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Do crítico, das críticas

NOTA DO EDITOR

Do crítico, das críticas

Ronaldo Conde Aguiar

Li, no último número de Sociedade e Estado, uma resenha sobre o meu livro O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim, assinada por Thadeu de Jesus e Silva Júnior.

Não conheço pessoalmente o resenhista. Nunca o vi mais gordo ou mais magro, mais alto ou mais baixo. Na verdade, e devido ao tédio que a leitura da dita resenha me causou, não pretendia gastar tempo e tinta com ela, mas condenar o autor, como disse certa vez Silvio Romero a um crítico, ao mais perpétuo silêncio. Contudo, como soube, por amigos, que Silva Júnior andou se vangloriando do que escrevera e, pior ainda, fazendo comentários malévolos e injustificados a meu respeito, resolvi encaminhar à Sociedade e Estado, para publicação, os comentários que se seguem.

1 — Ao escrever sobre o meu livro, o resenhista Silva Júnior exagerou no uso de obviedades sob o pretexto de estar fazendo alta sociologia. Cito uma delas, talvez a mais gritante:

A sociologia não é uma disciplina consensual nem no seu objeto, nem nos métodos, nem nas teorias e nem no valor do significado de fazer sociológico. (...) De modo que não é possível falar da sociologia como única ou referir-se a ela e pretender univocidade e/ou consenso a seu respeito.

Cabe destacar que, após tal comentário, Silva Júnior acrescentou uma nota de rodapé, com a qual, certamente, desejava dar sustentação (teórica? metodológica? psicológica?) às suas palavras. Interessante, sem dúvida, pois o autor citado por Silva Júnior era ele próprio. E qual foi o trabalho citado? Uma apostila.

2 — Silva Júnior fez os comentários acima porque — obviamente — "percebeu" no meu livro um sentido, uma direção, uma tendência ou uma reles insinuação de que "a sociologia é uma disciplina consensual, etc.". Mais adiante, porém, Silva Júnior acrescentou, ao criticar o meu conceito de "biografia sociológica":

Ademais, donde a razão de chamar de sociológica a investigação do jogo conflituoso de interesses de um determinado campo intelectual?

É preciso, nesse ponto, prestar bastante atenção à sutileza das críticas de Silva Júnior. Eu afirmei, ipsis litteris, que a biografia de Manoel Bomfim era sociológica porque

procurou, através da obra desse personagem, investigar o jogo conflituoso dos interesses políticos e os traços marcantes de um campo intelectual e político numa determinada época histórica brasileira.

Embora o resenhista Silva Júnior tenha simplificado e truncado o que eu escrevi, empobrecendo em conseqüência as minhas idéias, o estranho nisso tudo é que ele não reconheça, como própria da sociologia, a investigação do jogo conflituoso dos interesses políticos num campo intelectual e político.

O mais pitoresco no comentário de Silva Júnior é que ele, por extensão e de forma oblíqua, negue a pertinência sociológica de uma vasta bibliografia das ciências sociais, inclusive dos clássicos, que buscou, justamente, interpretar os conflitos no campo intelectual. Tais conflitos, conforme mostrei em O rebelde esquecido, manifestaram-se através dos choques de idéias e polêmicas acerca de uma extensa pauta de questões, entre as quais o atraso brasileiro e da perspectiva efetiva de superá-lo. Por que isto, segundo Silva Júnior, não é sociológico? Silva Júnior não disse. Tal inconsistência da crítica de Silva Júnior misturou-se a outras tantas, evidenciando com clareza os reais objetivos da resenha que escreveu.

A rigor, Silva Júnior, que antes afirmara que "a sociologia não é consensual nem no seu objeto etc.", negou a mim a pertinência de considerar, tal como fizeram Bourdieu, em Campo intelectual e projeto criador, Daniel Pécaut, em Os intelectuais e a política no Brasil, Sérgio Miceli, em Intelectuais à brasileira, Antonio Luís Machado Neto, em Estrutura social da república das letras, e Roberto Ventura, em Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, como sociológica a investigação dos conflitos de interesses e políticos do campo intelectual. Estaremos todos errados?

Qualquer pessoa, ao ler o meu livro, perceberá que eu não disse, nem sugeri ou insinuei, que a sociologia era "uma disciplina consensual" — até porque não tratei desse assunto no meu livro. Apenas delimitei o meu campo de interesse.

3 — A verdade é que o resenhista Silva Júnior não debateu, com o cuidado necessário, partes essenciais do meu livro. E não o fez porque desconhece compactamente a obra de Manoel Bomfim e as questões do campo intelectual da sua época. Tanto desconhece que, na sua resenha, falou de "um projeto nacional tecido por Manoel Bomfim", dando a entender (atenção: tecer significa, no caso, compor, coordenar, fazer, elaborar, construir) que o sergipano teria escrito (um texto ou um livro?) explicitamente sobre o assunto. Não escreveu.

Ora, a busca de uma identidade nacional era, sem dúvida, um tema recorrente e implícito na obra dos principais intelectuais da época, de Silvio Romero a Bomfim, de Euclides da Cunha a Araripe Júnior, de Joaquim Nabuco a José Veríssimo, embora não fosse um objetivo em si dos autores da época. Bem verdade que todos escreveram, na virada do século, obras que iriam se inserir em um gênero de grande presença na cultura brasileira dos últimos cem anos: o ensaio de interpretação do Brasil — ou, talvez fosse melhor dizer, o ensaio de compreensão do Brasil. Opondo-se às justificativas raciais e mesológicas dominantes, Bomfim elaborou um discurso muito próprio e inovativo, fundado na idéia da dominação (interna e externa), acerca das causas do atraso brasileiro.

4 — Silva Júnior foi taxativo: faltou ao meu livro um "tratamento substantivo" da obra de Manoel Bomfim. Repito: não conheço o resenhista Silva Júnior — e nem o sabia um especialista na obra do sergipano. Será mesmo? Bem, um crítico (a rigor, qualquer pessoa) somente pode afirmar que não foi dado um "tratamento substantivo" sobre algo (no caso, a obra de Manoel Bomfim) quando possui, no mínimo, um conhecimento efetivo, reconhecido e amplo do assunto em pauta.

O tratamento que dei à obra do sergipano foi destacado (e elogiado, permitam-me a imodéstia) por vários intelectuais brasileiros de peso, que conhecem os livros e o pensamento de Manoel Bomfim: Antonio Paim (em Jornal da Tarde), Wilson Martins (em O Globo), Waldyr Freitas Oliveira (em A Tarde, de Salvador, e em palestra sobre O rebelde esquecido na Academia de Letras da Bahia), Marisa Lajolo (da Unicamp), Marco Antonio Villa (no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo), Maria de Lourdes Janotti (da Universidade de São Paulo), Vamireh Chacon (da Universidade de Brasília) e Luiz Antonio Barreto (da Universidade de Sergipe).

Os leitores que tirem suas conclusões.

5 — É preciso que os leitores prestem bem atenção às palavras do resenhista Silva Júnior:

Ao mesmo tempo em que a educação é enfatizada, falta a explicitação de duas idéias fundamentais para Manoel Bomfim a respeito de um projeto nacional por ele tecido, principalmente a partir da idéia de que é possível superar os males de origem que assolam o Brasil. Tal superação se daria a partir da implementação de uma política de educação para o povo, de especial modo, a educação primária, acompanhada de fomento da ciência e de uma ética do trabalho. Este é o exemplo mais significativo da falta de tratamento substantivo da obra de Manoel Bomfim (...).

Vamos por partes:

a) Silva Júnior utilizou as palavras "enfatizada" e "explicitada" como antípodas. Com o intuito de desqualificar o meu livro, qualificando-se ao mesmo tempo como um crítico responsável, ele procurou dizer que eu dei "ênfase" à educação defendida por Manoel Bomfim, mas não tornei "explícita" a idéia de educação do sergipano. Raciocínio tortuoso. É claro que O rebelde esquecido enfatiza e explicita a "idéia" educacional de Bomfim, que ao contrário do que disse Silva Júnior, não foi apresentada, nem formulada, como uma política. A rigor, como eu destaquei, o próprio Manoel Bomfim não "explicitou" o seu projeto educacional, dando-lhe (como faz sugerir Silva Júnior ao usar a palavra "política") um corpo organizado de ações e metas previstas. Bomfim, de fato, em "A América Latina: males de origem", apontou um caminho, uma saída, um "remédio" — uma "panacéia", como observou Antonio Candido, cuja análise, em parte, coincide com a minha. Em "O Brasil Nação", Bomfim defenderá não mais a educação como saída — e, sim, a revolução. Mas isto é outra história.

b) Como assinalei em O rebelde esquecido, "a proposta educativa de Manoel Bomfim tinha como fundamento a democracia, que ele defendia como o mais perfeito dos regimes políticos, na medida em que permite ao indivíduo o viver livre, numa perfeita inteligência com o resto da sociedade. Na realidade, Bomfim tinha em conta uma necessária sintonia entre o saber (a instrução), mediante a qual os indivíduos engrandeceriam a sua percepção dos fenômenos da vida social, e o exercício da liberdade, que garantiria aos indivíduos os direitos e os deveres próprios da cidadania". Bomfim via na educação uma função conscientizadora, pois compreendia-a como algo interligado à democracia. Poder-se-ia dizer, inclusive, que Bomfim vinculava a educação à política, e, não, ao "fomento" da ciência e à "ética" do trabalho.

c) No fundo, o projeto educacional de Manoel Bomfim era, antes de tudo, um projeto de futuro para o Brasil (O rebelde..., p. 502). E ele o "desenvolveu" ao longo da vida, como professor, pedagogo, político, psicólogo, jornalista e escritor. Jamais, em momento algum da sua vida e obra, Manoel Bomfim elaborou um "programa educacional". Mas os erros de Silva Júnior não param aí.

d) Manoel Bomfim, ao contrário do que afirmou Silva Júnior, não tratou, na sua obra de questões ligadas ao "fomento da ciência e de uma ética do trabalho". Claro, Bomfim fez, ao longo da vida, referências à importância da ciência, e não poderia ser de outra maneira, mas jamais balizou, como disse Silva Júnior, a educação, especialmente a educação primária, a uma política de fomento à ciência e uma ética do trabalho.

e) Ao afirmar tais coisas, o resenhista Silva Júnior, até por uma questão de honestidade intelectual, deveria ter citado o livro em que leu o "programa" educacional de Manoel Bomfim e suas idéias sobre "fomento" à ciência e "ética" no trabalho.

f) Silva Júnior afirmou muitas coisas sobre o meu livro e sobre Manoel Bomfim, cuja obra ele desconhece compactamente. Como diria Millôr Fernandes, "afirmar é só afirmar!"

6 — O resenhista Silva Júnior pinçou alguns trechos periféricos do meu livro para provar os seus argumentos. Um exemplo:

"Machado de Assis fez um discurso curto e pouco enfático, mas adequado ao seu estilo pessoal sóbrio. (...) Joaquim Nabuco, que falou em seguida, defendeu com bom humor o modelo de instituição que inauguravam naquela noite. Ao fim dos trabalhos foram servidos chá e biscoitos de araruta".

A partir de trechos como esse, o resenhista Silva Júnior quis "provar" que o meu livro é mera (!) narrativa ficcional. E ainda acrescentou:

Mas se é ou se se pretende de caráter sociológico, é mister que se apresente a origem de tais dados.

Como se vê, segundo Silva Júnior, um "dado" (Silva Júnior, na verdade, deveria ter escrito "informação") é sociológico quando está acompanhado de uma nota de rodapé. Será possível? Caio Prado Júnior, na obra clássica "História econômica do Brasil", escreveu páginas e páginas sem uma nota de rodapé sequer, inclusive notas de referência bibliográfica. Afinal, a obra de Caio Prado Júnior é menos sociológica, histórica ou científica por isso?

7 — Em primeiro lugar, Silva Júnior devia ter imaginado que todas as informações contidas no meu livro, inclusive o pitoresco e periférico detalhe do chá e dos biscoitos de araruta, eu retirei dos jornais e revistas que noticiaram, no dia seguinte, a inauguração da Academia Brasileira de Letras. Machado de Assis fez, na oportunidade, um discurso extremamente curto — e burocrático, sem expressividade. Vários estudos sobre a fundação da Academia Brasileira de Letras, com ou sem nota de rodapé, confirmam plenamente o que escrevi.

Não acrescentei, em tais casos, notas de rodapé por simples motivo de economia — e daí? O rebelde esquecido tinha (e tem) 735 notas. Como o "dado" (estou usando a expressão de Silva Júnior) era, repito, periférico — e por si só, não pretendia (e nem podia) ser "sociológico", mas apenas informativo, eu, utilizando a minha prerrogativa de autor, eliminei as notas correspondentes. E daí?

A verdade é que isto não impediu, por exemplo, que o meu livro recebesse o Prêmio de Melhor Tese de Doutorado no I Concurso Brasileiro CNPq-ANPOCS de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais. E fosse incluído na lista dos dez melhores livros de 2000, na categoria Ensaios e Biografia.

Cabe insistir: a verdade é que o trecho citado, ao contrário do que disse Silva Júnior, não pretendia ser sociológico — mas apenas informativo. O rebelde esquecido é, no todo, uma biografia sociológica — o que não significa, como quer Silva Júnior, que todas as frases, trechos ou "dados" do livro tenham que encerrar ou guardar uma significação sociológica. Muitas vezes, partes do livro — de qualquer livro! — têm, apenas, valor informativo, jornalístico, geográfico, histórico e, inclusive, literário. Por que não? Afinal, quando Euclides da Cunha disse que "o sertanejo é, antes de tudo, um forte", ele estava, tecnicamente, usando uma imagem literária para reforçar uma idéia que perpassou toda a sua obra. O mesmo se dá quando Sérgio Buarque de Holanda utiliza, em "Raízes do Brasil", os termos "semeador" e "ladrilheiro" para se referir aos arroubos da expansão portuguesa e o caráter prudente do espanhol. Os exemplos são muitos.

8 — Como vimos, Silva Júnior formulou, na resenha que escreveu sobre o meu O rebelde esquecido, a "teoria do rodapé sociológico" — ou seja, "se é e se se pretende de caráter sociológico, é mister que se apresente a origem dos dados".

Façamos, agora, uma breve analogia (não uma comparação!). Quando Gilberto Freyre, em Casa grande & senzala, nos ilustrou sobre o mau costume português de jurar "pelos pentelhos da Virgem", julgou (com razão!) não ser necessário citar a origem do "dado". E não citou!

Em Sobrados e mucambos, Gilberto Freyre construiu a bela metáfora das palmeiras que celebram a vitória da terra tropical sobre o invasor morto: "... debaixo de palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes sobre o invasor nórdico". Otto Maria Carpeaux, um dos nossos maiores críticos, ao ler essa página, não resistiu: "Depois de ter lido aquela página, li muitas outras páginas, grandes páginas da prosa portuguesa: algumas, iguais; nenhuma, superior". Silva Júnior deveria refletir sobre tudo isso.

Aliás, Gilberto Freyre nos deu inúmeras lições de como a técnica literária pode ser útil ao ensaio. Ele, por exemplo, qualificou de "brasileirinha da silva" a arquitetura das casas grandes. E, sem nota de rodapé, acrescentou uma frase ousada:

Nas senzalas havia mais gente sabendo ler e escrever que no alto das casas grandes.

Eu disse, e Silva Júnior espantou-se, que "o comércio local (de Aracaju, em 1859) era tosco, nada mais que três armazéns de secos e molhados, duas bodegas, duas padarias, uma loja de artefatos de couro, uma marcenaria e uma ferraria".

Silva Júnior deveria perceber que tais "dados" foram colhidos ou em jornais da época ou no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, onde pesquisei durante muitas semanas. Os "dados" são perfeitamente reais — e se eu tivesse incluído uma nota de rodapé, citando a fonte, eles, ao contrário do que supõe o resenhista, não se tornariam sociológicos. Seriam, continuariam a ser, apenas "dados" — ou seja, informações.

Críticas, nesse caso, só se justificariam se eu tivesse escrito que, em Aracaju, em meados do século 19, havia um shoping center.

9 — Os leitores do meu livro devem ter percebido que eu li coleções de jornais e revistas, tanto do Rio de Janeiro como de Aracaju e Mococa. Que vasculhei o Arquivo Público da Cidade do Rio e o Arquivo Nacional. Que entrevistei inúmeros descendentes de Manoel Bomfim. Que cruzei milhares de informações, buscando pistas e informações fidedignas sobre o meu biografado. Tenho, hoje, inclusive como resultado de tudo isso, um enorme acervo sobre o sergipano, que vai de cartas, objetos, recortes de jornais e revistas, fotografias, cartões, cadernos de notas e um manuscrito (o livro Moral de Darwin) que Bomfim deixou inédito.

A professora Marisa Lajolo, autora dos livros A formação da leitura no Brasil e O preço da leitura, disse-me, ao telefone, que apreciou muito o estilo coloquial que eu dei ao meu livro, que, segundo ela, foi um importante "achado" em teses sociológicas.

Segundo Sérgio Adorno, ex-Secretário Executivo da ANPOCS, em informação dada a mim pessoalmente, os membros do júri do Prêmio CNPq/ANPOCS ficaram "vivamente impressionados" (a expressão é dele) com o estilo literário do meu livro.

De uma vez por todas: não me envergonho nem me arrependo de ter utilizado técnicas narrativas literárias para debater ou apresentar passagens da vida de Manoel Bomfim. Esta, aliás, era uma das propostas do livro — e está escrito, com todas as letras, na "Introdução" de O rebelde esquecido. Repito: tal proposta ousada não impediu que o meu livro recebesse o mais importante prêmio das ciências sociais brasileiras.

Quando, por exemplo, eu imaginei um diálogo noturno, pelas ruas desertas de Salvador, entre Manoel Bomfim e Alcindo Guanabara, desejei apenas embelezar o meu texto e fornecer, através de uma narrativa literária, uma dimensão realista das dúvidas pessoais que atazanavam o sergipano: seguir para o Rio ou retornar à Sergipe. O diálogo entre os dois amigos girou em torno de questões reais, que ambos estavam vivendo. E daí que eu tenha contado o episódio num estilo literário? Utilizei a imaginação, sim, mas a imaginação é um recurso que não se opõe ao rigor factual e conceitual. Como dizia Einstein, ninguém faz ciência sem imaginação.

10 — Reparem os leitores o que disse o resenhista Silva Júnior:

A construção de um texto nos moldes sociológicos (...) implica num procedimento que prime por apresentar os argumentos de uma maneira tal que evite confusões de significado — e isso é questão de método. Com isso, o fazer sociológico significará produção de discursos cada vez mais livres de contradição. O livro apresenta algumas inconsistências no que respeita à esta especificidade argumentativa.

Como eu disse antes, afirmar e só afirmar! Mas, afinal, o que é, segundo expressão usada por Silva Júnior, um texto "nos moldes sociológicos"? Será que o resenhista Silva Júnior admite que deva existir uma espécie de "consenso", uma fórmula única, um modelo exclusivo — enfim, um molde — de apresentação de textos sociológicos? Mas não foi ele próprio quem disse que a sociologia não é consensual? Será que existe um consenso do modo de "escrever sociologia"? A obrigação do sociólogo (como de qualquer profissional que lide com a escrita) é escrever bem — e, se possível, com charme.

Silva Júnior, reparem!, fala ainda em "discursos cada vez mais livres de contradição" — e conclui afirmando (afirmar é só afirmar!) que o meu livro "apresenta algumas inconsistências no que respeita a esta especificidade argumentativa".

Percebam agora uma coisa: em toda a resenha, nenhuma contradição argumentativa foi citada ou apontada explicitamente por Silva Júnior, que se limitou a afirmar (afirmar é só afirmar!) que o meu livro apresenta inconsistências dessa ordem.

Este procedimento de Silva Júnior tem um nome. Um nome pouco elegante. Que eu não escreverei aqui em respeito à revista Sociedade e Estado.

11 — Silva Júnior adotou, no seu trabalho, não só o expediente do "afirmar é só afirmar!" como, também, o método de atribuir ao autor (no caso, a mim) intenções — e, a partir daí, elaborar críticas ao meu livro. O resenhista utilizou diversas vezes expressões como "parece que", "tenho a impressão que", "é possível que", "tenho a sensação que" ao escrever sobre O rebelde esquecido.

Não creio que seja possível a elaboração de uma crítica responsável apoiada em expressões tão dúbias, vagas e contraditórias.

12 — O resenhista Silva Júnior citou ainda outro exemplo que, segundo ele, "prova" que o "ambiente" do meu livro "foi claramente criado pela imaginação".

Adequadamente, o último capítulo é intitulado de epílogo e um dicionário (sic!) dos nomes dos escritores, dos poetas e dos jornalistas citados tem a denominação de elenco, referências condizentes com o desenvolvimento da trama.

Os leitores do meu livro sabem perfeitamente que o título do capítulo citado (que fala da morte de Manoel Bomfim e faz um balanço das causas do seu esquecimento) não é apenas "Epílogo", como sugere o resenhista — e, sim, "Epílogo: o legado e o silêncio". Mas, lembrem-se: "epílogo" significa "conclusão". E esta — fazer uma conclusão — foi a intenção manifesta do capítulo, o último capítulo do livro.

Chamei de "elenco" o que seria, tecnicamente, um "glossário de nomes citados", por uma simples e mera questão de preferência e gosto. Não gosto da palavra "glossário", que mais parece nome de um animal do Jurassic Park.

Mas, disso tudo os leitores (e Silva Júnior) devem aprender uma coisa: a diferença entre "dicionário" (palavra usada por Silva Júnior) e "glossário" ou "elenco". Dicionário, segundo o Michaelis, é "uma coleção de vocábulos de uma língua, ciência e arte, dispostos em ordem alfabética, com o significado ou equivalente na mesma ou em outra língua". Glossário e elenco referem-se a uma relação ordenada, uma lista, uma súmula. Ao contrário do dicionário, glossário e elenco não lidam com o significado do vocábulo.

13 — Lá pelas tantas, diz Silva Júnior:

O livro apresenta o que o mundo ocidental elegeu como os grandes temas da vida de um homem: sua terra natal, o sucesso do pai...

Aqui, o resenhista Silva Júnior, utilizou um velho clichê: o mundo ocidental. A rigor, não valorizei nada. Apenas contei, embora, sem qualquer drama de consciência, eu pudesse valorizar o "pulo" social do pai de Manoel Bomfim, pois isso ajudou o sergipano a elaborar um discurso diferenciado sobre o chamado racismo científico. Enquanto autores como Silvio Romero e Euclides da Cunha viam o "curiboca" (o mestiço sertanejo) como um inferior, condenado à "involução", Manoel Bomfim viu o pai, um legítimo curiboca, crescer socialmente, graças à sua própria capacidade e esforço.

14 — Citei inúmeros autores no meu trabalho. Silva Júnior menosprezou todos os autores citados, apregoando a existência de "leituras e interpretações mais inovativas". Tal expediente é muito comum no meio acadêmico — o que não obrigou o resenhista a apontar os nomes dos autores "inovativos". Assim, é mole fazer crítica.

Afirmar, como fez o resenhista Silva Júnior, que os autores por mim citados (entre os quais Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Edgard Carone e Renato Ortiz) são "tradicionais" e representam o "senso comum", é um exemplo evidente da técnica "afirmar é só afirmar!"

15 — Silva Júnior diz ainda que não fiz uma discussão aprofundada do positivismo — e aqui estamos diante de um, para dizer o mínimo, expediente duvidoso. Ora, o positivismo, em si, não era meu tema, como não era o anarquismo e o socialismo, que também chegaram ao Brasil na mesma época. Falei sobre o positivismo (como sobre o anarquismo e o socialismo) aquilo que julguei necessário ao fio condutor do meu livro, mormente sobre suas divisões no período que antecedeu e se seguiu à República.

16 — A verdade é que o resenhista Silva Júnior tem todo o direito de não gostar do meu livro, mas ele tem o dever de ser objetivo e correto nas suas observações.

Silva Júnior afirmou que O rebelde esquecido apresentava argumentos contraditórios, mas não apontou, nem explicitou, uma só contradição do livro. Apenas afirmou.

Silva Júnior afirmou que eu não fiz uma análise substantiva da obra de Manoel Bomfim, mas demonstrou desconhecer compactamente a obra do sergipano. Afirmar é só afirmar!

Silva Júnior disse que a sociologia não é consensual, mas negou que os estudos dos conflitos políticos e de interesse no campo intelectual constituíssem um tema sociológico.

Silva Júnior criticou todos os autores que citei, chamando-os indiretamente de superados, mas não citou um só nome alternativo, apesar de dizer que eles existem.

Silva Júnior afirmou que o meu livro não tem rigor sociológico, mas não debateu partes essenciais de O rebelde esquecido.

Ao final do seu texto, Silva Junior disse que seus comentários e críticas foram elaborados "no espírito do melhor debate acadêmico". Não creio. Na sua resenha, Silva Junior nada mais fez que afirmar, supor, achar, ter sensações e impressões — e a partir daí tudo afirmar (afirmar e só afirmar!) sem o compromisso de evidenciar e demonstrar. As críticas de Silva Júnior, já esmiuçadas, são uma nota dissonante às inúmeras resenhas e estudos que muitos e importantes intelectuais fizeram sobre o meu livro.

Silva Junior, é claro, opõe-se e discorda dos 8 membros do júri que me conferiram o Prêmio CNPq/ANPOCS, das personalidades do júri do Prêmio Jabuti, que incluíram O rebelde esquecido na lista dos dez melhores livros do ano, categoria Ensaio e Biografia, ao lado de livros como A sociedade contra o social, de Renato Janine Ribeiro, e Mímesis: desafio ao pensamento, de Luiz Costa Lima.

Silva discorda também da opinião de Roberto Ventura, Waldyr Freitas Oliveira, Marisa Lajolo, Leodegário de Azevedo Filho, Luís Nassif, Vamireh Chacon, Wilson Martins, Antonio Paim, Marco Antonio Villa, Roberto Bartholo, Maria de Lourdes Janotti, Adalmir Leonídio, Aluízio Alves Filho, Gisélia Potengy, Zuenir Ventura, Armando Rollemberg, Luis Gutemberg, Rui Raposo, Luiz Antonio Barreto, entre tantos outros que escreveram e se pronunciaram seriamente, e em público, sobre o meu O rebelde esquecido.

17 — Bem, aqui, eu paro. Tenho problemas mais sérios a resolver e trabalhos a escrever, entre os quais uma biografia de Olavo Bilac. Repito: não conheço pessoalmente Silva Júnior — e não sei, nem posso imaginar, as razões íntimas que o levaram a escrever a resenha do meu livro.

É hora, portanto, de retomar as minhas atividades, que interrompi, momentaneamente, para redigir essas notas. Sou Ronaldo Conde Aguiar — e sou escritor de quatro livros, dos quais dois foram premiados, lidos e debatidos com seriedade e honestidade em todo o Brasil.

O rebelde esquecido já vendeu mais de cinco mil exemplares. As cartas e os telefonemas que recebi de numerosos leitores (acadêmicos ou não) e o Prêmio CNPq/ANPOCS constituem, para mim, os verdadeiros atestados que guardo do meu livro. O resto é silêncio.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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