______. Sociologia e filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2020.). Ao invés de subtrair a dimensão religiosa da moral, portanto, é preciso traduzi-la numa “linguagem racional” sem retirar-lhe o traço específico que é a retenção do caráter sagrado.

Sim, certamente estou preocupado em conservar o caráter sagrado da moral, mas não porque isto me pareça responder a esta ou àquela aspiração que eu compartilhe ou experimente, mas porque está inscrito nos fatos. Uma vez que a moralidade aparece impregnada de religiosidade na história de todos os povos, é impossível destituí-la completamente desse traço sem que ela deixe de ser o que é (Durkheim, 2020______. Sociologia e filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2020., p. 87).

Depois de lermos a passagem acima, parece-nos razoável a avaliação de Bernard Lacroix quando diz que “ao aplicar-se a descrever determinadas sociedades simples, As formas elementares explicam, em primeiro lugar, a emergência social do poder em sua materialidade” (Lacroix, 1984, p. 229, tradução livre). De fato, era quase sempre para o domínio “profano” e “secular” da política que Durkheim se dirigia quando desejava ilustrar os equivalentes funcionais daquelas circunstâncias coletivas de manifestação da “ação reconfortante e vivificante da sociedade” (Durkheim, 2022, p. 262). Uma assembleia animada por afetos compartilhados - dizia ele - pode despertar nos indivíduos que dela participam, verdadeiros “sentimentos e atos” extraordinários. Especialmente aqueles sentimentos e atos que são lidos e sentidos coletivamente como “revolucionários”. Além da “cerimônia coletiva” de 4 de agosto de 178916 16 Reunião da Assembleia Nacional Constituinte, na noite do dia 6 e madrugada de 7 de agosto, que aboliu os privilégios feudais, colocando um termo ao Ancien Régime. , um de seus exemplos preferidos de “momentos efervescentes”, também reuniões periódicas dos modernos partidos políticos, dos grupos econômicos e confessionais poderiam funcionar como momentos práticos de revitalização da fé comum através de sua manifestação coletiva pública (Durkheim, 2022).

Em suas descrições das cerimônias afetivamente intensas, Durkheim procurava salientar os sentimentos e as paixões incendiados, com fortes consequências psicológicas até mesmo na produção dos sentimentos morais de reconhecimento social (“simpatia”, “estima”, “afeto”). Gestos públicos de reconhecimento do indivíduo produzidos por ele e nele através de sua comunhão afetiva com outros, produzia neles(as) e através deles(as) “[...] a confiança, a coragem e ousadia na ação” (Durkheim, 2022, p. 264). Encontramos também em As formas elementares, uma versão (radical) da teoria da secularização, não mais entendida como subtração do sagrado, mas como sua “linguistificação” (Joas, 2012JOAS, Hans. A sacralidade da pessoa: nova genealogia dos direitos humanos. São Paulo: Editora Unesp, 2012., p. 92-93).

Logo, “Deus” ou qualquer outra “divindade” não era apenas uma autoridade, mas uma “força sobre a qual se apoia a nossa força”, isto é, uma fonte de autoconfiança existencial para o indivíduo ou a coletividade. Por isso, a ação religiosa não deve requerer apenas sacrifícios, privações e esforços dos indivíduos, mas também despertar a sensação “reconfortante e vivificadora” da sociedade, manifesta nos sentimentos de paixões inflamadas por reuniões periódicas, seja na forma de uma cerimônia coletiva ou mesmo de uma “assembleia” laica. Esses encontros coletivos - ressaltou Durkheim - são momentos de despertar dos afetos compartilhados e também de comunhão do ser humano com a multidão (Durkheim, 2022). Momentos de “acréscimo de forças”, de afetos e sentimentos que produzem uma verdadeira perda de controle do self, cuja origem - explicaria Durkheim - se encontra no grupo reunido. Sentimentos de “energia acrescida” que circulam no indivíduo e no grupo; e que, em face disso, “[...] não é mais um simples indivíduo que fala, é um grupo encarnado e personificado”.

Por fim, há ainda outra discussão em torno do pensamento de Durkheim que deve ser enfrentada a fim de desfazermos velhos hábitos mentais feitos de mitologias também: a de sua proximidade e continuidade com a tradição kantiana. Por causa de seu estudo sobre a religião, Durkheim também é lembrado por ter tratado de questões de interesse próprio da epistemologia.

Ao entender que a religião é a fonte das ideias mais essenciais do espírito humano - a saber, as “categorias do entendimento” -, Durkheim já antecipava uma de suas conclusões no mesmo estudo de 1912: considerando que as categorias do pensamento tem sua origem religiosa; considerando que as representações religiosas são tipos determinados de “representações coletivas que exprimem realidades coletivas”, e que, por sua vez, essas representações coletivas não passam de “estados mentais” de “grupos associados” que ritualizam seus modos de agir, então é correto inferir que as categorias do pensamento têm sua gênese nas práticas sociais (Durkheim, 2022)17 17 Ao localizar a gênese da religião nas práticas rituais, Durkheim parece ter seguido na mesma linha de raciocínio de Georg Simmel quando este, entre 1911 e 1912, explorou a religião como “forma” de objetivação (externalização) de um “sentimento fundamental” de “estremecimento”, de “vibração” de afetos, “movimentos de paixão”, que precedem “qualquer significação religiosa” (Simmel, 2009, p. 30; 2020, p. 240). Em outra surpreendente convergência, Simmel, em ensaio de 1911, infere que a religião pode ser compreendida como a “fixação” em “objetos” daqueles afetos fundamentais (Simmel, 2020). .

É na conclusão, porém, que o sociólogo francês vai criticar as hipóteses “mentalistas” sobre a origem da religião e ferir de morte qualquer aspiração de associá-lo a todo e qualquer tipo de idealismo de inspiração kantiana:

Eles [os crentes] sentem, de fato, que a verdadeira função da religião não é nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos à ciência representações de outra origem e de outro caráter, mas nos fazer agir, nos ajudar a viver” (Durkheim, 2022DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Edipro, 2022 [1912]., p. 490-491, grifos nossos).

Também por ser duplo o ser humano, isto é, por habitarem dois seres distintos em sua mesma morada interna, um “ser individual” (orgânico e de agência limitada) e um “ser social” (a mais elevada realidade na ordem intelectual e moral), não pode o mesmo ter seus valores redutíveis ao império da utilidade, nem a sua razão redutível à experiência individual: “[...] o indivíduo, na medida em que participa da sociedade, naturalmente vai além de si mesmo, tanto ao pensar como ao agir” (Durkheim, 2022DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Edipro, 2022 [1912]., p. 42). Ao afastar-se claramente do “construtivismo epistemológico” da tradição kantiana, Durkheim adota uma perspectiva do “realismo epistemológico” (Domingues, 2004DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas, t. 1 “Positivismo e hermenêutica”. São Paulo: Loyola, 2004., p. 277), posto que para ele todas as categorias de pensamento encontram seu fundamento ontológico primevo nas práticas de um grupo coletivo (“clã”). Tão distante de Kant, tão mais próximo de Hegel que, embora este identificado com o idealismo, “[...] em importantes aspectos, foi um realista epistemológico” (Kinlaw, 2021KINLAW, Jeffery. Epistemologia. In: BAUER, Michael (org.). G.W.F. Hegel: conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 31-32) e, a exemplo e um século antes de Durkheim, concebeu igualmente uma epistemologia “internalista” e “normativa”.

“[...] (C) como sofisticados instrumentos de pensamento, que os grupos humanos forjaram com labor ao longo dos séculos nos quais acumularam o melhor de seu capital intelectual” (Durkheim, 2022DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Edipro, 2022 [1912].), as categorias do entendimento são internas às práticas coletivas cuja base repousa em normas epistêmicas e em afetos mutuamente compartilhados e reconhecidos.

Portanto, nada mais distante da imagem do sociólogo “idealista” e “neokantiano” do primado das “representações coletivas”. Livre das viseiras funcionalistas e estruturalistas, logo notamos um Durkheim mais distante do transcendentalismo kantiano e bem mais próximo de uma ontologia das relações de Hegel e de um vitalismo à la Simmel, James ou Bergson (e talvez por isso, tenha merecido o epíteto de “Schopenhauer” francês). Sem, é claro, os inconvenientes da filosofia da consciência e da “clausura epistemológica kantiana” que tudo reduz ao símbolo (Corrêa, 2018CORRÊA, Diogo Silva. Exorcizando o simbolismo. In: VANDENBERGHE, Frederic; VON DER WIEID, Olivia (orgs.). Novas antropologias, p. 215-221. São Paulo: Annablume, 2018., p. 216) e pouco concede a “[...] uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada” (Merleau-Ponty, 2018, p. 3).

Considerações finais

Neste artigo, demonstramos como, por caminhos diversos - seja por meio de uma crítica da economia política e da original análise da forma do valor; seja por meio de um abrangente debate crítico, sobretudo com a antropologia, sobre o fenômeno religioso, dando particular atenção aos rituais em detrimento de uma abordagem demasiado representacional (centrada nas crenças) da religião -, clássicos como Marx e Durkheim propuseram elementos de uma lógica da prática (Bourdieu, 2009______. Senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.) que só passou a ser pensada de forma sistemática e explícita na teoria social contemporânea.

As diferenças entre as praxiologias de Marx e Durkheim não se referem apenas aos objetos a partir dos quais foram elaboradas, dizem respeito também a ênfases. Eis algumas destas diferenças: a praxiologia da sociologia da religião de Durkheim enfatiza muito mais a dimensão dos afetos ao pensar as práticas ritualísticas e explicitamente busca pensar a relação entre essas práticas e a emergência, no sentido de gênese, do próprio social. Há, portanto, uma praxiologia dinamogênica que pretender ser válida para toda e qualquer sociedade humana. A praxiologia do fetichismo, por sua vez, é decantada daquela dimensão afetiva e muito mais circunscrita do ponto de vista sócio-histórico: deve ser entendida sobretudo como teoria elementar da (re)produção das sociedades capitalistas-mercantis desenvolvidas. Marx também nunca tratou explicitamente dos vínculos entre essa teoria elementar e prática da (re)produção e sua abordagem mais “mentalista” ou (in)consciente da (re)produção social, nucleada no conceito de ideologia; já Durkheim buscou explicitamente realizar uma sociologização, fundamentada em um realismo epistemológico das representações coletivas, das categorias do entendimento e da moral.

Ambos, no entanto, convergem ao elaborarem versões de praxiologia que não são redutíveis à versão oficial da teoria da prática contemporânea, que concebe a praxiologia como um movimento no interior de um conjunto maior, a saber, o culturalismo ou as viradas culturalistas como presente, por exemplo, em Andreas Reckwitz (2002RECKWITZ, Andreas. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, p. 243-263, 2002.), Gabriel Peters (2018______. Da virada à cambalhota: a dialética de símbolos e prática. In: VANDENBERGHE, Frédéric; WEID, Olivia von der (orgs.). Novas antropologias, p. 226-232. São Paulo: Annablume, 2018., 2020), que chega a acionar uma fórmula reconciliadora da versão praxiológica do culturalismo” de Reckwitz, “[...] em que a cultura desponta como mediação da práxis, no mesmo passo em que a práxis desponta como mediação da cultura” (Peters, 2018, p. 230).

Diferentemente das versões que fazem da cultura um conceito coringa sempre disposto a socorrer a teoria de suas situações-limites, concebemos a praxiologia (ou teoria da prática) em domínios mais terrenos e estreitos, nos quais a “reflexão” (ou a “consciência”) não é o aspecto central na dinâmica social, seja porque ainda não encontrou seu ritmo e sua forma regulares, seja porque dela prescinde e se faz a despeito do que pensa a consciência teórica dos agentes. A virada praxiológica em Marx e Durkheim - e isto nos parece um ponto forte - não atrela a praxiologia à “cultura”: seja nas trocas, seja nos rituais, temos corpos e objetos em relação e em movimento que (re)produzem o social e, no caso durkheimiano, de modo evidente, a dinamogênese ritual (prática) é a base até mesmo para a emergência das representações (culturais). Delimitar prática (praxiologia) e cultura (culturalismo) parece-nos decisivo para evitar o trabalho com conceitos amorfos e para especificar o nível da prática como o nível pré-ideal ou pré-reflexivo de (re)produção das relações sociais.

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  • ŽIŽEK, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In: ______ (org.). Um mapa da ideologia, p. 297-331. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
  • 1
    Aspecto este levado às últimas consequências pela tradição que vai do jovem Georg Lukács (2003LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) a Itsván Mészáros (2006MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação de Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.), para quem a “síntese in status nascendi” presente nos Manuscritos de 1844 esboça “as linhas gerais de uma vasta e abrangente concepção da experiência humana em todas as suas manifestações; mais abrangente, de fato, do que qualquer coisa anterior a ela, inclusive a grandiosa visão hegeliana” (Mészáros, 2006, p. 21).
  • 2
    Adolfo Sánchez Vázquez (1977VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.)formulou de maneira precisa o que aqui chamamos de uma antinomia presente no Marx de 1844: “Vemos por conseguinte que: a. o homem tem uma essência; b. sua essência é o trabalho; c. essa essência só se manifesta em sua existência como essência alienada; d. portanto, a essência do homem está divorciada de sua existência [...]. e. a essência do homem nunca se manifestou efetiva, real ou historicamente” (Vázquez, 1977, p. 416).
  • 3
    Não por acaso, a reformulação althusseriana (Althusser, 1985______. Aparelhos ideológicos de Estado e notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.) do conceito de ideologia buscou exatamente desvinculá-lo de todo resquício idealista (leia-se, de toda filosofia do sujeito). Em Althusser, o terreno da ideologia é o terreno da prática em um duplo sentido: as representações ideológicas só perduram e são eficazes quando produzidas e reproduzidas por meio de aparelhos e o seu efeito fundamental é a formação de sujeitos praticamente engajados com a atuação e a dinamização de certa estrutura social historicamente delimitada. Mas aí temos um tipo de praxiologia marxista - com forte acento reproducionista ou estruturalista, por certo - que é uma releitura do corpus marxiano.
  • 4
    Por exemplo: “O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem - quaisquer que sejam as formas de sociedade -, é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de manter a vida humana” (Marx, 2008______. O capital: crítica da economia política, livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 64-65).
  • 5
    “O empreendimento teórico de interpretação do marxismo como historicismo não sai dos limites absolutos nos quais se efetua desde Feuerbach essa ‘inversão’ da especulação na práxis, da abstração no ‘concreto’: esses limites são definidos pela problemática empirista, sublimada na especulação hegeliana e da qual nenhuma ‘inversão’ pode nos livrar” (Althusser, 1979______. De O capital à filosofia de Marx. In: ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Étienne; RANCIÈRE, Jacques. Ler o capital, v. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 82).
  • 6
    Teoria monetária do valor explicitada por Marx na seguinte passagem dos Grundrisse: “No decorrer da nossa exposição ficou evidenciado como o valor, que apareceu como uma abstração, só se torna possível enquanto tal abstração quando é posto o dinheiro...” (Marx, 2011, p. 651).
  • 7
    Moishe Postone (2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 160, nota 51), em importante nota de rodapé, sugere uma semelhança entre “a teoria marxiana” e o “tipo de teoria da prática delineada por Pierre Bourdieu” em passagem que trata da relação entre valores e preços: “a relação entre o que é apreendido pelo nível analítico de valor e pelo de preço pode ser entendido como constituindo uma teoria (nunca integralmente completada) da constituição mútua das estruturas profundas e de ação e pensamento diários” (Postone, 2014, p. 160).
  • 8
    Sobre isso, vale relembrar que, no caso de Theodor Adorno, o próprio conceito de sociedade é definido a partir do conceito de troca: “a sociedade socializada, justamente não é apenas um tal nexo funcional entre homens socializados, mas é, como pressuposto, essencialmente determinada pela troca” (Adorno, 2008, p. 106).
  • 9
    Embora a releitura de Marx feita neste artigo seja explicitamente heterodoxa e herética, na medida em que busca, nos marcos de um trabalho de teoria social, capturar elementos de praxiologia em Marx sem identificar-se a uma ou outra vertente marxista particular, este esforço não deixa de se atrelar a um interesse crítico de conhecimento. Apontar para os elementos praxiológicos da (re)produção social presentes na obra de Marx é exigir uma dupla crítica do presente: crítica das ideologias e crítica das práticas. Essa observação permite apontar para uma diferença pontual, mas significativa, da leitura aqui realizada em relação ao trabalho de Postone: não concebemos a “teoria da prática” presente em Marx, que Postone (2014POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 186) prefere chamar de “forma de dominação abstrata e impessoal”, como um “nível mais fundamental” (Postone, 2014, p. 46) de crítica, mas como perspectiva que, dentro das preocupações marxistas, deve se desenvolver em colaboração com as análises dos processos de expropriação, de exploração de mais-valor e das formas econômicas, ideológicas, estatais e jurídicas de dominação e luta de classes.
  • 10
    Ainda em 1899, em “Prefácio” ao L’Année sociologique, Durkheim trataria nesses mesmos termos a experiência religiosa.
  • 11
    Como a ironia parece sempre preencher o tinteiro usado pelos sociólogos, no mesmo escrito de 1937, o próprio Parsons chegou a reconhecer na teoria durkheimiana do ritual uma leve inclinação “na direção do pragmatismo” (Parsons, 2010, p. 519), o que contrariava francamente sua conclusão sobre a suposta guinada idealista no “Durkheim tardio”.
  • 12
    Nesse sentido, a releitura que Lynn Badya (2016) fez do significado das noções de “força” e “energia” na teoria do sagrado de Durkheim é ilustrativa do quão equivocado parecia estar Brown em seu esforço de corrigir seu mestre francês numa espécie de inversão “materialista” do princípio totêmico. Bem ao estilo Feuerbach, Radcliffe-Brown (2013) defendeu um materialismo de epiderme sem entender que o que estava sendo proposto pela teoria do sagrado de Durkheim era outro tipo de materialismo, ainda mais sanguíneo e nevrálgico, posto que lidava com forças e energias encarnadas em corpos reunidos e afetados.
  • 13
    Raquel Weiss (2019WEISS, Raquel. Between the spirit and the letter: Durkheimian theory in the cultural sociology of Jeffrey Alexander. Sociologia e Antropologia, vol. 9, 2019.) pôs Alexander num “divã” e desvelou a sombra olímpica de Parsons como “Pai-Totem” sempre presente e íntimo de seus esforços de superação através da celebração do “Durkheim tardio” como “profeta” da boa nem tão nova sociologia cultural.
  • 14
    Este último já velho, segundo a lenda fantástica, chegando a ter acompanhado pessoalmente as conferências do ainda jovem sociólogo francês na Sorbonne - tornando assim o primeiro um também profeta da teoria do significado e do estruturalismo linguístico. Ao encontrando seu ato fundador na distinção entre langue (língua) e parole (discurso) estabelecida por Saussure, a semiologia, a linguística e o estruturalismo celebraram e cultuaram a natureza arbitrária dos signos linguísticos, o autor-referenciamento da língua e o imperialismo da forma em desfavor do conteúdo, tornando assim por ato de consagração a linguística um pêndulo entre ser uma “ciência-piloto sem avião” ou uma locomotiva sem maquinista (uma maldisfarçada recuada aos reinos celestes de uma razão transcendental pré-hegeliana).
  • 15
    Sem oferecer uma resposta conclusiva sobre as influências externas do conceito durkheimiano de efervescência coletiva, William Stuart Pickering (2009), contudo, observou que é fato o crescente interesse de Durkheim pelos fenômenos da “espontaneidade e da vitalidade social”, o que acabava o aproximando de vertentes teóricas da psicologia das multidões e da filosofia da vida.
  • 16
    Reunião da Assembleia Nacional Constituinte, na noite do dia 6 e madrugada de 7 de agosto, que aboliu os privilégios feudais, colocando um termo ao Ancien Régime.
  • 17
    Ao localizar a gênese da religião nas práticas rituais, Durkheim parece ter seguido na mesma linha de raciocínio de Georg Simmel quando este, entre 1911 e 1912, explorou a religião como “forma” de objetivação (externalização) de um “sentimento fundamental” de “estremecimento”, de “vibração” de afetos, “movimentos de paixão”, que precedem “qualquer significação religiosa” (Simmel, 2009, p. 30; 2020, p. 240). Em outra surpreendente convergência, Simmel, em ensaio de 1911, infere que a religião pode ser compreendida como a “fixação” em “objetos” daqueles afetos fundamentais (Simmel, 2020).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2023
  • Aceito
    18 Jul 2023
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