Acessibilidade / Reportar erro

Transversalidades e afinidades eletivas na formação de elite científica no campo das mudanças climáticas

Transversalities and elective affinities in the formation of the scientific elite in the field of climate change

Resumo

O presente artigo pretende apontar as formas de reconversão das elites científicas que mais recentemente se ajustaram à nova agenda de pesquisa das mudanças climáticas. É possível perceber como a entrada da problemática das mudanças climáticas na política científica recente possibilitou um reordenamento de projetos e linhas de pesquisa no Brasil, favorecendo o estabelecimento de grupos científicos melhor adaptados à temática. O caso do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) permite identificar as afinidades eletivas entre elites da meteorologia e do clima à nova agenda científica. Foi feita uma prosopografia com os grupos em ascensão na área de estudos climáticos entre as décadas de 1990 e 2010, apontando os principais expoentes desses grupos de pesquisa e sua associação com projetos de pesquisa internacionais de mudanças climáticas. Ao final da discussão, percebe-se uma forte concentração de capital científico na área de mudanças climáticas e uma tendência a privilegiar grupos já consolidados e com alta internacionalização.

Palavras-chave:
Elites científicas; Capital científico; Mudanças climáticas; Inpe

Abstract

The present article intends to point out the ways of reconversion of the scientific elites that more recently adjusted to the new research agenda of climate change. It is possible to see how the introduction of this issue in recent scientific policy made it possible to reorganize projects and lines of research in Brazil, favoring the established scientific groups more adapted to the theme. The case of the National Institute for Space Research (Inpe) makes it possible to identify the elective affinities between elites in meteorology and climate studies and the new scientific agenda. A prosopography was made with the groups on the rise in the climate studies area between the 1990s and 2010s, pointing out the main exponents of these research groups connected to international research projects on climate change. At the end of the discussion, one can see a strong concentration of scientific capital in the area of climate change and a tendency to favor groups that are already consolidated and with high internationalization.

Keywords:
Scientific elites; Scientific capital; Climate change; Inpe

Introdução

Cientistas são agentes fundamentais na definição da agenda das políticas climáticas em todo o mundo. É difícil discutir os impactos e as implicações das mudanças climáticas sem levar em conta os argumentos e as evidências científicas. O peso do posicionamento dos cientistas e das instituições científicas é atualmente um dos principais aspectos relacionados ao direcionamento das discussões políticas relativas às mudanças climáticas.

Diversos estudos têm explorado o surgimento e as práticas científicas envolvidas nos estudos das mudanças climáticas, as suas implicações para o próprio campo disciplinar, para as instituições de pesquisa e acadêmicas e correlações no campo político as quais se observam em um movimento de mútua influência.

Pesquisadores da área de estudos sociais de ciência e tecnologia têm utilizado o tema das mudanças climáticas para se compreender a nova conformação das práticas de pesquisa científica (Vessuri & Sanchez Rose, 2010VESSURI, Hebe; SANCHEZ ROSE, Isabelle. Las Fronteras de la Ciencia y un Nuevo Contrato Social con la Universidad: el ejemplo del cambio climático. Educacion Superior y Sociedad, v. 15, n. 1, p. 179-197, 2010.). Outros autores, de diferentes perspectivas teóricas, têm discutido a interferência dos cientistas no estabelecimento dessa agenda de pesquisa sobre mudanças climáticas (Orestes & Conway, 2010; Sundberg, 2005SUNDBERG, Mikaela. Making meteorology: social relations and scientific practice. Stockholm: Stockholms Studies in Sociology, 2005.; Beck & Mahony, 2018BECK, Silke; MAHONY, Martin. The IPCC and the new map of science and politics. WIREs Clim Change; 9:e547, 2018.; Pryck & Hulme, 2023PRYCK, Kari De; HULME, Mike. (ed.) A critical assessment of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge, UK: Cambridge University Press & Assessment 2023.). Sem dúvida, a atuação dos cientistas em suas articulações profissionais e políticas tem estabelecido um conjunto de aspectos e arranjos nunca antes observado na discussão da ciência climática e que precisa ser explorado e debatido sob novas perspectivas.

A nosso ver, é necessário investir na análise das coalizões dominantes dessa agenda científica e verificar o que ocorre dentro do campo científico climático com o advento dessa realidade que vem sendo vista como uma nova era - intitulada de Antropoceno - pautada pelas discussões relativas ao aquecimento global e impulsionada pelas atividades humanas e seus diferentes impactos em todo o planeta. O presente estudo se propõe a considerar esse aspecto muito particular na análise do campo das ciências relacionadas às mudanças climáticas, que se constituiu como campo interdisciplinar, mas que originariamente se fundamenta disciplinar e historicamente nas áreas das ciências atmosféricas, climáticas e meteorológicas, para então estabelecer as correlações com outros campos disciplinares nos quais o tema exerce influência (Andrade, 2020ANDRADE, Thales Haddad Novaes de. Elites científicas do clima: formação do campo em escala nacional e internacional. Estudos de Sociologia. v. 25, n. 49, p. 297-321, jul./dez. 2020.).

Terry Shinn (2000SHINN, Terry. Formes de division du travail scientifique et convergence intelectuelle. Revue Française de Sociologie, v. 41, n. 3, p. 447-473, 2000.) afirma que as principais áreas de atuação científica estão adquirindo uma dimensão cada vez mais transversal, para além do antidiferencialismo, que atribui as diferenciações existentes no campo da ciência à produção social de padrões e não como algo natural que marcou o debate da sociologia da ciência no final do século XX. Acredita-se que o transversalismo proposto por esse autor traz novas possibilidades de compreensão para a incidência de tarefas múltiplas e incertas no ambiente da pesquisa climática atual.

Shinn aponta ainda que o capital científico estabelecido internacionalmente vem redefinindo as modalidades de circulação dos conhecimentos e métodos tradicionais. O cruzamento entre áreas de formação, atuação departamental, grupos de pesquisa e fontes de financiamento mostra que o cenário científico contemporâneo cria uma rede complexa de áreas de especialização em que as fronteiras convencionais não explicam como os grupos hegemônicos se articulam e se reproduzem.

O presente trabalho defende a necessidade de identificar os percursos incertos e estratégicos da produção de conhecimento na área dos estudos climáticos. O seu interesse fundamental consiste, portanto, em apontar quais são as estratégias das elites científicas que participam mais ativamente do debate climático no âmbito internacional e nacional e como a abordagem transversal proposta por estudos recentes da sociologia da ciência podem auxiliar nessa compreensão.

As formulações de Monique de Saint-Martin (2008SAINT MARTIN, Monique de. Da reprodução à recomposição das elites: as elites administrativas, econômicas e políticas na França. Revista Tomo 25, n. 13, jul./dez. 2008.) sobre a formação de elites na França sublinham a importância das chamadas “Grandes Escolas”, espaços obrigatórios de passagem para a aquisição de competência reconhecida para ascensão a posições de comando.

Embora afetada, mas bastante forte até o momento, a coesão das elites administrativas, econômicas e políticas manifesta-se no recrutamento e nos modos de seleção, bem como nos modos de vida e nas escolhas de residência. São fortes a interpenetração e a imbricação dos dirigentes. Com frequência recrutados nas mesmas Grandes Écoles, com passagem pelos grands corps 1 1 “Les grands corps” são as instituições francesas de Estado com poder de grande influência e comando nas principais instituições da administração pública: o Conselho de Estado, o Tribunal de Contas, a Inspetoria Geral das Finanças, a Inspetoria Geral dos Assuntos Sociais (emprego e políticas públicas sociais) etc. , residem nos “bairros nobres” (“beaux quartiers”), geralmente encontram-se tanto na vida pública como na vida privada e, sobretudo, ocupam frequentemente ao mesmo tempo posições dominantes em diferentes setores - econômico, político, administrativo, cultural (Saint-Martin, 2008SAINT MARTIN, Monique de. Da reprodução à recomposição das elites: as elites administrativas, econômicas e políticas na França. Revista Tomo 25, n. 13, jul./dez. 2008., p. 55-56).

A perspectiva analítica centrada no estudo das grandes escolas preparatórias apresenta problemas e controvérsias, mas mesmo assim tem sido importante para a compreensão dos símbolos de distinção utilizados por determinados grupos de conhecimento em seu recrutamento de quadros. De acordo com a autora, a concentração de capitais intelectuais em uma mesma instituição gera um conjunto de premissas e expectativas que se exportam para o conjunto de espaços subsidiários, formando novas coalizões de ideias e perspectivas.

As fórmulas e os mecanismos de mobilidade internacional dos representantes dos grandes grupos econômicos e administrativos se fazem presentes também no campo científico, que, por sua vez, possui profunda correlação com a ordem estabelecida pelos centros mundiais de alta concentração de capital, além de processos semelhantes de formação de elites científicas. Em seu livro Nobreza do Estado (2013), Bourdieu salienta que as grandes posições na hierarquia funcional do aparato social moderno derivam do prestígio e capital cultural obtidos de títulos escolares em instituições destacadas.

Compreender o funcionamento das grandes escolas em seus mecanismos de seleção e avaliação de membros e a distribuição de diplomas e distinções ajuda a compreender como se dá a transmissão das heranças intelectuais, formação de novas lideranças científicas e a continuação de linhas de pesquisa em detrimento de outras. A importância de determinadas agendas científicas e a ascensão de novas temáticas deixam de ser um processo naturalizado ou dotado de racionalidade inquestionável. Grupos científicos dominantes agenciam alianças e interesses, de modo a orientar e a influenciar em larga escala movimentos, posições e recursos no interior do campo científico.

A montagem e o fortalecimento de uma elite científica do clima, constituída e consagrada, a partir da circulação dos mesmos em distintivos espaços de legitimação, promovem a coesão de grupos de autoridade científica que fazem valer suas prerrogativas e trajetórias como definidoras da excelência vigente. Em momentos de intensa reorganização do campo científico, o papel desempenhado por esses grupos é especialmente importante. Por outro lado, a atuação de membros com capital em ascensão constitui um impulso necessário para que novos parâmetros de atividade científica possam se estabelecer. No entanto, tais processos não acontecem sem a interferência e a influência de elites científicas constituídas.

Nos anos 1970, a área de estudos meteorológicos no Brasil estava defasada em relação às mudanças que vinham ocorrendo em determinados centros de pesquisa e procedimentos de previsão de tempo de países desenvolvidos, que vinham implementando o uso da modelagem e de supercomputadores, em associação com conhecimentos multidisciplinares, como física da atmosfera e matemática. Não havia naquele momento uma instituição no país com capacidade científica de estabelecer um diálogo efetivo com os centros internacionais e de renovação nesse campo de conhecimento. O tradicional Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), então responsável pelas previsões de tempo e clima do país, não dispunha de capital científico, nem institucional, capaz de moldar novas formas de práticas meteorológicas e, dessa forma, engendrar o novo padrão de operação das previsões já em curso nos principais centros internacionais.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - instituição fundada após o Inmet - moldada sob a perspectiva de produção de conhecimento em bases de excelência, sob a inspiração do modelo do Massachusetts Institute of Technology (MIT), no qual as aplicações teriam um papel fundamental, surge então como um espaço de nucleação de jovens pesquisadores dispostos à participação e ao protagonismo mais amplos no campo dos estudos meteorológicos. O fortalecimento da pesquisa meteorológica do Inpe ocorre então mediante um contexto internacional de mudança de paradigma no campo das previsões meteorológicas, o que possibilitou o agenciamento e a formação de novos capitais científicos no Inpe sintonizados com as novas tendências mundiais.

A elite brasileira da área de meteorologia do Inpe estabeleceu-se, então, com base em um estreito contato com centros de pesquisa e universidades dos Estados Unidos e da Europa, principalmente por meio de programas de pós-graduação, a partir dos quais se produziram novas perspectivas, abordagens e técnicas, novos métodos, além de prospecção de novas oportunidades, colaborações e cooperações. A etapa seguinte seria a criação de uma grande escola e a formação de um espírito de corpo que permitiriam aglutinar interesses científicos específicos e que levariam a disputar a liderança científica e institucional nessa área em âmbito nacional.

Para a realização deste estudo, foi escolhido como caso o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), pertencente ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Tendo iniciado suas operações de previsão de tempo em 1994 e climáticas (para até três meses) no ano seguinte, o Cptec passou a ser o principal expoente científico nacional para a área de meteorologia, o que ocorreria não sem enfrentar resistências e conflitos. Em pouco tempo, o Centro passou a ser reconhecido como símbolo de desenvolvimento científico e tecnológico, sintonizado com as tendências internacionais de estudos climáticos e atmosféricos, com base na modelagem (Miguel, Escada & Monteiro, 2016MIGUEL, Jean Carlos Hochsprung; ESCADA, Paulo; MONTEIRO, Marko S. Políticas da Meteorologia no Brasil: trajetórias e disputas na criação do Cptec. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 9, n. 1, p. 36-50, Rio de Janeiro, jan./jun. 2016.).

Em termos metodológicos, realizamos uma análise prosopográfica que mostra a atuação de pesquisadores do Cptec envolvidos na temática das mudanças climáticas, com foco na inserção dos mesmos na área e as formas e estratégias para estabelecer posicionamentos privilegiados no campo de pesquisa das ciências meteorológicas e climáticas, especificamente, das mudanças climáticas. A escolha da prosopografia se justifica por ser um método que possibilita um olhar ao mesmo tempo abrangente e mais acurado sobre as trajetórias e práticas de consagração desenvolvidas no campo científico em momentos específicos. As escolhas de carreira e as reconversões temáticas dos pesquisadores do Cptec podem ser categorizadas e avaliadas ao longo do tempo mediante práticas de pesquisa e catalogação do método prosopográfico. Pesquisadores de alto nível acadêmico e portadores de grande volume de capital institucional podem ser confrontados com outros, de menor prestígio e influência no campo, graças a parâmetros trazidos pela análise prosopográfica.

Foi realizada uma análise dos principais pesquisadores atuantes entre 1995 e 2010, destacando os principais projetos em que estavam envolvidos ou sob a liderança dos mesmos, além de premiações e títulos alcançados e que representam símbolos de excelência e notoriedade. Nesse período, foi possível perceber a reorientação das pesquisas e reconversões de temáticas a partir das promessas trazidas pela emergência hegemônica das mudanças climáticas no interior do campo das ciências climáticas. A análise desse estudo enfoca ainda a correlação de projetos desenvolvidos nesse período sob a temática das mudanças climáticas e a formação de uma elite científica em ascensão nesse campo científico.

Campo científico, transversalidades e a formação de elites científicas

Robert Merton foi um dos pioneiros a discutir o surgimento das associações científicas na sociedade moderna, identificando a importância de aspectos simbólicos na formação de grupos científicos dominantes, da mesma forma que o protestantismo ascético e suas formas de conduta, segundo Weber, estariam alinhados ao comportamento de empreendedores na primeira fase do capitalismo industrial na Inglaterra. Esses elementos formaram uma oligarquia científica que desenhou os parâmetros das instituições universitárias no mundo contemporâneo (Merton, 2013).

O estabelecimento de elites na área científica e as relações entre ciência e poder contam com diferentes abordagens que se consolidaram ao longo do século XX, cruzando diferentes áreas de conhecimento. O papel do Estado capitalista na legitimação de certos grupos dominantes nas instituições científicas trouxe um conjunto de preocupações que a sociologia da ciência contemporânea tem se mobilizado para explicar.

Alguns autores se destacaram a partir dos anos 1950, apontando as ligações fortes do Estado americano e da pesquisa científica, inspirando uma série de análises sobre os grupos controladores da agenda científica. A perspectiva dos Colégios Invisíveis de Derek De Solla Price (1986SOLLA PRICE, Derek De. Little Science, Big Science… and beyond. New York: Columbia University Press, 1986.), a política científica de Jean-Jacques Salomon (1974SALOMON, Jean-Jacques. Ciencia y política. México: Siglo XXI, 1974.), as formas de assessoria científica de Stuart Blume (1974BLUME, Stuart S. Towards a political sociology of science. New York; London: The Free Press; Collier Macmillan Publishers, 1974.) e os diferentes tipos de coalizão de recursos apontada por Susan Cozzens e Edward Woodhouse (1995COZZENS, Susan; WOODHOUSE, Edward. Science, government, and the politics of knowledge. In: JASANOFF, SHEILA. Handbook of science and technology studies. Thousand Oaks, CA: Sage Publications, 1995.) são algumas das incursões analíticas que buscaram compreender, a partir da preponderância da ciência no Pós-Guerra, não apenas as relações de poder, mas, principalmente, entre o Estado e a estrutura científica.

As elites científicas mantêm intercâmbio constante com as esferas de poder por meio de instâncias administrativas e governamentais, a partir das quais são estabelecidas as políticas de C&T e as agendas de conhecimento principalmente nas esferas estaduais e federal.

A hierarquização interna dos campos sociais e disciplinares da ciência e tecnologia, que favorece a formação de elites científicas, permanece como um dos maiores desafios à democratização dos processos de produção do conhecimento. Por outro lado, não se reconhece no comportamento dessas elites uma busca por efetiva autonomia frente às esferas de poder, e sim estratégias que visem acomodar interesses em processos nos quais o Estado implementa seu controle organizacional sobre a comunidade científica por intermédio de seus experts.

A perspectiva teórica de Bourdieu, assentada na noção de campo científico, entendido como um campo de forças e poder e, portanto, de alianças e conflitos, contribui com a noção de elite científica. Apesar de não utilizar expressamente o termo elites em seus textos, o modelo sociológico de Bourdieu contempla agentes sociais sob tais características ocupando posições no campo científico, em dimensão relacional, e no qual trajetórias científicas, com base no acúmulo de capital científico individual e/ou coletivo, são fundamentais na constituição de atributos desses atores, bem como na atuação das dinâmicas de formação de polos dominantes e/ou do stablishment dos diversos domínios da C&T. Nos anos 1970, o conceito de campo científico formulado por Bourdieu teve grande impacto na discussão sobre grupos científicos hegemônicos no decorrer do processo de implementação de políticas científicas e de produção de conhecimento (Bourdieu, 1983).

Na visão do sociólogo francês, a luta concorrencial no interior do campo científico se faz frente à dimensão relacional do capital científico, uma espécie de capital simbólico, dos agentes. A percepção do capital científico “pressupõe a confiança ou a crença dos que o suportam porque estão dispostos (...) a atribuir crédito” (Bourdieu, 2004______. Para uma sociologia da ciência. São Paulo: Edições 70, 2004., p. 53), e são distribuídos entre os agentes de determinados campos científicos. No interior deste campo se estabelecem relações de diferenciação e disputa, em que o capital científico de certos agentes é reconhecido como que dotado de grande força e poder para conduzir modificações na estrutura do campo científico. Nos momentos de reestruturação do campo irão se destacar agentes que exercem domínio nesta esfera social. Cientistas com maior capital científico dispõem, em geral, de conexões com reconhecidos grupos científicos internacionais, interlocução com forças não científicas, tendo adicionalmente capacidade para influenciar a estruturação do campo científico e estabelecer relações formais e informais com outros setores sociais.

Baseada fortemente na perspectiva de Bourdieu, a perspectiva transversalista desenvolvida desde os anos 1990 por Shinn propõe um novo entendimento sobre o comportamento dos atores científicos em suas redes de articulação institucional.

Na visão de Shinn (1980______. Savoir scientifique et pouvoir social. L’école Polytechnique, 1794-1914. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1980.), as elites científicas precisam organizar-se dentro de um regime transversal de produção e disponibilização de conhecimento. O regime transversal da ciência contemporânea significa exatamente que um amplo conjunto de atores científicos e não científicos são chamados a criar grupos móveis de atuação que produzem conhecimentos parciais e pouco estabelecidos enquanto produtos finais.

Esses grupos não demonstram ambições em termos de acumulação de capital científico específico, mas preferem se adaptar a formatos pouco estabilizados ou estabilizadores. Longe de buscarem carreiras ou reconhecimento puramente acadêmico ou institucional das Grandes Escolas, miram a inserção em espaços mistos e de significação corporativa.

Para Terry Shinn e Pascal Ragouet (2008SHINN, Terry & RAGOUET, Pascal. Controvérsias sobre as ciências. São Paulo: Editora 34, 2008.), as formas de comportamento e associação das elites convencionais estão sendo fortemente desafiadas. Não há mais uma solidez institucional ou regras de creditação acadêmica que pairem por cima dos acordos fluidos do regime transversal. Não é mais possível entender a movimentação das elites científicas observando apenas aquelas instituições estabilizadas e convencionais, com suas regras e tradições aceitas e reverenciadas. Ainda assim, Terry Shinn e Anne Marcovith (2012) reiteram que os regimes de produção e difusão da ciência e tecnologia são autônomos, e que, portanto, a diferenciação promovida por esses regimes não é contrária à interação com outros campos científicos e campos sociais. Para os último autores citados todos os regimes de C&T compreendem uma certa medida de transversalidade.

A institucionalização da temática Mudanças Climáticas no Inpe

Durante os anos 1990 e na década seguinte, a discussão sobre mudanças climáticas passou a ser incorporada às atividades do Inpe por um grupo de pesquisa criado no Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), a partir do qual se instituiu o Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST), em 2008­2 2 Estes dois centros foram extintos e incorporados à Coordenação-Geral de Ciências da Terra em uma reformulação da estrutura do Inpe, ocorrida em 2020. , no próprio Inpe. Suas lideranças iniciaram um processo de articulação que as fortaleceram no campo científico-institucional, e que redundou, ao mesmo tempo, na legitimação no campo das mudanças climáticas, alcançando assim uma posição científica de destaque, tanto no âmbito nacional como no internacional. Essa movimentação, em que pesquisadores se mobilizaram para uma acomodação da temática na estrutura institucional do Inpe, processo que identificamos como “reconversão” de elites científicas, só é possível em decorrência a um significativo capital científico de seus pesquisadores, acumulado ao longo de suas trajetórias científicas.

Nesse período, o tema das mudanças climáticas vinha se consolidando nas ciências atmosféricas e climáticas do país, acompanhando uma tendência mundial. Grandes projetos de pesquisa foram então organizados e conduzidos pelos pesquisadores do Inpe com o intuito de produzir análises de impactos, adaptação e vulnerabilidade, a partir de cenários de mudanças climáticas projetados e divulgados pelos relatórios do Intergovernmental Panel on Climage Change (IPCC). As pesquisas emergentes no Inpe vinham então seguindo as diretrizes temáticas de pesquisa do Painel Intergovernamental. Pesquisadores do Inpe, incluindo alguns provenientes de outras áreas do Instituto e não somente do Cptec e CCST3 3 Uma das vice-presidentes do IPCC (20215-2022), Thelma Krug, pesquisadora do Inpe, é originária de outra área de pesquisa da instituição: Observação da Terra, tal como Diógenes A. Sala, pesquisador e colaborador de relatório do IPCC. , tiveram papel de destaque no fortalecimento da agenda de pesquisas sobre mudanças climáticas no país (Andrade & Escada, 2021ANDRADE, Thales Haddad Novaes de & ESCADA, Paulo. Trajectories and reconversions of the Center for Weather Forecasting and Climate Studies (Cptec): forming the meteorological science elite in Brazil. History of Meteorology, v. 10, 2021.; Andrade, 2020; Miguel, Escada & Monteiro, 2016MIGUEL, Jean Carlos Hochsprung; ESCADA, Paulo; MONTEIRO, Marko S. Políticas da Meteorologia no Brasil: trajetórias e disputas na criação do Cptec. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 9, n. 1, p. 36-50, Rio de Janeiro, jan./jun. 2016.). No entanto, as principais lideranças desse movimento são provenientes do Cptec e tiveram papel de destaque no processo anterior autodenominado de “modernização da previsão do tempo e clima no país”, que deu origem ao Centro. A mobilização científica do Inpe em torno do tema das mudanças climáticas deu-se alguns anos depois da criação do Cptec, no início dos anos 2000, quando o Centro já desfrutava de uma posição internacional de destaque. Foi criado então o Grupo de Pesquisa em Mudanças Climáticas (GPMC/Cptec), que mais tarde tornou-se uma divisão. A missão do grupo era:

Desenvolver pesquisas relacionadas ao tema mudanças climáticas, com a intenção de divulgar e disponibilizar os dados e resultados gerados para apoiar pesquisadores e tomadores de decisão na formulação de políticas sobre o impacto das mudanças climáticas, a vulnerabilidade e as medidas de adaptação. Além disso, consolidar uma rede de pesquisadores, na procura de uma permanente cooperação entre os produtos da pesquisa científica e o processo de formulação e tomada de decisões (Disponível em: <http://mudancasclimaticas.Cptec.inpe.br/>).

A formação desse grupo de pesquisa foi proposta por pesquisadores reconhecidos, como Carlos Nobre e José Marengo, e envolveu o recrutamento de alunos-bolsistas do programa de pós-graduação, bem como de pesquisadores seniores de outras universidades (como USP e Esalq).

A relevância da temática no país, que transbordou para outras esferas de atividade da sociedade, com abrangência mais ampla do que a científica, fez com que a estrutura científico-institucional inicialmente do Cptec, depois do Inpe, também fosse redimensionada. Em menos de uma década, as pesquisas em mudanças climáticas, tratadas inicialmente por esse grupo de pesquisa no interior de uma das três divisões do Cptec, pouco a pouco ganhou espaço, tornou-se uma divisão no Centro e, na sequência, transformou-se em um novo centro de pesquisa dentro do próprio Inpe, o Centro de Ciências do Sistema Terrestre (CCST). Alguns anos depois, em mais uma etapa de ascensão do tema em escala nacional, boa parte dos pesquisadores dessa área migrou para o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), criado em resposta a ocorrência de um dos episódios mais trágicos de desastre natural na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011.

As práticas de recrutamento de pesquisadores, conversão de temas de pesquisa, montagem de grandes equipes engajadas em projetos internacionais, participação em iniciativas governamentais etc. se configuraram como estratégias de acumulação de capital científico e institucional que conferiram ao Inpe um patamar de excelência na área de mudanças climáticas.

Na próxima seção apresentaremos as formas de abordagem e recrutamento de novos membros dessa elite dos estudos do clima e seus capitais em jogo. Observa-se um novo cenário de pesquisa que emerge com a entrada desse grupo de cientistas, originários do Cptec/Inpe, participando de grandes projetos internacionais, movimentação que entendemos fazer parte de fórmulas de seleção e conversão que irão influenciar a formatação da agenda e do campo científico em implementação nessa área.

Verificamos, por fim, como os pesquisadores ascendentes se ajustam a essas novas práticas de consolidação do campo de estudos de mudanças climáticas, área que passa a ter mais reconhecimento acadêmico e também relevância no plano das políticas científicas.

Ascensão de novos grupos

A renovação das elites do Inpe que vão atuar no campo das mudanças climáticas está correlacionada, em grande medida, com a trajetória da Meteorologia do Inpe, na qual se inclui a criação do Cptec. Por outro lado, o papel de lideranças científicas que se forjam ao longo da criação do Cptec, também será fundamental à formação das elites das mudanças climáticas. Estes cientistas são formados, em sua maioria, em programas de pós-graduação do Inpe e/ou do exterior, ou outros ainda, em ascensão no cenário internacional, recrutados externamente.

A ascensão do Cptec no campo da meteorologia nacional e internacional foi fundamental nesse processo. O centro começou a fornecer previsões de tempo, em 1994, e de clima (para até três meses), em 1995, colocando em curso um processo de modernização da meteorologia do país.

Boa parte de seus pesquisadores é proveniente da própria área de Meteorologia do Inpe, implementada em meados dos anos 1960, com o objetivo de desenvolver aplicações com uso de dados e imagens de satélites. Portanto, desde os anos 1970, pesquisadores do Inpe já atuavam no campo da climatologia e parte deles começou a atuar no âmbito das mudanças do clima nos anos 1990. Entre estes, os pesquisadores Iracema Cavalcanti, Regina Alvalá, Carlos Nobre, José Marengo e Paulo Nobre, com atuação docente no Programa de Pós-Graduação em Meteorologia do Inpe.

Em termos de atuação como liderança acadêmica, com expressivo capital científico e institucional no campo, um pesquisador que se destacou foi José Marengo. A sua trajetória de pesquisa, vinculações institucionais e internacionais e opções em termos de subáreas de pesquisa são emblemáticas nesse momento e auxiliaram o fortalecimento da discussão sobre mudanças climáticas no âmbito do Cptec.

Com graduação e mestrado no Peru, seu país de origem, durante os anos de 1980, Marengo foi docente da Universidad Nacional Agraria, junto ao Departamento de Física e Meteorologia. No ano de 1987, ingressou no doutorado em Meteorologia na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, com interesse nos eventos climáticos extremos na bacia amazônica.

Em 1991, o pesquisador concluiu o doutorado e, entre 1991 e 1994, realizou dois pós-doutorados: no Goddard Space Institute, da Nasa, com bolsa do National Research Council; e depois na Florida State University. É preciso ter em mente que o IPCC foi estabelecido formalmente em 1988, portanto, durante seu período de formação acadêmica.

Já como pesquisador com elevada experiência internacional na área de modelagem climática, com nove artigos publicados em periódicos reconhecidos, e convidado pelo chefe do Cptec, Carlos Nobre, no ano de 1995, Marengo se radicou no Brasil, iniciando suas atividades no Inpe como professor visitante com bolsa do CNPq. Em entrevista à revista Fapesp, o pesquisador relembra:

Depois de oito anos nos Estados Unidos, queria voltar para a América do Sul. Mas, naquela época, meados dos anos 1990, o Peru estava no meio da crise do terrorismo. A Argentina não era uma boa opção para mim, pois não desenvolvia a minha área de pesquisa em modelagem de clima. O Carlos Nobre [climatologista do Inpe] me convidou para vir ao Brasil como bolsista do CNPq. Em Wisconsin, estudei de 1987 a 1991. Em 1988, meu orientador convidou o Carlos para fazer uma palestra lá. Conhecia os artigos dele e ele os meus. Ele me perguntou para onde iria quando terminasse o doutorado e me incentivou a vir para o Brasil. Mas eu não sabia exatamente o que iria fazer. Pensava em ficar nos Estados Unidos, mas sabia que seria complicado arrumar uma posição estável em uma universidade de lá. Mais tarde, quando terminei o pós-doutorado, falei com o Carlos novamente e perguntei se ele lembrava da nossa conversa. Ele me convidou a vir para o Brasil. Vim trabalhar no Cptec, onde fiquei muitos anos (Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/2018/11/19/jose-antonio-marengo-orsini-tempo-de-incertezas/>).

O recrutamento de Marengo mostra o estabelecimento de uma estratégia, articulada pelo pesquisador Carlos Nobre, com o apoio do Inpe, em se ajustar aos parâmetros consagrados do campo em escala internacional. A busca de quadros em ascensão, situados em instituições de destaque, com experiência acadêmica internacional, e atuação em campo de atividade que vai se estabelecendo como dominante, como a modelagem climática perfaz um modo de operação direcionado para a reprodução da excelência, característica no processo de implementação do Cptec (Andrade & Escada, 2021ANDRADE, Thales Haddad Novaes de & ESCADA, Paulo. Trajectories and reconversions of the Center for Weather Forecasting and Climate Studies (Cptec): forming the meteorological science elite in Brazil. History of Meteorology, v. 10, 2021.), que tem semelhanças com o mesmo processo do Inpe, no início de suas atividades de pesquisa nos anos 1960. Fernando de Mendonça, primeiro diretor científico do Inpe, arregimentou os melhores alunos de graduação nas mais bem conceituadas universidades brasileiras e também convidou pesquisadores estrangeiros, proeminentes e em início de carreira, para atuar, entre outras áreas de pesquisa e acadêmica do Instituto, na Meteorologia. Nos anos 1990, esse papel de caçador de talentos passou a ser feito por Carlos Nobre, inicialmente interessado em fortalecer os estudos e as pesquisas em modelagem, tempo e clima, mas também, mais tarde, nas mudanças climáticas.

A escolha de Marengo para se estabelecer no Inpe se deu pela ênfase de atuação do Cptec na área de modelagem climática, a qual, como já destacado, incentivou a reconversão de diversos jovens pesquisadores no período de implantação do Cp­tec. Trazer um profissional de destaque para o Brasil naquele momento não era tarefa das mais simples. Em realidade, no início dos anos de 1990, a situação dos institutos públicos de pesquisa no Brasil era muito difícil. Baixos salários, instabilidade orçamentária e crises políticas recorrentes, o que dificultava seriamente a manutenção das pesquisas, o investimento em equipamentos tecnológicos, criando empecilhos à permanência de pesquisadores no país. A globalização da economia e a necessidade de flexibilização das práticas de pesquisa exigiam dos institutos públicos maior criatividade nas estratégias para captar recursos financeiros e humanos qualificados e especializados para a manutenção de suas atividades cotidianas. Por vários anos, as contratações ficaram suspensas e algumas atividades passaram a ser desempenhadas por pessoal terceirizado, em virtude da falta de salários competitivos e grande número de aposentadorias, o que colocava em risco a continuidade de vários projetos. O convite a pesquisadores estrangeiros em início de carreira científica, cujos países de origem se encontravam também em situação econômica crítica, foi uma estratégia que funcionou nos primórdios do Cptec, repetindo a estratégia utilizada pelo então diretor do Inpe, Fernando de Mendonça, na formação dos primeiros grupos de pesquisa do Instituto, entre os anos 1960 e 1970.

Grandes projetos de mudanças climáticas: pesquisa transversal e concentração de capital

De acordo com Richard Whitley (2009WHITLEY, Richard. The intelectual and social organization of the sciences. New York: Oxford University Press, 2009.), a ciência contemporânea move-se por intermédio de empreendimentos organizacionais de pesquisa, descentralizados e flexíveis que articulam pesquisadores dispersos por centros diferentes e mediados por protocolos acadêmicos em constante negociação. Coordenar projetos de longo escopo consiste em um trabalho acadêmico e administrativo complexo, que demanda volume e formas de capital científico diferenciado. Somente centros de elevada reputação podem conduzi-los atendendo às demandas das agências de fomento e outros órgãos financiadores.

Os regimes reputacionais da ciência selecionam e estabilizam grupos considerados de excelência, definidos por seu posicionamento no stablishment científico e mediante uma contínua avaliação de sua performance acadêmica e organizacional. Indicadores de desempenho acadêmico como teses defendidas, patentes, publicações de artigos em revistas renomadas, citações e impactos na implementação de políticas públicas perfazem um rol de exigências que conferem reconhecimento a um centro de pesquisa e ascensão acadêmica para o grupo e membros no interior do campo científico.

A partir dos anos de 1990, a ciência brasileira adentrou na era da montagem de grandes projetos de pesquisas internacionais, que passaram a demandar um maior volume de capital científico e institucional a determinados centros de pesquisa de elite. Segundo Samile Andrea Vanz e Ida Regina Stumpf (2010VANZ, Samile Andrea de Souza; STUMPF, Ida Regina Chittó. Colaboração científica: revisão histórico-conceitual. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 15, n. 2, p. 42-55, maio/ago. 2010.), a formulação de grandes projetos de pesquisa em colaboração internacional envolve interesses organizacionais e reputacionais estratégicos, que possibilitam uma inserção qualificada no campo científico moderno e reformula os padrões tradicionais.

No caso da participação do Brasil em grandes projetos científicos internacionais, pode-se dizer que é uma prática relativamente recente. Essa participação foi impulsionada em grande medida pela criação do Ministério de Ciência e Tecnologia, em 1985, e pelo fortalecimento das Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) estaduais. Segundo Beatriz Leonor Barbuy e Ricardo Galvão (2010BARBUY, Beatriz Leonor Silveira; GALVÃO, Ricardo Magnus Osório. Relatório da sessão “Grandes projetos científicos de colaboração internacional”. Parcerias Estratégicas, v. 15, n. 31, 2010.), a presença de pesquisadores brasileiros em grandes projetos esteve até pouco tempo circunscrita às áreas de física de partículas, astronomia e pesquisas na Antártica. O envolvimento mais ativo de cientistas brasileiros em projetos de grande porte foi dificultado, de modo geral, devido a entraves burocráticos e intermitência de financiamento.

Se a pesquisa realizada no solo brasileiro enfrenta uma série de dificuldades decorrentes de entraves burocráticos e legais, estes são amplificados em projetos internacionais. As dificuldades relacionadas a entrada e saída de equipamentos, reagentes e amostras são as mais prejudiciais à realização de projetos de colaboração internacional. Torna-se então capital que se consiga uma modernização dos procedimentos na Receita Federal (importação e exportação), em agências regulatórias (como Anvisa) e em órgãos de controle federais e estaduais (Barbuy & Galvão, 2010BARBUY, Beatriz Leonor Silveira; GALVÃO, Ricardo Magnus Osório. Relatório da sessão “Grandes projetos científicos de colaboração internacional”. Parcerias Estratégicas, v. 15, n. 31, 2010., p. 166).

Segundo esses autores, desde o início dos anos 2000 pode-se observar uma ampliação temática da participação de cientistas brasileiros, reconhecidos em suas áreas, em grandes projetos internacionais, como genoma, proteoma e, especialmente, mudanças climáticas.

Antes mesmo da criação do Cptec, nos anos 1990, pesquisadores da meteorologia participavam ativamente da coordenação de grandes projetos de pesquisa internacionais, como o Gate e Clivar, nos anos 1980, com escopo global, e o Able, sobre o clima da Região Amazônica. Na década seguinte, outros projetos mais diretamente relacionados às mudanças climáticas foram criados e financiados. O desenvolvimento desses projetos, com publicação de artigos, fez com que o Centro consolidasse sua posição no cenário de pesquisa climática, contribuindo com o reconhecimento e a participação de seus membros em fóruns e novas parcerias com instituições de prestígio de países desenvolvidos.

A montagem de um grande projeto de pesquisa interinstitucional, sua implementação e divulgação de resultados, representa, para além de seu significado científico e acadêmico, uma etapa importante para a consolidação de um grupo de pesquisa de excelência. A participação em projetos de tal envergadura envolve rituais de passagem para seus membros iniciantes, ainda dotados de baixo capital científico, e de convalidação de elevado desempenho científico entre os cientistas mais reconhecidos.

Um desses projetos importantes, que contou com a parceria de diversas instituições científicas e pesquisadores de vários países, foi o Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia (LBA), coordenado em suas diferentes fases e em grande parte pelo pesquisador e então chefe do Cptec, nos anos 1990, Carlos Nobre.

Trata-se, de fato, de um grande programa de pesquisas, liderado pelo Brasil e com cooperação científica internacional, composto por mais de 130 projetos de pesquisa (já executados ou em fase de execução), financiados por várias agências nacionais (como o MCT, o CNPq, a Fapesp, a Finep/PPG7 etc.) e internacionais (com destaques para a Nasa e a National Science Foundation, dos Estados Unidos, a Comissão Europeia, o Instituto Interamericano (IAI) de Pesquisas sobre Mudanças Globais etc.). O LBA teve início, em sua fase de coletas de campo, em 1998, após quatro anos de cuidadoso planejamento de sua agenda científica, e dele participam, ou participaram, cerca de 250 instituições, incluindo mais de 100 instituições brasileiras, das quais 40 são amazônicas, no total contribuindo com cerca de 1.700 pesquisadores, dos quais mais de 1.000 brasileiros (Luizão et al., 2005LUIZÃO, Flávio et al. Projeto LBA: estudando as complexas interações da biosfera com a atmosfera na Amazônia. Acta Amazonica, v. 35, n. 2, 2005.).

Planejado ao longo dos anos 1990, o LBA lançou o Cptec em um patamar elevado em termos de articulação internacional e formação de pesquisadores voltados aos estudos sobre a Amazônia. Segundo os principais organizadores do programa, as contribuições científicas mais importantes envolveram diversas áreas do conhecimento - como física do clima, química atmosférica, biogeoquímica, hidrologia de superfície, uso da terra e dimensões humanas (Batistella et al., 2009BATISTELLA, Mateus et al. Resultados do LBA e uma perspectiva da futura pesquisa amazônica. Amazon and Global Change, Geophysical. “Monograph Series”, #186, 2009.). O programa LBA tinha ainda como propósito estimular as instituições de pesquisa da região, bem como promover o desenvolvimento da Região Amazônica, um escopo mais amplo do que a pesquisa em si e que transcendia em muito os limites e a abrangências do Cptec.

A abrangência do LBA teria levado a questionamentos de ordem geopolítica. Segundo Myanna Lahsen (2009LAHSEN, Myanna. A science-policy interface in the global-south: the politics of carbon sinks and science in Brazil. Climatic Change, n. 97, 2009.), a implementação do programa LBA foi responsável por uma forte confrontação de interesses entre agentes científicos e políticos. Os membros de entidades burocráticas e diplomáticas brasileiras em certa medida viam com reservas as alianças forjadas pelos coordenadores científicos entre eles, Carlos Nobre e os especialistas internacionais.

Essas elites científicas nacionais, boa parte formada em universidades estrangeiras, estariam estabelecendo coalizões de pesquisa juntamente com ONGs e agências internacionais em detrimento a interesses geopolíticos nacionais, de acordo com autoridades políticas brasileiras, como destaca Lahsen (2009LAHSEN, Myanna. A science-policy interface in the global-south: the politics of carbon sinks and science in Brazil. Climatic Change, n. 97, 2009.):

[...] such decision makers suggested that the combined effects of national scientist´s foreign educations and their transnationalsocio-professional networks, their not uncommon affiliation with NGOs, and their interest in foreign research funds, compromised their ability to perceive and act in accordance with national interests (Lahsen, 2009LAHSEN, Myanna. A science-policy interface in the global-south: the politics of carbon sinks and science in Brazil. Climatic Change, n. 97, 2009., p. 362).

As controvérsias envolvendo os níveis de emissão de carbono e o papel do desflorestamento nas mudanças climáticas trouxeram à tona conflitos entre o campo diplomático-estatal e os agentes científicos, escolhidos como lideranças desses programas. O embate explicitado pela análise de Lahsen mostra que os campos científico e político contam com formas de inserção diferenciadas no âmbito desses grandes programas de pesquisa. A atuação simultânea de atores científicos e diplomáticos em um mesmo campo de atuação revelou as contradições e os conflitos de interesses inerentes às diferentes perspectivas desses atores.

As múltiplas militâncias dos cientistas que coordenam essas grandes agendas de pesquisa possibilitam a circulação por diversas instituições de forma descentralizada e incerta. Agências multilaterais, redes de pesquisadores e organizações não governamentais compõem um quadro amplo de interações que o campo político não é capaz de exercer controle, a não ser que tenha algum nível de participação nos mesmos.

Essas elites científicas nacionais são capazes de agenciar múltiplas ferramentas, intelectuais e políticas, que as diferenciam dos especialistas dos períodos anteriores, que eram excessivamente dependentes do aparato estatal centralizado. Segundo Whitley (2009WHITLEY, Richard. The intelectual and social organization of the sciences. New York: Oxford University Press, 2009.), os sistemas reputacionais da ciência contemporânea apresentam um grau de incerteza e instabilidade crescente, que não podem mais ser controlados pelas regras verticais do financiamento estatal. O campo científico adquire autonomia crescente à medida que seus temas e especialidades são entrecortados por tarefas incertas e grupos ampliados internacionalmente.

Ao longo dos anos 2000 podemos observar uma série de projetos de pesquisa (Tabela 1), com participação de pesquisadores do Cptec, que abordaram questões sobre as mudanças climáticas em escala nacional e internacional.

Tabela 1
Projetos científicos e participantes (coordenadores/líderes/integrantes)

Vistos em conjunto, esses projetos tiveram financiamentos ou cooperação de agências diversas, nacionais e internacionais. Entre as internacionais constam a Global Opportunity Fund (GOF-UK), Inter American Institute For Global Change (IAI), Nasa, União Europeia e a National Oceanic And Atmospheric Administration (NOAA).

Entre as agências nacionais podemos citar o CNPq, a Fapesp, o Ministério do Meio Ambiente, a Petrobrás, entre outras. Esses projetos deram grande impulso à formação de vários pesquisadores, muitos ainda desenvolvendo pesquisas de mestrado e doutorado, contribuindo também para consagrar cientistas junto a instituições nacionais e internacionais.

Como se pode constatar, as coordenações dos projetos eram em sua maioria de Carlos Nobre e José Marengo, ambos pelo Cptec, CCST ou ainda Cemaden, dependendo do período, de pesquisadores-docentes da USP, como Maria Assunção Dias e Paulo Artaxo, ou ainda pesquisadores de instituições estrangeiras, como Jean-Philippe Boulanger e Mario Nunez.

Carlos Nobre e José Marengo se revezaram na coordenação geral de diversos projetos e foram responsáveis diretos pela submissão e implementação das pesquisas, captação de recursos e recrutamento do pessoal envolvido. A parceria estabelecida entre Nobre e Marengo nesses projetos indica uma estratégia de atuação conjunta que produz diversos efeitos, mas primordialmente a ampliação do capital científico de ambos.

Adicionalmente, consolidam-se como lideranças científicas com maior poder de influência na condução da agenda de mudanças climáticas dentro e fora do Inpe. Essa atuação reverte também em um maior reconhecimento científico do Instituto na comunidade climática internacional.

A montagem de equipes de cientistas - escolha de integrantes e convites a pesquisadores de outras instituições igualmente reconhecidos - para participar de programas e projetos revela, além do estabelecimento de estratégia para fortalecer a aprovação de projetos, o desenvolvimento de pesquisa, a produção e a publicação de artigos, a ampliação de capital científico individual, coletivo e institucional, como também o uso de novos formatos de articulação e formação de redes de pesquisa, como arranjos de parcerias transversais tanto do ponto de vista institucional como disciplinar.

A posição na administração científica, a ocupação de cargos de chefia, a coordenação e a direção também concorrem para ampliar o capital simbólico do cientista (Bourdieu, 2004______. Para uma sociologia da ciência. São Paulo: Edições 70, 2004.). Esse modelo de atuação - no caso de Marengo e Carlos Nobre - resulta em consagração simbólica científica, protagonismo e liderança como gestores e empreendedores acadêmico e institucional tanto no Inpe, como no Cemaden. Nobre ainda assumiu cargo político no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, de onde continuou a exercer suas atividades de pesquisa. A atuação nessas duas frentes de atividades se mostra fundamental neste processo de acumulação de capital simbólico e científico.

Na condição de detentor de um capital científico e institucional significativo, Nobre viabilizou o estabelecimento das mudanças climáticas como tema horizontal sob a articulação de diferentes fontes de financiamento e ferramentas de pesquisa dentro e fora do Inpe, culminando no estabelecimento do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT-CNPq) de Mudanças Climáticas sob sua coordenação e, em paralelo, na montagem e coordenação do Programa Fapesp de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (2008-2011), a Rede Clima, entre outras posições de relevância.

Embora assumindo altos cargos nas estruturas institucionais e no MCTI ao longo de sua trajetória, Nobre, entre outros líderes do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), entrevistados por Duarte (2019DUARTE, Tiago Ribeiro. O painel brasileiro de mudanças climáticas na interface entre ciência e políticas públicas: identidades, geopolítica e concepções epistemológicas. Sociologias, Ano 21, n. 51, p. 124-158, maio/ago. 2019.), entende que sua atividade científica estaria livre de contaminações tendenciosas, inerentes ao campo da política.

Do ponto de vista dos cientistas que formaram o PBMC, a concepção epistemológica sobre a ciência guarda algumas semelhanças com as concepções positivistas, uma vez que a separação entre fatos e valores e o preceito de objetividade desinteressada apareceram em diversas entrevistas (Duarte, 2019DUARTE, Tiago Ribeiro. O painel brasileiro de mudanças climáticas na interface entre ciência e políticas públicas: identidades, geopolítica e concepções epistemológicas. Sociologias, Ano 21, n. 51, p. 124-158, maio/ago. 2019., p. 91).

Tiago Ribeiro Duarte entende que Nobre se autopercebe como detentor de posições neutras ou positivistas, uma vez que suas atividades de pesquisa não seriam influenciadas por qualquer perspectiva que não estivesse no campo científico, mantendo-se distante, portanto, tanto dos agentes políticos do policy making, como da esfera das ONGs. Em seu depoimento para o trabalho de Duarte, Carlos Nobre afirma:

- E o cientista, ele tem que ser visto neste contexto, em inglês a gente fala, honest broker, como uma parte neutra, que só enxerga o que a ciência informa. [...] Então ela não é de um grupo de interesse que tá puxando a brasa. Por isso que a ciência, a ciência climática, não é ONG ambientalista. [...] O Greenpeace tem um monte de cientista, PhD, mas é grupo político, não é científico. Porque, se a ciência apontar alguma coisa que não vai na linha da agenda política deles, eles eliminam, então, isso não é ciência. Quer dizer, não é que não é ciência, eles têm muitos bons cientistas, mas é que, assim, agenda política é agenda política! A ciência que serve aos propósitos da agenda política, aquela ciência é apresentada justificando muitas políticas e lutas e batalhas do Greenpeace. Não é honest broker. Então, quando eu falo honest broker, é a ciência guiada pela ciência (ênfase adicionada) (Duarte, 2019DUARTE, Tiago Ribeiro. O painel brasileiro de mudanças climáticas na interface entre ciência e políticas públicas: identidades, geopolítica e concepções epistemológicas. Sociologias, Ano 21, n. 51, p. 124-158, maio/ago. 2019., p. 92).

A dicotomia Estado, de um lado, e movimentos sociais, de outro, com os cientistas no meio do caminho, não expressa fielmente o posicionamento colocado por Nobre. Ele atua na ciência climática como membro estabelecido que pretende definir o comportamento de um campo que ao mesmo tempo busca ascensão e legitimidade. Esse processo ocorre em um campo social de regras próprias e valores consagrados, sob a permanente disputa e competição por recursos simbólicos e reputacionais individuais e institucionais, inserindo-se em um jogo de interesses no qual não existe neutralidade. E a ciência produzida nesse contexto não fica livre de escolhas interessadas, enviesadas, que interferem senão no conhecimento em si produzido, em projeções, reconhecimento reputacional, visibilidade na mídia, enfim, ações que se provocam efeitos em outros campos, como no político, que redundam em incremento de capital simbólico (científico e político).

Nobre ficou no Inpe até 2012, foi um dos principais idealizadores do Cemaden, criado em 2011. Na sequência assumiu o cargo de Secretário Nacional do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e, posteriormente, chegou à Presidência da Capes. Apesar da defesa de uma postura honest broker no comando do campo, o grande excedente de capital acumulado por ele viabilizou, por um lado, alcançar tais posições e, ao mesmo tempo, aprofundar a agenda climática nas grandes agências científicas nacionais, o que significa ganhar relevância temática no âmbito das políticas científicas e recursos para a pesquisa.

Por outro lado, o fortalecimento da área de pesquisa em mudanças climáticas atrelada à montagem de grandes projetos e programas atesta o movimento transversal de grupos de pesquisa constituídos sob a égide de atributos específicos individuais e coletivos, que forjam alianças flexíveis e intermitentes com diferentes instituições e formas distintas de vínculos institucionais.

O acúmulo de capital científico per se não garante projeção e reconhecimento institucional. Novos atributos precisam ser aquilatados, como um comportamento empreendedor e múltiplo em termos de formação de equipes, fórmulas de cooperação, distribuição de atribuições, habilidade para articulações e capacidade para atrair visibilidade na mídia e da sociedade.

De acordo com Bernward Jeorges e Terry Shinn (2001), programas de pesquisa transversais e flexíveis, como os de mudanças climáticas e modelagem, tendem a romper as formas de divisão de trabalho científico, levando a um cruzamento de rituais diferenciados e inéditos para a prática acadêmica convencional. O protagonismo de pesquisadores e managers tende a se entrelaçar a partir de novos dinamismos e sistemáticas de implantação de projetos, reorganizando carreiras, atribuições e recompensas, como mostram as experiências europeias e norte-americanas nas práticas transversais de atividade científica desde os anos 1980.

Já no caso brasileiro, observa-se uma forma muito específica de atuação dos pesquisadores do Inpe na configuração do campo das mudanças climáticas, assim como o papel de destaque que passam a ocupar na formulação da agenda climática do país. A tradição forte e exclusivista da modelagem nos estudos de mudanças climáticas, a passagem por reconhecidos centros internacionais de pesquisa, a grande capacidade de articulação em redes, entre outros fatores, ajuda em grande parte a explicar a tendência concentradora de capital científico nessa área de pesquisa. Apesar da forma transversal de montar equipes e programas, algo relativamente novo no mundo científico, um determinado tipo de capital científico, relacionado a atributos convencionais, ainda prepondera no processo de seleção e manutenção dos grupos de pesquisa.

A condição transversal da ciência oferece ferramentas e arranjos capazes de gerar uma diversificação de abordagens e de resultados de pesquisa. No entanto, o risco da formação de convergências científicas e tecnológicas persiste, sem que surjam novas lideranças científicas moldadas sob diferentes características.

Se, por um lado, a transversalidade das áreas de estudos de mudanças climáticas contribuiu para um grande salto nesse período, alçada à condição de setor estratégico na produção de conhecimento no Brasil, com elevado reconhecimento internacional e contínuo financiamento das agências nacionais de fomento, ao mesmo tempo, propiciou benefícios, capitais simbólicos e acúmulos científicos reputacionais que tem reforçado modelos e instituições científicas convencionais.

Comentários finais

A agenda de pesquisa em mudanças climáticas se consolidou no Brasil no final dos anos 2000, a partir de processos nos quais o Inpe, por meio do Cptec, se constitui como uma das principais instituições líderes nessa temática no país. Para isso concorreram diversos fatores, como conexões de lideranças científicas brasileiras das ciências climáticas com centros internacionais que já vinham conduzindo pesquisas na área, a formação de grupos de pesquisa em torno do tema, recursos para o desenvolvimento de pesquisa em variabilidade e mudanças climáticas, divulgação dos relatórios do IPCC, a criação do PBMC, da Rede Clima, e da política científica estabelecida durante o segundo governo Lula entre outros fatores.

No âmbito específico do Inpe, apesar da conjuntura econômica desfavorável em diversos momentos, foi possível arregimentar e formar pesquisadores de grande potencial científico, inicialmente a partir do Cptec, além de equipes cujos cientistas já eram reconhecidos nas ciências climáticas. A implementação de grandes projetos e programas de pesquisa também perfaz um diferencial que resultou em reconhecimento internacional do Inpe, inicialmente no campo da modelagem meteorológica e climática, que depois se estendeu para a área das mudanças climáticas.

A aquisição de supercomputadores e a renovação constante de seu sistema computacional de alto desempenho - o que sempre demandou uma atuação estratégica frente ao governo e à sociedade - também se constituiu aspecto fundamental à manutenção em alto nível das pesquisas do Cptec, permitindo o desenvolvimento e o uso de modelos que deveriam produzir previsões meteorológicas de melhor qualidade. A participação de lideranças científicas em posições-chave em comissões e programas de pesquisa da Fapesp e do CNPq também foi e é outro aspecto importante no contexto das políticas científicas e distribuição de recursos a projetos de pesquisa. Tal atuação envolve alianças e negociação entre lideranças científicas de diferentes instituições, responsáveis pela distribuição de recursos a projetos de pesquisa de um mesmo campo científico.

Em grande medida isso ajuda a explicar a manutenção e ampliação de capital científico restrito a alguns pesquisadores, aptos a engendrarem novos acordos científicos e a atualizarem e consolidarem legitimação acadêmica. Esse processo mostra como o campo científico adquire a capacidade de se ajustar a novos desafios, reorganizando suas equipes e selecionando novas lideranças. A profusão de projetos, alianças institucionais, formas de financiamento e possibilidades de publicação de artigos produz uma diversificação de oportunidades de colocação no sistema científico.

Com a perspectiva de ampliação das pesquisas em mudanças climáticas a partir dos anos 1990, sob um regime disciplinar transversal, poderia se supor um sistema de financiamento e arranjos de pesquisa mais flexíveis, bem como premiação aberta. No entanto, a análise do caso do Inpe mostra que as burocracias de pesquisa ainda favorecem um sistema de autoridade hierárquica eficiente, embora tendo sido ajustada e sintonizada às regras transversais de reconhecimento internacional. A capacidade de posicionamento intenso junto a uma multiplicidade de agências e o controle da gramática científica hegemônica continua sendo moeda distintiva essencial.

Os participantes nesses espaços abertos pelo campo científico podem circular com mais liberdade entre diferentes projetos. Ao mesmo tempo, a formação de novas áreas temáticas viabiliza cruzamentos de subáreas de geografia epistemológica variável, com equipes montadas e desfeitas continuamente. As afinidades eletivas estabelecidas entre expoentes e ascendentes do campo científico, interlocutores de movimentos ambientalistas e políticos, combinadas à preocupação mundial com as mudanças do clima, geram uma nova composição de programas e linhagens de pesquisa. A posição de destaque de dois pesquisadores líderes no campo científico e disciplinar das mudanças climáticas, com grande capital científico e capacidades decisórias - Carlos Nobre e José Marengo - atesta as fórmulas de comportamento do campo em se ajustar a uma prática competitiva em escala internacional e de distribuição de recursos concentradamente em escala local. Isso corrobora a percepção de que o campo dos estudos climáticos se adaptou seletivamente às tendências lançadas no topo da escala da dinâmica hegemônica do campo.

As elites dessas áreas emergentes enfrentam novos desafios, acadêmicos e institucionais. Precisam garantir coerência e densidade científica, uma vez que estão submetidos a avaliações por pares, mais aberta e concorrencial. Ao mesmo tempo, são obrigados a montarem estruturas mais amplas e flexíveis, incertas, que não estão plenamente demarcadas por preferências teóricas ou metodológicas. O recrutamento de pesquisadores e grupos no interior dos programas tem que ser mais alargado e a distribuição de créditos assumem um caráter conciliador e inclusivo sem, no entanto, remover ou provocar grandes mudanças nas bases de um sistema científico concentrador de capital simbólico.

Referências

  • ANDRADE, Thales Haddad Novaes de. Elites científicas do clima: formação do campo em escala nacional e internacional. Estudos de Sociologia. v. 25, n. 49, p. 297-321, jul./dez. 2020.
  • ANDRADE, Thales Haddad Novaes de & ESCADA, Paulo. Trajectories and reconversions of the Center for Weather Forecasting and Climate Studies (Cptec): forming the meteorological science elite in Brazil. History of Meteorology, v. 10, 2021.
  • BARBUY, Beatriz Leonor Silveira; GALVÃO, Ricardo Magnus Osório. Relatório da sessão “Grandes projetos científicos de colaboração internacional”. Parcerias Estratégicas, v. 15, n. 31, 2010.
  • BATISTELLA, Mateus et al. Resultados do LBA e uma perspectiva da futura pesquisa amazônica. Amazon and Global Change, Geophysical. “Monograph Series”, #186, 2009.
  • BECK, Silke; MAHONY, Martin. The IPCC and the new map of science and politics. WIREs Clim Change; 9:e547, 2018.
  • BLUME, Stuart S. Towards a political sociology of science. New York; London: The Free Press; Collier Macmillan Publishers, 1974.
  • BOURDIEU, Pierre. Nobleza del Estado: educación de élite y espíritu de cuerpo. Buenos Aires: Siglo XXI, 2013.
  • ______. Para uma sociologia da ciência. São Paulo: Edições 70, 2004.
  • BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia, “Coleção Grandes Cientistas Sociais” , p.122-155. São Paulo: Ática, 1983.
  • COZZENS, Susan; WOODHOUSE, Edward. Science, government, and the politics of knowledge. In: JASANOFF, SHEILA. Handbook of science and technology studies. Thousand Oaks, CA: Sage Publications, 1995.
  • DUARTE, Tiago Ribeiro. O painel brasileiro de mudanças climáticas na interface entre ciência e políticas públicas: identidades, geopolítica e concepções epistemológicas. Sociologias, Ano 21, n. 51, p. 124-158, maio/ago. 2019.
  • HULME, Mike. How climate models gain and exercise authority. In: HASTRUP, Kirsten; SKRYDSTRUP, Martin (eds.). The social life of climate change models: antecipating nature, p.30-44. New York: Routledge, 2013.
  • JOERGENS, Bernward; SHINN, Terry. Instrumentation between science, state and industry. Dordrecht, NL: Kluwer, 2001.
  • LAHSEN, Myanna. A science-policy interface in the global-south: the politics of carbon sinks and science in Brazil. Climatic Change, n. 97, 2009.
  • LUIZÃO, Flávio et al. Projeto LBA: estudando as complexas interações da biosfera com a atmosfera na Amazônia. Acta Amazonica, v. 35, n. 2, 2005.
  • MERTON, Roberto K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.
  • MIGUEL, Jean Carlos Hochsprung; ESCADA, Paulo; MONTEIRO, Marko S. Políticas da Meteorologia no Brasil: trajetórias e disputas na criação do Cptec. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 9, n. 1, p. 36-50, Rio de Janeiro, jan./jun. 2016.
  • ORESKES, Naomi; CONWAY, Eric M. Merchants of doubt - how a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming. New York: Bloomsbury Press, 2010.
  • PIVETTA, Marko. José Antonio Marengo Orsini: Tempo de incertezas. Pesquisa Fapesp, #273, nov. 2018. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/2018/11/19/jose-antonio-marengo-orsini-tempo-de-incertezas/>.
    » https://revistapesquisa.fapesp.br/2018/11/19/jose-antonio-marengo-orsini-tempo-de-incertezas
  • PRYCK, Kari De; HULME, Mike. (ed.) A critical assessment of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge, UK: Cambridge University Press & Assessment 2023.
  • SAINT MARTIN, Monique de. Da reprodução à recomposição das elites: as elites administrativas, econômicas e políticas na França. Revista Tomo 25, n. 13, jul./dez. 2008.
  • SALOMON, Jean-Jacques. Ciencia y política. México: Siglo XXI, 1974.
  • SHINN, Terry. Formes de division du travail scientifique et convergence intelectuelle. Revue Française de Sociologie, v. 41, n. 3, p. 447-473, 2000.
  • ______. Savoir scientifique et pouvoir social. L’école Polytechnique, 1794-1914. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1980.
  • SHINN, Terry; MARCOVICH, Anne. Regimes of science production and diffusion: towards a transverse organization of knowledge. Scientiæ Studia, v. 10, special issue, p. 33-64, São Paulo, 2012.
  • SHINN, Terry & RAGOUET, Pascal. Controvérsias sobre as ciências. São Paulo: Editora 34, 2008.
  • SOLLA PRICE, Derek De. Little Science, Big Science… and beyond. New York: Columbia University Press, 1986.
  • SUNDBERG, Mikaela. Making meteorology: social relations and scientific practice. Stockholm: Stockholms Studies in Sociology, 2005.
  • VANZ, Samile Andrea de Souza; STUMPF, Ida Regina Chittó. Colaboração científica: revisão histórico-conceitual. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 15, n. 2, p. 42-55, maio/ago. 2010.
  • VESSURI, Hebe; SANCHEZ ROSE, Isabelle. Las Fronteras de la Ciencia y un Nuevo Contrato Social con la Universidad: el ejemplo del cambio climático. Educacion Superior y Sociedad, v. 15, n. 1, p. 179-197, 2010.
  • WHITLEY, Richard. The intelectual and social organization of the sciences. New York: Oxford University Press, 2009.
  • 1
    Les grands corps” são as instituições francesas de Estado com poder de grande influência e comando nas principais instituições da administração pública: o Conselho de Estado, o Tribunal de Contas, a Inspetoria Geral das Finanças, a Inspetoria Geral dos Assuntos Sociais (emprego e políticas públicas sociais) etc.
  • 2
    Estes dois centros foram extintos e incorporados à Coordenação-Geral de Ciências da Terra em uma reformulação da estrutura do Inpe, ocorrida em 2020.
  • 3
    Uma das vice-presidentes do IPCC (20215-2022), Thelma Krug, pesquisadora do Inpe, é originária de outra área de pesquisa da instituição: Observação da Terra, tal como Diógenes A. Sala, pesquisador e colaborador de relatório do IPCC.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2023
  • Aceito
    11 Out 2023
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais - Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900 - Brasília - DF - Brasil, Tel. (55 61) 3107 1537 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistasol@unb.br