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A lei como arma na vida e morte das democracias

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018

Nossa democracia está em perigo?, perguntam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, demarcando seu público-alvo: os cidadãos americanos. A pesquisa dos autores foi motivada pela chegada ao poder de Donald Trump e o acirramento entre republicanos e democratas. O texto percorre a história da democracia americana, ressaltando eventos que a fortaleceram e a enfraqueceram.

No entanto, as reflexões propostas em Como as democracias morrem não se limitam aos Estados Unidos. Os autores mostram que os recentes acontecimentos nos Estados Unidos precisam ser analisados com atenção para notarmos os caminhos pelos quais o autoritarismo se sobrepõe à democracia. Esta resenha traçará as linhas de argumentação do texto e investirá teoricamente com mais profundidade sobre alguns pontos deixados em aberto na parte final do livro.

Para Levitsky e Ziblatt não é a consciência das massas que consegue barrar os demagogos, mas os partidos políticos, que têm o papel de guardiões da democracia (p. 31). As elites políticas teriam papel-chave no surgimento do autoritarismo, quando, por ambição, medo ou erro de cálculo constroem alianças fatídicas e abrem as portas para outsiders com traços de autoritarismo.

Pelo contrário, os partidos políticos já estabelecidos precisam estar atentos para barrar a entrada de políticos do tipo, e para isso os autores elaboraram um teste com quatro comportamentos que sinalizam o autoritarismo:

  1. rejeitar, com palavras ou ações, as regras do jogo democrático;

  2. negar a legitimidade dos oponentes;

  3. tolerar ou encorajar a violência; e

  4. indicar uma disposição para reduzir as liberdades civis dos oponentes, inclusive as da mídia (p. 33-34).

O tipo ideal que se encaixa nesse comportamento é o outsider populista, que, vindo de fora do cenário político, clama representar a voz do povo contra aquilo que ele afirma ser uma elite corrupta e conspiratória.

Os autores formularam também estratégias que os partidos podem utilizar para afastar candidatos extremistas, que consistem basicamente em excluí-los da estrutura partidária e, em caso de embate eleitoral, formar alianças até mesmo com oponentes ideologicamente diferentes. Esse seria um mecanismo de gatekeeping, que teria funcionado bem nos Estados Unidos, pelo menos até 2016.

A lógica do gatekeeping é: a habilidade do povo de julgar os candidatos não é 100% confiável. O perigo de o povo votar em um pretendente a autoritário se acentuaria no presidencialismo, que, diferentemente do que ocorre com o primeiro-ministro no parlamentarismo, são eleitos diretamente pelo povo. O mecanismo apresenta então um viés antidemocrático. O seu papel de filtragem pode acabar distorcendo a própria democracia, utilizando critérios de seleção que não representariam a população. Segundo os autores, “não há escapatória dessa tensão” (p. 48), pois, ao mesmo tempo em que esses critérios podem afastar alguém que, no futuro, instalaria um regime autocrático, podem simplesmente reproduzir preconceitos históricos, barrando a entrada de identidades minoritárias.

Donald Trump, com sua fama e riqueza, não dependeu de estruturas partidárias para projetar sua imagem para o eleitorado americano. E quando candidato, em 2016, obteve o apoio de políticos republicanos de grande relevância. Essa foi a grande abdicação republicana. Donald Trump foi eleito tendo sido o único presidente, com exceção de Richard Nixon, a atender um dos critérios do teste de comportamento autoritário. Na realidade, ele atendeu aos quatro critérios (p. 66).

Mas como um político demagogo consegue alavancar sua candidatura? Uma das conquistas políticas de um demagogo é conseguir pintar seus oponentes como inimigos, subversivos e até mesmo terroristas, pois isto lhe confere maiores fundamentos para agir contra eles. O demagogo mais bem-sucedido, e por isso mais perigoso, é aquele que consegue abusar do poder com aparência de guardião da democracia que combate inimigos de extremo perigo.

Quando tem a máquina pública à sua disposição, ele passa a subverter a democracia. Inicia-se um processo de captura dos árbitros, ou seja, daqueles atores que podem denunciar e combater o abuso de poder. Os pretendentes ao autoritarismo procuram colocar seus apoiadores no controle de agências reguladoras, cortes judiciais e setores da mídia. Dessa forma, podem não só evitar acusações como podem usar a lei como arma. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. A norma não age sozinha, e quem a executa pode fazê-lo seletivamente. Todas essas estratégias são aparentemente legais e se baseiam em valores como a dignidade, a vontade popular e a verdade. Um dos vários casos históricos merece ser citado aqui por abarcar as principais questões do início ao fim do livro.

No início da história americana, federalistas e republicanos não se aceitavam como rivais legítimos, tendo como centro do conflito a questão escravocrata. Agricultores brancos do sul e seus aliados democratas associavam o abolicionismo com uma ameaça existencial e a descreveram em termos quase apocalípticos. Políticos contrários à escravidão, por sua vez, acusavam os políticos favoráveis de traição. Com a Guerra Civil, rompeu-se de vez a democracia americana. A reconstrução foi lenta, e com relutância os então democratas e republicanos se aceitaram enquanto rivais legítimos.

A estabilidade institucional veio através da exclusão racial. Pelo Ato de Reconstrução de 1867 e pela 15a Emenda, a limitação do sufrágio por motivos de raça não era mais possível e então os afro-americanos se tornaram um eleitorado de peso. Entre 1885 e 1908, todos os 11 estados pós-confederados reformaram suas constituições e leis eleitorais para retirar os direitos dos afro-americanos. Para seguir a 15a Emenda, nenhuma menção à raça poderia ser feita em esforço para restringir o direito ao voto, de modo que os estados introduziram instrumentos “neutros”: taxas, requisitos de propriedade, testes de alfabetismo e formulários complexos. Na Carolina do Sul, o percentual de pessoas negras que votaram caiu de 96 em 1876 para 11 em 1898 (p. 93). Apenas com o Ato dos Direitos Civis de 1964 e com o Ato dos Direitos de Voto de 1965 se fez valer a inclusão racial e os Estados Unidos se tornaram realmente democráticos, embora a polarização tenha retornado.

É preciso notar que a tensão democrática anteriormente mencionada retorna nesse exemplo. Afinal de contas, o que ocorreu no caso americano não foi um episódio de alianças partidárias para barrar um inimigo em comum que ameaçava a ordem existente? Os autores não fazem essa ligação, mas trata-se aqui do lado antidemocrático do gatekeeping.

Se as normas e as instituições democráticas conseguem ser usadas aparentemente de forma adequada por motivos antidemocráticos, então o que protege a democracia? As regras e constituições possuem lacunas e ambiguidades, ou seja, estão sujeitas a interpretações conflitantes e a construções forçadas ou malabarescas de sentido. O que protege a democracia, então, são entendimentos comuns, que não estariam dispostos em normas escritas, mas em regras informais de convivência, as muretas ou guardrails da democracia: tolerância mútua e reserva institucional.

A tolerância mútua é a disposição em aceitar que nossos rivais são legítimos e têm direito também a existirem e a competirem pelo poder (p. 103-104). A reserva institucional significa evitar ações que, ainda que representem uma prerrogativa legal e legítima, violam o espírito da lei (p. 107).

É preciso conjugar o livro com reflexões mais profundas sobre teoria política. Em específico, precisamos retomar o sentido polêmico de Estado segundo Schmitt, para quem o conceito de Estado teria como consequência última o agrupamento amigo-inimigo (Schmitt, 2015: 59). O “político” marca o mais extremo grau de intensidade de uma associação ou dissociação (Schmitt, 2015: 51). Do início ao fim do texto, somos levados a refletir sobre a origem de uma sociedade política, quando é preciso separar aquilo que é aceitável ou não, ou, em outras palavras, separar amigos e inimigos.

Existem, portanto, dois momentos da experiência política, que podem ser compreendidos através de Chantal Mouffe. A autora diferencia o “político” (political) e a “política” (politics). O primeiro marca a dimensão de antagonismo constitutiva das sociedades, quando se separa quem dela fará ou não parte. A segunda diz respeito às práticas e instituições que organizam a convivência humana. Podemos dizer que a tolerância mútua está na passagem do político para a política e do antagonista para o agonista, que implica uma relação nós/eles onde o conflito existe, mas os adversários se reconhecem como rivais legítimos (Mouffe, 2015: 19). Quando a polarização se torna extrema e o outro é visto como ameaça existencial, a tolerância mútua é destruída e deixa de haver limites para os instrumentos a serem utilizados para obter vitórias políticas. O que o livro nos mostra é que a política ainda se mantém, enfraquecida e degradada, mesmo quando o antagonismo começa a preponderar.

O antagonismo político se mostrou realmente grave na campanha de 2008, quando foram geradas narrativas sobre o candidato Barack Obama ser marxista, antiamericano e secretamente muçulmano (p. 151). A diferença entre republicanos e democratas foi elevada ao nível de “verdadeiros americanos” e “antipatriotas”, retomando o discurso existente na origem turbulenta da história americana.

Os partidos se viram cada vez mais divididos, mas, no contexto atual, tiveram que incluir na agenda mais questões: étnicas, culturais e sociais. Junto com a inclusão racial, a imigração latina e asiática também se tornou um fator de diferenciação. Com o encolhimento do eleitorado branco e cristão no lado republicano, o medo do desaparecimento cresceu (simbolizado nos dizeres “Make America great again” ou “Take our country back”) e com isso a intolerância. Republicanos e democratas, portanto, estariam em pé de guerra basicamente em torno das questões raciais e religiosas, em um ambiente de maior diversidade do que na época de construção do país.

A real importância de Trump nesse contexto de antagonismo deve-se ao fato de que ele reverberou um discurso extremista na condição de candidato à presidência e depois na condição de presidente, o que ainda não havia ocorrido nos Estados Unidos. No cargo, o presidente demonstrou hostilidade para com os árbitros, procurando assegurar, por exemplo que agências como o Departamento Federal de Investigação (FBI), a Agência Central de Inteligência (CIA) e a Agência de Segurança Nacional (NSA) fossem controladas por pessoas leais a ele. Os autores não afirmam que os Estados Unidos entraram no autoritarismo, dizem que o presidente Trump falou mais do que agiu, tropeçou nos próprios pés e suas iniciativas foram desmanteladas pela oposição republicana (p. 179). No entanto, ainda é cedo. Outros presidentes que se tornaram autoritários também não agiram muito no início do mandato, como Fujimori no Peru e Erdogan na Turquia.

Os autores realizaram um trabalho de pesquisa histórica para projetar a hipótese de que os Estados Unidos estão no início ou meio de um caminho parecido com o de outros países que descambaram para regimes autoritários. Como reverter a situação? Segundo Levitsky e Ziblatt, o futuro mais plausível é a continuação da polarização e o aumento dos embates institucionais, ou seja, a manutenção da democracia, mas com a presença cada vez menor das regras não escritas. Trump pode até falhar nesse cenário, mas isso não diminuiria o abismo entre os partidos.

Como proposta, o Partido Republicano, dizem os autores, precisa ser reformado, tornando-se independente de seus doadores relacionados a grupos de interesse e à mídia de direita, além de afastar extremistas, diversificar a base eleitoral e evitar o discurso do nacionalismo branco (p. 211).

Do lado dos democratas, um alerta: o abandono da tolerância mútua e da reserva institucional e a consequente utilização de práticas antidemocráticas, mesmo que em resposta a práticas também autoritárias, afastaria os moderados, unificaria as forças pró-governo e forneceria as justificativas para maior repressão (p. 204). Qualquer vitória obtida através do obstrucionismo ou do alargamento forçado das normas seria uma vitória partidária, mas não uma vitória da democracia, pois esta seguiria enfraquecida e mais episódios de intolerância se repetiriam. A oposição deve ser através das instituições e dos protestos pacíficos como forma de fortalecer essas mesmas instituições e impedir que novos autoritários surjam. A lei e as instituições, portanto, são os instrumentos para combater extremistas.

O livro, em sua parte final, quando propõe algumas soluções, investe no tema do ativismo e da cooperação política. A tarefa da oposição é construir uma coalizão ampla, que reúna não só aqueles que pensam de forma parecida, mas grupos com pontos de vista diferentes em vários assuntos, fazendo concessões, mas sem abandonar as causas que são importantes.

Os autores são firmes em dizer que não é possível, por exemplo, fazer concessões em relação aos direitos civis de identidades minoritárias para construir coalizões de oposição (p. 214). Fica claro que existem pautas que não são negociadas. Os autores propõem aumentar a relevância de problemas que afetam a vida de todos, independentemente de suas visões de mundo, como o crescimento econômico, a seguridade social e a saúde pública.

A oposição precisaria, usando o vocabulário de Laclau e Mouffe (2015LACLAU, Ernesto; Mouffe, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo; Brasília: Intermeios; CNPq, 2015.), construir cadeias de equivalência, subvertendo as diferenças entre determinados sujeitos e reunindo-as em oposição a um outro. A lógica da equivalência implica uma simplificação do espaço político e instaura uma fronteira entre Nós e Eles (Laclau & Mouffe, 2015: 209). As bandeiras propostas pelos autores podem ser compartilhadas por vários atores, mas elas só fazem sentido por se oporem a um inimigo comum.

Não parece certo terminarmos o texto com a ideia de que a polarização precisa acabar, ela precisa sim ser redefinida. Como o próprio título indica, a democracia pode ser morta. A democracia possui inimigos existenciais. Sempre que falam dos políticos autoritários ou demagogos, Levitsky e Ziblatt são claros: é preciso combatê-los e afastá-los. Eles não são simples adversários.

Nenhuma das bandeiras políticas divergentes pode ser mais importante do que o combate ao extremismo. Mas para isso é preciso concordar, por exemplo, que o preconceito racial não é uma bandeira política, mas uma postura extremista. Não se trata só de aceitar que algumas de suas ideias podem ser derrotadas, mas que algumas nem deveriam existir. Se antes a inclusão racial era pensada em termos apocalípticos, o mesmo se passa hoje com as questões feministas e LGBTs, além da espectral ameaça comunista. É de se observar que em setores da esquerda, a situação se repete, não se pensa duas vezes antes de qualificar um adversário de fascista. Nesse ponto, ainda que os autores, no início, tenham afirmado que a consciência dos cidadãos não é o que protege a democracia, restamos, ao final, com o apelo à construção de uma cultura política que depende dessa consciência.

A ordem não tem valor em si mesma. A experiência americana mostrou que é possível construir o “agonismo” pagando o preço da exclusão racial. O antagonismo, por sua vez, não implica imediatamente a destruição das instituições. Elas se mantêm, mas dessa vez não como forma de organizar a convivência humana, mas como arma para atacar e destruir o inimigo.

Se dissemos anteriormente que valeria a pena investir em temas da teoria política para aprofundar o debate, o livro, por sua vez, demonstra como as reflexões teóricas só têm a ganhar com a pesquisa histórica e com a coleta de dados. Por mais que as discussões centrais do texto sejam cercadas de paradoxos, o relato histórico consegue esclarecê-los e fornece novas discussões.

Como atingir a estabilidade institucional conjugada com pluralismo e diversidade? Não se trata apenas de transformar inimigos em adversários, mas de construir um consenso entre os diferentes que resulte não na exclusão de minorias, mas na exclusão de práticas autoritárias. Isso definirá até mesmo os contornos do gatekeeping, que também não possui valor em si mesmo. O desafio continua sendo desde sempre possibilitar o pluralismo político e construir uma sociedade que seja ao mesmo tempo estável do ponto de vista institucional e etnicamente diversa.

Referências

  • Mouffe, Chantal. Sobre o político. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
  • LACLAU, Ernesto; Mouffe, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo; Brasília: Intermeios; CNPq, 2015.
  • Schmitt, Carl. O conceito do político. Lisboa: Edições 70, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2018
  • Aceito
    08 Mar 2019
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