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Mudanças urbanas e fragilidades da política de memória (A destruição do Monumento ao Trabalhador em Goiânia)* * Texto produzido no âmbito do estágio pós-doutoral realizado no Departamento de Sociologia da UnB, sob a supervisão do Dr. Brasilmar Ferreira Nunes. Apresentamos versões anteriores na Mesa-Redonda “Patrimônio, memória e cidades”, do II Seminário Neap: O trabalho da memória e processos de patrimonialização - Goiânia, 2 a 4 Set. 2014; e no GT “Urbanidades Disputadas”, do XII Congresso Luso-Afro-Brasileiro, XII Conlab/ 1º da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanidades em Língua Portuguesa - Lisboa, 1 a 5 Fev. 2015.

Resumo

O artigo trata da supressão da memória em formações urbanas contemporâneas, através de pesquisa sobre a destruição do Monumento ao Trabalhador, ocorrida em Goiânia entre 1969 e 1986. O explícito teor socialista impregnado ao monumento desde a sua origem atraiu ações visando ao seu desaparecimento material e à sua eliminação na memória dos goianienses. Em 1969, ativistas do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) derramam piche fervido nos dois painéis que compunham a obra, cujas imagens evocavam as “Lutas dos trabalhadores” e o “Mundo do Trabalho”. Ausência de defesa do monumento e intervenções urbanísticas no espaço da praça em que ele se localizava concluíram a tarefa do CCC. Orientamos a pesquisa desse percurso com as noções de esquecimento institucional ou obrigatório (Paul Ricœur) e de legitimação política segundo o poder de fixação de versões que se opera no plano simbólico (Pierre Bourdieu). A análise vale-se da operacionalização de três categorias: repressão política, insensibilidade tecnocrática e omissão quanto à memória e à simbologia das lutas dos trabalhadores.

Palavras-chave:
supressão ideológica; imagens urbanas; política de memória; Goiânia

Abstract

The article deals with the suppression of memory in contemporary urban formations, through research on the destruction of the Monumento ao Trabalhador (Workers Monument) in Goiânia (state of Goiás, Brazil) between 1969 and1986. The socialist explicit content impregnated in the monument since its origin draw attention that resulted in its material disappearance along with its disposal in the memory of the people of Goiânia. In 1969, the Comando de Caça aos Comunistas - CCC (Communist Fighter Command) - pour boiled petroleum pitch in two panels of the monument whose images evoked the struggles of workers and the world of work. The absent defense of the monument and urban interventions in the square of the space in which it was located brought to an end the CCC task. We guided the research route with the notion of institutional or compulsory forgetting, by Paul Ricœur, and also the notion of political legitimacy according to the holding power versions that operate on the symbolic level (Pierre Bourdieu). The analysis was based on threefold categories: political repression, technocratic insensitivity and omission concerned to the memory and symbolism of workers' struggles.

Keywords:
ideological suppression; urban images; Memory policy; Goiânia

Introdução

Lidamos nesta reflexão com uma modalidade de supressão da memória coletiva nas configurações urbanas contemporâneas, denominada história silenciada ou esquecimento obrigatório. Nos estudos desse campo, frequentemente este tema é associado à esfera da política, a um modo que permite qualificar as narrativas posteriores sobre experiências traumáticas de acordo com a força de fixação adquirida pelas versões a respeito dos acontecimentos nelas referidos, que podem variar conforme alterem as circunstâncias de hegemonia e legitimação das forças produtoras dos discursos em disputa. A referência empírica para o exercício que desenvolvemos assenta-se na sequência de eventos relacionados à destruição do Monumento ao Trabalhador, que se localizava na Praça do Trabalhador, em Goiânia, entre 1969 e1986.

Durante quase 30 anos, desde a sua inauguração em 1959, a presença do monumento atribuiu singularidade visual ao espaço amplo e aberto da praça e mesmo ao centro da cidade. As pessoas que passavam nas vias de contorno do local, caminhando, dirigindo veículos ou dentro dos ônibus se acostumaram a perceber as colunas de concreto fincadas na parte central da Praça do Trabalhador, dispostas em dois semicírculos defrontantes, quase completando um círculo perfeito (Figura 1). Cada semicírculo conectava oito colunas de sete metros de altura, como espetos, interligadas por um mural a que serviam de cavalete. No conjunto, o monumento resultava em uma peça de arte com dois painéis sustentados nos cavaletes. Cada painel media 1,50m de altura, iniciando-se a 1,50m do chão, de modo a permitir boa visualização de suas imagens a pessoas de diferentes estaturas. As Figuras 2 e 3, em simulação digital, mostram as formas e dimensões do monumento, tal como existiu nos anos 1960.

Figura 1
Vista aérea da Praça do Trabalhador, em Goiânia. Na praça em frente à Estação Ferroviária vê-se o Monumento ao Trabalhador (foto de 1962)

Figura 2
Simulação digital mostra a posição exata que o Monumento ao Trabalhador ocupava no centro da Praça do Trabalhador, em frente à Estação Ferroviária, até seu desaparecimento, em 1986

Figura 3
Simulação digital do Mural 1, do Monumento ao Trabalhador, reconstruído

As imagens foram confeccionadas pelo artista plástico Clóvis Graciano em mosaicos de pastilhas, com referências às “Lutas dos trabalhadores” e ao “Mundo do trabalho”. Espelhos d’água em volta do monumento interagiam com a amplitude da praça, emprestando sensação de leveza e monumentalidade ao local (Figura 4).

Figura 4
O Monumento ao Trabalhador, na Praça dos Trabalhadores em Goiânia (foto de 1962)

De início, a destruição e o sumiço do Monumento ao Trabalhador mostram a origem imbricada à repressão da ditadura militar de 1964. Entretanto, soa incompleto creditá-los apenas à ação repressiva. O trabalho iniciado pelo CCC foi concluído em contingências posteriores à ditadura e já desvinculadas às práticas repressivas dos agentes e defensores daquele regime político. O roteiro seguido na pesquisa do período em que se estende a extirpação do Monumento ao Trabalhador da cena urbana goianiense articula três categorias analíticas principais: repressão política, insensibilidade tecnocrática e omissão de autoridades políticas e agentes culturais, quanto à preservação da memória e da simbologia das lutas de esquerda.

Para organizar a exposição, dedicamos o primeiro tópico à captação de formulações da literatura sobre o componente seletivo atuante no ordenamento e na fixação das subjetividades coletivas. Sobressai neste enfoque a noção de que a afirmação e a exclusão de significados na memória (e na história) dos que vivem experiências e nelas compartilham os sentidos, depende das disposições de poder desfrutadas pelos agentes políticos em situações determinadas. Em seguida, sinalizamos com alguns pontos conducentes de observações sobre debilidades de uma política de memória em Goiânia, exacerbadas as verdadeiras lacunas quando se trata de referências a fatos e a situações de natureza política.

A terceira parte do artigo recompõe acontecimentos sobre a destruição do Monumento ao Trabalhador, sugerindo uma linha de entendimento para os significados que ele congregou durante a sua curta estadia na Praça do Trabalhador.

Ao final, são esboçadas algumas sínteses de cunho teórico, no sentido de sugerir o prosseguimento da pesquisa, bem como da validade de reconstrução do Monumento. Assim, recolocamos a hipótese sobre o pressuposto relativo à fragilidade das políticas de memória nas diferentes gestões frente à Prefeitura Municipal de Goiânia.

Memória, esquecimento e política

Política e memória entrelaçam-se na construção da história. Os relatos de tempos precedentes adquirem ordenamento e validação pública de acordo com a legitimidade alcançada pelos que os pronunciam nos períodos posteriores ao de sua ocorrência. Extensa literatura nas ciências sociais e noutras disciplinas realça a seletividade dos registros e interpretações de acontecimentos, personalidades e ações do passado. A noção de Bourdieu sobre a necessidade de força legítima para ditar versões e significados aos processos sociais, como premissa para obtenção de reconhecimento dos conteúdos ditados, bem como a nítida vertente política que orienta a classificação de Ricœur sobre memória e esquecimento, fornecem o embasamento para a interpretação que aqui articulamos (Bourdieu,1989Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.; Ricœur, 2007Ricœur, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp , 2007.)1 1 . Além dessas inspirações, também procuramos observar as referências paradigmáticas aos estudos de memória, formuladas por Bosi (1987), Halbwachs (1990) e Le Goff (1992). .

A fertilidade dos procedimentos nessa perspectiva, que realça a dimensão política da análise, tem sido comprovada em distintas frentes de pesquisas sobre os processos fundamentais à definição do Brasil como nação (Carvalho, 1987Carvalho, José M . Os bestializados. São Paulo: Cia. das Letras , 1987.; 1990Chaul, Nasr F. A construção de Goiânia e a transferência da capital. 2. ed. Goiânia: Editora da UFG, 1986.; Sandes, 2011Sandes, Noé F. A invenção da nação - entre a monarquia e a república. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 2011.) e dos movimentos contemporâneos de renovação teórica que, por diferentes vias, delineiam a centralidade de uma política da memória, nos contextos transnacionais ou globais (Huyssen, 2014Huyssen, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.).

Uma das maneiras de um povo se valer do passado na construção do presente é inscrevendo-o nos lugares, nos textos e nas mensagens caracterizadores de uma época. Os monumentos públicos de uma cidade também refletem as lógicas das tônicas vencedoras e dos esquecimentos induzidos. Trata-se de mecanismos em que os objetos, as imagens e os ambientes que enfatizam e reforçam crenças determinadas ou que meramente fazem dissipar os signos a elas opostas, seguem a sucessão das situações de poder que vão se sobrepondo nos tempos futuros. Nesse sentido, uma dupla produção de significados pode ser direcionada ao Monumento ao Trabalhador, que existiu em Goiânia, entre 1959 e1986. Numa primeira ordem, vêm à tona os discursos demandantes de sua edificação e que se mantêm afirmativos de força política até o destino que lhe coube, de destruição física e (risco de) desaparecimento na memória pública. Referimo-nos à dimensão simbólica associada às lutas das classes trabalhadoras, do mais genuíno apelo internacionalista e socialista. A outra escala de significados reúne conteúdos de antagonismo imediato aos desta primeira, também eles ostentando uma base político-ideológica traduzível por meio de termos que emergem como sinais de uma mesma época e de um mesmo contexto significativo. Esses componentes não se furtam a comparecer e a atuar de maneira aguda quando a institucionalidade política se lhe mostrou favorável, viabilizada pelo regime militar de 1964, através da perseguição e da violência contra seus opositores2 2 . Aqui arrolamos significados diretamente referidos à criação e, posteriormente, à destruição do Monumento ao Trabalhador, de Goiânia. Os atributos “de classe trabalhadora”, nos termos da literatura socialista, foram os utilizados para indicar o “trabalhador” homenageado neste monumento. Invocação de conteúdo diferente desse ocorreu quando a Prefeitura da cidade propôs-se a homenagear os trabalhadores da construção da cidade com o “Monumento a Goiânia”, instalado na Praça Cívica que, por ironia espacial e urbanística, situa-se na ponta da Avenida Goiás oposta à da Praça do Trabalhador. .

Nas duas pontas constatamos algo próximo dos sentidos usados por Paul Ricœur na classificação da mémoire empêchée (memória impedida), para a primeira dimensão, e de mémoire manipulée (memória manipulada), para a segunda (Ricœur, 2007Ricœur, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp , 2007.). Ao revolver uma, levantamos as constelações de motivos e conteúdos que reivindicaram e projetaram o monumento e, posteriormente, acumularam legitimidade para a sua inserção na trama urbana de Goiânia. Na outra, defrontamo-nos com a supressão física da obra através de atos de força e intimidação, próprios dos combates da época, que buscavam erigir uma pré-condição para o esquecimento daquele artefato (o monumento) em razão do aparato simbólico que ostensivamente refletia.

A resultante dessa polaridade conflitiva não recai, neste caso, necessariamente, numa forma institucional, embora dela tenha recebido ajuda decisiva para consolidar-se. O conjunto do processo coloca-nos diante da terceira demarcação tipológica de Ricœur: o oubli commandé (esquecimento obrigatório). Esse esquecimento tipifica os aspectos de memória que “prevalecem nos casos de anistia [anistia política]”, equivalendo a um esquecimento institucional, conforme a excelente reflexão de Huyssen (2014Huyssen, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.: 158-159). Ao admitir que a supressão efetiva do monumento pretendesse realmente neutralizar e impedir ressurgimentos na memória coletiva em Goiânia, cabe supor o quão ínfimo deve ser o contingente de pessoas acima de 40 anos em Goiânia (se indagadas em uma eventual enquete feita em 2015) capazes de confirmar que guardam recordação do Monumento ao Trabalhador. Na certa acentuadamente em número menor do que aqueles que viessem a recordar do monumento seria o efetivo dos que conseguiriam responder com precisão acerca de seu significado original. Entre os de idade inferior a 40 anos, alguma referência ao monumento na memória soaria isolada, excepcional.

Entretanto, irrupções da memória se traduzem em iniciativas de sentido contrário ao dessas respostas negativas. Às vezes tomam a forma de depoimentos isolados de militantes, lembranças despretensiosas de cronistas e antigos moradores vizinhos à Praça do Trabalhador ou mesmo de iniciativas incompletas de autoridades, impelindo a que pesquisadores de cultura urbana e memória coletiva em Goiânia tratem o esquecimento obrigatório (ou institucional) mais como tendência do que efeito inevitável dos que o propõem.

Narrativas do silenciamento histórico e do esquecimento constituem construções sociais que interagem com outras narrativas e processos, sujeitando-se ao imponderável e a imprevistos, a interpelações e a reconfigurações de seus significados e consequências. Mesmo constituindo atos intencionais ditados para se impor no plano das interações sociais e políticas em um dado tempo (ou realidade objetiva) e reproduzir-se na subjetividade coletiva posterior a esse tempo, essas narrativas também têm os seus conteúdos e as suas finalidades originais alterados3 3 . Para detectar tais modificações, Girardet (1987: 72) enxerga a necessidade de que pelo menos três tempos sejam observados nos procedimentos de pesquisa das narrativas legendárias: o tempo da espera e do apelo, o tempo da presença e o tempo da lembrança. . Podemos evocar neste instante - além de realçar reflexões sobre a natureza da política (campo de construções hegemônicas e contra-hegemônicas, de conflitos e consensos simultâneos e temporários) - aquela condição da coexistência humana que os fundamentos da sociologia nomeiam de consequências imprevistas ou indesejáveis da ação (Merton, 1970Merton, Robert K. Funções manifestas e latentes. In: Teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970.; Giddens, 2003Giddens, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.). Cabe inferir que a narrativa do esquecimento nem sempre consome as intenções dos agentes que a constroem, sejam elas espontâneas ou racionalmente projetadas.

Dessa forma, os efeitos da destruição do Monumento ao Trabalhador também se sujeitam à ausência de linearidade da vida social e da memória. Também neles a racionalização e a previsibilidade fogem de percursos retilíneos, deixando de obedecer às antevisões lógicas e absolutas dos agentes sociais. Volta e meia, vozes políticas e culturais reintroduzem o debate sobre o monumento na esfera pública em Goiânia, encenando atos típicos do que Bosi chama de rebeldia da memória (Bosi, 1987Bosi, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança dos velhos. São Paulo: Edusp; T. A. Queiroz, 1987.). Assim ocorreu com o renomado artista plástico Frei Confaloni, que ao final da década de 1980 manifestou-se sobre a importância de recuperar o monumento. Verificou-se depois com um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e sem qualquer conexão com o significado político do monumento: o vereador Rusemberg, em 1990, propôs a reconstrução do monumento. Numa terceira situação, em 2003, antigos militantes da esquerda goianiense e técnicos da prefeitura tomam a iniciativa de demandar às autoridades municipais que questões de memória da cidade ganhem a nobreza de questões públicas, revestindo-se de termos, porte discursivo e consequências similares às que Huyssen formula para a política da memória.

Nestas ocasiões, movimentos na memória política voltam a disputar espaços na agenda cultural da cidade. Como agentes da lembrança, seus protagonistas reavivam narrativas imprescindíveis na mediação da memória.

Da mesma forma que os estudos deste campo costumam sublinhar a intensidade com que o “paradoxo da memória e do esquecimento” encontra melhor expressão nos ambientes de monumentos e memoriais, também vale a pena ficarmos atentos para o potencial de coesão social que a reposição de lembranças pode estabelecer. As lembranças levam a reencontros com o passado, que seus animadores propõem em relação aos acontecimentos evocados, ainda que não exatamente na forma pura da existência anterior. Elas levam a conferir versões e a suscitar esclarecimentos sobre relatos consagrados, eventualmente colocando-os em xeque, com funções de complementar ou de substituir elementos, de seletivamente rechaçar ou amplificar limites e verdades até então vigentes. Esse tem sido o roteiro das Comissões de Verdade criadas em vários países saídos de regimes ditatoriais para estabelecer o reencontro com situações até então impedidas de virem à tona (Huyssen, 2014Huyssen, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.).

Ainda que a memória não garanta retornos nítidos dos “antigos presentes predominantemente esquecidos” - em outra expressão de Huyssen, vez que nela adentram as ambiguidades da história -, ela cumpre a tarefa de devolver à consciência dos tempos atuais, na forma do debate público, elementos de teor informativo e medidas úteis para desobstruir a inserção de sentidos antes obstruídos, e assim gerar reparações de injustiças e redefinições identitárias. Ao final, os resultados são incertos pois, em se tratando de eventos do campo político, de teor traumático, também sua recolocação através da memória será política e, na linha da reparação, o trauma poderá ser superado.

Estudos recentes sobre as mudanças culturais em Goiânia, fundados em promissoras plataformas metodológicas e debates travados durante a crise dos paradigmas teóricos das humanidades, ao final do século XX, vão compondo um leque de distintas interpretações e ênfases acerca dos seus monumentos urbanos. Em uma linha, acentua-se o caráter propedêutico dos monumentos históricos, em especial quando eles se convertem em “locais de memória” (Arrais, 2010Arrais, Cristiano Alencar. Monumentos e usos do passado: uma tentativa de conceituação a partir de três experiências. In: Anais do XII Encontro da Anpuh-Ceará - Universidade Regional do Cariri, 2010. <http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2010_pdf/st_manuelina/Cristiano%20Arrais%20trabalho%20completo%20-%20anpuhce.pdf>. Consulta em: 18 Nov. 2014.
http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2...
). Em outras, é reiterado o potencial de os monumentos ultrapassarem, às vezes rapidamente, as intenções tanto dos artistas que os criam quanto da história oficial que autoriza e define as formas de sua inserção na paisagem urbana e, ao mesmo tempo, de deslizarem para condições de incentivar e receber variadas construções de sentido (Medeiros, 2011Medeiros, Wilton de Araujo. Goiânia, anos de 1960: construções de sentidos de tempo e lugar. In: Anais do I Seminário Internacional de História do Tempo Presente. Florianópolis: Udesc; Anpuh; PPGH, 2011.; Corsino Jr., 2013). Uma terceira perspectiva, que mais amplia do que se diferencia das anteriores, assume o tom decidido de reivindicar uma política patrimonial do município e do estado (Lima Filho, 2007Lima Filho, Manuel F.; Machado, Laís A. (Orgs.). Formas e tempos da cidade. Goiânia: Cânone Editorial; UCG, 2007.).

As diferenças entre as reflexões constantes nestes trabalhos não chegam a caracterizar discrepâncias ou antagonismos fundamentais de ordem política ou teórica, pois se assentam mais nos objetos pesquisados do que nas orientações interpretativas que seguem. Em praticamente todos eles, é possível localizar conexões e bases de diálogos que impulsionam para refletir sobre as intencionalidades especificamente políticas incrustadas nos monumentos.

Os monumentos são criados para gravar e fixar - como símbolos - os motivos dos homens do passado. Importa torná-los permanentes para tocar as emoções dos homens do presente e mobilizá-los (Arrais, 2010Arrais, Cristiano Alencar. Monumentos e usos do passado: uma tentativa de conceituação a partir de três experiências. In: Anais do XII Encontro da Anpuh-Ceará - Universidade Regional do Cariri, 2010. <http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2010_pdf/st_manuelina/Cristiano%20Arrais%20trabalho%20completo%20-%20anpuhce.pdf>. Consulta em: 18 Nov. 2014.
http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2...
). Nesse sentido, é típico que os monumentos projetem uma grandiosidade pretendida, fixada no espaço e arremessada no tempo sob formas, dizeres, emblemas, figurações totêmicas e icônicas, que buscam homogeneizar as percepções futuras, propiciar-lhes conteúdos unificadores e universalistas relacionados a eventos, personalidades ou verdades construídas num tempo socialmente determinado.

Entretanto, vale a pena ter em mente a ressalva feita por Arrais (2010Arrais, Cristiano Alencar. Monumentos e usos do passado: uma tentativa de conceituação a partir de três experiências. In: Anais do XII Encontro da Anpuh-Ceará - Universidade Regional do Cariri, 2010. <http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2010_pdf/st_manuelina/Cristiano%20Arrais%20trabalho%20completo%20-%20anpuhce.pdf>. Consulta em: 18 Nov. 2014.
http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2...
: 2), de que esse potencial evocativo do monumento “só é transformado em força ativa quando ocorre um deslocamento que garante, ao mesmo tempo, sua participação significativa no presente”. E mesmo a leitura diversa a esta, de Corsino Jr., engrossa a necessidade de se observar a tendência de múltiplos significados e funcionalidades atribuídas aos monumentos, como consequências imprevistas. Ao ser instalado num espaço da cidade, o monumento passa a integrar a paisagem urbana do lugar, interage com os movimentos e as percepções dos sujeitos que ali passam e o observam, tocam suas superfícies de pedra, ferragem ou madeira, sentam-se à sua sombra, imputam-lhe apelidos e recriam, além dos nomes, as suas finalidades, ou simplesmente apreciam-no sem preocupação com o seu significado original. Ele pode ser absorvido pelo imaginário dos sujeitos da cidade, até mesmo como ponto de referência do urbano, seja para qualificar visualmente o espaço imediato, seja para facilitar uma mera explicação de endereços e percursos na cidade. Ao perder sua sacralidade - ensina a hipótese trabalhada por Corsino Jr. - “...não necessariamente, o monumento permanece incrustado e cristalizado no passado de uma história oficial”. Ele chega a outros tempos presentes ressignificado, corroborando a construção de outras narrativas, embora para sujeitos específicos ele mantenha os atributos originais, relacionados à função da lembrança da qual continua sendo, como imagem, o componente de abertura e efervescência.

Nas três perspectivas, vicejam meios úteis para caracterizar monumentos ilustres de Goiânia, tecendo listas e relatos dos quais aqui aproveitamos os distinguíveis a partir da imediata natureza política neles inscrita. Um deles, o conjunto dos edifícios ao longo do eixo cívico-monumental entre a Estação Ferroviária e o Palácio de Governo, cuja dimensão política Arrais decompõe com especial clareza, diferenciando-se da voga acadêmica que se esgota em realçar a preciosidade do maior acervo arquitetônico art déco no país. Outro, a estátua de Anhanguera, deslocada do exato sítio em que fora posicionada em 1942, quando de uma intervenção na praça da qual ocupava o centro, a Praça do Bandeirante, que praticamente a eliminou do espaço que ocupava. Desta praça restaram o nome e a estátua. Conta Corsino Jr. que o Anhanguera

[...] certa feita recebeu o “agrado” de manifestantes que, ao fecharem o trânsito na avenida, colocaram-lhe bananas na bateia. [...]. A praça foi fisicamente retirada, deixando para trás o nome e a estátua “espremida” entre o fluxo de ônibus dos dois sentidos da Avenida Anhanguera (Corsino Jr., 2013).

Nestes estudos sobre o urbano em Goiânia, o que surpreende em relação ao Monumento ao Trabalhador é a escassez de referências. Até mesmo no âmbito da “crítica acadêmica”, ele praticamente quase nunca consta das “trilhas patrimoniais” da cidade. Numa das raras reflexões que o citam como referência empírica, Wilton Medeiros trata confusamente o significado do Monumento ao Trabalhador, abrandando-o a uma dimensão que, no limite, o elimina como fator político e histórico:

Lá [na Praça do Trabalhador] foi erigido o “Monumento ao Trabalhador”. Porém, apesar da iniciativa em homenagear os trabalhadores da construção de Goiânia, a concepção do monumento foi inspirada no dia 1º de Maio, o Dia do Trabalhador. Isso ficou por demais abstrato e distante da noção de construção de Goiânia e, então, os goianienses não apropriaram a obra que chegou inclusive a ser alvo de protestos (Medeiros, 2011Medeiros, Wilton de Araujo. Goiânia, anos de 1960: construções de sentidos de tempo e lugar. In: Anais do I Seminário Internacional de História do Tempo Presente. Florianópolis: Udesc; Anpuh; PPGH, 2011.).

Despolitização, ingenuidade e pressa na reconstituição factual sobram nesta leitura de Medeiros. Juntas ou isoladas, elas são vias fáceis para conduzir a análise histórica a lamentáveis ciladas: primeiro, a intenção no monumento de Clóvis Graciano não se vinculou a “homenagear os trabalhadores da construção de Goiânia”, ao menos diretamente ou stricto sensu; segundo, a referência ao 1º de Maio é uma cena, entre várias outras, tradutoras da concepção classista que presidiu a criação do artista; terceiro, repetindo o conjunto de sentidos e emblemas desenhados no mosaico só abstratamente poderia aproximar-se “da noção de construção de Goiânia”, dada a sua inspiração internacionalista; quarto, a afirmação de que “os goianienses não apropriaram a obra” (sic) dá as costas a fatos e evidências, ao menos em duas situações: o que dizer da origem do nome da “Praça do Trabalhador”, local em que se localizava o monumento, a não ser como reconhecimento e aceitação pública do monumento?4; além disso, o que dizer da imagem reproduzida na Figura 5, de uma comemoração do 1º de Maio, que passou a se realizar junto ao Monumento?; quinto, é pueril extrair do fantasioso desencontro entre os goianienses e o monumento uma causalidade para o fato de que ele “chegou inclusive a ser alvo de protestos”: por um lado, essa suposição desconsidera os inúmeros registros sobre problemas e perigos suscetíveis a obras de arte permanentemente expostas ao ar livre em vias urbanas, por outro lado, ela brinca com a história ao reduzir o ato de vandalismo do CCC em 1969, acoplado à repressão de Estado, a simples “protestos”. Tratou-se de efetivo crime político e obscurantismo cultural.

Figura 5
Sindicalistas e populares participam das comemorações do 1º de Maio, junto ao Monumento ao Trabalhador em Goiânia, como se tornou recorrente desde a sua inauguração (foto de 1961)

Fragilidades da política de memória em Goiânia

Numa função ou noutra das perspectivas acima mencionadas, os monumentos permanecem peça-chave nas constantes reinvenções do urbano e em suas correspondentes traduções textuais. Por isso, mas não apenas, não demandaria grande esforço reunir contrapontos à assertiva de Robert Musil, de que “[...] nada é tão invisível no meio urbano quanto um monumento” (apud Huyssen, 2014Huyssen, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.). A nosso ver, sobram casos em que vigoram efetivas modalidades de interação entre moradores e visitantes de diferentes cidades com os seus monumentos, gerando não apenas registros na percepção espontânea, mas também permitindo a decodificação, no plano da ciência, dos modos como os significados neles embutidos compartilham as rotinas urbanas.

A noção de política de memória, como aqui estamos tratando, procura uma maneira de orientar a operacionalização de seus componentes em uma pesquisa empírica. Por isso, primeiramente os insere no universo das políticas públicas de cultura de uma dada gestão. Entretanto, procura não se deixar restringir a esse plano formal da classificação à medida que também busca neles enxergar os conteúdos e as expressões que legitimam discursos, afirmam opções e justificam ações políticas. Nesse sentido, seguimos as conceituações predominantes nos estudos sobre as políticas de reparação às injustiças, próprios de momentos posteriores a ditaduras em que graves violações aos direitos humanos integravam as políticas do Estado.

De duas maneiras esta linha de reflexão concebe a política de memória:

De forma restrita, consiste de políticas para a verdade e para a justiça (memória oficial ou pública); vista mais amplamente, é sobre como a sociedade interpreta e apropria o passado, em uma tentativa de moldar o seu futuro (memória social) (Brito, 2009Brito, Alexandra Barahona de. Justiça transicional e a política da memória: uma visão global. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 1. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.: 58)5 5 . Ver, ainda, Pollak (1989) e Araújo, Fico & Grin (2012). .

Uma vantagem em assim caracterizar a política de memória consiste em compatibilizar no ato da pesquisa a perspectiva teórica assumida no início do texto, a partir de Ricœur e Bourdieu. Chega-se assim a um recurso que facilita a identificação e a interpretação qualitativa de significados e sentidos que, de outra forma, podem não se mostrar visíveis ou analiticamente separáveis do conjunto social e histórico que se está reconstituindo. Nessa perspectiva, a memória acaba se configurando como instrumento nas lutas de poder, nas definições sobre o futuro. “Mitos e memórias definem o âmbito e a natureza da ação, reordenam a realidade e legitimam o exercício do poder”, afirma Alexandra Brito (2009Brito, Alexandra Barahona de. Justiça transicional e a política da memória: uma visão global. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 1. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.: 59).

Outra vantagem dessa postura consiste no reforço que ela carreia para a vigilância do pesquisador diante de fontes carregadas da polissemia típica da linguagem política. Favorece a perícia para esquivar-se da demagogia presente em declarações das autoridades, por mais enfáticas que estas declarações sejam diante de plateias e épocas simpáticas à causa, e assim diagnosticar e avaliar a política de memória na gestão de uma cidade. Por fim, fornece foco mais pragmático na leitura de documentos e na etnografia, de modo a captar:

  1. 1. os registros dos recursos orçamentários e suas fontes de financiamento, como rubricas vinculadas, para execução das finalidades anunciadas;

  2. 2. a eficácia da gestão para impelir ações no sentido da memória coletiva, bem como o nível de sua articulação orgânica ao plano de governo municipal como um todo e a conexão deste a compromissos e mecanismos similares em outras instâncias de poder;

  3. 3. a efetividade e a autonomia de um corpo técnico capacitado na elaboração, aprovação e gestão dos programas atinentes à memória e ao patrimônio; e

  4. 4. a existência e manutenção de atividades continuadas de informação e formação da cidadania em que memória histórica, valores identitários referidos em lugares e imagens, acontecimentos e hábitos alusivos à constituição da comunidade sejam conduzidos ao tempo presente para apontar as vantagens de sua evocação, como lembrança e como continuidade positiva no futuro.

Regra geral, ações para universalizar as referências da memória em Goiânia, principalmente quando direcionadas aos moradores, resultam obscurecidas nos diferentes ciclos de política cultural da cidade. Raros são os momentos em que posturas associadas à política de memória integram eixos do programa cultural de uma gestão. Quando ocorrem, revelam-se em iniciativas intermitentes e desencaixadas do habitus dos agentes atuantes no campo cultural, aos quais sequer são disponibilizados os resultados das ações empreendidas, para conhecimento, debate e avaliação quanto a sua continuidade. Algo de promissor, que eventualmente surge numa ou noutra gestão, acaba sucumbido por força de rubricas definhadas e reduzidas a eventos pontuais com função mais de comemorar datas do calendário cívico da cidade do que de seguir propriamente um fluxograma cultural conceitualmente concebido.

Para diminuir o tom impressionista e normativo que pode incidir nessa parte da exposição e adicionar um grau de objetividade à nossa proposição básica, vejamos alguns exemplos do dia. Em atendimento a exigências da Delegacia de Justiça do Ministério Público Estadual, em agosto de 2014 a Prefeitura Municipal realizou levantamento de imóveis antigos com características para contar a história da cidade. Até então a população, os agentes culturais e os próprios órgãos vinculados à gestão cultural na cidade - como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Secretaria Municipal de Cultura - desconheciam que restam em pé na capital apenas 150 casas construídas entre 1940 e 1970, incluídas no patrimônio histórico (76 casas no Setor Central, 30 no Setor Sul, 21 no Setor Aeroporto, 17 em Campinas, 12 no Setor Oeste, 1 no Setor Bueno e 1 no Setor Marista). O assunto chegou ao público através de edição de domingo do jornal O Popular, com destaque na capa e três páginas do “Caderno Cultural”. Ao buscar uma compreensão para o acelerado ritmo de destruição do patrimônio arquitetônico da capital nos últimos anos, a reportagem salienta:

A ausência de uma política pública de preservação desses tesouros e a inexistência, por exemplo, de um conselho municipal ligado à área jogam a responsabilidade da preservação totalmente nas mãos dos donos das casas e dos prédios (Borges, O Popular, 2014Borges, Rogério. Nossas casas, nossa história. O Popular, “Capa e Caderno Magazine”, Goiânia, 24 Ago. 2014.).

Além da omissão dos poderes instituídos, a matéria sinaliza, com outras razões, para a fragilidade e ausência de uma política de memória. São causas que vão das afrontas ao conceito orientador do plano urbanístico original, passam pelas mudanças constantes nos planos diretores visando legalizar intervenções danosas não apenas à memória, mas também à vida urbana (obstruções de paisagem, entupimento de vias de circulação, violações de leis protetivas ao ambiente e transtornos crescentes ao transporte público) e chegam à especulação imobiliária e a outras definições de política urbana submetidas aos interesses de mercado, como a venda de áreas públicas pertencentes ao município, ocorrida no primeiro semestre de 2014.

Designações próprias de uma cidade jovem, de existência menos do que centenária, somam-se aos fatores urbanísticos e político-econômicos acima mencionados, para dificultar a consolidação dos parâmetros de uma política de memória em Goiânia. Segundo o Censo de 2010, a composição demográfica de Goiânia continua impactada por levas recentes de migrações. Mais de 125 mil residentes captados pelo Censo (aproximadamente 10% da população total) não moravam na cidade antes de julho/2005 (Brasil, 2013)6 6 . O Atlas Demográfico do Censo de 2010 informa que, na década anterior, somente Brasília entre as capitais brasileiras recebeu quantidade maior de migrantes do que a capital goiana. .

Completam a tepidez e a quase ausência de ações emuladoras de memória coletiva as condições de vida e trabalho destes novos ocupantes de suas ruas e espaços públicos, definidas por rotinas produtivas e socioculturais ditadas pela expansão das periferias e conurbação com os municípios vizinhos. A experiência urbana condicionada pela aridez dos cenários metropolitanos e exposta à cultura de massas, pouco favorece para produzir identificação do morador com a cidade e seus símbolos. Trata-se, assim, de um aspecto da modernidade contemporânea que, em diferentes sentidos, faz aprofundar a atomização cultural e não permite a este morador escapar ileso da individuação e do isolamento blasé típicos da vida urbana.

Um conjunto de condicionantes assim amalgamados induz a indagar sobre locais, monumentos, imagens ou textos de Goiânia que poderiam materializar alguma conotação legendária ou remeter a traços de identificação coletiva com a cidade. Em que medida soa lícito proclamar a existência de uma simbologia compartilhada por distintas camadas sociais dos goianienses, que orientem para afirmar referências políticas em seus imaginários? Por desconhecimento de pesquisa ou estudo apoiado nessas indagações, ou em outras assemelhadas, recorro ao léxico captado de depoimentos, do noticiário, de páginas eletrônicas de entidades, de crônicas e conversas corriqueiras nas ruas e lugares de Goiânia7 7 . As anotações adiante decorrem de vivência que agrupa curiosidades colhidas em debates espontâneos e em leituras de crônicas e artefatos biográficos de antigos moradores de bairros, bem como de pioneiros de Goiânia. .

Nesse plano, o compartilhamento do imaginário do goianiense sobre sua cidade e a vida que nela leva retrata o teor pretendido nos chamamentos do marketing, de governos e do mercado, mesmo que as imagens, os locais e os significados emitidos nas respostas aparentem formas genéricas. Porém, mais comuns na percepção popular são as respostas de desconhecimento dos significados e símbolos solicitados.

Quando se trata de caracterizar as origens de Goiânia, duas das imagens mais referidas são, uma, as juntas de bois puxando o rolo de compactação do solo na Praça Cívica8 8 . Esta imagem é corriqueira em capas de livros e publicações oficiais do governo de Goiás e do município de Goiânia e aparece em vários outros espaços públicos, como no quadro do pintor M. Cavalcanti, no saguão da Câmara Municipal de Goiânia. e, outra, a Avenida Goiás vista em perspectiva monumental com arborização ainda baixa e dando evidência à Torre do Relógio, no início da via entre a Rua 1 e a Praça Cívica, e ao prédio do Grande Hotel, situado na esquina com a Rua 3. Estas imagens, como outras a elas associadas, parecem exclusivamente intencionadas a registrar época e, quando muito, a depender da cambalhota interpretativa a que se permite o investigador, pleiteiam que os traços rurais e o bucolismo sejam permanentes no modo de vida dos goianienses.

Talvez não haja outras constelações de imagens de maior frequência em publicações de imprensa e nos memoriais urbanísticos de Goiânia do que as do conjunto art déco formado pelas primeiras edificações da cidade, que se encontram espalhadas e mal preservadas em toda a área do centro planejado. A Praça Cívica tomada por inteiro lidera essa iconografia. O contexto mostra um amplo átrio que centraliza e vincula edifícios e nascentes das avenidas principais a se esparramarem para os bairros da cidade. A extensa produção acadêmica sobre história e cultura da modernidade em Goiânia, de que Palacin (1976Palacin, Luís. Fundação de Goiânia e desenvolvimento de Goiás. Goiânia: Editora Oriente, 1976.) é um dos pioneiros, também é tributária da farta utilização das imagens do art déco. Numa listagem aliviada de obras com caráter biográfico, memorial e documental, vale destacar os trabalhos de Chaul (1986Chaul, Nasr F. A construção de Goiânia e a transferência da capital. 2. ed. Goiânia: Editora da UFG, 1986.), Coelho (1997Coelho, Gustavo N . A modernidade do art déco na construção de Goiânia. Goiânia: Edição do Autor, 1997.; 2002Corcino Jr., Givaldo Ferreira. Espaços da memória: um estudo da poética dos monumentos urbanos. In: Anais eletrônicos do XIII Nacional de Geografia Urbana. Rio de Janeiro, Uerj, 2013.), Bernardes (1999Bernardes, Genilda. Goiânia, cidade planejada/cidade vivida: discurso e cultura da modernidade. Tese (Doutorado em sociologia) - Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília, 1999.), Manso (2001Manso, Celina F. A. Goiânia: uma concepção urbana, moderna e contemporânea - um certo olhar. Goiânia: Edição do Autor , 2001.), Unes (2001Unes, W. Identidade art déco de Goiânia. Goiânia; São Paulo: Editora da Universidade Federal de Goiás; Ateliê Editorial, 2001.), Mello (2006Mello, Márcia M. Goiânia: cidade de pedras e palavras. Goiânia: Editora UCG, 2006.), Lima Filho e Machado (2007)Lima Filho, Manuel F.; Machado, Laís A. (Orgs.). Formas e tempos da cidade. Goiânia: Cânone Editorial; UCG, 2007. e Arrais (2010Arrais, Cristiano Alencar. Monumentos e usos do passado: uma tentativa de conceituação a partir de três experiências. In: Anais do XII Encontro da Anpuh-Ceará - Universidade Regional do Cariri, 2010. <http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2010_pdf/st_manuelina/Cristiano%20Arrais%20trabalho%20completo%20-%20anpuhce.pdf>. Consulta em: 18 Nov. 2014.
http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2...
).

Sublinhe-se aqui a escassez de referências nos relatos espontâneos a espaços, peças ou imagens com estrito sentido político, que informem visitantes e moradores sobre as questões do poder na história da cidade e sobre as lutas e dramas que esse campo encerra. As citações ao art déco esgotam-se na definição de estilo: cultural ou urbanístico, ou ambos. Já as menções à Praça Cívica acabam supostas muito mais na amplitude do espaço, à sua centralidade urbanística na cidade e ao conjunto art déco que a rodeia e dela se esparrama. Nestas maneiras de perceber, o componente político ou é subsumido ou comparece apenas para adornar o protagonismo histórico da praça, marco zero na concepção e construção da nova capital.

A incumbência de sediar os poderes regionais, em que pese conferir nobreza política à Praça Cívica, vai com o tempo sendo nublada e entorpecida nas referências a ela feitas. Esse esvaziamento progressivo aparece em alguns registros: a primeira década do século XXI encontra até mesmo o Palácio das Esmeraldas cada vez mais convertido em adereço passivo do espaço da Praça Cívica. Dele cada vez menos emanam dinâmicas integradoras com a praça, como outrora ocorria. A emulação política do palácio orienta-se mais e mais para o edifício detrás, no lado oposto ao da praça, antes chamado de Centro Administrativo. É no sentido do hoje Palácio Pedro Ludovico que os olhos e a consciência dos passantes comuns creditam as ações de poder do governador, dado estar nos seus dez pisos o funcionamento efetivo das secretarias e da administração direta, a sede da burocracia oficial, que acolhe e encaminha demandas de prefeitos, lobistas e funcionários públicos, em cujos corredores e computadores circulam os processos envolvendo verbas, favores, benesses e perseguições, misturados aos áulicos contumazes e aos consagrados teretetês de gabinetes e bastidores.

Além da Casa Verde - como assim o cronista Hélio Rocha trata o Palácio das Esmeraldas -, com o passar do tempo e vivendo os efeitos das mudanças no centro planejado e na cidade, outros prédios da Praça Cívica tiveram esvaziado o teor político de antes. Do Judiciário ficou o Tribunal Regional Eleitoral, com a construção em art déco obscurecida pelo prédio de traços modernos, erguido e espremido no mesmo lote, poucos metros atrás do primeiro. Além desses, permanecem algumas edificações da administração federal (Correios, Ministério do Trabalho, Sine) e prédios estaduais com movimentos e efetividade declinantes (Museu de Arte e Cultura, Tribunal de Justiça), em virtude da descentralização ou de terem mudado suas sedes para novas construções noutros locais e bairros.

Numa reportagem dedicada à comemoração dos 77 anos da cidade (Hoje, 2010), a Praça Cívica, o Relógio da Avenida Goiás e a Estátua do Bandeirante lideram as frequências de citações espontâneas de moradores de Goiânia e migrantes arguidos sobre os locais e as características que consideravam típicos da cidade. Alguns repartiram essas preferências com outros ícones mais recentes: os parques verdes, com mais frequência o Parque Vaca Brava, a arborização da cidade e o Estádio Serra Dourada.

- Quando penso em Goiânia, me lembro dos parques, principalmente do [Parque] Vaca Brava. Eu não lembro de outra coisa típica. Mas eu não tenho tempo pra conhecer mais... Trabalho muito a semana inteira e não sobra tempo [para conhecer mais] (33 anos, analista de negócios - origem: Paraná).

- Fiquei aqui um tempo e foi amor à primeira vista. Gosto muito da arborização da cidade. Em Goiânia, eu adoro o Parque Areião, local muito bom pra relaxar, passear. [...] O que mais...?! O povo daqui é muito bom, trata bem a gente de fora (37, eletricista de autos - origem: São Paulo).

- O que me marcou quando conheci Goiânia foi ver de perto um estádio de futebol, primeira vez que eu vi foi aqui e me apaixonei. A Praça Cívica também chama muito a minha atenção, porque é o centro de tudo (23 anos, balconista e estudante - origem: Tocantins).

- Quando eu cheguei, ficava na porta de casa e enxergava o relógio da Avenida Goiás, de tanto que não tinha nada. [...] O principal ponto de Goiânia é o Lago das Rosas. A vida social da cidade era lá (71 anos, funcionário público aposentado - origem: Bahia).

- Apesar de ter sido um choque cultural, eu gosto muito daqui. Mas Goiânia ainda não tem um símbolo ou monumento marcante, pelo menos que eu saiba. A Praça Cívica foi o primeiro lugar em que eu fui... e lá eu me localizei (23 anos, estudante universitária - origem: Brasília).

- Estudei muito a história de Goiás, quando penso na capital lembro-me da Marcha para o Oeste e o monumento do Bandeirante representa muito isso (22 anos, estudante - origem: Goianésia, interior de Goiás).

Chama a atenção, não custa repetir, a quase completa ausência de citações a locais referidos através de sua dimensão especificamente política, indicando algo de despolitização na memória coletiva dos goianienses. A exceção pode estar na citação à Estátua do Bandeirante, embora caiba aqui a mesma ressalva em relação a numerosas citações à Praça Cívica: o fator político ressoa implícito ou fora das zonas de relevância que movem a lembrança; fica escondido sob a emersão do sentido somente histórico, o que mais catalisa a lembrança do entrevistado.

Roteiro da destruição e do esquecimento

A concepção e construção do Monumento ao Trabalhador no final dos anos 1950, na Praça da Estação, atenderam reivindicação de sindicalistas da cidade que demandavam reconhecimento das autoridades locais e da população ao papel dos trabalhadores para que o avanço da vida moderna viesse assentado em princípios de justiça e progresso social. O explícito teor ideológico impregnado às origens do monumento atraiu ações de hostilidade e o desinteresse das autoridades para protegê-lo. Anos depois, o autor dos cavaletes de concreto para os painéis do monumento, arquiteto Elder Rocha Lima, explicita uma boa medida dessa compreensão: “Na época, o termo ‘trabalhador’ era um palavrão e essa homenagem atraiu a ira da ditadura” (apud Borges, O Popular, 2003Borges, Rogério . Opiniões divergentes - empecilhos para a restauração. O Popular, “Caderno Magazine”, p. 3, Goiânia, 16 Jul. 2003.). Ainda assim cabe sublinhar nesta reflexão o empenho do governador José Feliciano de Oliveira e do prefeito da capital, Jaime Câmara, para prontamente atenderem à reivindicação dos líderes sindicais, quanto à aprovação e construção da obra, em 1959.

A favor de uma sintonia com os fatos, a interpretação requer que não se credite automaticamente a destruição e o esquecimento do Monumento ao Trabalhador somente à repressão do regime militar de 1964. A compreensão resulta incompleta quando deixa de levar em conta elementos, situações e decisões tomadas em momentos posteriores ao período de terror e medo encerrado na década de 1980.

Numa madrugada de abril de 1969, ativistas do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) derramam piche fervido nos dois murais. A pasta preta cobriu a quase totalidade das duas superfícies e apenas uma pequena parte dos desenhos permaneceu à vista (Figuras 6 e 7).

Figura 6
Os dois painéis de Clóvis Graciano para o Monumento ao Trabalhador, em Goiânia. Imagens intactas antes da destruição pelo Comando de Caça aos Comunistas

Figura 7
Simulação digital dos painéis do Monumento ao Trabalhador cobertos de piche fervido, em 1969

Esta ação do CCC apenas inicia a destruição do monumento. A ela seguiu-se a sequência de omissões e desinteresse dos gestores municipais com o monumento, a começar pelo prefeito Iris Rezende e sua secretária de cultura, Maria Guilhermina. Em meio ao clima de recrudescimento da repressão do regime de 1964, nenhuma providência foi tomada para a limpeza e recuperação das pastilhas, que rapidamente se descolavam das duas bases de concreto. Personalidades e entidades culturais da cidade também silenciaram, face ao temor de que iniciativas para proteger o monumento e recuperar suas partes violentadas resultassem em posicionamentos e riscos que elas talvez preferissem não assumir.

Todas as demais gestões após Iris Rezende, cassado ao final de 1969, fizeram ouvidos moucos para a esperada proteção e recuperação do monumento agredido. Mais do que isso, em duas ocasiões os executivos municipais continuaram o trabalho do CCC. O prefeito Manoel dos Reis ordenou, em 1973, a raspagem das pastilhas deterioradas, sem nenhuma proposta de reconstituição, deixando entender que esta atitude atendia mais às suas declaradas convicções anticomunistas do que às incumbências de administrador público.

Mais adiante, em 1986, com o país já vivendo a democratização e debatendo a “Constituição Cidadã”, Joaquim Roriz (nomeado prefeito da cidade após o afastamento do antecessor) encarrega-se de jogar ao chão as duas armações de concreto que serviam de sustentação aos antigos painéis. A alegação para o desmanche prendeu-se à falaciosa necessidade de desobstruir a extensão da Avenida Goiás para o norte da cidade, pois havia um projeto para a via seguir em linha reta, passando por baixo da Estação Ferroviária. A avassaladora força dos tratores dá forma à mentalidade tecnocrática na gestão urbana, consumando o desaparecimento material desse que foi não apenas um elemento distintivo da Praça do Trabalhador, mas o único símbolo do movimento socialista inscrito na paisagem urbana de Goiânia.

Viu-se posteriormente que a extensão da Avenida Goiás seguiu trajeto diferente do alegado, desviando-se completamente do espaço então ocupado pelos pilares do monumento. Em resumo, a extirpação da praça e também dos cavaletes que remanesciam após a destruição dos painéis de Clóvis Graciano, nos episódios de 1969 e 1973, faz acelerar a tendência de esquecimento coletivo do monumento e de sua carga simbólica.

Um hiato nesse percurso é aberto quando, em 1990, o vereador pastor Rusemberg Barbosa faz aprovar na Lei Orgânica do Município (no artigo 10 - “Das disposições transitórias”), autorização para que o Executivo adote procedimentos para “reconstrução do Painel/Monumento da Praça dos Trabalhadores (...) o antigo Coreto da Praça Joaquim Lúcio e o prédio ‘Castelinho’ no Lago das Rosas”. Certamente que o prefeito à época, Nion Albernaz, e os prefeitos subsequentes, com suas respectivas assessorias culturais, não compreenderam esta “autorização” como a oportunidade para a recuperação daquela marca cultural da cidade vinculada aos trabalhadores como classe social, nem se sentiram comprometidos com o sentido ético-político nela implicado.

No primeiro momento, esse menoscabo ganhou apoio nas aparências de folclore e descrédito impregnadas à figura do seu autor, que era líder da Igreja Universal do Reino de Deus. De fato, as atitudes polêmicas do vereador Rusemberg acabam por se estender à defesa pública da reconstrução do Monumento ao Trabalhador, já que ele próprio a vinculou à campanha para derrubar a Estátua do Anhanguera, erguida em 1942 na Praça do Bandeirante para tornar-se, nas décadas seguintes, referência constante nas imagens de enaltecimento da cidade. Na revisão histórica assumida por Rusemberg, Anhanguera “foi um predador de índios e, como tal, não merece ser alvo de orgulho dos goianienses” (Mosaicos do Brasil - Blog).

A inépcia na associação dos dois assuntos combinou-se ao descompromisso dos gestores municipais de então, levando o tema da reconstrução a adormecer e a assim prosseguir nas gestões seguintes.

Somente no ano de 2003 agentes políticos e culturais vinculados aos ideais de esquerda e a movimentos sociais de Goiânia voltam a reivindicar a reconstrução do Monumento ao Trabalhador. Em atendimento, o prefeito Pedro Wilson institui Grupo de Trabalho (GT) para realizar estudos nesse sentido (Goiânia, 2003). Temos no relatório produzido pelo GT a principal fonte para orientar a exposição a que prosseguimos neste tópico.

Os integrantes do GT resgatam a iniciativa do vereador Rusemberg, posteriormente incorporada à Lei Orgânica do Município, de 1990, e convertida em base legal do seu relatório ao prefeito. No aspecto formal, o texto organiza em 18 títulos os fundamentos para a nova demanda de reconstruir o monumento, acompanhados de um bem elaborado conjunto de ilustrações digitais e fotografias, usado para descrever os passos dados na sua investigação. Quanto à argumentação do GT, são caracterizadas as distinções que remetem à essência simbólica do monumento, bem como as controvérsias geradas no seu entorno, de cunho político, artístico e legal. Acompanha o texto um clipe/animação de 41 segundos, que posiciona o Monumento no local exato da antiga construção, visando verificar “as possíveis interferências visuais com o edifício tombado da Estação Ferroviária de Goiânia”9 9 . Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=2wBD-S_t1Z4>. .

A primeira questão debatida no GT refere-se às cartas patrimoniais referidas no relatório (Carta de Veneza, Carta de Burra e Carta de Lisboa) que, tomadas ao pé da letra, não recomendam a reconstrução do Monumento ao Trabalhador. “Mas há exceções”, enfatiza o documento. Para os autores não se trata, neste caso, de anastilose (“recomposição de partes existentes, mas desmembradas”), somado ao fato de o monumento não ter sido tombado como patrimônio histórico. Essas duas razões retiram o tratamento do tema do âmbito estritamente legal, traduzido nas cartas patrimoniais.

Assim, o GT

[...] optou por considerá-lo [o Monumento ao Trabalhador] um “objeto-testemunho”, uma referência histórica e simbólica da política goiana, do Brasil e da própria democracia. Talvez um patrimônio “imaterial” já presentificado em nossa memória. Nessa direção, colocou-se em evidência o fato de que a demolição do monumento, além do descaso político-administrativo “parece indicar [...], sobretudo, uma espécie de silenciamento tácito da história de nossos trabalhadores” (Goiânia, 2003).

Em seguida, advém uma analogia com três casos recentes de reconstrução de patrimônios que se encontravam em situações de legalidade similares à do Monumento ao Trabalhador: a Cruz do Anhanguera, na cidade de Goiás, o Coreto da Praça Joaquim Lúcio e o edifício apelidado Castelinho, os dois últimos em Goiânia. Lembram os autores, “foi através de um plebiscito realizado em Campinas (bairro de Goiânia, em que fica a Praça Joaquim Lúcio) que se decidiu o que reconstruir como Coreto da Praça”.

Outro ponto controverso tratado no relatório arguiu sobre a originalidade de uma obra de arte, no caso da reconstrução: “Em caso de desaparecimento ou destruição de uma obra, cujo artista responsável fosse falecido, seria sua reconstituição um ato de falsificação?” A resposta do GT pondera que o Monumento ao Trabalhador se caracterizava como obra “mecanicamente reproduzível, já que as pastilhas poderiam ser recolocadas por outra pessoa, que não o próprio artista”, como de fato o foi. Dessa forma, desfazendo-se a eventual falsidade do monumento reconstruído, ele seria uma réplica, porém revestida da importância de reconhecimento público e reparação à verdade histórica, ambos de maior validação no plano simbólico do que propriamente artístico. Portanto, “não menos importante do que o original”, na compreensão do relatório. Para sustentar esta compreensão, são citadas diversas opiniões colhidas no próprio campo artístico local.

Por último, o relatório aborda o contraste de estilos entre a Estação Ferroviária e seu entorno envolvente, o que poderia desfavorecer o tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional (Iphan), dentro do processo Art Déco de Goiânia. Nessa ressalva, “a inserção de novo elemento arquitetônico e artístico, significativo em forma, volume e cor, poderia ‘ser concorrente’”. Ocorre que o tombamento do acervo da estação e entorno ocorreu através do despacho do governador, de 18 de outubro de 1982, quando os cavaletes de concreto ainda existiam naquele espaço. A rigor, ele próprio integrava o conjunto tombado. O relatório conclui, nesse aspecto, que a sua presença “como parte” remete à consideração de uma “anastilose, o que necessariamente implicaria em sua reconstituição”.

Para além dessa adequação à essência cronológica do tombamento, o relatório resgata que a edificação da Estação Ferroviária tem data de 1952, ilustrativo, portanto, de “um art déco tardio”, enquanto o Monumento ao Trabalhador foi inaugurado em 1959. Essa curta distância no tempo deixa apenas presumida a concorrência de estilos, o que traria despurificação ou poluição do art déco e consequente perda da condição para o tombamento pelo Iphan:

Logo, a Estação é o fim do movimento art déco e o Monumento é o estado nascente de outro, que trouxe a modernidade ao Brasil. Ambos representantes de uma arquitetura internacional, portanto ressignificados por nossas manifestações culturais locais. Qual é o mais importante para nossa história? Ambos, é óbvio. Assim, não havendo precedência de um sobre o outro, os dois podem conviver no mesmo espaço, mostrando inclusive a diversidade de nossa arte (Goiânia, 2003).

Percorridas essas polêmicas, o GT encerra seu relatório declarando a legitimidade da reconstrução do Monumento ao Trabalhador, ainda que não mais seja possível reconstruir a Praça dos Trabalhadores, dadas as modificações urbanísticas irreversíveis operadas no seu espaço. Um elenco de sete recomendações é endereçado ao prefeito, cuja síntese solicita que o processo de reconstrução seja considerado menos um ato nostálgico do passado, e sim o “reconhecimento simbólico da história de nosso povo”.

A sétima recomendação do GT, no entanto, rapidamente viu-se pendurada na brocha, provavelmente em função de os membros do GT terem se embalado no otimismo da causa justa. Seu texto completo é: “Decidida a reconstrução, sugerimos que o mesmo seja inaugurado em 1º de Maio de 2004.” Desde então, passada mais uma década, o processo não mais andou.

Conclusão

As reverências contundentes às lutas dos trabalhadores (Painel 1) e ao mundo do trabalho (Painel 2) autorreferidas no Monumento ao Trabalhador, e assim reconhecidas pelos agentes do campo político-cultural, traduziam o momento de avanços das lutas sociais no Brasil, ao final da década de 1950. Elas fornecem dimensão singular à obra artística através de várias cenas emblemáticas, particularmente no destaque dado à figura dos “Enforcados de Chicago”, episódio que lembra a repressão à greve de trabalhadores iniciada em 1º de Maio de 1886, na cidade de Chicago e que três anos depois inspirou a instituição internacional do Dia do Trabalhador (Figura 9).

Figura 8
O Monumento ao Trabalhador e a Estação Ferroviária, na Praça dos Trabalhadores em Goiânia. A coexistência de estilos, poucos meses antes da ação do CCC (foto de 1969)

Figura 9
Detalhes do mosaico em pastilhas no Painel de Clovis Graciano (“A luta dos trabalhadores”) para o Monumento ao Trabalhador, em Goiânia

Do mesmo modo, as ações para a destruição dos painéis demonstraram a profundidade da inversão político-ideológica operada na sociedade brasileira com o golpe de março de 1964 e a afirmação da ditadura que lhe sobreveio. Ousamos afirmar, como insight para posteriores pesquisas, que esta foi uma das mais incisivas atrocidades cometidas durante a ditadura contra a cultura e as artes em Goiânia, dado o efeito que produziu de banir da memória política da cidade a principal homenagem realizada pelos poderes constituídos aos trabalhadores como classe social.

Os dois processos mostram a singular dinâmica das tensões presentes na dualidade memória - esquecimento, segundo a abordagem que delineamos nos parágrafos introdutórios: versões de acontecimentos significativos no passado, intencionadas a inserir conteúdos na memória social ou, ao contrário, a produzir o esquecimento, adquirem força de validação e se legitimam no decorrer do tempo de acordo com a força legítima que conseguem acumular em contextos específicos das disputas hegemônicas.

Por isso mesmo, cabe admitir que, no limite, o processo de esquecimento institucional ou obrigatório não se consumou. Manifestações posteriores bem o comprovam, ao modo da inciativa que resultou no GT da Prefeitura Municipal de Goiânia, em 2003. Mais ainda: as linhas do esquecimento podem mesmo, em 2015, ser confrontadas, retidas e revertidas em novos contextos de decisões, desde que haja coadunação de vontades políticas, na sociedade e no Estado, sob a institucionalidade democrática.

Para ganhar materialidade, a reversão somente se afirmará no plano político. Fica a depender de novas retomadas no debate público a respeito do Monumento ao Trabalhador, que logrem repor para as gerações presentes o seu significado, além de especificamente político, também histórico, artístico, urbanístico e arquitetônico. Todas essas instâncias participantes na conceituação do monumento deverão se reunir, no plano simbólico, tanto no que diz respeito às definições da Praça do Trabalhador, como lugar, quanto no que pode importar para a cidade de Goiânia como expressão de uma comunidade formada em processos histórico-sociais e, sobretudo, detentora de memória. Aliás, não custa repetir que o nome da praça lhe é tributário. Essas iniciativas, caso ocorram, virão acarretar em reforço de políticas de memória e defesa do patrimônio no contexto das políticas públicas de cultura, em plano municipal e estadual.

Embora essa tarefa possa eventualmente estimular o envolvimento e a identificação de agentes políticos e culturais, acadêmicos e sindicais, identificados com a simbologia do monumento, como imaginamos, ela não deve reter-se nestes segmentos. Mais vantagens ela trará à democracia, se a mobilização que empreender resultar na expansão da consciência identificada com o enaltecimento da memória e da liberdade como valores necessários à construção do futuro, da comunidade e da nação. O presente artigo pretende ser uma contribuição nesse processo.

Referências

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  • Bernardes, Genilda. Goiânia, cidade planejada/cidade vivida: discurso e cultura da modernidade. Tese (Doutorado em sociologia) - Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília, 1999.
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  • *
    Texto produzido no âmbito do estágio pós-doutoral realizado no Departamento de Sociologia da UnB, sob a supervisão do Dr. Brasilmar Ferreira Nunes. Apresentamos versões anteriores na Mesa-Redonda “Patrimônio, memória e cidades”, do II Seminário Neap: O trabalho da memória e processos de patrimonialização - Goiânia, 2 a 4 Set. 2014; e no GT “Urbanidades Disputadas”, do XII Congresso Luso-Afro-Brasileiro, XII Conlab/ 1º da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanidades em Língua Portuguesa - Lisboa, 1 a 5 Fev. 2015.
  • 1
    . Além dessas inspirações, também procuramos observar as referências paradigmáticas aos estudos de memória, formuladas por Bosi (1987)Bosi, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança dos velhos. São Paulo: Edusp; T. A. Queiroz, 1987., Halbwachs (1990)Halbwachs, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. e Le Goff (1992)Le Goff, Jacques. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 1992..
  • 2
    . Aqui arrolamos significados diretamente referidos à criação e, posteriormente, à destruição do Monumento ao Trabalhador, de Goiânia. Os atributos “de classe trabalhadora”, nos termos da literatura socialista, foram os utilizados para indicar o “trabalhador” homenageado neste monumento. Invocação de conteúdo diferente desse ocorreu quando a Prefeitura da cidade propôs-se a homenagear os trabalhadores da construção da cidade com o “Monumento a Goiânia”, instalado na Praça Cívica que, por ironia espacial e urbanística, situa-se na ponta da Avenida Goiás oposta à da Praça do Trabalhador.
  • 3
    . Para detectar tais modificações, Girardet (1987Girardet, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia. das Letras , 1987.: 72) enxerga a necessidade de que pelo menos três tempos sejam observados nos procedimentos de pesquisa das narrativas legendárias: o tempo da espera e do apelo, o tempo da presença e o tempo da lembrança.
  • 4
    . Antes dos anos 1960, a linguagem comum usava o nome “Praça da Estação” para referir-se ao espaço em frente à Estação Ferroviária, embora o nome oficial do local fosse “Praça Americano do Brasil”. O que houve foi uma ressignificação pela população, para Praça do Trabalhador, “...por se encontrar referida [a praça] ao Monumento ao Trabalhador” (Goiânia, 2003).
  • 5
    . Ver, ainda, Pollak (1989)Pollak, Michael. Memória. Esquecimento. Silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, Rio de Janeiro: CPDoc, 1989. e Araújo, Fico & Grin (2012)Araújo, Maria Paula; Fico, Carlos; Grin, Mônica (Orgs.) Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012..
  • 6
    . O Atlas Demográfico do Censo de 2010 informa que, na década anterior, somente Brasília entre as capitais brasileiras recebeu quantidade maior de migrantes do que a capital goiana.
  • 7
    . As anotações adiante decorrem de vivência que agrupa curiosidades colhidas em debates espontâneos e em leituras de crônicas e artefatos biográficos de antigos moradores de bairros, bem como de pioneiros de Goiânia.
  • 8
    . Esta imagem é corriqueira em capas de livros e publicações oficiais do governo de Goiás e do município de Goiânia e aparece em vários outros espaços públicos, como no quadro do pintor M. Cavalcanti, no saguão da Câmara Municipal de Goiânia.
  • 9
    . Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=2wBD-S_t1Z4>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2016
  • Aceito
    22 Fev 2017
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