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Rede de proteção e política de convivência: reflexões sobre a práxis

Protection network and coexistence policy: reflections on praxis

Resumo

O objetivo deste estudo é a análise dos papéis da rede de proteção em uma política municipal de convivência familiar sob a perspectiva de seus agentes. Foi realizada uma análise documental das atas de reunião de um Conselho dos Direitos da Criança, elaboradas entre 2006 e 2020. O material foi submetido à Análise de Conteúdo Temática e a estatísticas descritivas. Foi observado que o acolhimento institucional e familiar e a colocação em família substituta são as medidas mais pautadas. As instituições do sistema de justiça exercem pressão sobre os agentes sociais, e estes monitoram os conselhos tutelares e as entidades de acolhimento. O espaço do grupo de trabalho possibilita aos agentes discutirem os rumos da política de convivência familiar e comunitária e cobrarem sua implementação. Os aspectos discutidos têm implicações sobre a operacionalização dessa política no âmbito municipal.

Palavras-chave:
Proteção; Política social; Agentes; Família; Comunidade

Abstract

The aim of this study is to analyze the roles of the protection network in a municipal policy of the right to live in a family based on its agents. A documentary analysis of the minutes of a Council for the Rights of Children prepared between 2006 and 2020 was carried out. The material was submitted to the Thematic Content Analysis and to descriptive statistics. It was observed that institutional and family reception and placement in a surrogate family are the most discussed measures. The institutions of the justice enforce the agents and they monitor the guardianship councils and host entities. The working group allows to discuss the direction of the policy of the right to live in a family and community and to demand its implementation. These aspects have implications for the operationalization of this policy at the municipal level.

Keywords:
Protection; Social policy; Agents; Family; Community

Introdução

Este estudo tem por objeto a análise dos papéis da rede de proteção aos direitos de crianças e adolescentes na atuação junto a uma política municipal de garantia do direito à convivência familiar e comunitária sob a perspectiva de seus agentes sociais. O pressuposto é de que esses agentes atribuam a seus pares os papéis de implementação da política de convivência familiar no âmbito municipal, fiscalizá-la de acordo com seus eixos de atuação, agenciar parcerias com setores do Estado e segmentos organizados da sociedade e elaborar o plano municipal de convivência familiar e comunitária.

Por agentes sociais são compreendidos os órgãos públicos e as organizações da sociedade civil responsáveis pela defesa, promoção e controle dos direitos de crianças e adolescentes, tais como os conselhos deliberativos, as redes e fóruns, os equipamentos de saúde, educação e assistência social, as entidades sociais, o Judiciário, o Ministério Público (MP) e o Conselho Tutelar (CT). Convém ressaltar que essas instituições, embora apresentem objetivos e pautas em comum, externam divergências em termos de atuação, perspectivas, potencialidades e fragilidades até mesmo em âmbito interno, o que faz desse terreno um campo fértil para tensões, disputas de interesses e concessões (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Catiele Flôres. Atuação do Sistema de Garantia de Direitos na defesa do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes institucionalizados. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais, v. 1, n. 1, p. 99-111, jul. 2015.).

Os avanços na legislação sob o viés da proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes1 1 Os constructos “crianças” e “adolescentes” são compreendidos a partir do aporte teórico e metodológico da sociologia da infância, representados por expoentes como Manuel Jacinto Sarmento, William Corsaro, Clarice Cohn e Christina Toren, os quais buscaram desconstruir as noções de infância e adolescência como categorias universais e propuseram uma agenda de estudos com esse segmento da população. Sob tal perspectiva, crianças e adolescentes são concebidos como sujeitos históricos e atuantes na construção da realidade social, cujas narrativas e vivências diárias oferecem pistas para o entendimento das dificuldades enfrentadas no acesso às políticas de garantia dos direitos da infância e juventude, como as de saúde, educação e assistência social. foram impulsionados, na década de 1980, por movimentos sociais que contestavam a institucionalização dos chamados menores, prática comum nesse período, regida pela doutrina da situação irregular. Essa lógica estava arraigada nos antigos Códigos de Menores, sancionados em 1927 e 1979, sendo questionada por segmentos organizados da sociedade civil, que começaram a produzir rupturas na cultura de internação da população infantojuvenil no Brasil (Nascimento, Arello & Santiago, 2015NASCIMENTO, Maria Lívia do; ARELLO, Maria Isabel Rosa da Silva; SANTIAGO, Gláucia Helena de Paula. Lógicas de controle e marcos legais: a proteção no campo da infância e da adolescência. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 15, n. 3, p. 936-947, nov. 2015.). Vale registrar que as trajetórias dos sujeitos que integram a rede de proteção são afetadas pelas marcas históricas do passado colonial, do racismo estrutural, do assistencialismo e do autoritarismo, nas quais estão fincadas as raízes de constituição da sociedade brasileira e reprodução da ordem social vigente, assim como as respostas para a transformação dessa realidade.

Em resposta às mobilizações populares, foram acrescentados artigos à proposta de Constituição Federal, de 1988, para que fossem criadas leis que garantissem o bem-estar de crianças e adolescentes, agora considerados sujeitos de direitos, tendo como marco regulatório a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Além de avanços no campo legal, esse dispositivo impulsionou a implementação de políticas públicas voltadas para o atendimento prioritário das necessidades básicas do segmento infantojuvenil, como o direito à saúde, à educação, à alimentação e à moradia. Maria Ignez Costa Moreira (2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.) descreve o tripé constitucional que sustenta a garantia dos direitos infantojuvenis no país, no qual a família2 2 O significado de “família” é conceituado conforme a vertente marxista da literatura sociológica, que concebe essa instituição através de suas relações com o sistema de produção capitalista, ou seja, constitui uma unidade social de participação política voltada para a reprodução da força de trabalho, cuja divisão de papéis entre os membros familiares atende às necessidades de expansão do capital. Esse viés contrapõe-se às correntes funcionalistas, nas quais a família assume as funções de formação dos indivíduos e socialização primária. aparece como base da sociedade, ocupando um lugar central na promoção e defesa dos direitos, com a proteção especial do Estado3 3 A noção de “Estado” é definida de acordo com a sociologia crítica inspirada na tradição marxista, a qual compreende essa entidade como produto das contradições que permeiam a estrutura econômica de produção e reprodução da vida material. Na qualidade de superestrutura dotada de poder político e coercitivo, o Estado utiliza-se da sociedade civil, de instituições, leis e normas para se organizar enquanto tal e expressar os interesses de classe inerentes às relações de produção capitalista. , por meio de políticas sociais.

Conforme estabelecido em lei, crianças e adolescentes têm o direito de ser criados e educados no seio de suas famílias naturais, formadas pelos pais, qualquer deles e seus descendentes, ou extensas, constituídas por parentes próximos, com os quais mantêm vínculos afetivos e, excepcionalmente, em lares substitutos, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que ofereça condições favoráveis ao seu desenvolvimento integral. Em razão dessa garantia, que corrobora as contribuições da preservação dos vínculos familiares e comunitários para a formação infantojuvenil, a colocação em família substituta e o acolhimento institucional ou familiar deveriam constituir medidas excepcionais, aplicadas somente em razão da impossibilidade de manutenção e reintegração na família de origem ou extensa (Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.).

Com base em dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o tempo de institucionalização de crianças e adolescentes (Brasil, 2021), é possível enxergar uma realidade diferente da prevista na legislação nacional, onde 30.906 se encontram acolhidos, em 4.808 serviços de acolhimento, sendo 1.293 (24,8%) do tipo familiar e 3.615 (75,2%), institucional, com uma concentração de 29.168 (95,4%) nessa última modalidade. Vale destacar que, nessa população atendida, 9.390 crianças e adolescentes estão em acolhimento por até seis meses, 5.006, de seis meses a um ano; 6.814, de um a dois anos; 3.339, de dois a três anos; e 6.525, em sua maioria com mais de 15 anos de idade, estão em situação de acolhimento há mais de três anos.

Em tese, a condição de pobreza não deveria motivar o afastamento de crianças e adolescentes do convívio familiar e comunitário, pois se compreende que as situações de ameaça ou de violação de direitos, no ambiente doméstico, têm como pano de fundo os condicionantes sociais, históricos e econômicos que as produzem. As propostas e os serviços de atenção às famílias no Brasil não oferecem as condições necessárias para que essas possam continuar a criar seus filhos no seu meio e superar as adversidades a que estão expostas, como a miséria, a fome e o desemprego. Ao contrário, essas políticas costumam intervir somente em situações-limite, quando os direitos de crianças e adolescentes e de suas famílias já foram violados, nas quais o Estado atribui a culpa pelo fracasso aos próprios membros familiares e atua de modo incisivo em favor de seu afastamento, contribuindo assim para a ruptura dos vínculos afetivos e o sofrimento dos envolvidos (Furlan & Sousa, 2014).

Com vistas a suprir essas demandas, os movimentos populares conseguiram estabelecer a política intersetorial de atendimento aos direitos de crianças e adolescentes, que corresponde no papel a uma rede integrada de ações governamentais e não governamentais voltadas para a proteção da infância e adolescência e operacionalizadas por representantes do poder público e da sociedade civil. Suas linhas de intervenção compreendem políticas sociais básicas, programas de assistência social, serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial, programas de garantia do direito à convivência familiar e comunitária e campanhas de estímulo ao acolhimento de crianças e adolescentes (Brasil, 1990).

Sobre essas últimas, as estratégias e ações de garantia, defesa e promoção do direito de crianças e adolescentes ao convívio familiar e comunitário são concretizadas por meio das medidas sociojurídicas de manutenção e reintegração familiar, colocação em família substituta e acolhimento institucional ou familiar. Apesar da importância dos institutos de guarda, tutela e adoção e dos programas de acolhimento familiar como medidas excepcionais e provisórias, as políticas de preservação e reinserção de crianças e adolescentes no seu meio familiar devem ser priorizadas pelo Estado para quem oferecer as melhores condições para o seu desenvolvimento (Rizzini & Rizzini, 2004RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. São Paulo: Loyola, 2004.).

As “Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes” (Brasil, 2009) foram publicadas com o objetivo de estabelecer os parâmetros e os princípios norteadores do funcionamento das diversas modalidades de serviço de acolhimento existentes no país. Apesar de reafirmar o direito à convivência familiar e comunitária e estabelecer uma série de ações e critérios a fim de evitar a institucionalização prolongada (Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.), essas orientações exigem um olhar mais atento sobre a lógica que as sustenta, isto é, a associação entre proteção e controle, a qual permite ao poder público intervir junto às famílias ditas negligentes, consideradas perigosas para si e a sociedade, a fim de ordená-las, tutelá-las e pacificá-las por meio de discursos hegemônicos, práticas profissionais, leis e instituições (Nascimento, 2015NASCIMENTO, Maria Lívia do; ARELLO, Maria Isabel Rosa da Silva; SANTIAGO, Gláucia Helena de Paula. Lógicas de controle e marcos legais: a proteção no campo da infância e da adolescência. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 15, n. 3, p. 936-947, nov. 2015.).

A partir da mobilização de segmentos organizados da sociedade civil, também foi criado o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD), um conjunto articulado de agentes sociais, instrumentos e espaços institucionais de caráter formal e informal, almejado em conjunto com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que deveria garantir direitos universais e proteção especial às crianças e aos adolescentes do país (Faraj, Siqueira & Arpini, 2016FARAJ, Suane Pastoriza; SIQUEIRA, Aline Cardoso; ARPINI, Dorian Mônica. Rede de proteção: o olhar de profissionais do Sistema de Garantia de Direitos. Temas em Psicologia, v. 24, n. 2, p. 727-741, jun. 2016.). Esse sistema foi pensado para refletir a articulação e a integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos nacionais e internacionais e no funcionamento dos mecanismos para a efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, nos diferentes níveis de gestão pública (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Catiele Flôres. Atuação do Sistema de Garantia de Direitos na defesa do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes institucionalizados. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais, v. 1, n. 1, p. 99-111, jul. 2015.).

Em direção oposta a esse período de efervescência que configurou a redemocratização do país a partir de 1980, movido por tensões entre Estado e sociedade, as décadas seguintes foram marcadas pela reforma da máquina pública sob os moldes neoliberais, cooptação dos movimentos sociais por instituições do governo e valorização do trabalho voluntário, da filantropia e do terceiro setor (Yazbek, 2002YAZBEK, Maria Carmelita. Voluntariado e profissionalidade na intervenção social. Revista de Políticas Públicas, v. 6, n. 2, p. 23-40, jul. 2002.). Essas mudanças contribuíram para reforçar a culpabilização dos indivíduos e das famílias pelas situações de risco e vulnerabilidade às quais estavam expostos e estimular práticas distanciadas do campo de embates entre o público e o privado, com graves repercussões sobre a política de atendimento aos interesses infantojuvenis, agenciada por representantes de ambos os setores (Behring, 2014BEHRING, Elaine Rossetti. Política social no capitalismo tardio. São Paulo: Cortez, 2014.).

Os conselhos dos direitos da criança e do adolescente, em conjunto com outras instâncias resultantes do pacto federativo entre segmentos sociais e políticos, constituem exemplos de instituições deliberativas que atuam em diferentes níveis de gestão e congregam instituições governamentais e não governamentais, eleitas para pleitear as demandas de segmentos da população (Rizzini et al., 2011RIZZINI, Irene; PRINCESWAL, Marcelo; CALDEIRA, Paula; BUSH, Malcolm. A efetivação de políticas públicas no Brasil: o caso das políticas para crianças e adolescentes em situação de rua. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Ciespi, 2011.). Esses conselhos gestores expressam o desenvolvimento de espaços que não se confundem com as arenas governamentais, pois possibilitam a setores da sociedade a intervenção na gestão pública, embora sua eficácia dependa do aumento dos investimentos públicos, da garantia das condições paritárias de acesso, da criação de um sistema de qualificação dos conselheiros e de mecanismos de fiscalização e da avaliação das atividades exercidas (Gohn, 2016GOHN, Maria da Glória. Gestão Pública e os Conselhos: revisitando a participação na esfera institucional. Revista Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 10, n. 3, p. 1-15, dez. 2016.).

Como será visto no decorrer deste estudo, os agentes sociais da rede de proteção atribuem a si próprios os papéis de divulgação das informações sobre eventos e ações, de deliberação e encaminhamento das decisões do Colegiado do Conselho Municipal, de fiscalização e apuração de denúncias e irregularidades, bem como de implementação de políticas públicas voltadas para a família. Essas atribuições transparecem a tentativa desses agentes de efetivar a política de convivência familiar no âmbito municipal, controlar sua implementação conforme os eixos organizativos, constituir alianças com representantes do Estado e da sociedade e conceber o plano municipal de convivência familiar. Desse modo, algumas questões podem ser apontadas:

  1. Que interesses cercam a manutenção ou a extinção do poder familiar exercido pelos pais?

  2. Quais as limitações para a efetivação do direito ao convívio familiar?

  3. Que importância têm os instrumentos de fiscalização nesse processo?

  4. Que configurações assume a incidência política exercida pela sociedade civil sobre o Estado?

  5. Quais as repercussões da construção de parcerias público-privadas?

  6. Como o plano de ação contribui para efetuar a política de convivência familiar?

Este trabalho está estruturado em quatro seções. A “Introdução” teve como propósito apresentar as bases teóricas empregadas para discutir os papéis da rede de proteção na política de convivência; o “Método” busca explicitar os procedimentos adotados para a coleta e a análise das atas de reunião, cujos conteúdos suscitaram classes temáticas e categorias. A seção de “Resultados e discussão” tem por objetivo estabelecer o diálogo entre os trechos de atas, as classes e categorias e o referencial teórico a fim de analisar os papéis da rede junto ao convívio familiar e comunitário. As “Considerações finais” almejam responder às questões norteadoras deste estudo no sentido de contemplar os elementos que atravessam as relações entre rede de proteção e preservação dos vínculos afetivos e sociais.

Método

Trata-se de um trabalho descritivo e exploratório, de natureza aproximativa, o qual não busca aprofundar a discussão sobre os aspectos sociológicos e políticos que envolvem a questão do direito à convivência familiar e comunitária. Os dados foram coletados através de análise documental, modalidade de pesquisa que permite a exploração de fontes documentais primárias, que ainda não foram analisadas por terceiros, bem como de materiais secundários, os quais podem ser reelaborados conforme os propósitos de investigação (Gil, 2019GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2019.). Entre as limitações apresentadas por essa técnica, destacam-se:

  1. as situações em que os documentos não representam fielmente as dimensões do objeto de estudo;

  2. a tomada de decisões sobre os temas pesquisados;

  3. os procedimentos adotados com base em critérios econômicos; e, por fim,

  4. sensação de insegurança quanto à validade e fidedignidade das informações levantadas.

Foram submetidas a essa metodologia de análise, atas de reunião de um Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, situado em determinada unidade da Federação, que tratavam, dentre outras pautas, do direito à convivência familiar e comunitária. Para os fins deste estudo, as atas são consideradas materiais primários, de natureza documental, disponíveis em formato escrito e físico, elaboradas por membros de conselho municipal dos direitos de crianças e adolescentes, com o objetivo de registrar os acontecimentos formais das reuniões de colegiado. Acrescenta-se que esses documentos podem ser qualificados como registros formais de encontros promovidos por órgãos públicos, associações, entidades ou grupos de trabalho, com o propósito de repassar informações entre os pares, propor pautas para a discussão e deliberar sobre assuntos de interesse comum (Esquinsani, 2007ESQUINSANI, Rosimar Serena Siqueira. As atas de reuniões enquanto fontes para a história da educação: pautando a discussão a partir de um estudo de caso. Educação Unisinos, v. 11, n. 2, p. 103-110, jun. 2007.).

A experiência no desenvolvimento de estudos sobre a temática dos direitos de crianças e adolescentes - sempre em contato com agentes sociais da rede de proteção - e a incidência política nos espaços deliberativos e equipamentos do Sistema de Garantia de Direitos viabilizaram a entrada destes pesquisadores em campo. O acesso às atas de reunião só foi possível em razão da participação nas reuniões de colegiado do conselho municipal, nas quais o projeto que antecedeu esta pesquisa foi apresentado aos conselheiros e a autorização para registrar o conteúdo das atas foi concedida pelo presidente da instituição.

Ao longo de uma semana, os pesquisadores estiveram presentes na sede do conselho municipal e realizaram a leitura e reprodução do teor das atas levantadas, com o apoio de um funcionário da secretaria executiva do órgão. O acesso às atas de reuniões, disponibilizadas na forma física e distribuídas em pastas de acordo com o ano de elaboração, deu-se em meio à crise sanitária do coronavírus, observados os devidos cuidados, a partir do contato direto com a seção de arquivos do conselho municipal.

Esses documentos apresentavam relatos objetivos sobre os acontecimentos e os diálogos desenvolvidos entre os conselheiros durante as reuniões ordinárias e extraordinárias do conselho municipal, as quais contemplavam temas relacionados à convivência familiar, socioeducação, trabalho infantil, direitos humanos, protagonismo e políticas públicas. As atas foram selecionadas uma a uma para a leitura atenta e a transcrição manual de recortes de seu conteúdo associado ao convívio em família e na comunidade, conforme a pasta de arquivos separados por ano em que estavam localizados, processo que tornou possível sua posterior digitalização, organização e análise.

Entre os desafios éticos enfrentados merecem destaque a preocupação em trabalhar com dados pessoais sensíveis, como opinião política e filiação a organização de caráter político, e o cuidado em não distorcer os eventos e os trechos de depoimentos registrados nas atas de reunião. Essas dificuldades foram contornadas, respectivamente, por meio da garantia de anonimato dos agentes sociais mencionados e sigilo de informações delicadas, bem como mediante a reprodução literal e minuciosa do teor das reuniões relatado nas atas.

Inicialmente foi realizado um levantamento das atas de reunião elaboradas entre os anos de 2006 e 2020, período entre a aprovação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) e o ano em que foi realizada a coleta. A partir da leitura atenta dessas atas, distribuídas anualmente e analisadas por meio de estatísticas descritivas (frequências e porcentagens), foram recortados fragmentos de texto nos quais as entidades da sociedade civil, as instituições do governo, as instituições do sistema de justiça e o próprio colegiado do Conselho Municipal abordavam elementos da política municipal de convivência familiar.

Esses recortes foram reunidos em quatro eixos:

  1. manutenção e reintegração familiar;

  2. acolhimento institucional e familiar;

  3. colocação em família substituta; e

  4. Plano de Garantia do Direito à Convivência Familiar e Comunitária.

Com exceção desse último eixo, os demais foram pensados com base nas câmaras técnicas que orientaram a construção do PNCFC, de 2006. Por meio da análise dos recortes de texto das atas, transformados em unidades de análise, foram identificados conteúdos referentes ao objeto desta pesquisa, os quais foram desdobrados em classes temáticas e categorias, construídas a posteriori.

Além de estatísticas descritivas, a análise do material ocorreu por meio da Análise de Conteúdo Temática, tal como propõem Laurence Bardin (2015BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2015.) e Maria Cecília de Souza Minayo (2016MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.), enquanto técnica de análise qualitativa de dados em pesquisa social, que se divide em três fases, abrangentes e flexíveis, que orientam a trajetória analítica:

  1. leitura compreensiva dos materiais selecionados ou pré-análise;

  2. exploração desses materiais; e

  3. tratamento analítico dos resultados/elaboração de sínteses interpretativas.

Essa técnica de pesquisa permite que as inferências sobre os dados pertencentes a determinado contexto se tornem válidas e replicáveis, por meio de procedimentos especializados, dotados de rigor metodológico.

A partir da leitura compreensiva e exaustiva dos materiais selecionados, foi estruturado um corpus de análise a fundamentar a descrição e a interpretação dos materiais elencados. Na sequência, as unidades de análise foram distribuídas em esquemas de classificação inicial relacionadas entre si e reagrupadas por temas encontrados. Por fim, foi elaborada uma síntese das interpretações realizadas na etapa anterior, de modo a estabelecer o diálogo entre as classes temáticas, as categorias levantadas e os objetivos, questões e pressupostos pertinentes a esta pesquisa.

Este estudo cumpriu rigorosamente as normas e os princípios éticos aplicáveis a pesquisas em ciências humanas e sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de informações identificáveis, tal como estipulado pela Resolução n. 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016). Seu projeto foi submetido à apreciação e avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição, o qual foi aprovado, recebendo um número de protocolo e parecer favorável para dar início à coleta de dados. Esta seção buscou explicitar os procedimentos éticos e metodológicos adotados para coletar e analisar as atas de reunião de um Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, cujos conteúdos possibilitaram a emergência de classes temáticas e categorias.

Resultados e discussão

No total, foram analisadas 234 atas de reunião de um Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, elaboradas entre 2006 e 2020, das quais, somente 55 (23,5%) abordavam, de fato, elementos da política municipal de garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Esse dado permite questionar se a garantia do direito de crianças e adolescentes ao convívio familiar e comunitário tem sido de fato priorizada pelos agentes sociais da rede de proteção, tal como determina o ECA (Brasil, 1990).

Os anos de 2006 (14,1%), 2010 (11,5%), 2007 (11,1%) e 2008 (10,6%) foram os que apresentaram o maior número de atas elaboradas, enquanto 2018 (1,7%), 2017 (3,4%), 2011 (3,4%), 2009 (4,2%) e 2016 (4,7%), o menor número. Entre as atas que, propriamente, abordaram a política municipal de convivência familiar e comunitária, essas se concentraram em 2010 (3,8%), 2012 (3,4%), 2008 (2,9%) e 2015 (2,5%), com menor ou nenhuma expressão em 2018 (0%), 2011 (0%), 2016 (0,42%), 2017 (0,85%) e 2009 (0,85%). A análise das atas elaboradas em 2019 e 2020 foi prejudicada por motivos externos a este estudo.

Chama atenção o contraste entre a quantidade elevada de atas levantadas que abordaram o direito ao convívio familiar e comunitário no período seguinte à publicação do plano nacional de convivência familiar e a parcela reduzida nos últimos anos. O primeiro momento marca uma época de lutas e reivindicações dos movimentos populares, que resultaram, dentre outras conquistas, na publicação das Orientações Técnicas e na criação do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD) (Faraj, Siqueira & Arpini, 2016FARAJ, Suane Pastoriza; SIQUEIRA, Aline Cardoso; ARPINI, Dorian Mônica. Rede de proteção: o olhar de profissionais do Sistema de Garantia de Direitos. Temas em Psicologia, v. 24, n. 2, p. 727-741, jun. 2016.; Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.). O segundo momento, por sua vez, foi influenciado pela reforma da máquina pública sob os moldes neoliberais, pela cooptação dos movimentos sociais por instituições do governo através de alianças e valorização do trabalho voluntário, da filantropia e do terceiro setor (Yazbek, 2002YAZBEK, Maria Carmelita. Voluntariado e profissionalidade na intervenção social. Revista de Políticas Públicas, v. 6, n. 2, p. 23-40, jul. 2002.).

Entre os eixos que compõem a política municipal de convivência familiar, percebe-se que o de acolhimento institucional e familiar apareceu em 30 atas, sendo abordado 14 vezes por entidades da sociedade civil, nove vezes pelo Colegiado do Conselho Municipal, nove vezes por instituições do governo e seis vezes por instituições do sistema de justiça; já o de colocação em família substituta, em 20 atas, sendo abordado 13 vezes por entidades da sociedade civil, cinco vezes pelo Colegiado do Conselho Municipal, três vezes por instituições do governo e uma vez por instituições do sistema de justiça.

O eixo de manutenção e reintegração familiar apareceu em 12 atas, sendo abordado seis vezes por instituições do governo, cinco vezes por entidades da sociedade civil, quatro vezes pelo Colegiado do Conselho Municipal e duas vezes por instituições do sistema de justiça; e o do Plano de Garantia do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, em sete atas, sendo abordado três vezes pelo Colegiado do Conselho Municipal, três vezes por entidades da sociedade civil e duas vezes por instituições do governo.

As medidas de acolhimento institucional e familiar e de colocação em família substituta foram as mais pautadas pelos agentes da rede de proteção, principalmente os pertencentes à sociedade civil. Por um lado, essa informação vai de encontro ao movimento social de ruptura da cultura de internação (Nascimento, Arello & Santiago, 2015NASCIMENTO, Maria Lívia do; ARELLO, Maria Isabel Rosa da Silva; SANTIAGO, Gláucia Helena de Paula. Lógicas de controle e marcos legais: a proteção no campo da infância e da adolescência. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 15, n. 3, p. 936-947, nov. 2015.) e aos avanços na legislação em favor da preservação dos vínculos familiares (Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.). Por outro lado, ajuda a compreender os índices elevados de institucionalização de criança e adolescentes no país (Brasil, 2021) e a disseminação da prática de culpabilização das famílias pelas situações de vulnerabilidade a que estão expostas (Behring, 2014BEHRING, Elaine Rossetti. Política social no capitalismo tardio. São Paulo: Cortez, 2014.).

A partir da análise de conteúdo dos recortes de texto das atas, conformados em unidades de análise, foram identificadas, a posteriori, as seguintes classes temáticas e suas respectivas categorias, conforme se pode observar na Tabela 1:

  1. divulgação de informações sobre eventos e ações;

  2. deliberações e encaminhamentos de decisões do colegiado do conselho municipal;

  3. fiscalizações e apuração das denúncias de irregularidades; e

  4. implementação de políticas públicas voltadas para a família.

Tabela 1
Papéis da rede de proteção em uma política municipal de convivência familiar sob a perspectiva de seus agentes

Nos tópicos seguintes, essas classes e categorias serão discutidas a partir do referencial teórico empregado neste estudo.

Divulgação de informações sobre eventos e ações

Essa classe temática compreende a comunicação de instruções a respeito de acontecimentos e intervenções de natureza interna ou externa ao Colegiado do Conselho Municipal. Compõem essa classe as categorias Reuniões, Exposições, Intervenções e Pautas.

As Reuniões abrangem encontros previamente agendados, entre os diferentes agentes sociais, com o objetivo de discutir assuntos pertinentes ao direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Dentre esses, estão o acolhimento institucional no formato de abrigo e a construção do Plano de Convivência Familiar e Comunitária no âmbito municipal, tal como pode ser visto nos trechos de atas4 4 Embora o aspecto apontado ultrapasse os propósitos deste trabalho, inspirados na agenda teórica e metodológica de pesquisas com o público infantojuvenil, tal como propõem os sociólogos críticos da infância Manuel Jacinto Sarmento, William Corsaro,Clarice Cohn e Cristina Toren, vale assinalar que as vozes e narrativas de crianças e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos da rede de proteção, não foram contempladas nos registros das atas de reunião. dispostos a seguir:

A Secretaria Executiva do Conselho Municipal registrou a entrada de documentos recebidos neste Conselho: Ofício oriundo da Vara da Infância e Juventude, convidando este Conselho para uma reunião a ser realizada sobre abrigos neste município. Um conselheiro enfatizou a importância do Conselho Municipal se fazer presente neste evento e o Colegiado indicou um representante (Ata de Reunião, 2008).

Um conselheiro informa ainda que ocorrerá reunião com o Conselho Municipal, Conselho Municipal de Assistência Social (Cmas) e Conselho Municipal do Desenvolvimento Integrado (CMDI) para trabalhar o Plano Municipal de Convivência Familiar e Comunitária (Ata de Reunião, 2014).

Na análise do recorte de ata de 2008, chama atenção a cobrança exercida sobre os agentes sociais pelo sistema de justiça, neste caso, o Poder Judiciário, no intuito de levantar determinadas pautas e incentivar a promoção e o controle da efetivação dos direitos, o que está condizente com seus papéis constitucionais de defesa, fiscalização do cumprimento de exigências legais e responsabilização judicial por ameaças ou violações às garantias de crianças e adolescentes (Faraj, Siqueira & Arpini, 2016FARAJ, Suane Pastoriza; SIQUEIRA, Aline Cardoso; ARPINI, Dorian Mônica. Rede de proteção: o olhar de profissionais do Sistema de Garantia de Direitos. Temas em Psicologia, v. 24, n. 2, p. 727-741, jun. 2016.). Por outro lado, a partir do excerto de ata de 2014, assinala-se que as parcerias firmadas entre o Conselho Municipal e os conselhos setoriais do município, instituições deliberativas que atuam nos diferentes níveis de gestão e congregam órgãos governamentais e entidades não governamentais (Rizzini et al., 2011RIZZINI, Irene; PRINCESWAL, Marcelo; CALDEIRA, Paula; BUSH, Malcolm. A efetivação de políticas públicas no Brasil: o caso das políticas para crianças e adolescentes em situação de rua. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Ciespi, 2011.), vislumbram a construção do plano municipal de convivência familiar e comunitária como instrumento de formalização dos compromissos assumidos pela gestão a curto e longo prazo e de cobrança pela efetividade das ações e destinação de recursos orçamentários para essa política pública.

As Exposições incluem intervenções proferidas por agentes sociais em eventos organizados pelo Sistema de Garantia de Direitos, nas quais são abordados temas relacionados à política de convivência familiar e comunitária. As discussões realizadas nos encontros perpassam os temas da elaboração do Plano Municipal de Convivência Familiar e Comunitária e da manutenção e reintegração familiar, o que é possível visualizar nestes excertos de atas:

Um conselheiro fez um resumo dos tópicos que devem ser abordados nas falas do evento: construção do Plano Municipal de Convivência Familiar e Comunitária, trazer o grupo de trabalho (GT) sobre Convivência Familiar e Comunitária para o Conselho Municipal (Ata de Reunião, 2014).

Ofício oriundo de um CT, pelo qual provoca o Conselho Municipal a fazer uma discussão sobre operação do MP que resultou no resgate de crianças e adolescentes em situação de rua, cujos pais foram alertados quanto à perda do poder familiar, visto que tal operação foi objeto de discussão e crítica em Seminário Estadual em comemoração ao ECA, realizado por juristas de um estado do Nordeste (Ata de Reunião, 2008).

Depreende-se da análise de excerto de ata de 2014 que a elaboração do plano municipal de convivência familiar aparece como uma demanda constante, pois este viabiliza a cobrança dos compromissos firmados pela gestão, da efetividade das ações previstas e do investimento dos gastos públicos nessa política, o que reforça a necessidade de implicação do GT à frente das discussões sobre esse assunto com o Conselho Municipal, espaços institucionais que não se confundem com as arenas governamentais, pois possibilitam a setores da sociedade intervirem na gestão pública (Gohn, 2016GOHN, Maria da Glória. Gestão Pública e os Conselhos: revisitando a participação na esfera institucional. Revista Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 10, n. 3, p. 1-15, dez. 2016.). Por meio do segmento de ata de 2008, percebe-se que os agentes sociais são novamente provocados a se manifestar sobre pauta pertinente às prerrogativas infantojuvenis, como nos casos de situação de rua, em relação às motivações para o afastamento da família e a extinção do poder familiar, porém, dessa vez, são pressionados pelo CT, que também faz parte do SGD, atuando no controle da aplicação de instrumentos normativos e do funcionamento dos mecanismos de efetivação dos direitos de crianças e adolescentes, nos diferentes níveis de gestão (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Catiele Flôres. Atuação do Sistema de Garantia de Direitos na defesa do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes institucionalizados. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais, v. 1, n. 1, p. 99-111, jul. 2015.).

As pautas compreendem tópicos abordados nas reuniões entre os agentes sociais, propostos por esses com o objetivo de discutir as demandas de implementação da política municipal de convivência familiar e comunitária. Os temas em debate concentram-se nas formas de articulação política com vistas a resguardar os vínculos entre as crianças e os adolescentes e suas famílias de origem e nos instrumentos necessários para a execução da medida de acolhimento institucional, conforme observado nos seguintes excertos de atas:

Realizou-se a reunião extraordinária do Conselho Municipal para tratar da seguinte pauta: reordenar as representações do Conselho Municipal em espaços de articulação política, a exemplo do GT sobre abrigos (Ata de Reunião, 2010).

Uma conselheira comunicou da reunião do GT sobre abrigos, que acontecerá na data prevista. A pauta desta reunião versará sobre: Guia de Acolhimento da Criança e do Adolescente; abrigamento como último recurso; e a quem compete elaborar o relatório de acolhimento, aos CTs ou às casas de acolhimento? (Ata de Reunião, 2010).

A análise do primeiro trecho de ata de 2010 revela que o GT sobre convivência familiar e comunitária, cujos encontros e reuniões visam repassar informações entre os pares, propor pautas para a discussão e deliberar sobre assuntos do interesse de crianças, adolescentes e suas famílias (Esquinsani, 2007ESQUINSANI, Rosimar Serena Siqueira. As atas de reuniões enquanto fontes para a história da educação: pautando a discussão a partir de um estudo de caso. Educação Unisinos, v. 11, n. 2, p. 103-110, jun. 2007.), constitui espaço privilegiado de articulação de estratégias entre os agentes sociais voltados para a garantia do direito ao convívio familiar e comunitário no município. Conforme o segundo recorte de ata do mesmo ano, os agentes responsáveis pela execução e pelo monitoramento do acolhimento institucional, enquanto medida de proteção provisória e excepcional, devem seguir alguns parâmetros a fim de garantir sua efetividade no que se refere à proteção dos direitos de crianças e adolescentes, como a elaboração de protocolos de atendimento, o emprego de pré-requisitos para seleção, capacitação e acompanhamento dos profissionais das equipes técnicas e a disposição física adequada dos estabelecimentos (Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.).

As intervenções abarcam ações propostas e desenvolvidas por agentes sociais, voltadas para a promoção, proteção e defesa do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Configuram-se como projetos e espaços de representação política com ações orientadas para o acolhimento institucional e familiar e a colocação em família substituta, tal como pode ser visto em excertos de atas apresentados:

Projeto do MP, realizado através de padrinhos solidários, contemplando crianças e adolescentes abrigados (Ata de Reunião, 2007).

Nesta ocasião, foram apresentados aos conselheiros os espaços de representação política que o Conselho Municipal tem participação direta, a saber, grupos de apoio à adoção, entre outros (Ata de Reunião, 2010).

A partir da análise do segmento de ata de 2007, aponta-se, com o olhar apreensivo, que as instituições do sistema de justiça, a exemplo do MP, além de exercerem suas atribuições constitucionais em defesa dos direitos, tendem a tomar para si funções que não são precipuamente suas, como a execução do acolhimento familiar, mediante propostas isoladas, as quais parecem desconsiderar o caráter excepcional dessa medida (Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.), o que suscita questões sobre as lacunas e os limites de atuação da rede de proteção, além da judicialização das políticas públicas. Por seu turno, consoante a ata de 2010, os grupos de apoio à adoção, apesar de ofertarem suporte aos envolvidos nesse processo, também constituem espaços de articulação política e planejamento estratégico em favor do instituto da adoção, o que faz dessas instituições alvo de críticas contundentes por parte dos movimentos sociais, os quais defendem a prioridade da manutenção de crianças e adolescentes no seu meio familiar, tendo em vista que este oferece melhores condições para o desenvolvimento desses sujeitos (Rizzini & Rizzini, 2004RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. São Paulo: Loyola, 2004.).

Deliberações e encaminhamentos de decisões do Colegiado do Conselho Municipal

Essa classe temática abarca as decisões e ações tomadas pelo Colegiado do Conselho Municipal após análise e reflexão conjunta sobre assuntos relacionados aos direitos de crianças e adolescentes. Nessa classe, estão contempladas três categorias:

  1. solicitações;

  2. designação e reordenamento de representantes; e

  3. discussão de pontos específicos das pautas.

As Solicitações abrangem pedidos formais realizados pelos agentes sociais aos seus pares e aos diferentes setores das políticas públicas a fim de aprimorar a operacionalização da política municipal de convivência familiar e comunitária. Esses requerimentos implicam a participação dos agentes sociais das políticas setoriais nos espaços de articulação política e a pactuação de serviços entre as entidades de acolhimento e o poder público municipal, o que é possível visualizar nestes fragmentos de atas:

Fica como encaminhamento a solicitação das representações da Secretarias de Saúde e da Educação para participarem desse GT sobre convivência familiar e comunitária (Ata de Reunião, 2016).

Um conselheiro sugere que seja emitida recomendação por parte deste Conselho Municipal para destacar a importância do serviço prestado por determinada entidade na área de acolhimento, indicando ainda necessidade de pactuação de convênios com o poder público municipal (Ata de Reunião, 2014).

No recorte de ata de 2016, percebe-se que a intersetorialidade entre as políticas públicas e os compromissos firmados entre os agentes sociais e as instâncias do poder público são situados como requisitos indispensáveis para a preservação dos vínculos afetivos e sociais, seja por meio das estratégias de manutenção na família de origem, seja, em segundo caso, mediante medida provisória de acolhimento institucional. A respeito do trecho de ata de 2014, observa-se que, no tripé constitucional que sustenta a garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no país, a instituição familiar aparece como base da sociedade, ocupa um lugar central na promoção e defesa dos direitos e desfruta de proteção especial do Estado, por meio de políticas e programas sociais (Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.), entretanto, o grau de articulação entre essas estratégias é, no mínimo, questionável, em razão de sua natureza setorial e focalizada enquanto políticas de governo.

Designação e reordenamento de representantes compreende momentos de tensões políticas e formação de alianças para a eleição, indicação ou rearranjo de agentes sociais, do Estado e da sociedade, de modo a compor o colegiado e os espaços de decisão e articulação política do Conselho Municipal. Entre esses últimos estão as câmaras e comissões deliberativas de direitos, formadas, de modo paritário, por instituições governamentais e entidades não governamentais, e o GT sobre a garantia do direito ao convívio familiar e comunitário no município, conforme pode ser observado nos seguintes excertos de atas:

A seguir, foi iniciada a formação das câmaras setoriais e comissões especiais do Conselho Municipal, ficando assim a composição, obedecendo a paridade determinada em lei: um conselheiro vinculado a grupo de apoio à adoção (Ata de Reunião, 2012).

No que concerne aos conselheiros que representarão o Conselho Municipal nos espaços de representação e articulação política, assim fica a distribuição - GT sobre abrigos: um conselheiro representante de instituição do governo e outro de entidade da sociedade civil (Ata de Reunião, 2012).

A análise do primeiro excerto de ata de 2012 indica que os grupos de apoio à adoção assumem lugar de destaque na tentativa de articular os eixos da política municipal de convivência familiar e comunitária, os quais são concretizados por meio das medidas sociojurídicas de manutenção e reintegração familiar, colocação em família substituta e acolhimento institucional e familiar. Acerca do segundo trecho de ata do mesmo ano, ressalta-se que, apesar da importância dos institutos de guarda, tutela e adoção, assim como dos programas de acolhimento como medidas excepcionais e provisórias, as políticas de preservação e reinserção de crianças e adolescentes no ambiente familiar precisam ser priorizadas pelo Estado por aquele que oferecer condições favoráveis ao seu desenvolvimento pleno (Rizzini & Rizzini, 2004RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. São Paulo: Loyola, 2004.).

A discussão de pontos específicos das pautas corresponde ao debate, no âmbito do Conselho Municipal, sobre questões relacionadas ao diagnóstico, ao plano de ação e ao orçamento, são propostas para conhecer a realidade do município, organizar a política municipal de convivência familiar e viabilizar a operacionalização de seus objetivos. Os tópicos levantados compreendem o processo de elaboração do Plano Municipal de Convivência Familiar e Comunitária e o repasse orçamentário para projetos de intervenção em acolhimento familiar, tal como pode ser visto nos excertos de atas dispostos a seguir:

Fica deliberado que esse ponto [cobrança de planos de ação por parte da rede de proteção e do GT sobre Convivência Familiar e Comunitária] será debatido na próxima reunião extraordinária (Ata de Reunião, 2014).

Seguindo a pauta, um conselheiro trata sobre percentual orçamentário destinado a projeto sobre família acolhedora. Em discussão foram postas duas propostas e aceita por unanimidade a proposta apresentada por outro conselheiro, com o valor de 0,3% (Ata de Reunião, 2017).

Depreende-se da análise do excerto de ata de 2014 que a rede de proteção dos direitos e o GT sobre convivência familiar e comunitária exercem pressão sobre os agentes sociais para a elaboração do diagnóstico da realidade, a construção do plano de ação e a previsão de recursos orçamentários, o que reacende a questão da descentralização das políticas públicas e dos mecanismos de gestão democrática, como os conselhos setoriais e de direitos, nos quais a sociedade civil busca cumprir seu papel constitucional de controle social e alocação de recursos públicos (Gohn, 2016GOHN, Maria da Glória. Gestão Pública e os Conselhos: revisitando a participação na esfera institucional. Revista Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 10, n. 3, p. 1-15, dez. 2016.). Sobre o segundo trecho de ata de 2017, vale ressaltar que, aos projetos e programas de acolhimento familiar, os quais correspondem a quase um terço dos serviços de acolhimento disponíveis no país (Brasil, 2021), é destinado um percentual mínimo do fundo orçamentário, cujo valor é definido com base na votação de propostas pelos próprios agentes sociais, representantes governamentais e não governamentais dos interesses de crianças e adolescentes (Behring, 2014BEHRING, Elaine Rossetti. Política social no capitalismo tardio. São Paulo: Cortez, 2014.).

Fiscalizações e apuração das denúncias de irregularidades

Essa classe temática contempla o controle e a verificação de declarações acerca de supostos desvios na prática de agentes sociais governamentais e não governamentais responsáveis pela promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Nessa classe, foram identificadas as categorias

  1. atuação dos conselheiros tutelares e de direitos;

  2. registro das entidades de acolhimento; e

  3. regularização dos grupos de apoio à adoção.

A Atuação dos conselheiros tutelares e de direitos abarca o controle do comportamento dos agentes sociais no exercício de suas funções representativas e a cobrança por seu posicionamento junto às pautas da política municipal de convivência familiar e comunitária. Entre os casos apontados, estão práticas contrárias à medida prioritária de manutenção de crianças e adolescentes em suas famílias de origem, que reforçam a adoção de alternativas excepcionais, e a precária implicação dos diversos agentes sociais com a construção da política municipal de convivência familiar e comunitária, o que é possível visualizar nestes fragmentos de atas:

Após a análise das situações relatadas em casos de denúncias contra atos de conselheiros tutelares no exercício de sua função, esta Comissão destacou práticas equivocadas por parte de conselheiros tutelares no que diz respeito à perda do poder familiar, como dar termo de entrega e responsabilidade a pessoas que não são responsáveis legais por determinada criança (Ata de Reunião, 2008).

Deliberar a ausência da Secretaria de Saúde, da Secretaria da Educação e do próprio Conselho Municipal, requerendo que não apenas conselheiros representantes de instituições do governo e de entidades da sociedade civil participem das reuniões, na sistematização, organização, monitoramento e participação nos relatórios e apoio na sistematização dos encaminhamentos tomados no GT sobre convivência familiar e comunitária (Ata de Reunião, 2016).

A análise do excerto da ata de 2008 sugere que os agentes sociais assumem a responsabilidade por tomar conhecimento de desvios na atuação dos conselheiros tutelares perante a defesa dos direitos infantojuvenis, assim como julgá-los com base em relatórios da comissão de sindicância, no entanto, vale destacar que a eficácia desse controle depende de investimentos públicos, condições paritárias de acesso, programas de qualificação dos conselheiros e mecanismos de avaliação das atividades exercidas (Gohn, 2016GOHN, Maria da Glória. Gestão Pública e os Conselhos: revisitando a participação na esfera institucional. Revista Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 10, n. 3, p. 1-15, dez. 2016.). A partir do excerto da ata de 2016 percebe-se que o GT sobre convivência familiar e comunitária exerce pressão sobre os agentes sociais e setores das políticas públicas para que esses compartilhem, de forma efetiva e permanente, as ações e decisões tomadas nesse grupo, prática herdada do período de efervescência que configurou a redemocratização do país a partir de 1980, movido por crescentes tensões entre Estado e sociedade (Yazbek, 2002YAZBEK, Maria Carmelita. Voluntariado e profissionalidade na intervenção social. Revista de Políticas Públicas, v. 6, n. 2, p. 23-40, jul. 2002.).

O Registro das entidades de acolhimento compreende o monitoramento das ações e as condições de funcionamento das instituições responsáveis pela execução da medida de acolhimento de crianças e adolescentes no município. Essas devem atender a determinados critérios e parâmetros de qualidade, estipulados pela legislação e vistoriados pelos agentes sociais, para que sua atuação junto ao eixo de acolhimento institucional seja oficialmente reconhecida e permitida pelo conselho de direitos de crianças e adolescentes do município, conforme pode ser observado nos seguintes recortes de atas:

Entidade da sociedade civil que funciona como abrigo: esta não oferece condições para obter seu registro neste Conselho Municipal, visto que foram encontradas crianças, adolescentes e adultos convivendo em dois quartos pequenos, insuficientes para abrigá-los (Ata de Reunião, 2009).

Um conselheiro informa aos presentes que, na reunião do GT sobre abrigos, foi indagado pela assessoria do MP sobre como andavam as visitas às instituições, tendo informado que não estavam sendo feitas pela dificuldade de uso do veículo. A assessoria sugeriu que o conselho informasse ao MP o fato e que o Conselho Municipal deveria ter um veículo de uso exclusivo face às demandas existentes (Ata de Reunião, 2013).

A partir da análise do excerto de ata de 2009, pode-se afirmar que as características físicas das instituições de acolhimento, como a disponibilidade de espaços acolhedores e apropriados, são fatores determinantes para os agentes sociais quanto à concessão ou não de registro junto ao Conselho Municipal, uma vez que esses aspectos têm implicações para o bem-estar de crianças e adolescentes, sendo os principais requisitos para dirimir as consequências negativas de longos períodos de internação (Moreira, 2014MOREIRA, Maria Ignez Costa. Os impasses entre o acolhimento institucional e o direito à convivência familiar. Psicologia Social, v. 26, n. spec. 2, p. 28-37, ago. 2014.). Com base no fragmento de ata de 2013, acrescenta-se que, sob a fiscalização das instituições do sistema de justiça, em especial o MP, esses agentes identificam e atuam contra violações de direitos, embora não questionem seus determinantes junto à política de convivência familiar, ao exercerem o papel de monitoramento das ações das entidades de acolhimento, o qual não está isento de dificuldades, como a carência de condições de trabalho e a precariedade da articulação entre as instâncias do governo e da sociedade civil na aplicação de normas e na garantia de funcionamento dos serviços (Oliveira, 2015OLIVEIRA, Catiele Flôres. Atuação do Sistema de Garantia de Direitos na defesa do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes institucionalizados. Missões: Revista de Ciências Humanas e Sociais, v. 1, n. 1, p. 99-111, jul. 2015.).

A Regularização dos grupos de apoio à adoção diz respeito à adequação dos aspectos estruturais das instituições que apoiam e orientam o processo de adoção no município às exigências técnicas e normalização de sua situação jurídica junto ao Conselho Municipal. As ações previstas e as condições de funcionamento desses grupos precisam estar de acordo com as normas e os regulamentos vigentes, a fim de garantir sua efetividade institucional e evitar a anulação de sua legitimidade enquanto agente social em favor dos direitos de crianças e adolescentes, tal como pode ser visto nos trechos de atas dispostos a seguir:

Foi indagado ao Colegiado por um conselheiro sobre as medidas que deverão ser tomadas com relação aos grupos de apoio à adoção ante ao fato destas entidades estarem utilizando como sede um CT, sendo sua representante orientada a ter uma sede específica (Ata de Reunião, 2012).

Um conselheiro dá seguimento à reunião e fala do processo dos grupos de apoio à adoção. No ano de 2012, esse Conselho determina que esses grupos precisam ter sede própria e dá um prazo de um ano para a regularização, que não foi cumprida. Esse conselheiro fala da importância do trabalho dos grupos de apoio à adoção e que não é o trabalho prestado por essas entidades que está sendo questionado e sim a falta de legitimidade em relação à legalidade (Ata de Reunião, 2015).

Em conformidade com a análise do recorte de ata de 2012, observa-se que os agentes sociais têm atuado junto a instituições em situação irregular, sem sede ou local de funcionamento próprio, a fim de que essas ajustem seus serviços e sua estrutura às exigências técnicas previstas na legislação pertinente, a qual estabelece os parâmetros de funcionamento das diversas modalidades de serviço de acolhimento existentes no país, com o objetivo de evitar outras violações de direitos e diminuir os efeitos deletérios de institucionalizações prolongadas (Brasil, 2009). No caso específico dos grupos de apoio à adoção, como revela o excerto de ata de 2015, o descumprimento das medidas impostas pelos agentes em comum acordo, a fim de normalizar as condições de funcionamento dessas instituições, tem como principal consequência o descredenciamento de seus serviços junto ao respectivo Conselho Municipal de direitos, o qual não constitui instituição meramente consultiva, sem poder de decisão, pois possui natureza deliberativa, com influência na gestão dos bens públicos (Rizzini et al., 2011RIZZINI, Irene; PRINCESWAL, Marcelo; CALDEIRA, Paula; BUSH, Malcolm. A efetivação de políticas públicas no Brasil: o caso das políticas para crianças e adolescentes em situação de rua. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Ciespi, 2011.).

Implementação de políticas públicas voltadas para a família

Essa classe temática abrange o processo de elaboração de políticas sociais com o objetivo de suprir as necessidades do núcleo familiar, apoiar seus membros e encorajar seu potencial de enfrentamento em meio às dificuldades. A confiança na capacidade das famílias de resolverem seus problemas e superarem as condições adversas em que se encontram é um princípio norteador das ações do Estado e da sociedade junto a esse público, por meio da implementação de políticas de apoio sociofamiliar e da garantia de acesso a serviços básicos, o que é possível visualizar nestes excertos de atas:

Um conselheiro solicitou que seja considerada e explicitada no edital de liberação de recursos a realização de trabalhos com a família de crianças e adolescentes, enfatizando o protagonismo familiar no processo vivido pelos filhos junto às organizações (Ata de Reunião, 2007).

Um conselheiro destacou que as famílias habitam em condições precárias, precisando interferir na situação dessas famílias a fim de potencializá-las para a proteção de seus filhos (as crianças na rua, a extensão de suas casas). É necessário rever as políticas públicas para as famílias. Outro conselheiro ressaltou que há de se propor ações que tanto o município, quanto o Estado e as entidades (ONGs) possam ter mais nitidez sobre suas propostas de atendimento (Ata de Reunião, 2006).

A partir do trecho de 2007, compreende-se que o êxito da medida de manutenção de crianças e adolescentes em suas famílias de origem ou extensas requer dos agentes envolvidos a proposição de políticas que garantam os direitos dos integrantes familiares e fortaleçam suas funções de proteção. Segundo o fragmento de ata de 2006, a implementação dessas ações de suporte às famílias depende do investimento de recursos públicos nesse setor, sob o controle da sociedade civil, com o objetivo de auxiliá-las a cumprirem seu papel constitucional. Nas situações mencionadas, parte-se do princípio de que a violação dos direitos de crianças e adolescentes, no ambiente doméstico, tem como pano de fundo os condicionantes que a produzem, de modo que a situação de pobreza não constitui motivo para o afastamento do convívio familiar (Furlan & Sousa, 2014).

Esta seção teve por objetivo estabelecer o diálogo entre os aspectos descritivos e trechos de atas, classes temáticas e categorias e o referencial teórico empenhado a fim de analisar os papéis da rede de proteção junto à garantia do convívio familiar e comunitário.

Considerações finais

A partir dos pressupostos, das questões levantadas e dos principais aspectos discutidos neste estudo, é possível apontar algumas respostas sobre os papéis que a rede de proteção aos direitos de crianças e adolescentes desempenha na atuação junto a uma política municipal de convivência familiar e comunitária sob a perspectiva de seus agentes sociais. A respeito dos interesses que cercam a manutenção ou a extinção do poder familiar exercido pelos pais, foi observado que embora a legislação determine a prioridade da manutenção e a reintegração de crianças e adolescentes às suas famílias de origem e extensa, as medidas de acolhimento institucional e familiar e de colocação em família substituta são as mais pautadas pelos agentes, principalmente, os grupos de apoio à adoção, segundo revelaram as estatísticas descritivas e a análise dos trechos de atas pertencentes às categorias Intervenções e Designação e reordenamento de representantes.

Quanto às limitações para a efetivação do direito ao convívio familiar, merecem destaque a lógica de proteção e o controle que cerca os parâmetros de funcionamento das instituições de acolhimento, as dificuldades de monitoramento dessas entidades em razão das condições de trabalho e da precariedade das articulações institucionais e as lacunas na atuação da rede de proteção, preenchidas por meio de ações do sistema de justiça que repercutem na judicialização das políticas, como foi observado na análise dos fragmentos de atas referentes às categorias Intervenções e Registro das entidades de acolhimento.

Acerca da importância que os instrumentos de fiscalização têm sobre esse processo, convém ressaltar a pressão exercida por instituições do sistema de justiça sobre os agentes sociais a partir do viés da responsabilização e controle de seus atos, bem como o papel de monitoramento que estes últimos assumem em relação à atuação dos CTs e às condições de funcionamento das entidades de acolhimento, conforme destacado na análise dos recortes de atas relacionados às categorias Reu­niões, Atuação dos conselheiros tutelares e de direitos e Registro das entidades de acolhimento.

Sobre as configurações que assume a incidência política exercida pela sociedade civil sobre o Estado, foi possível perceber que o GT sobre convivência familiar e comunitária constitui exemplo de mecanismo de gestão democrática no qual os agentes sociais expressam sua capacidade de discutir o diagnóstico, o planejamento e o financiamento dessa política, além de cobrar os gestores públicos por sua efetividade, como assegurou a análise dos trechos de atas alusivos às categorias Exposições e Discussão de pontos específicos das pautas.

No que diz respeito às repercussões da construção de parcerias público-privadas, essas estão atravessadas por questões relacionadas ao nível de articulação entre as instâncias governamentais e não governamentais e a intersetorialidade das políticas públicas, as quais esbarram na própria natureza fragmentada de suas ações, consoante o contemplado na análise das passagens de atas atinentes à categoria Solicitações. No que se refere às contribuições do plano de ação para efetuar a política de convivência familiar, foi visto que sua elaboração permite aos agentes sociais cobrarem os gestores públicos pelos compromissos firmados, a efetivação das ações previstas e a destinação de recursos orçamentários para essa política, conforme realçado na análise dos segmentos de atas relativos à categoria Reuniões.

Este trabalho teve como limitação o impedimento de acrescentar outras formas de registro das informações, como pautas de reunião e ofícios, e o esforço para conceituar agentes sociais, uma vez que esses são apontados, na literatura científica, sob o ponto de vista individual ou institucional de representação dos direitos de segmentos sociais. Os resultados deste estudo poderão auxiliar a preencher algumas lacunas na literatura a respeito das atribuições da rede de proteção no âmbito da política de convivência familiar e comunitária e também subsidiar investigações futuras sobre as nuances que permeiam a prática dos agentes sociais junto às políticas de proteção dos direitos de crianças e adolescentes e suas famílias.

Esta seção almejou responder às questões norteadoras deste estudo, por meio dos resultados elencados, no sentido de contemplar os aspectos que permeiam as relações entre rede de proteção e preservação dos vínculos familiares e comunitários.

Referências

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  • 1
    Os constructos “crianças” e “adolescentes” são compreendidos a partir do aporte teórico e metodológico da sociologia da infância, representados por expoentes como Manuel Jacinto Sarmento, William Corsaro, Clarice Cohn e Christina Toren, os quais buscaram desconstruir as noções de infância e adolescência como categorias universais e propuseram uma agenda de estudos com esse segmento da população. Sob tal perspectiva, crianças e adolescentes são concebidos como sujeitos históricos e atuantes na construção da realidade social, cujas narrativas e vivências diárias oferecem pistas para o entendimento das dificuldades enfrentadas no acesso às políticas de garantia dos direitos da infância e juventude, como as de saúde, educação e assistência social.
  • 2
    O significado de “família” é conceituado conforme a vertente marxista da literatura sociológica, que concebe essa instituição através de suas relações com o sistema de produção capitalista, ou seja, constitui uma unidade social de participação política voltada para a reprodução da força de trabalho, cuja divisão de papéis entre os membros familiares atende às necessidades de expansão do capital. Esse viés contrapõe-se às correntes funcionalistas, nas quais a família assume as funções de formação dos indivíduos e socialização primária.
  • 3
    A noção de “Estado” é definida de acordo com a sociologia crítica inspirada na tradição marxista, a qual compreende essa entidade como produto das contradições que permeiam a estrutura econômica de produção e reprodução da vida material. Na qualidade de superestrutura dotada de poder político e coercitivo, o Estado utiliza-se da sociedade civil, de instituições, leis e normas para se organizar enquanto tal e expressar os interesses de classe inerentes às relações de produção capitalista.
  • 4
    Embora o aspecto apontado ultrapasse os propósitos deste trabalho, inspirados na agenda teórica e metodológica de pesquisas com o público infantojuvenil, tal como propõem os sociólogos críticos da infância Manuel Jacinto Sarmento, William Corsaro,Clarice Cohn e Cristina Toren, vale assinalar que as vozes e narrativas de crianças e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos da rede de proteção, não foram contempladas nos registros das atas de reunião.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2022
  • Aceito
    24 Abr 2023
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