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Gilberto Freyre e o tempo-espaço brasileiro: uma crítica ao cronótopo da modernidade* * O presente artigo é fruto de pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq/Bolsa de Produtividade em Pesquisa. Agradeço as/os pareceristas pela leitura crítica e sugestões, as quais auxiliaram a recalibrar os objetivos e ambições deste trabalho, bem como esclarecer os argumentos defendidos.

Resumo

O artigo revisita uma das teses que permeiam de ponta a ponta a obra de Gilberto Freyre, a saber, a sociedade brasileira, fruto de formação sui generis, lograva atenuar, quando não resistir, com insuspeita criatividade, às investidas de padrões mentais, comportamentais, estéticos e institucionais estranhos às suas tradições, os quais vinham se insinuando sobre ela de maneira cada vez mais sistemática a partir do século XIX. Importa-me sobremaneira que essa hipótese lhe servisse para avançar outra de suas ideias-força, qual seja, a de que nossa formação social representava uma modalidade tão diversa quanto bem-sucedida da modernidade. O artigo almeja revisitar tal programa intelectual com o propósito de compreender como esse intérprete mobiliza, ao longo de sua vasta obra, as categorias tempo e espaço, e quais usos, conotações e sentidos emprestados a tais noções mais se sobressaem em seus esforços de interpretação da experiência moderna no Brasil. Por fim, pretendo sondar potenciais contribuições de Freyre para o discurso sociológico da modernidade.

Palavras-chave:
Gilberto Freyre; pensamento social brasileiro; modernidade; teoria sociológica

Abstract

This article revisits one of the main thesis that crisscrosses Gilberto Freyre’s celebrated work, namely, that Brazilian society, itself the outcome of a unique historical formation, succeeded in softening, sometimes even resisting with a great deal of creativity, a set of mental, behavioral, aesthetic as well as institutional standards that imposed themselves from the 19th century onwards. While paying due attention to the connotations of time and space found in the work of Freyre I am especially interested in analyzing how he envisages contemporary Brazil as a successful modern experience of its own rather than an imperfect or distorted version of Western modernity. Last but not least, I will probe into the potential contributions of Freyre’s formulations to the sociological discourse of modernity.

Keywords:
Gilberto Freyre; Brazilian social thought; modernity; sociological theory

I

“A Praça venceu o engenho”, assevera Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos, mas não sem deixar de nos alertar que tal fenômeno deu-se

[...] quase sempre respeitando nos vencidos umas tantas virtudes e gabolices; procurando imitá-las; às vezes até romantizando-as e exagerando-as nessa imitação de “inferiores” por “superiores” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: 30).

Nesta, como em outras de suas celebradas obras, Freyre torna explícita uma hipótese que atravessaria de ponta a ponta seu programa intelectual: a sociedade brasileira, fruto de formação sui generis, lograva atenuar, quando não resistir, com insuspeita criatividade e galhardia, às investidas de padrões mentais, comportamentais, estéticos e institucionais estranhos às suas tradições, padrões que vinham se insinuando sobre ela de maneira cada vez mais sistemática a partir do século XIX, na esteira da escalada hegemônica da Europa ocidental e da América do Norte (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: 34 e 47). Como bem sabemos, revisitada (por vezes à exaustão) em várias de suas principais obras, tal hipótese servia-lhe para avançar outra de suas ideias-força, qual seja, a de que nossa formação social representava uma modalidade tão diversa quanto bem-sucedida da modernidade. Aqui, por razões que nosso autor também costumava associar às especificidades do espaço tropical, a frenesi moderna ganhava cadência própria, uma temporalidade e um ritmo diversos daqueles que tiveram lugar na “Europa carbonífera e burguesa” (Freyre, 2003FREYRE, G. . Americanidade e latinidade da América Latina: crescente interpenetração e decrescente segregação. In: FREYRE, G. Americanidade e latinidade da América Latina e outros textos afins. Brasília; São Paulo: EdUnB; Imprensa Oficial do Estado, 2003a [1942].).

Passadas várias décadas desde a publicação dos principais trabalhos de Freyre, permanece o interesse na avaliação do legado de sua obra (Kominsky, Lépine & Peixoto, 2003FREYRE, G.. Americanismo e hispanismo. In: FREYRE, G. Americanidade e latinidade da América Latina e outros textos afins. Brasília; São Paulo: EdUnB; Imprensa Oficial do Estado , 2003d [1942].), do apelo de seus retratos do Brasil no presente (Cardoso, 2013CARDOSO, F. H. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 2013.) bem como de “seu lugar na história da teoria social” (Burke & Pallares-Burke, 2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.: 306). O objetivo precípuo do artigo é revisitar seu programa intelectual com o intuito de compreender de que maneiras as categorias tempo e espaço são mobilizadas, e quais usos, conotações e sentidos emprestados a tais noções mais se sobressaem em seus esforços de interpretação da experiência moderna no Brasil. Ainda assim, de uma forma ou de outra, aquelas preocupações acerca do legado e da relevância atual das formulações de Freyre também norteiam minhas investigações: num plano mais geral, interessa-me indagar sobre o quadro de referência epistemológico1 1 . Por quadro de referência epistemológico, refiro-me tão somente às noções, categorias, códigos, conceitos, esquemas classificatórios e procedimentos de inferência (com ambições científicas ou não) que, como condições de possibilidade cognitiva, poderão ter delimitado os horizontes de imaginação de Freyre acerca da “singularidade brasileira”, tanto em suas narrativas históricas como em outras modalidades de trabalho desse intérprete do Brasil. a partir do qual emergem suas imagens da (pretensa) singularidade brasileira a fim de identificar ao menos algumas das condições de possibilidade de suas formulações. Por fim, almejo apreciar o alcance de suas proposições à luz de problemas e questões recentes que revolvem o imaginário sociológico da modernidade.

Vale dizer, o destaque aqui conferido ao tempo e ao espaço justifica-se pela centralidade que gozam no próprio imaginário da modernidade. Além de considerados como “dimensões materiais fundamentais da vida humana” (Castells, 1999CASTELLS, M. The rise of network society. Massachusetts: Blackwell Publishers Ltd., 1999.: 376), quando não “categorias básicas da existência humana” (Harvey, 1995HARVEY, D. The condition of postmodernity. Cambridge: Blackwell, 1995.: 202), um e outro revelam-se elementos basilares desse imaginário: certos sentidos conferidos ao tempo e ao espaço ajudam a delimitar os horizontes de cognição e a circunscrever as possibilidades de imaginação a respeito da modernidade (Gumbrecht, 1998GUMBRECHT, H. U.. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.; Habermas, 1990HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990.; Koselleck, 2006KOSELLECK, R. “Modernidade”: sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade. In: KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio , 2006a.a; Koselleck, 2006KOSELLECK, R.. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: KOSELLECK, R. Futuro passado : contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006b.b); a partir de ambos, estabelecem-se parâmetros por meio dos quais a experiência moderna é cotejada e contrastada com outras configurações societárias (Bergmann, 1992BERGMANN, W. The problem of time in sociology: An overview of the literature on the state of theory and research on the “Sociology of Time”, 1900-82. Time & Society, v. 1, n. 1, p. 81-134, 1992.; Berman, 1986BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.; Gid­dens, 1991; Gumbrecht, 2010GUMBRECHT, H. U. Nosso amplo presente. São Paulo: Editora Unesp , 2015.; Gumbrecht, 2015GUMBRECHT, H. U.. Produção de presença: o que o sentido não conseguiu transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2010.; Harvey, 1995HARVEY, D. The condition of postmodernity. Cambridge: Blackwell, 1995.; Luhmann, 1976LUHMANN, N. The future cannot begin: temporal structures in modern society. Social Research, v. 43, n. 1, p. 130-152, 1976.). Não é de estranhar, pois, que também Freyre tenha devotado tamanha atenção a essas categorias em suas elucubrações a respeito da formação brasileira - cabe lembrar, em seu tempo, quase invariavelmente representada em descompasso com as chamadas “sociedades avançadas do Ocidente”. Ora, certas noções de tempo e espaço contribuíram igualmente para delimitar seus horizontes de imaginação e suas narrativas históricas do Brasil e de outras sociedades que lhe serviam de parâmetro para retratar a pretensa “singularidade brasileira”. Não por outro motivo, a análise desses problemas pode auxiliar a esclarecer as complexas relações que sua obra entretece com o próprio imaginário da modernidade.

Em linhas gerais, este não é um problema de todo negligenciado por sua fortuna crítica (Andrade, 2003ANDRADE, M. C. O espaço geográfico na obra de Gilberto Freyre. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.; Araújo, 1994ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; Bastos, 2006BASTOS, E. R. As criaturas de prometeu. São Paulo: Global, 2006.; Lima, 2013LIMA, N. T. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2013.; Santos, 2008SANTOS, A. C. As naturezas de Freyre: natureza e ecologia em “Nordeste” (1937) de Gilberto Freyre. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Departamento de Sociologia, Instrituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2008.; Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.). De uma forma ou de outra, argumenta-se que, para Freyre, haveria no Brasil uma configuração espaço-temporal ímpar, um arranjo tão distinto quanto esta sociedade (Burke & Pallares-Burke, 2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.; Larreta & Giucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; Tavolaro, 2013TAVOLARO, S. B. F. . Gilberto Freyre e nossa “Modernidade Tropical”: entre a originalidade e o desvio. Sociologias, v. 15, n. 33, p. 282-317, 2013.; Villas-Bôas, 2006VILLAS-BÔAS, G. Mudança provocada. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.) - ou seja, na interpretação freyreana, a peculiaridade do arranjo espaço-temporal brasileiro caminharia pari passu com a propalada singularidade de sua sociedade. Embora, de fato, esse me pareça um ponto de partida analítico promissor, desejo acrescentar alguns elementos a essa interpretação, os quais codifico em três hipóteses de trabalho interligadas. Primeiramente, em seus esforços para delinear as especificidades do tempo-espaço brasileiro, Freyre caminha quase sempre no sentido de atribuir substância a ambas as noções, conferindo-lhes predicados a seu ver inextrincavelmente vinculados a contextos e situações particulares - não por acaso, com certa frequência associados de maneira exclusiva ao trópico. Ao assim fazê-lo, de um só golpe, se afasta de acepções neutras, abstratas e gerais do tempo-espaço e exclui por completo a possibilidade da mera replicação e/ou transposição imediata destas para o cenário brasileiro. Em segundo lugar, se é verdade que, conforme alguns de seus analistas já tiveram oportunidade de sugerir, Freyre reclama para a sociedade brasileira o estatuto de configuração moderna sui generis, também com o intuito de desconstruir o estigma de incompletude que a maculava (Burke & Pallares-Burke, 2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.; Larreta & Gucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; Souza, 2000SOUZA, J. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo social, v. 12, n. 1, p. 69-100, 2000.; Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.), na mesma medida, parece-me que o autor ambiciona retratar a experiência espaço-temporal dessa sociedade não como um ensaio malsucedido, imperfeito ou incompleto do cronótopo2 2 . Mikhail Bakhtin emprega o termo cronotopo (“tempo-espaço”) para referir-se à “interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura” (Bakhtin, 1988: 211). No presente artigo, nos passos de Hans U. Gumbrecht (1998; 2015), emprego esta expressão com uma conotação mais ampla, de modo a torná-la aproveitável também para a análise sociológica: compreendo cronótopos como configurações tempo-espaciais, bem como construções conceituais e simbólicas a seu respeito, articuladas a experiências sociais historicamente situadas. da modernidade, mas, de outro modo, como um arranjo moderno dentre outros, alternativo àquele que, sob a hegemonia de algumas poucas sociedades, ascendia à posição modelar no cenário contemporâneo.

Em terceiro lugar, ao invés de adstritos à controvérsia acerca do estatuto moderno (ou pseudomoderno) da sociedade brasileira, esses engajamentos críticos de Freyre tocam em questões igualmente caras a debates contemporâneos em torno do discurso sociológico da modernidade. Parece-me que, ao desafiar o privilégio epistemológico da constelação espaço-temporal que, a seu ver, era característica da modernidade cristalizada na Europa setentrional e na América do Norte, suas formulações oferecem insights para ao menos dois problemas de reflexão que atualmente revolvem esse discurso: (a) a indagação das pretensões universalistas de seus conceitos e categorias e, ato contínuo, a problematização das insinuações prescritivas que, assentadas sobre tais referências supostamente universais, projetam-se sobre configurações modernas não modelares; e (b) a elaboração de ferramentas que habilitem esse discurso sociológico a codificar contextos societários não modelares sem cair presa daquelas pretensões e insinuações supracitadas. Ou seja, malgrado o fato de, na grande maioria das vezes, alimentar a imagem da brasileira como uma configuração social sem paralelo, e conquanto tenha adotado variáveis explicativas hoje quase completamente deslegitimadas pelo discurso sociológico (Tavolaro, 2016TAVOLARO, S. B. F. Imagens de uma outra modernidade: Gilberto Freyre e o espaço-tempo latino-americano. Política & Sociedade, v. 15, n. 34, p. 196-231, 2016.) - o que, a princípio, não faria outra coisa senão confirmar o provincianismo de seu pensamento, ancorado em uma episteme datada, além de animado por um rol de questões obsoleto e/ou circunscrito a características (supostamente) essenciais e irredutíveis à sua própria sociedade -, ao menos algumas das proposições interpretativas de Freyre parecem contribuir para agendas de reflexão atuais que buscam interpelar criticamente o discurso sociológico da modernidade e ajustá-lo à luz de novas preocupações e problemas.

Por fim, uma breve nota metodológica para esclarecer as escolhas e os alcances do artigo - e, é claro, também suas limitações: sirvo-me aqui de diferentes obras de Freyre, produzidas no decorrer de sua longa vida intelectual. É óbvio que essa produção, considerada em sua totalidade, não permaneceu imune a mudanças de ênfase, seja por motivos estritamente “textuais” (desdobramentos “internos” à própria obra) seja por aspectos “contextuais” (políticos, geopolíticos, institucionais, interpessoais etc.), por assim dizer (Buke & Pallares-Burke, 2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.; Kominsky, Lépine & Peixoto, 2003; Larreta & Gucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; Pallares-Burke, 2005; Souza, 2000SOUZA, J. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo social, v. 12, n. 1, p. 69-100, 2000.)3 3 . A título de ilustração, ao cotejar as obras Casa-grande & senzala e Nordeste, Burke e Pallares-Burke (2009: 202-203) sustentam que é apenas na segunda que a paisagem torna-se um “personagem do drama”, na mesma medida em que se passa a conferir “ênfase considerável aos aspectos negativos da economia e da sociedade do Nordeste.” Jessé Souza (2000: 210-212), por sua vez, identifica o que denomina de “torção” nos escritos, obras e trabalhos “da maturidade” de Freyre em relação àqueles “da juventude” do autor (destacando-se, nesse último caso, Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos), algo que Souza associa a motivações políticas ou geopolíticas. Mas note-se que, ainda conforme suas sugestões, tal “torção” jamais chega a constituir um “corte epistemológico” na obra de Freyre (Souza, 2000: 212). . Ainda assim, tratando-se de uma figura pública sabidamente presunçosa de suas próprias ambiguidades e contradições (Freyre, 1968FREYRE, G. . Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: EdUnB, 1968.), talvez não deixe de causar certa surpresa a expressiva permanência, regularidade e continuidade de um conjunto notável de interesses, imagens e noções acerca do Brasil na ampla dispersão da obra de Freyre4 4 . Isso não nos obriga, é claro, a tomá-la como uma “formação discursiva”, nos moldes propostos por Foucault. . Ora, muito embora de modo algum desconsidere a relevância de investigações que explorem as eventuais “influências contextuais” sobre essa obra ou mesmo os “significados contextuais irredutíveis” de algumas de suas formulações, a opção analítica do presente artigo é, por sua “dimensão textual”, condizente com os problemas e as preocupações estritas que orientam e circunscrevem prioritariamente este trabalho. Por outro lado, apesar de também considerar relevantes pesquisas movidas pelo interesse de identificar mudanças de ênfase ou de sentido nas noções empregadas pelo autor, o presente trabalho pretende-se um esforço analítico de ideias, conceitos e imagens cujas conotações e sentidos, ao cabo da pesquisa que informou o artigo, revelam grau expressivo de regularidade5 5 . Vale dizer, apesar de tomá-la como um dado importante de pesquisa, o artigo não se satisfaz com a retórica do próprio autor acerca das continuidades que permeiam suas formulações. - caso, justamente, de certas acepções conferidas às noções de tempo e espaço bem como de visões da sociedade brasileira às quais aquelas noções mostram-se fortemente associadas6 6 . Uma vez mais, reconheço a importância e relevância de investigações voltadas aos “aspectos contextuais” que envolveram e pesaram sobre a obra de Freyre, assim como daqueles esforços que buscam descortinar as descontinuidades e eventuais rupturas no universo semântico desse intérprete do Brasil. No entanto, a adição dessas novas preocupações à agenda de pesquisa e reflexão do presente artigo o conduziria para direções muito diversas das metas e objetivos específicos aqui estabelecidos. . Por fim, devo observar que endosso as avaliações que tendem a conferir centralidade às célebres obras de Freyre publicadas nos anos 1930 (Araújo, 1994ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; Bastos, 2006BASTOS, E. R. As criaturas de prometeu. São Paulo: Global, 2006.; Larreta & Gucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; Souza, 2000SOUZA, J. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo social, v. 12, n. 1, p. 69-100, 2000.). A meu ver, também no tocante às questões, temas e noções aqui contemplados, essa produção deixou marcas definitivas em momentos posteriores, contribuindo para as continuidades e regularidades que tanto interessam ao artigo. Ao mesmo tempo, porém, entendo que a fatura da década de 1930 de modo algum esgota ou sintetiza a agenda intelectual de toda sua vida.

II

Bem sabemos que a recepção da fatura freyreana já experimentou umas tantas oscilações, por motivos tão diversos quanto as questões contempladas por sua vasta obra: abundam, por exemplo, indagações acerca das controversas conotações político-ideológicas de suas proposições; não menos frequentes são trabalhos dedicados à análise de suas visões do Brasil, acompanhados ou não da avaliação dos impactos continuados de sua empresa interpretativa (seja dentro dos limites estritos do pensamento social brasileiro ou para além deles). Embora reconheça que essas agendas não sejam de todo excludentes, os objetivos e interesses precípuos deste artigo o aproximam de maneira mais clara de preocupações analíticas com os contornos de seus retratos do Brasil. Nesse sentido, conforme já se observou outrora (Tavolaro, 2016TAVOLARO, S. B. F. Imagens de uma outra modernidade: Gilberto Freyre e o espaço-tempo latino-americano. Política & Sociedade, v. 15, n. 34, p. 196-231, 2016.: 213-214), a profusão e variedade de ocasiões em que Gilberto Freyre emprega as categorias tempo e espaço não escaparam à percepção de seus analistas mais recentes. Manuel C. Andrade (2003ANDRADE, M. C. O espaço geográfico na obra de Gilberto Freyre. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 223) fala-nos, mesmo, da “presença permanente” do aspecto “geográfico” na maior parte de seus livros e artigos, ou ainda de uma constante “preocupação com a descrição e análise da paisagem”, somada a seu interesse pelas “relações entre o homem e o meio” (Andrade, 2003ANDRADE, M. C. O espaço geográfico na obra de Gilberto Freyre. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 225 e 228-229). Ao mesmo tempo, Freyre é apresentado como responsável por instituir sociologicamente o Nordeste brasileiro, retratado como a região que deu “ao país as raízes de uma nova civilização dos tempos modernos” (Tuna, 2000TUNA, G. Gilberto Freire: entre tradição & ruptura. São Paulo: Editorial Cone Sul, 2000.: 91). Em outro registro, fala-se que, em sua obra mais conhecida, as diferenças raciais aparecem codificadas como produto cultural não só de adaptações climáticas específicas, mas também de aspectos ecológicos particulares (Lehmann, 2008LEHMANN, D. Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue. Horizontes Antropológicos, n. 29, p. 369-385, 2008.). Elide R. Bastos (2006BASTOS, E. R. As criaturas de prometeu. São Paulo: Global, 2006.: 11), por sua vez, sustenta que conquanto as problemáticas do patriarcalismo e da interpenetração de etnias e culturas revelam-se dois dos pilares da “unidade explicativa do pensamento freyreano”, uma e outra encontram-se inextrincavelmente associadas ao “trópico”. Articuladas entre si, essas três variáveis constituiriam, nessa arquitetura interpretativa, os “marcos definidores da formação nacional” (Bastos, 2006BASTOS, E. R. As criaturas de prometeu. São Paulo: Global, 2006.: 81). Aliás, a tomar pela leitura de Ana Carolina Santos (2008SANTOS, A. C. As naturezas de Freyre: natureza e ecologia em “Nordeste” (1937) de Gilberto Freyre. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Departamento de Sociologia, Instrituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2008.: 79), a relevância explicativa do trópico - de acordo com Araújo (1994ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.: 58-59), tratado pelo autor pernambucano como um ambiente repleto de “excessos”, graças aos quais condições físicas e geográficas se transfigurariam em padrões culturais singulares, que assim se impregnariam no “conjunto da vida social” - torna explícita a acentuada importância atribuída à região, concebida por Freyre “como um todo harmônico no qual natureza e homem compõem o drama da vida em sua riqueza de detalhes [...].” Não por acaso, ainda conforme a análise de Santos (2008: 79), em sua sociologia regional, nosso intérprete “seleciona tipos de região que indiquem as relações entre os fatos sociais essenciais e as condições físicas fundamentais associadas àqueles.” Vale dizer, na avaliação de Burke e Pallares-Burke (2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.), essa atenção aguda ao “elemento ecológico” da experiência social cedo se insinuou nos interesses de Gilberto Freyre, como se pode notar em seu entusiasmo precoce por escritores regionais (tais quais Thomas Hardy, Maurice Barrès e Hermann Sudermann), por questões caras à política regionalista (caso de Charles Maurras), bem como por pensadores que se voltavam à investigação de regiões e de suas ecologias (dentre eles Franz Boas e Roquette-Pinto). Tais leituras teriam sensibilizado Freyre

para o elemento ecológico no trabalho de pensadores que ele encontrou mais tarde, como Patrick Geddes, Lewis Mumford, Radhakamal Mukerjee e Carl Sauer (Burke & Pallares-Burke, 2008: 269).

Note-se que, conforme essa mesma fortuna crítica, atenção análoga é devotada por Freyre à problemática do tempo. Em verdade, para muitos analistas, ambas as categorias se apresentam claramente imbricadas em suas reflexões de maior impacto. Nesse exato sentido, Bastos (2006BASTOS, E. R. As criaturas de prometeu. São Paulo: Global, 2006.: 152) também argumenta que, além de um espaço com qualidades especiais, “o trópico, para Gilberto Freyre, é o locus onde se cruzam o tradicional e o moderno [...].” A expressa valorização das qualidades regionais do Nordeste brasileiro, observada desde seus trabalhos da década de 1920, se ancoraria no apego indisfarçável do autor às tradições de um tempo passado que, embora cada vez mais obnubilado, teimava em fazer-se presente (Almeida, 2003ALMEIDA, J. M. G. Regionalismo e modernismo: as duas faces da renovação cultural dos anos 20. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp, 2003.). De maneira algo similar, a propósito do programa de reflexão de Sobrados e mucambos, Ricardo B. Araújo (1994ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.: 109) entende que naquela obra, a passagem do tempo é percebida e estudada de forma “espacializada”, isto é, “através das modificações sofridas pela arquitetura e pelas formas de sociabilidade doméstica da cultura brasileira.” Ou seja, conquanto Freyre, desde cedo, tenha se encantado pelas qualidades particulares de regiões específicas - sendo o Nordeste brasileiro notoriamente o foco prioritário de suas elucubrações - ante o desafio de compreender a emergência bem-sucedida de uma civilização moderna nos trópicos (Larreta & Giucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.), também de maneira prematura nosso intérprete teria sido tocado por questões relativas ao tempo. É sintomático que, conforme alertam Burke e Pallares-Burke (2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.: 271), o ainda jovem Gilberto, estudante da Universidade de Columbia, sob a influência do mestre Franklin Giddings, anotara em sua dissertação de mestrado “a coexistência de diferentes tempos no Brasil do século XIX” - impressão, aliás, que jamais o abandonaria. Não menos importante, em meio às suas recorrentes imersões no passado brasileiro, quase sempre preocupado com a “reconquista europeia” que a partir do século XIX, a seu ver, abateu-se sobre nossa sociedade de maneira cada vez mais sistemática e intensa (Araújo, 1994ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.: 137), Freyre teria se empenhado em avaliar as “perdas e a sobrevivência do tradicional face ao moderno” (Bastos, 2006BASTOS, E. R. As criaturas de prometeu. São Paulo: Global, 2006.: 176). O saldo final seria uma interpretação da formação brasileira “em flagrante oposição às obras que se baseiam nas concepções moderna e progressista de tempo [...]” (Villas-Bôas, 2006VILLAS-BÔAS, G. Mudança provocada. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.: 49).

À luz desses insights iniciais, gostaria de indagar a obra de Freyre de um ângulo que não me parece deliberada e enfaticamente adotado por essa fortuna, a saber, a partir do tratamento articulado de três problemas analíticos relacionados aos usos e sentidos conferidos às categorias tempo e espaço:

  1. 1. como condições de possibilidade básicas para suas imagens da experiência moderna no Brasil;

  2. 2. como pontos de apoio para seus engajamentos críticos e propositivos com o imaginário da modernidade, amplamente considerado; por fim,

  3. 3. como eventuais contribuições para certa agenda recente que vem mobilizando teorizações sociológicas a respeito da modernidade.

Antes, porém, devo chamar atenção para dois aspectos acerca do lugar e da importância dessas categorias na fatura freyreana:

  1. a. mais do que um simples pano de fundo passivo sobre o qual se encenam as relações sociais, ou para além de meras variáveis dependentes de fenômenos sociais específicos, ambas as categorias assumem muitas vezes posição protagonista e ativa em seus esforços interpretativos, capazes de condicionar, quando não de moldar a ordem social brasileira, sua dinâmica bem como o comportamento de seus agentes. Daí a frequente atenção de Freyre aos predicados físico-naturais do trópico americano e à temporalidade que julgava característica desse espaço - esta, da mesma maneira que aqueles, concebida não só como resultado, mas também como elemento propulsor da singularidade brasileira. Além disso, é preciso também reconhecer que

  2. b. ao invés de categorias cognitivas neutras mobilizadas com o propósito único de decifrar o social, tempo e espaço aparecem, em suas obras, impregnadas de juízos de valor: de fato, abundam considerações valorativas - ético-morais assim como estético-expressivas - a respeito de aspectos por ele atribuídos a diferentes configurações espaço-temporais (do Brasil e de outros contextos societários).

Isso posto, cabe enfim a indagação: de que maneiras as noções de tempo e espaço empregadas por Freyre ajudam a delimitar suas formulações a respeito da experiência societal brasileira e seu lugar na modernidade?

III

Certa feita, Gilberto Freyre argumentou que o ponto “sempre importante” a se considerar era o fato de o Brasil ser

um país tão essencialmente tropical em sua situação física - na sua situação física quase total - que sua agricultura, pecuária, arquitetura, hábitos alimentares, maneira de trajar e hábitos recreativos têm que corresponder a essa situação, tão diferente da europeia (Freyre, 2000FREYRE, G. . Prefácio à primeira edição em língua portuguesa. In: FREYRE, G. Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks , 2000c [1969].b: 51).

Não por outra razão, para ele,

em lugar de macaquear a maneira europeia de viver e vestir, os hábitos alimentares, a arquitetura (Freyre, 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 51) [e tantos outros aspectos, parecia-lhe que aquilo que tornava] o Brasil moderno particularmente interessante como experiência social de civilização moderna em um ambiente não europeu é o fato de que os brasileiros conseguiram, vencendo grandes dificuldades, desenvolver certo número de valores essencialmente europeus num ambiente essencialmente não europeu (Freyre, 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 51).

Ora, é em tom de denúncia aos “estrangeirismos” e às “roupagens exóticas” que teriam se assenhoreado da República, que o quase mítico Manifesto regionalista proclama que “de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais” (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 31-32, grifos meus). Tais regiões, segundo o mesmo manifesto, deveriam ser concebidas como “modos de ser”, ou ainda “formas de expressão” características da realidade nacional brasileira (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 30-31). Daí a exortação ao estudo prioritariamente regional da “cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma forma que a paisagem” (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 33). A bem da verdade, reflexões análogas já o haviam ocupado antes. É sugestivo que em sua “Introdução” à obra Região e tradição, ao referir-se ao movimento regionalista do Nordeste como uma espécie de neorromantismo de cunho realista, Freyre tenha tecido elogiosas considerações aos “velhos românticos alemães” (Justus Moses, Herder, Jakob Grimm, Ranke) por sua oposição à certa “filosofia de universalidade estática”, em favor do reconhecimento nos “fatos do desenvolvimento e da atividade humana [...] daquela variedade no tempo e no espaço” (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 37-38). Note-se, em especial, o destaque do autor à recusa daqueles pensadores à

cristalização em leis universais de conduta e em formas universais de expressão, do que é, por natureza, e em grande parte, vario, flexível, inconstante no tempo e diverso no espaço (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 37-38)7 7 . É certo que essas não foram, de modo algum, as únicas influências intelectuais “estrangeiras” de Freyre. A respeito do impacto de duas gerações de intelectuais espanhóis (a de 1898 e a de 1914) sobre o autor, enfeixando suas discussões acerca das relações tradição/modernidade, Oriente/Ocidente, europeísmo/não europeísmo, ver Bastos (1998). Quanto ao legado de pensadores latino-americanos sobre sua produção, ver Crespo (2003). Por fim, no tocante às influências românticas britânicas sofridas por Freyre desde o início de sua formação intelectual, ver Pallares-Burke (2005). .

Ora, em seu entendimento, mesmo admitida a existência do geral e do universal, ainda assim, um e outro seriam “em grande parte [...] resíduo do regional e do temporal” (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 37-38).

Seria incorrer em erro, contudo, inferir que tal opção metodológica pelo espaço regional inevitavelmente conduzia Freyre a estreitar seus horizontes de investigação ou mesmo a apequenar suas ambições analíticas. Já de início, interessava-lhe trazer à luz formas peculiares de existência social que, a despeito de espacialmente circunscritas, se lhe revelavam por demais importantes para serem simplesmente ignoradas. Havia, no entanto, outras questões em jogo que acabavam por potencializar o escopo e alcance de suas interlocuções: por um lado, a investigação dos predicados físicos e culturais das regiões constituía-se em um meio promissor para abordar a própria formação social brasileira e suas alardeadas originalidades no contexto mundial; por outro, tão ou mais importante que isso, a eleição metodológica da região, associada ao resgate e à valorização veementes da tradição, aparamentava-o, na mesma medida, a interpelar a própria modernidade e, ato contínuo, o amplo e variado campo discursivo a seu respeito. Não admira, pois, que suas críticas à modernização, ao ocidentalismo “que vê em tudo o que é antigo ou oriental um arcaísmo a ser abandonado” (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 41), à sua temporalidade própria tanto quanto a seus efeitos desvirtuadores das originalidades brasileiras estivessem quase sempre presentes nos trabalhos em que se propôs destacar as criações caracteristicamente regionais do Nordeste. Nesses casos, é patente o sentimento de perda em relatos que registram, com rara nitidez, os impactos da passagem do tempo na esteira da crescente europeização experimentada pela sociedade brasileira, seja na paisagem rural (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 107; 2015FREYRE, G. Interpretação do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2015 [1944].: 105), seja na urbana (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 108), ou mesmo na social (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 118, 123, 125, 139, 142, 152, 153, 162, 163; 2015FREYRE, G. Interpretação do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2015 [1944].: 104). A certa altura, Freyre chega mesmo a observar que

comparando o Nordeste de 1825 com o de 1925 tem-se quase a impressão de dois países diversos. A própria paisagem, o próprio físico da região, alterou-se nestes cem anos. É outra a sua crosta. Outra a fisionomia (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 107).

Ao menos dois aspectos sobressaem-se nessas formulações, ambos expressivos dos usos e sentidos que o autor confere às noções de tempo e espaço. Primeiramente, no tocante à dosagem diversidades regionais/uniformidade nacional, vale observar que Freyre não via qualquer contradição no fato de seus esforços sociológicos de interpretação da formação e do ethos nacional brasileiros serem conduzidos a partir de “uma simplificação aparentemente arbitrária” - isto é, sua consideração por meio

de sua mais antiga estabilização agrária: a que se verificou na parte setentrional do país, estendendo-se da Bahia ao Maranhão e tendo em Pernambuco o seu primeiro reduto de sistema familial de economia e de organização social e o Rio de Janeiro como sub-região sociológica desgarrada do maciço setentrional apenas geograficamente (Freyre, 1968FREYRE, G. . Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: EdUnB, 1968.: 62-63).

O autor dizia-se atento, sim, aos “vários começos” da formação dessa sociedade, ergo às suas descontinuidades espaciais e temporais (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936]. [1949/1961]: lviii), “do extremo Norte ao extremo Sul”. Mas, a seu ver, tratando-se tão somente de variações “de substância”, as diversas regiões do Brasil seriam atravessadas por certa “unicidade sociológica de forma e de processo”, conforme se poderia inferir pela replicação “em áreas e em espaços diversos” da “organização mais ou menos patriarcal ou tutelar” (familiar, econômica, política e de sociabilidade, amplamente considerada), da “monocultura”, do “latifúndio” e do “trabalho escravo ou servil” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: lviii). Daí não lhe parecer de modo algum contraditório abordar a formação brasileira por meio da investigação prioritária da região do Nordeste canavieiro, aquele que se alongava “por terras de massapé e por várzeas, do norte da Bahia ao Maranhão” (Freyre, 2004FREYRE, G.. Nordeste. São Paulo: Global , 2004 [1937].: 37) - dentre outras razões (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 34; 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: lxxxv, lxxvi-lxxvii, lxxxi) porque, admitida a diversidade geográfica do território nacional, permaneceriam expressivas as semelhanças naturais “em tão vasta terra tropical” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: lxxiii; 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 31). Para o autor, nessa terra, do contato simbiótico de portugueses “com a natureza, com ambiente e com populações e culturas tropicais” (Freyre, 1968FREYRE, G. . Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: EdUnB, 1968.: 86-87), vinha se consolidando “um tipo moderno de cultura mista ou simbiótica - eurotropical” (Freyre, 1968FREYRE, G. . Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: EdUnB, 1968.: 87), a seu ver, algo verdadeiramente sem paralelo no concerto mundial.

Um segundo aspecto fundamental nas formulações de Freyre que gostaria de salientar diz respeito à interlocução explícita que o autor estabelece entre as ancoragens espaço-temporais regionais e brasileira e o imaginário da modernidade: uma vez mais apoiado sobre as especificidades societárias associadas a tais ancoragens, Freyre posiciona-se de maneira deliberada em relação a esse imaginário. Conforme anteriormente sugerido, ao invés de confirmar o provincianismo daqueles contextos (regionais e nacional), bem como o alcance supostamente limitado de suas formulações acerca da formação brasileira, Freyre servia-se de tais especificidades para desafiar certas imagens renitentes da experiência moderna, interpelando-as de maneira algo contraintuitiva. Nesse exato sentido, cabe notar que a eleição da região nordestina à posição de principal responsável por “dar à cultura e à civilização brasileira autenticidade e originalidade” (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 35-36) - “a parte, sob mais de um aspecto, mais brasileira do Brasil” (Freyre, 1941: 193-194) - fazia-se acompanhar de advertências ruidosas: o resultado quase certo do abandono das tradições regionais em favor da “novidade estrangeira” (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 33-34) seria a descaracterização quando não o total desvanecimento de criações detentoras de valores (regionais e, por extensão, brasileiros) outrora docemente harmonizadas “com o clima, com as águas, com as cores, com a natureza” dos trópicos (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 37). Ou seja, para o autor, em vez de universais e/ou atemporais, o valor dessas criações - das quais as habitações, a culinária, as vestimentas bem como o desenho urbano de algumas cidades do Nordeste seriam exemplos primorosos (Freyre, 1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.; 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].) - adviria em boa medida do fato de estarem doce e graciosamente adaptadas às particularidades do espaço regional e de sua natureza (seu ar, seu calor, sua paisagem, seus recursos, sua fauna e flora e sua luz peculiares). Mas esse tipo de argumento não restringia o alcance pretendido para suas críticas. Se, por um lado, Freyre almejava trazer às claras os alicerces mais essenciais do real valor daqueles predicados sociais e naturais observados no Brasil, por outro, tratava-se também de revelar os limites das ambições universalistas de certas formas de viver e pensar.

Por tudo isso, não surpreende a preocupação do autor em descrever o meio natural e a configuração temporal em que, a seu ver, vicejava essa civilização moderna peculiar8 8 . A seu ver, ao termo da “disseminação de formas altas de civilização em tão vasta terra tropical”, vinha emergindo nada mais nada menos que a “primeira grande civilização moderna nos trópicos” (Freyre, 1996: lxxiii). . Conforme almejo frisar na próxima seção, importava-lhe investigar não só como os agentes da formação brasileira vinham forjando uma nova cultura e uma experiência social original em sintonia fina com os predicados e atributos físicos do espaço e do tempo dos trópicos; outrossim, era desejo de Freyre revelar ainda suas influências e contribuições para sua emergência.

IV

Não se pode, é claro, subestimar as passagens em que Freyre reclama da “preponderância das causas econômicas e sociais [...] sobre as influências de raça e clima” nos processos que desaguariam na formação brasileira (Freyre, 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 428-429). Ocorre que proposições como essa não o impediam também de argumentar que “a civilização trazida da Europa para o Brasil [...] adquiriu aspectos regionais diversos” tão logo viu-se ante o desafio de se adaptar “a diferentes situações ecológicas” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: xxxiii). Mas observe-se que, a contrapelo das imagens corriqueiras de uma natureza tão encantadora e exuberante quanto entorpecente dos espíritos e ações - de resto, alimentadas por vários dos intérpretes do Brasil que o haviam precedido9 9 . Nesse particular, apenas a título de ilustração, talvez baste recobrar os retratos do país delineados por Silvio Romero (2001) e, posteriormente, por Paulo Prado (2012). -, Freyre ponderava que,

[s]e é certo que nos países de clima quente o homem pode viver sem esforço de abundância de produtos espontâneos, convém, por outro lado, não esquecer que igualmente exuberante são, nesses países, as formas perniciosas de vida vegetal e animal, inimigas de toda cultura agrícola organizada e de todo trabalho regular e sistemático (Freyre, 2000FREYRE, G. . Prefácio à primeira edição em língua portuguesa. In: FREYRE, G. Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks , 2000c [1969].a: 90).

Tal a magnitude dos esforços exigidos à colonização nos trópicos que somente agentes predispostos àquele meio poderiam consumá-la da maneira bem-sucedida como o fizeram. Nesse particular, a contribuição do elemento indígena, notável “pelo seu minucioso conhecimento da flora e da fauna do país” (Freyre, 2015FREYRE, G. Interpretação do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2015 [1944].: 143), teria se revelado fundamental visto que já haveria, entre os nativos

desta parte do continente, como entre os povos primitivos em geral, certa fraternidade entre o homem e o animal, certo hibridismo mesmo nas relações entre os dois (Freyre, 2000FREYRE, G. . Prefácio à primeira edição em língua portuguesa. In: FREYRE, G. Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks , 2000c [1969].a: 170).

Fundamental, também, havia sido a “predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos” demonstrada pelos negros africanos. Haveria concorrido para isso “sua maior fertilidade nas regiões quentes. Seu gosto de Sol. Sua energia fresca e nova em contato com a floresta tropical” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Prefácio à primeira edição em língua portuguesa. In: FREYRE, G. Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks , 2000c [1969].a: 346; 2004FREYRE, G.. Nordeste. São Paulo: Global , 2004 [1937].: 88-89; 2015FREYRE, G. Interpretação do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2015 [1944].: 126). Por fim, a ambos teria se somado a “aclimatabilidade” do português “ao contato vitorioso com os trópicos” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 85), igualmente por “felizes predisposições de raça, de mesologia e de cultura” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 87; 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b); haveria, na verdade, certa obsessão dos portugueses “pela residência nos trópicos, pela adoção de valores tropicais, pela união com mulheres tropicais” (Freyre, 2010FREYRE, G. . O luso e o trópico. São Paulo: É Realizações, 2010 [1961].: 236). Ora, de acordo com Freyre, como resultado dessas “felizes predisposições” (biológicas, psíquicas e culturais) ao meio tropical,

tomaram também com o tempo essas raças, cores regionais diversas conforme as condições físicas da terra, de solo e de configuração de paisagem ou de clima e naturais, de meio social (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: liii, grifos meus).

Tamanha cumplicidade dos agentes da colonização com essa natureza que, em certos lugares da região nordestina, chegava-se às raias de algumas pessoas se sentirem íntimas de animais, plantas e árvores, como se esses últimos fossem “gente de casa”, “uma quase pessoa”, “quase pessoa de casa”, para além de meros “restos brutos e insensíveis de mata ou de floresta” (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 67 a 70).

Sem deixar, pois, de admitir as inúmeras adversidades do trópico para uma vida sistemática e ordenada em conformidade com padrões europeus (Freyre, 2004FREYRE, G.. Nordeste. São Paulo: Global , 2004 [1937].: 88; 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 89-90), está claro que Freyre divergia daqueles para quem, em última instância, o espaço tropical impunha obstáculos intransponíveis à formação de sociedades superiores. Ao invés disso, tratava de acentuar as próprias contribuições desse espaço para a emergência de uma nova configuração moderna, em diversos aspectos inédita, “obra criadora e original [dos portugueses], a que não pode aspirar nem a dos ingleses na América do Norte nem a dos espanhóis na Argentina” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 89). É nesse contexto argumentativo que se pode compreender, por exemplo, a celebração do massapê - “terra doce ainda hoje”, amaciadora de homens e instituições - como agente conformador de primeira linha, moldando uma experiência societária erguida sobre a cultura da cana de açúcar (Freyre, 2004FREYRE, G.. Nordeste. São Paulo: Global , 2004 [1937].: 47), a partir de “condições particularmente favoráveis de solo, de atmosfera, de situação geográfica” (Freyre, 2004FREYRE, G.. Nordeste. São Paulo: Global , 2004 [1937].: 48).

Freyre é enfático ao defender que fatores ambientais dessa sorte ajudaram a forjar padrões comportamentais, hábitos, valores, instituições, referências ético-morais e laços sociais diversos dos europeus - padrões, valores, instituições e referências mais fluidos, plásticos e maleáveis do que os “puramente europeus”, isto é, do que aqueles típicos da Europa setentrional, “protestante, burguesa e carbonífera” (ver, por exemplo, Freyre, 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 53). Estaríamos, pois, diante de um meio físico mais quente, colorido e vivaz que o norte-europeu, convidativo a relações sociais mais frouxas, intensas, ardentes, lúbricas e licenciosas (Freyre, 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 53). É verdade que, em sua avaliação, tal fenômeno, em suas linhas gerais, não fora de todo estranho ao português, ele próprio cultural e biologicamente moldado sob a influência de

um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval [...] (Freyre, 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 80).

Todavia, o contato com o trópico americano não fizera outra coisa senão acentuar ainda mais esses traços (Freyre, 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 40) - dos quais a flexibilização da moral sexual e o consequente “colapso da moral católica” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 179) talvez fossem duas dentre suas manifestações mais visíveis.

Note-se que, na equação interpretativa do autor, a essas especificidades espaciais se entrelaçaria uma configuração temporal não menos peculiar: um “tempo impregnado ecologicamente de trópico” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 32). A contrapelo, pois, de conotações abstratas e universais emprestadas à categoria tempo (Anderson, 1991ANDERSON, B. Imagined communities. London: Verso, 1991.; Giddens, 1991GIDDENS, A. As conseqências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp , 1991.; Harvey, 1995HARVEY, D. The condition of postmodernity. Cambridge: Blackwell, 1995.), Freyre preferia chamar a atenção para suas consideráveis variações, “de regiões para regiões, quer de um continente a outro, quer dentro de um país” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: xlvi); tais variações se fariam exprimir “em diversas manifestações, de existência, de convivência e de cultura.” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: xlvi)10 10 . Propõe Freyre que “quem estuda ou considera o problema de relações inter-regionais dentro de um país [...] não pode alhear-se ao fato de que são também relações entre tempos” (Freyre, 1975a: xlvi). . Conforme sugerido alhures (Tavolaro, 2016TAVOLARO, S. B. F. Imagens de uma outra modernidade: Gilberto Freyre e o espaço-tempo latino-americano. Política & Sociedade, v. 15, n. 34, p. 196-231, 2016.), essa recusa expressa a qualquer noção esvaziada e geral de tempo, alheia a peculiaridades espacialmente condicionadas, levava-o, ainda, a propor que, seja nas relações sociedade/cultura seja no caso de indivíduos isoladamente contemplados, não existiria “um tempo só vivido de modo unilinear; e sim vários tempos, variamente, contraditoriamente” (Freyre, 1973FREYRE, G.. Além do apenas moderno. Rio se Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973.: 109-110) - de acordo com Freyre, “tempos que se cruzam e se confundem, quer na vivência, quer na memória de qualquer um de nós [...]” (Freyre, 1973FREYRE, G.. Além do apenas moderno. Rio se Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973.: 110).

Ora, porquanto tempo e espaço, a seu ver, jamais pudessem ser desassociados em experiência humana alguma11 11 . Freyre (2000b: 31) afirma que “o homem é tempo tanto quanto é espaço: sofre pressões de tempo quanto de espaço que o condicionam, embora não determinem seu ser [...].” , o interesse prioritário do autor estava em desvelar seus vínculos e manifestações encontrados nas modernas configurações societárias erguidas nos trópicos. Ora, como já se chamou atenção antes (Tavolaro, 2016TAVOLARO, S. B. F. Imagens de uma outra modernidade: Gilberto Freyre e o espaço-tempo latino-americano. Política & Sociedade, v. 15, n. 34, p. 196-231, 2016.: 212-226), parecia-lhe que, mais do que outras, as populações localizadas em espaços tropicais ou em seus arredores demonstravam falta de interesse por “rigores na contagem de tempo, só atendendo aos extremos de chuva e sol correspondendo a necessidades de alimentação.” (Freyre, 1975FREYRE, G.. On the Iberian concept of time. In: FREYRE, G. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro , 1975b [1963].a: xxxiii) Nada mais distante, portanto, que a configuração temporal comumente atribuída à “modernidade anglo-saxônica”: enquanto nesta prevaleceria certa sacralização do “tempo cronométrico” (Freyre, 1973FREYRE, G.. Além do apenas moderno. Rio se Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973.: 25), “com o culto quase místico dos minutos e até dos segundos, devido ao seu valor prático e comercial” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 264-265), entre as “civilizações e culturas orientais, africanas e ameríndias”, predominaria um tipo de atitude “do homem para com o tempo [...] grandemente afetada pelo mito, a religião e o folclore” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 10) - também por isso estranha àquela visão científica, evolucionista ou progressiva de tempo tornada hegemônica desde a Revolução Comercial (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a).

Diante do exposto, fosse nosso desejo compreender a sociedade brasileira contemporânea, fruto do sucesso em certa medida inusitado de colonizadores europeus em espaços tropicais, precisaríamos, em primeiro lugar, considerar a predisposição demonstrada pelos ibéricos (e, por conseguinte, por portugueses) à temporalidade própria dos trópicos. Isso porque, “se houve um tempo hispânico”, capaz de condicionar o comportamento de hispânicos ou ibéricos no continente americano e em outras partes do globo, “esse tempo não morreu com as descobertas hispânicas de novas terras [...], porém permanece entre sociedades neo-hispânicas em desenvolvimento nesses espaços [...]” (Freyre, 1975FREYRE, G.. On the Iberian concept of time. In: FREYRE, G. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro , 1975b [1963].a: xlviii-xlix). Note-se que, a seu ver, “até certo ponto”, aquela predisposição decorria da própria “semelhança entre sentidos de tempo dos hispanos e dos não europeus”, responsável por facilitar-lhes a maior integração, em comparação com os norte-europeus, nos trópicos (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: xxxiii). Ora, também em contraste com a ética calvinista impregnada em norte-europeus e norte-americanos, uma ética “excessivamente glorificadora do contínuo, do incessante trabalho humano”, essa “noção hispânica de tempo” implicava fazer “do ócio um tempo digno de ser vivido criadoramente” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: xxxvi) - ou seja,

não tanto um tempo dedicado religiosamente ao trabalho constante [...], mas um tempo em que o trabalho e o descanso alternavam muitas vezes, entre esforço e dança, com numerosos dias santos e de festa (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 8-9).

O próprio fato de, segundo Freyre, portugueses e espanhóis jamais terem sublinhado em suas relações com povos não europeus uma condição de “povo progressivo” adviria de uma situação claramente distinta daquela com frequência associada à modernidade da Europa setentrional: a saber, que eles nunca atingiram “o que alguns europeus passaram a considerar o tempo social perfeito - o rápido ou o veloz ou o cronometricamente regulado em vários setores” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 8). Também por esse motivo,

não repeliram como os norte-europeus, quaisquer valores ou técnicas dos não europeus, considerando-os para eles, os norte-europeus, sempre arcaicos e de não europeus, seus supostos inferiores (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 8).

Ou seja, para os hispanos, “como para povos não europeus, em geral”, não existiria “fatalidade no Progresso nem na chamada Evolução transposta do plano biológico ao sociológico” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 60).

Também à diferença do “ritmo constantemente progressivo” instituído desde a Revolução Comercial europeia, o “tempo hispânico” se mostraria “tríbio” em sua constituição mais íntima, isto é, “uma fusão de passado, presente e futuro” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 8-9). Tal expressão, um empréstimo a Unamuno e Ortega y Gasset, servia ao autor de Tempo morto e outros tempos para acentuar um quadro temporal fluido e infenso à linearidade: aqui, em contraste com o tempo progressivo da Europa do Norte, o passado se faria valer no presente tanto quanto no futuro - este, por sua vez, já prenhe de presente; de maneira análoga, essa mesma noção pretendia referir-se a um quadro em que o presente e o futuro logravam projetar-se sobre o passado, condicionando-o (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 106-107). Daí por que, em concomitância à ausência entre os hispanos da obsessão pela ideia “de ser o futuro sempre melhor que o presente e o presente melhor que o passado” - obsessão, de acordo com Freyre, correspondente “ao mito caracteristicamente europeu de Progresso constante e indefinido” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 69) -, impunha-se a preferência por “regressos ou finca-pés culturais, sociais, morais que signifiquem resistência a alterações consideradas prejudiciais a interesses de sempre”, tudo isso, como se poderia supor, em detrimento de “certos pretendidos progressos” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 70). Este, tal como aqueles outros traços, também viria a se revelar peça-chave para o sucesso de suas empresas colonizadoras mundo a fora, “a base de entendimento entre os espanhóis ou portugueses e as populações não europeias na Ásia, África e Américas” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 8-9). Ora, justamente por jamais terem sido adeptos de um “sentido progressivo de tempo” - algo que, em outros contextos, concorreu para alimentar autoimagens de superioridade civilizacional apoiadas sobre a valorização da “rapidez no tempo” e “rapidez nas atividades” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: 10) -, segundo Freyre, os hispanos puderam se beneficiar sobejamente dos predicados culturais e biológicos dos povos não europeus com quem se miscigenaram em espaços tropicais.

Conforme suscitado anteriormente, tais usos, conotações e sentidos conferidos por Freyre às noções de tempo e espaço em seus esforços de interpretação do Brasil poderiam, por princípio, confirmar o escopo e alcance limitados de suas ambições intelectuais: ao se referirem a um cenário social e natural bastante específico, suas formulações em torno dos impactos da modernização sobre a sociedade brasileira não fariam outra coisa senão, em primeiro lugar, (a) reafirmar a propalada inautenticidade dessa experiência moderna, pretensamente capturada por referências cognitivas, normativas, comportamentais, institucionais e estéticas pouco ou nada condizentes com suas singularidades (culturais, biológicas, psíquicas e naturais) mais íntimas; em segundo lugar, (b) poderiam confirmar também a imagem de incompletude dessa mesma experiência em virtude de seus iniludíveis hiatos (culturais, ético-morais, institucionais, econômicos, comportamentais e raciais) em relação às chamadas “sociedades modernas centrais”. Ademais, ao fim e ao cabo, (a) e (b) conduziriam Freyre a (c) endossar a posição modelar de certa episteme da modernidade delineada à imagem e semelhança daquelas “sociedades centrais”. Parece-me possível, no entanto, abordar essa questão de um ângulo diverso, à luz de ponderações inscritas em seus próprios engajamentos com o imaginário da modernidade: (a) processos de modernização não se fazem acompanhar necessária e inexoravelmente da crescente abstração, dessubstancialização e padronização do tempo e do espaço; (b) o esvaziamento e a padronização do tempo-espaço12 12 . Tal configuração tempo-espacial, assim como aspectos característicos do imaginário que a cercam aparecem retratados, por exemplo, em Anderson (1991), Berman (1986), Giddens (1991), Habermas (1990), Harvey (1995), Koselleck (2006) e Luhmann (1976). De acordo com essa conotação, a abrangência tendencialmente universal do cronótopo da modernidade adviria justamente de seu grau acentuado de abstração, esvaziamento e padronização, os quais o capacitariam a ajustar-se a cenários sociais diversos. não são condições necessárias a toda e qualquer experiência societária organizada em moldes propriamente modernos. Na seção seguinte, ao cotejar as formulações de Freyre com algumas críticas recentes dirigidas ao discurso sociológico da modernidade, almejo avaliar seus eventuais insights nesse debate.

V

A que se poderia atribuir o interesse continuado pela obra de Gilberto Freyre? O alcance de suas formulações estaria circunscrito a seus retratos do Brasil? Fernando H. Cardoso credita a “perenidade” do autor, acima de tudo, à força mítica de sua visão de Brasil, “funcionando como um ponto de fuga que, se não retrata a realidade, faz parte dela [...]” (Cardoso, 2013CARDOSO, F. H. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 2013.: 134). Burke e Pallares-Burke (2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.: 255-256), por sua vez, embora não o tenham como “um grande inventor de novos conceitos”, identificam em Freyre a qualidade de expandir o uso daqueles já existentes e de adaptá-los a situações novas; a isso se somaria seu “dom de adotar ideias com um grande futuro num momento em que seu potencial ainda não foi totalmente reconhecido” (Burke e Pallares-Burke, 2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.: 307). Ora, se é que, como propõem Burke e Pallares-Burke (2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.: 256), algumas das ideias de Freyre continuam “boas para ajudar a pensar”, parece-me ser esse o caso de seus engajamentos críticos com o imaginário da modernidade. A meu ver, ao menos em parte, seu apelo continuado no seio do pensamento social brasileiro tem a ver também com o fato de seus retratos do Brasil dialogarem com agendas recentes da sociologia amplamente considerada. A bem da verdade, entendo que as formulações de Freyre fornecem sugestões para alguns dos desafios e questionamentos contemporâneos interpostos ao discurso sociológico da modernidade (Tavolaro, 2013TAVOLARO, S. B. F. . Gilberto Freyre e nossa “Modernidade Tropical”: entre a originalidade e o desvio. Sociologias, v. 15, n. 33, p. 282-317, 2013.; 2014TAVOLARO, S. B. F. . A tese da singularidade brasileira revisitada: desafios teóricos contemporâneos. Dados, v. 57, n. 3, p. 633-673, 2014.; 2016TAVOLARO, S. B. F. Imagens de uma outra modernidade: Gilberto Freyre e o espaço-tempo latino-americano. Política & Sociedade, v. 15, n. 34, p. 196-231, 2016.). A esse respeito, as análises de Villas-Bôas (2003)VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003. acerca da maneira como a “singularidade brasileira” aparece retratada em Casa-grande & senzala oferecem um ponto de partida promissor.

Vale dizer, Villas-Bôas (2003)VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003. também alude à dimensão mítica da obra de Gilberto Freyre, mas prefere situá-la em um quadro intelectual mais amplo: trata-se, para ela, do “mito da ambiguidade do brasileiro”, que Freyre e outros pensadores igualmente preocupados com o problema da experiência da modernidade no Brasil teriam ajudado a criar. O autor de Casa-grande & senzala seria uma das peças do “modelo da harmonia autoritária”, coexistente, porém distinto, do “modelo do Brasil do eterno dilema” (Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 115-116)13 13 . Enquanto o primeiro modelo apresentaria “uma disputa sem fim entre valores de uma suposta brasilidade e valores igualitários, universais, modernos”, o segundo se apoiaria na ideia de que as “origens históricas e culturais” dos brasileiros constituiriam “um legado positivo para a construção da nação moderna” (Villas-Bôas, 2003: 115). . Por um lado, concordo com Villas-Bôas (2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 129-130) que o intérprete pernambucano “contraria a visão evolucionista da história que classifica de alto a baixo as culturas e sociedades em imperiais e coloniais, progressistas e retrógradas” (Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 123). Mas divirjo de ao menos dois pontos de sua análise. A primeira discordância diz respeito ao estatuto do espaço natural nas formulações de Freyre: a essa altura já se pode inferir que discordo da avaliação conforme a qual a diluição da geografia e da raça no esquema interpretativo de Freyre se faria acompanhar da substituição da terra pela casa-grande patriarcal como o vínculo por excelência da “identidade dos brasileiros” (Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 127-128). Ora, as evidências reunidas neste artigo demonstram a importância continuada do espaço natural não somente como uma das âncoras explicativas da “singularidade brasileira” (em combinação com o espaço doméstico, e não em detrimento dele) mas também como ferramenta de primeira ordem em seu engajamento crítico com o imaginário da modernidade. A segunda discordância, em conexão com as questões levantadas na terceira hipótese do artigo, refere-se às eventuais contribuições das formulações de Freyre para certos desafios recentemente apresentados à sociologia da modernidade. Conquanto Villas-Bôas reconheça em Casa-grande & senzala uma forte reação “ao progresso avassalador”, expressão de sua renúncia ao “pressuposto de um tempo universal” (Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 123), além de um questionamento à “modernidade no que ela reivindica de monopólio da universalidade e significação” (Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 130) - sem dúvida, um ponto de partida promissor -, ela não parece identificar na fatura freyreana contribuições de fato propositivas ao discurso sociológico da modernidade14 14 . De maneira análoga, outros analistas chamam atenção para a preocupação de Freyre com o eurocentrismo projetado sobre o Brasil e a América Latina (Crespo, 2003; Larreta & Giucci, 2007; Schneider, 2012), para seus esforços de “crítica à modernidade ocidental” (Schneider, 2012: 77; Burke & Pallares-Burke, 2009), bem como para sua ambição de elevar a experiência tropical americana à condição de “alternativa civilizatória” à chamada “modernidade carbonífera” (Baggio, 2012: 120; Freitas, 2013; Larreta & Giucci, 2007; Schneider, 2012). Mas, também nesses casos, o reconhecimento da dimensão crítica das formulações de Freyre não se faz acompanhar de uma consideração explícita de seus eventuais insights propositivos para as dificuldades recentemente apontadas no discurso sociológico da modernidade. . Visto que, em seu entendimento, não interessa a Freyre “a construção no futuro de uma ordem impessoal e igualitária”, e também por não se ocupar “do atraso brasileiro”, Villas-Bôas avalia que, embora conduzam “notadamente à construção de uma identidade nacional”, ao fim e ao cabo as proposições de Casa-grande & senzala “não abrem caminhos para a construção da sociedade moderna” (Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 131).

De outro modo, quero argumentar que as formulações de Freyre indicam alternativas para alguns dos problemas e das dificuldades recentemente apontados no discurso sociológico da modernidade. Nesse exato sentido, em contraste com a avaliação de Villas-Bôas, parece-me que a obra de Freyre se soma a outras tentativas de abertura de novos caminhos para se pensar a experiência societal moderna. Há um conjunto de abordagens relativamente recentes que, embora bastante distintas em suas fundamentações teóricas tanto quanto em suas ambições programáticas, parecem-me até certo ponto sumarizar alguns dos principais desafios atualmente interpostos a esse discurso sociológico. Refiro-me às agendas de pesquisa e reflexão reunidas sob as designações modernidades múltiplas, modernidade global, pós-colonialidade e decolonialidade do saber/poder (Tavolaro, 2014TAVOLARO, S. B. F. . A tese da singularidade brasileira revisitada: desafios teóricos contemporâneos. Dados, v. 57, n. 3, p. 633-673, 2014.: 645-654). No caso da abordagem das modernidades múltiplas, esforços de avaliação crítica dos pressupostos das teorias da modernização e de suas insinuações prescritivas conduzem seus proponentes à investigação dos desdobramentos sociais e institucionais resultantes do encontro do “programa originário da modernidade” com “premissas culturais, tradições e experiências históricas” distintas das europeias (Eisenstadt, 2000EISENSTADT, S. N.. Multiple modernities. Dædalus, v. 129, n. 1, p. 1-29, 2000.: 1-2; 2010; Göle, 2000GÖLE, N. Snapshots of Islamic modernities. Dædalus , v. 129, n. 1, p. 91-117, 2000.; Wittrock, 2000WITTROCK, Björn. Modernity: one, none or many? European origins and modernity as a global condition. Dædalus , v. 129, n. 1, p. 31-60, 2000.). Já a agenda de pesquisa em torno da noção de modernidade global interpela o imaginário sociológico à luz da expansão da modernidade em escala planetária e da consequente emergência de novos centros societários (vale frisar, “extraeuropeus”) - os quais, a seu modo e com suas especificidades históricas, estariam tornando-se referências criadoras e modelares da própria modernidade (Schmidt, 2007SCHMIDT, V. . Modernidades múltiplas ou variedades da modernidade? Revista de Sociologia e Política, n. 28, p. 147-160, 2007.; 2012SCHNEIDER, A. L. Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia, n. 10, p. 75-93, 2012.; Domingues, 2009DOMINGUES, J. M. Global modernization, “coloniality” and a critical sociology for contemporary Latin America. Theory, Culture & Society, v. 26, n. 1, p. 112-133, 2009.). No que diz respeito às reflexões acerca da condição pós-colonial, ao lado da denúncia ao historicismo subjacente ao imaginário da modernidade, busca-se desvelar o provincianismo de categorias, conceitos e noções que, forjados à imagem da experiência histórica europeia, pretendem-se globalmente aplicáveis (Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, D. Provincializing Europe. Princeton: Princeton University Press, 2000.; Chaterjee, 2008; Hall, 2011HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.). Também nesse caso, tal agenda envolve a formulação de novas narrativas que contemplem o deslocamento “[d]a ‘estória’ da modernidade capitalista de seu centramento europeu para suas ‘periferias’ dispersas em todo o globo” (Hall, 2011HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.: 106). Por fim, em relação ao programa da decolonialidade do saber/poder, importa observar, por um lado, a preocupação com as assimetrias de poder simbólico, epistemológico, econômico, cultural e político tidas por constitutivas da própria experiência da modernidade; e, por outro, a atenção a lugares subordinados/subalternos de enunciação, silenciados pela perspectiva hegemônica, unilateral e triunfante da modernidade (Mignolo, 2000MIGNOLO, W.. Local histories/global designs. Princeton: Princeton University Press , 2000.; 2005MIGNOLO, W. The idea of Latin America. Oxford: Blackwell, 2005.; Dussel, 2005DUSSEL, E. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires: Clacso, 2005.; Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A colonialidade do saber . Buenos Aires: Clacso , 2005.).

Embora se trate de um exercício promissor, foge aos objetivos do artigo a análise em profundidade desses programas de reflexão e/ou das eventuais relações de afinidade e de divergência entre Freyre e cada uma dessas agendas de pesquisa15 15 . Burke e Pallares-Burke (2009: 305-306) ensaiam realizar algo nessa direção ao indicarem certo número de “analogias ou afinidades” entre Freyre e a produção pós-colonial. Para além das complexas relações de Freyre com a política colonial portuguesa, pouco sintonizadas com os tipos de preocupação que mobilizam a “agenda pós-colonial”, penso que suas formulações acerca das relações raciais no Brasil constituem um obstáculo adicional a essa aproximação. Seja como for, haveria certamente muito mais a explorar a esse respeito (ver, por exemplo: Schneider, 2012 e Valente, 2013). . Admitidas as especificidades irreconciliáveis desses programas, gostaria tão somente de indicar pontos de convergência que, em certa medida, parecem-me sumariar alguns dos principais desafios e críticas recentemente desferidos ao discurso sociológico da modernidade:

  1. 1. desafia-se, em primeiro lugar, o estatuto universal de categorias comumente tomadas como parâmetros inequívocos da modernidade; a isso se seguem exercícios de provincianização/descentramento de configurações societárias tidas por originárias daquelas mesmas categorias; no limite, coloca-se em questão a própria posição modelar de tais configurações (pretensamente originárias) no quadro da modernidade;

  2. 2. coloca-se em suspeita a real possibilidade e adequação de se reproduzir, pura e simplesmente, em outros contextos espaço-temporais, padrões (institucionais, valorativos, morais, comportamentais, estéticos) modernos forjados à imagem e semelhança das chamadas “sociedades centrais/modelares”;

  3. 3. indaga-se sobre as assimetrias de poder que amparam as projeções prescritivas dessas “sociedades centrais/modelares” em direção a contextos espaço-temporais “não hegemônicos”; chega-se mesmo a sugerir que tais assimetrias e projeções ajudam a explicar as imagens de não sincronismo (ou de desvio) com frequência imputadas a tais contextos “não hegemônicos” no quadro da modernidade;

  4. 4. ao desafio da validade universal daquelas categorias hegemônicas segue-se a reivindicação de protagonismo em favor de configurações societárias via de regra retratadas como retardatárias ou replicadoras de padrões societários forjados nos cenários modernos ditos “centrais”; em última instância, argumenta-se que tais experiências, ao invés de cópias ou ensaios mais ou menos bem (ou mal) -sucedidos das chamadas “sociedades modernas originárias”, representam experiências sociais próprias e, a seu modo, inovadoras no concerto da modernidade; por fim,

  5. 5. questiona-se o próprio quadro de referência epistemológico que desde longa data delimita as possibilidades de imaginação sociológica da modernidade e a partir do qual configurações societárias diversas são classificadas de acordo com seus “graus de modernidade”.

Nesse enquadramento, a experiência moderna e seu padrão de sociabilidade são retratados por meio dos seguintes termos:

  1. a.tempo progressivo e linear, em crescente desconexão com um espaço esvaziado e dessubstancializado;

  2. b.diferenciação/autonomização de esferas sociais;

  3. c.racionalização societária e secularização;

  4. d.divórcio entre âmbitos privados e esferas públicas;

  5. e.economia emocional organizada em torno da subjetividade centrada;

  6. f.separação ontológica entre a sociedade (cultura) e a natureza (Tavolaro, 2014TAVOLARO, S. B. F. . A tese da singularidade brasileira revisitada: desafios teóricos contemporâneos. Dados, v. 57, n. 3, p. 633-673, 2014.: 644-645)16 16 . Conforme pode-se inferir dos programas mencionados há pouco (Eisenstadt, 2000; Schmidt, 2012; Hall, 2011; Mignolo, 2005), ao invés de adstrito aos retratos da modernidade delineados pelos clássicos da sociologia (por exemplo, Marx, Weber e Durkheim) e pelas teorias da modernização que vicejaram em meados do século XX, esse quadro de referência também delimita o horizonte de imaginação de lucubrações mais recentes acerca da experiência moderna (Tavolaro, 2014) - vide, por exemplo, as formulações de Jürgen Habermas, Niklas Luhmann e Anthony Giddens, dentre outros. .

Desafia-se justamente a adoção pura e simples desses referenciais como índices inequívocos da modernidade, bem como a legitimidade de taxionomias que, ao temporalizar configurações societárias diversas com base em seus pretensos “desvios” e “aproximações” em relação a esses referenciais, estabelecem estágios desiguais de sua realização17 17 . Assim é que, em contraste com “contextos modelares”, (a) entrelaçamento tempo-espacial, (b) indiferenciação social, (c) racionalização societária incompleta, (d) porosidade entre domínios públicos e privados, (e) baixo grau de subjetivação/individuação, (f) porosidade entre cultura e natureza tornam-se evidências de “desvio” do padrão societário moderno (Tavolaro, 2014). .

Por certo, para o autor de Sobrados e mucambos, desde o século XIX, a sociedade brasileira vinha se alterando não só em seus “modos de viver, de trajar e de transportar”, mas também em seus “modos de pensar” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: 424): em seu entendimento, uma experiência cada vez mais vigiada de perto por olhos estrangeiros implacáveis, com sua “mística de pureza etnocêntrica ou em sua intolerância sistemática do exótico” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: 425)18 18 . Conforme Freyre, “olhos da Europa”, olhos do “Ocidente burguês, industrial, carbonífero, com cujos estilos de cultura, modos de vida, composições de paisagem, chocavam-se” (Freyre, 1996: 426-427). , raptada de suas antigas qualidades orientais aclimadas e harmonizadas à natureza americana e à cultura que se forjara do encontro entre portugueses, africanos e indígenas (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: 424-425). Ainda assim, ao cabo dessas transformações, parecia-lhe que ao invés de mera replicação dos padrões societários da Europa ocidental, essa sociedade adquiria contornos modernos próprios, condizentes com suas especificidades; chegava a tornar-se espelho para outros contextos sociais19 19 . Freyre afirma que, “com todas as suas imperfeições, de base econômica e de formas políticas de convivência democrática”, o Brasil lograva impor-se “como uma comunidade social” capaz de “servir de exemplo ou estímulo a outras comunidades modernas.” (Freyre, 2015: 123). . Esses e outros aspectos anteriormente discutidos neste artigo oferecem evidências de que as lucubrações de Freyre contemplam cada um dos desafios ao imaginário da modernidade supracitados20 20 . Ver, ademais, Freyre (1941: 194; 1996: 535-536 e 541; 2004: 178). . Nesse exato sentido, vale sublinhar uma vez mais que, ao contrário das imagens de uma experiência a meio caminho da civilização/modernidade21 21 . Diagnóstico, aliás, observado em Joaquim Nabuco, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Manoel Bomfim, Paulo Prado, para citar apenas alguns dos intérpretes que o precederam. , Freyre retrata o Brasil como “a primeira sociedade moderna construída nos trópicos com característicos nacionais e qualidades de permanência” (Freyre, 2000FREYRE, G. . Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2000a [1933].a: 86; 2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 169; 2004FREYRE, G.. Nordeste. São Paulo: Global , 2004 [1937].: 47; 2010FREYRE, G. . O luso e o trópico. São Paulo: É Realizações, 2010 [1961].: 205). É verdade que, conforme salientei acima, a fortuna de Freyre é sensível a essa dimensão crítica de sua obra22 22 . Como, por exemplo, Ricardo B. Araújo (1994: 137). . No entanto, mesmo entre analistas que identificam tal ambição crítica, a vinculação estrita dessa dimensão com suas preocupações a respeito das peculiaridades (socioculturais e naturais) irredutíveis de contextos societários específicos (Larreta & Giucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.) - com maior frequência o Brasil (Araújo, 1994ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; Bastos, 2006BASTOS, E. R. As criaturas de prometeu. São Paulo: Global, 2006.; Cardoso, 2013CARDOSO, F. H. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 2013.; Souza, 2000SOUZA, J. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo social, v. 12, n. 1, p. 69-100, 2000.; Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.) e a América Latina (Baggio, 2012BAGGIO, K. Iberismo, hispanismo e latino-americanismo no pensamento de Gilberto Freyre. Investigaciones Socio Históricas Regionales, Año 2, n. 2, p. 109-131, 2012.; Crespo, 2003CRESPO, R. A. Gilberto Freyre e suas relações com o universo cultural hispânico. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.; Schneider, 2012SCHNEIDER, A. L. Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia, n. 10, p. 75-93, 2012.; Valente, 2013VALENTE, L. F. Americanidade e Latinoamericanidade na obra de Gilberto Freyre. Antares: Letras e Humanidades, v. 5, n. 10, p. 105-114, 2013.) -, dificulta a consideração de suas eventuais contribuições para o discurso sociológico da modernidade, amplamente considerado.

A meu ver, o alcance das formulações de Freyre não se encerra em suas tentativas de reivindicar protagonismo e legitimidade às formas de vida e aos modos de pensar que vicejaram no Brasil nem em sua recusa à adoção da “modernidade europeia” como padrão de medida universal. Para além desses aspectos, suas proposições logram indicar caminhos àqueles desafios dirigidos ao discurso sociológico da modernidade, ou para ser exato, à sua real capacidade para codificar padrões de sociabilidade observados entre as chamadas “experiências societárias não modelares”. Esse potencial propositivo inscreve-se no próprio enquadramento epistemológico que delimita suas elaborações: se, por um lado, a convicção com que retrata o Brasil como “a primeira sociedade moderna nos trópicos” pode, em linhas gerais, confirmar sua aderência à semântica da sociologia da modernidade23 23 . Fato é que suas interpretações a respeito do Brasil e de outras sociedades que lhe servem de parâmetro para retratar a “singularidade brasileira” dedicam atenção a questões relacionadas aos seguintes aspectos: (a) tempo/espaço; (b) diferenciação social; (c) racionalização; (d) relação púbico/privado; (e) subjetivação; (f) relação cultura/natureza (Tavolaro, 2013; 2016). Larreta e Giucci (2007: 465) chegam mesmo a sustentar que Freyre permanece dependente “do vocabulário das ciências sociais modernas”. , por outro, suas imagens da sociedade brasileira assentam-se sobre um referencial que admite a existência sincrônica de variações em cada um dos termos daquele quadro de referência, sem necessariamente dispô-las de maneira sequencial (como se fossem momentos ou estágios desiguais de realização). Nesse sentido, (1) ao invés de adotá-lo como modelar da modernidade, Freyre provincianiza o cronótopo no qual o tempo, desvinculado do espaço, assume conotação progressiva e linear, enquanto o espaço adquire acepção abstrata, padronizada e dessubstancializada. Ao assim fazê-lo, as formulações de Freyre abrem caminho para se conceber a existência coeva de outros cronótopos igualmente modernos nos quais, por exemplo, além de entrelaçadas e não lineares, as vivências do passado, do presente e do futuro jamais perdem conexão com espaços plenos de atributos físicos e culturais (Freyre, 1973FREYRE, G.. On the Iberian concept of time. In: FREYRE, G. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro , 1975b [1963].b: 8).

Disso segue-se igualmente a possibilidade de se conceber a existência coetânea (frise-se, não sucessiva) na modernidade de configurações e experiências societárias nas quais: (2) processos de complexificação e diferenciação constitutivos da modernização fazem-se acompanhar de composições e modalidades variadas de entrelaçamento, contiguidade e influência mútua de esferas sociais diversas (por exemplo, entre o Estado, o mercado, a sociedade civil, a família etc.), ao invés de sua autonomização pura e simples (Freyre, 2000FREYRE, G. . Prefácio à primeira edição em língua portuguesa. In: FREYRE, G. Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks , 2000c [1969].b: 214); (3) a racionalização societária convive com a presença pública e privada de concepções de mundo mágico-religiosas e padrões de conduta não racionalizados, disso derivando formas distintas de secularização (Freyre, 1990FREYRE, G.. Ordem e progresso. Rio de Janeiro: Record , 1990 [1959].: 520-521); (4) as esferas públicas e os âmbitos privados, além de adquirem contornos variados, guardam estreitas relações e influenciam-se mutuamente em diferentes planos da vida social (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: xc; (5) ao invés de homogêneas e fixas, as economias emocionais dos indivíduos assentam-se numa pluralidade móvel de identidades (subjetivas e coletivas) que impactam sobre suas condutas públicas e privadas assim como sobre suas autopercepções e visões de mundo (Freyre, 2006FREYRE, G. . Tempo morto e outros tempos. São Paulo: Global , 2006 [1975].: 20-21); por fim (6) nas quais a vida sociocultural é percebida e vivenciada em proximidade estreita com o mundo natural (Freyre, 1976FREYRE, G.. Manifesto regionalista. Maceió: EdUfal, 1976 [1952].: 67 a 70; 1990FREYRE, G.. Ordem e progresso. Rio de Janeiro: Record , 1990 [1959].: 708).

É fato que as imagens do Brasil delineadas por Gilberto Freyre, não raro envoltas em umas tantas polêmicas e controvérsias, continuam a exigir boa dose de cautela interpretativa. Nesse sentido, sua ambição de elevar a sociedade brasileira à condição de alternativa e modelo a alguns dos principais impasses do mundo contemporâneo (Freyre, 1973FREYRE, G.. Além do apenas moderno. Rio se Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973.: 11 e 116) certamente pode ser desafiada de uma ampla variedade de ângulos. Ainda assim, conforme busquei demonstrar no artigo, suas formulações em torno do tempo-espaço da experiência moderna no Brasil, somadas a seus engajamentos com o imaginário da modernidade, tratam de questões que tocam em preocupações caras ao debate sociológico atual. Crítico contumaz reconhecido do eurocentrismo que em seu tempo predominava nos horizontes de imaginação acerca do país, Freyre oferece insights para uma episteme da modernidade atenta a armadilhas etnocêntricas que, de maneiras mais ou menos sutis, continuam a se insinuar sobre as ciências sociais contemporâneas.

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  • *
    O presente artigo é fruto de pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq/Bolsa de Produtividade em Pesquisa. Agradeço as/os pareceristas pela leitura crítica e sugestões, as quais auxiliaram a recalibrar os objetivos e ambições deste trabalho, bem como esclarecer os argumentos defendidos.
  • 1
    . Por quadro de referência epistemológico, refiro-me tão somente às noções, categorias, códigos, conceitos, esquemas classificatórios e procedimentos de inferência (com ambições científicas ou não) que, como condições de possibilidade cognitiva, poderão ter delimitado os horizontes de imaginação de Freyre acerca da “singularidade brasileira”, tanto em suas narrativas históricas como em outras modalidades de trabalho desse intérprete do Brasil.
  • 2
    . Mikhail Bakhtin emprega o termo cronotopo (“tempo-espaço”) para referir-se à “interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura” (Bakhtin, 1988BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo: Editora Unesp; Hucitec, 1988.: 211). No presente artigo, nos passos de Hans U. Gumbrecht (1998; 2015), emprego esta expressão com uma conotação mais ampla, de modo a torná-la aproveitável também para a análise sociológica: compreendo cronótopos como configurações tempo-espaciais, bem como construções conceituais e simbólicas a seu respeito, articuladas a experiências sociais historicamente situadas.
  • 3
    . A título de ilustração, ao cotejar as obras Casa-grande & senzala e Nordeste, Burke e Pallares-Burke (2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.: 202-203) sustentam que é apenas na segunda que a paisagem torna-se um “personagem do drama”, na mesma medida em que se passa a conferir “ênfase considerável aos aspectos negativos da economia e da sociedade do Nordeste.” Jessé Souza (2000: 210-212), por sua vez, identifica o que denomina de “torção” nos escritos, obras e trabalhos “da maturidade” de Freyre em relação àqueles “da juventude” do autor (destacando-se, nesse último caso, Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos), algo que Souza associa a motivações políticas ou geopolíticas. Mas note-se que, ainda conforme suas sugestões, tal “torção” jamais chega a constituir um “corte epistemológico” na obra de Freyre (Souza, 2000SOUZA, J. Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira. Tempo social, v. 12, n. 1, p. 69-100, 2000.: 212).
  • 4
    . Isso não nos obriga, é claro, a tomá-la como uma “formação discursiva”, nos moldes propostos por Foucault.
  • 5
    . Vale dizer, apesar de tomá-la como um dado importante de pesquisa, o artigo não se satisfaz com a retórica do próprio autor acerca das continuidades que permeiam suas formulações.
  • 6
    . Uma vez mais, reconheço a importância e relevância de investigações voltadas aos “aspectos contextuais” que envolveram e pesaram sobre a obra de Freyre, assim como daqueles esforços que buscam descortinar as descontinuidades e eventuais rupturas no universo semântico desse intérprete do Brasil. No entanto, a adição dessas novas preocupações à agenda de pesquisa e reflexão do presente artigo o conduziria para direções muito diversas das metas e objetivos específicos aqui estabelecidos.
  • 7
    . É certo que essas não foram, de modo algum, as únicas influências intelectuais “estrangeiras” de Freyre. A respeito do impacto de duas gerações de intelectuais espanhóis (a de 1898 e a de 1914) sobre o autor, enfeixando suas discussões acerca das relações tradição/modernidade, Oriente/Ocidente, europeísmo/não europeísmo, ver Bastos (1998). Quanto ao legado de pensadores latino-americanos sobre sua produção, ver Crespo (2003)CRESPO, R. A. Gilberto Freyre e suas relações com o universo cultural hispânico. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.. Por fim, no tocante às influências românticas britânicas sofridas por Freyre desde o início de sua formação intelectual, ver Pallares-Burke (2005)PALLARES-BURKE, M. L. Gilberto Freyre - um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Editora Unesp , 2005..
  • 8
    . A seu ver, ao termo da “disseminação de formas altas de civilização em tão vasta terra tropical”, vinha emergindo nada mais nada menos que a “primeira grande civilização moderna nos trópicos” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: lxxiii).
  • 9
    . Nesse particular, apenas a título de ilustração, talvez baste recobrar os retratos do país delineados por Silvio Romero (2001)ROMERO, S. Compêndio de história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001. e, posteriormente, por Paulo Prado (2012)PRADO, P. Retrato do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 2012..
  • 10
    . Propõe Freyre que “quem estuda ou considera o problema de relações inter-regionais dentro de um país [...] não pode alhear-se ao fato de que são também relações entre tempos” (Freyre, 1975FREYRE, G.. O brasileiro entre os outros hispanos. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; Instituto Nacional do Livro, 1975a.a: xlvi).
  • 11
    . Freyre (2000FREYRE, G. . Novo mundo nos trópicos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000b [1963/1971].b: 31) afirma que “o homem é tempo tanto quanto é espaço: sofre pressões de tempo quanto de espaço que o condicionam, embora não determinem seu ser [...].”
  • 12
    . Tal configuração tempo-espacial, assim como aspectos característicos do imaginário que a cercam aparecem retratados, por exemplo, em Anderson (1991)ANDERSON, B. Imagined communities. London: Verso, 1991., Berman (1986)BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986., Giddens (1991), Habermas (1990)HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990., Harvey (1995)HARVEY, D. The condition of postmodernity. Cambridge: Blackwell, 1995., Koselleck (2006)KOSELLECK, R. “Modernidade”: sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade. In: KOSELLECK, R. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio , 2006a. e Luhmann (1976)LUHMANN, N. The future cannot begin: temporal structures in modern society. Social Research, v. 43, n. 1, p. 130-152, 1976.. De acordo com essa conotação, a abrangência tendencialmente universal do cronótopo da modernidade adviria justamente de seu grau acentuado de abstração, esvaziamento e padronização, os quais o capacitariam a ajustar-se a cenários sociais diversos.
  • 13
    . Enquanto o primeiro modelo apresentaria “uma disputa sem fim entre valores de uma suposta brasilidade e valores igualitários, universais, modernos”, o segundo se apoiaria na ideia de que as “origens históricas e culturais” dos brasileiros constituiriam “um legado positivo para a construção da nação moderna” (Villas-Bôas, 2003VILLAS-BÔAS, G.. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.: 115).
  • 14
    . De maneira análoga, outros analistas chamam atenção para a preocupação de Freyre com o eurocentrismo projetado sobre o Brasil e a América Latina (Crespo, 2003CRESPO, R. A. Gilberto Freyre e suas relações com o universo cultural hispânico. In: Kosminsky, E. V.; Lépine, C.; Peixoto, F. A. (Orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru; São Paulo: Edusc; Editora Unesp , 2003.; Larreta & Giucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; Schneider, 2012SCHNEIDER, A. L. Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia, n. 10, p. 75-93, 2012.), para seus esforços de “crítica à modernidade ocidental” (Schneider, 2012SCHNEIDER, A. L. Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia, n. 10, p. 75-93, 2012.: 77; Burke & Pallares-Burke, 2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.), bem como para sua ambição de elevar a experiência tropical americana à condição de “alternativa civilizatória” à chamada “modernidade carbonífera” (Baggio, 2012BAGGIO, K. Iberismo, hispanismo e latino-americanismo no pensamento de Gilberto Freyre. Investigaciones Socio Históricas Regionales, Año 2, n. 2, p. 109-131, 2012.: 120; Freitas, 2013FREITAS, I. M. A Brasil e as Américas em Gilberto Freyre: das veias abertas pela colonização aos veios abertos para o futuro. Anais do XXIX Congresso Latinoamericano de Sociologia, 2013. In: < In: http://actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT17/GT17_MendesFreitas.pdf >. Acesso em: 20 Ago. 2014.
    http://actacientifica.servicioit.cl/bibl...
    ; Larreta & Giucci, 2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; Schneider, 2012SCHNEIDER, A. L. Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia, n. 10, p. 75-93, 2012.). Mas, também nesses casos, o reconhecimento da dimensão crítica das formulações de Freyre não se faz acompanhar de uma consideração explícita de seus eventuais insights propositivos para as dificuldades recentemente apontadas no discurso sociológico da modernidade.
  • 15
    . Burke e Pallares-Burke (2009BURKE, P.; PALLARES-BURKE, M. L. Repensando os trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2009.: 305-306) ensaiam realizar algo nessa direção ao indicarem certo número de “analogias ou afinidades” entre Freyre e a produção pós-colonial. Para além das complexas relações de Freyre com a política colonial portuguesa, pouco sintonizadas com os tipos de preocupação que mobilizam a “agenda pós-colonial”, penso que suas formulações acerca das relações raciais no Brasil constituem um obstáculo adicional a essa aproximação. Seja como for, haveria certamente muito mais a explorar a esse respeito (ver, por exemplo: Schneider, 2012SCHNEIDER, A. L. Iberismo e luso-tropicalismo na obra de Gilberto Freyre. História da Historiografia, n. 10, p. 75-93, 2012. e Valente, 2013VALENTE, L. F. Americanidade e Latinoamericanidade na obra de Gilberto Freyre. Antares: Letras e Humanidades, v. 5, n. 10, p. 105-114, 2013.).
  • 16
    . Conforme pode-se inferir dos programas mencionados há pouco (Eisenstadt, 2000EISENSTADT, S. N.. Multiple modernities. Dædalus, v. 129, n. 1, p. 1-29, 2000.; Schmidt, 2012SCHMIDT, V. Conceptualizing global modernity. A tentative sketch. Working Paper Series, Department of Sociology, National University of Singapore, p. 1-52, 2012.; Hall, 2011HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.; Mignolo, 2005MIGNOLO, W. The idea of Latin America. Oxford: Blackwell, 2005.), ao invés de adstrito aos retratos da modernidade delineados pelos clássicos da sociologia (por exemplo, Marx, Weber e Durkheim) e pelas teorias da modernização que vicejaram em meados do século XX, esse quadro de referência também delimita o horizonte de imaginação de lucubrações mais recentes acerca da experiência moderna (Tavolaro, 2014TAVOLARO, S. B. F. . A tese da singularidade brasileira revisitada: desafios teóricos contemporâneos. Dados, v. 57, n. 3, p. 633-673, 2014.) - vide, por exemplo, as formulações de Jürgen Habermas, Niklas Luhmann e Anthony Giddens, dentre outros.
  • 17
    . Assim é que, em contraste com “contextos modelares”, (a) entrelaçamento tempo-espacial, (b) indiferenciação social, (c) racionalização societária incompleta, (d) porosidade entre domínios públicos e privados, (e) baixo grau de subjetivação/individuação, (f) porosidade entre cultura e natureza tornam-se evidências de “desvio” do padrão societário moderno (Tavolaro, 2014TAVOLARO, S. B. F. . A tese da singularidade brasileira revisitada: desafios teóricos contemporâneos. Dados, v. 57, n. 3, p. 633-673, 2014.).
  • 18
    . Conforme Freyre, “olhos da Europa”, olhos do “Ocidente burguês, industrial, carbonífero, com cujos estilos de cultura, modos de vida, composições de paisagem, chocavam-se” (Freyre, 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: 426-427).
  • 19
    . Freyre afirma que, “com todas as suas imperfeições, de base econômica e de formas políticas de convivência democrática”, o Brasil lograva impor-se “como uma comunidade social” capaz de “servir de exemplo ou estímulo a outras comunidades modernas.” (Freyre, 2015: 123).
  • 20
    . Ver, ademais, Freyre (1941FREYRE, G. . Região e tradição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941.: 194; 1996FREYRE, G.. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record , 1996 [1936].: 535-536 e 541; 2004FREYRE, G.. Nordeste. São Paulo: Global , 2004 [1937].: 178).
  • 21
    . Diagnóstico, aliás, observado em Joaquim Nabuco, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Manoel Bomfim, Paulo Prado, para citar apenas alguns dos intérpretes que o precederam.
  • 22
    . Como, por exemplo, Ricardo B. Araújo (1994ARAÚJO, R. B. Guerra e Paz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.: 137).
  • 23
    . Fato é que suas interpretações a respeito do Brasil e de outras sociedades que lhe servem de parâmetro para retratar a “singularidade brasileira” dedicam atenção a questões relacionadas aos seguintes aspectos: (a) tempo/espaço; (b) diferenciação social; (c) racionalização; (d) relação púbico/privado; (e) subjetivação; (f) relação cultura/natureza (Tavolaro, 2013TAVOLARO, S. B. F. . Gilberto Freyre e nossa “Modernidade Tropical”: entre a originalidade e o desvio. Sociologias, v. 15, n. 33, p. 282-317, 2013.; 2016). Larreta e Giucci (2007LARRETA, E.; GIUCCI, G. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.: 465) chegam mesmo a sustentar que Freyre permanece dependente “do vocabulário das ciências sociais modernas”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2016
  • Aceito
    16 Nov 2016
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