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Desenvolvimento Humano Sustentável no Semiárido do Nordeste do Brasil: da constitucionalização à efetivação dos direitos sociais

Sustainable Human Development in the Semi-arid Region of Northeastern Brazil: from the constitutionalisation to the effectuation of social rights

Resumo

Este artigo tem como objetivo demonstrar que a efetivação dos direitos fundamentais em sua integralidade pode ensejar as condições necessárias para a universalidade do bem-estar na sociedade brasileira. Toma-se como referência o Programa Bolsa Família como política pública direcionada para a redução da pobreza e da miséria e o semiárido do Nordeste do Brasil como campo de observação privilegiado dos reflexos de sua aplicação. Adotou-se uma abordagem histórica para identificar os problemas de ordem jurídico-política que funcionam como barreiras para as ações do Estado que visam à igualdade social. Conclui-se que o desenvolvimento sustentável depende da efetivação articulada dos direitos sociais.

Palavras-chave:
Constituição; Direitos Sociais; Bolsa Família

Abstract

This goal is demonstrate that the implementation of fundamental rights in its integrety can create the necessaries conditions to the ensemble of well-being in brazilian Society. As reference is taken into account the program ¨Bolsa Familia¨ as public policie aimed to reduce poverty and misery, focusing in Northeast semi-arid as a prime field of observation of its direct impact. Considering the history approach to identify problems which have a political-legal nature that induce state actions barriers striving for social equality. In conclusion, the sustainable growth depends of articulated realization of social rights.

Keywords:
Constitution; Social Rights; Public Politics

1 Introdução

Suponha-se a existência de uma rua qualquer de nossas grandes cidades, onde poucos transeuntes se arriscam a atravessá-la, pois a sua iluminação é precária e as edificações são desabitadas ou com fundos virados na sua direção; imagine-se que nesse local um restaurante ponha em um depósito de lixo restos de comida dos pratos servidos aos clientes, o que atrai alguns miseráveis em busca de alimentos. Pense-se, ainda, que, desde determinado momento, se avolumam reclamações de pessoas, vítimas de assaltos. Um dos autores deste artigo, sempre que tem oportunidade, nos debates acerca do tema violência, provoca os assistentes com a seguinte indagação: o que deve ser feito para gerar segurança às pessoas neste espaço? A resposta mais frequente é a de que as autoridades devem providenciar iluminação adequada no local e/ou destacar um policial para fazer a segurança.

O automatismo dessa resposta demonstra o quanto está enraizada na mentalidade coletiva brasileira a adoção da força coercitiva, seja policial ou normativo-jurídica, como ideal para a solução de manifestações de violência, mesmo quando concernentes à desorganização social. As pessoas se surpreendem quando confrontadas com a hipótese de se estender a segurança alimentar a todos, antes que se promovam ações de segurança visando à integridade física dos transeuntes, como se encontra ordenadamente garantida na Constituição de 1988. Por outro lado, assiste-se, na sociedade brasileira, mesmo na classe média letrada, à elaboração e à reprodução de certos discursos, os quais, mais do que contradizer a viabilidade ou a eficácia dos benefícios coletivos que ações de combate à miséria poderiam produzir, estigmatizam os programas direcionados a este fim e os seus beneficiários. Este é o caso, por exemplo, do Programa Bolsa Família, que muitos denominam de “Bolsa Miséria”, e classificam aqueles que recebem o auxílio financeiro como preguiçosos, malandros, vagabundos, dentre outras adjetivações pejorativas, que muitas vezes decorrem de visões simplistas e estereotipadas do perverso e complexo problema da pobreza e dos meios idealizados para eliminá-la ou reduzi-la.1 1 Para Rego e Pinzani (2014, p. 43), a imagem negativa da sociedade em relação à pobreza e os pobres, “[...] passa pela atribuição aos indivíduos da responsabilidade pela sua situação (como se eles estivessem escolhidos ser pobres, nascer em família pobre, bairro pobre, área rural pobre, enfim em um país pobre, ou que não cuida deles) [...]”. No mesmo sentido, afirma Jessé Souza (2011) que a chave de leitura liberal-conservadora naturaliza as desigualdades sociais, dado que explica os privilégios de classe e a apropriação desigual dos bens (materiais e imateriais) pela óptica da ideologia do mérito (meritocracia), de tal modo que o sucesso e o fracasso social decorrem, respectivamente, do talento e da incapacidade (culpa) dos próprios indivíduos e, com efeito, as assimetrias na sociedade seriam legítimas e justas.

Realiza-se, neste artigo, um esforço para demonstrar que a adoção de políticas públicas direcionadas para a concretização dos direitos sociais contribui significativamente para a implementação de condições necessárias ao desenvolvimento humano2 2 Conforme Coutinho (2013), pesquisas recentes sustentam a tese de que as políticas públicas de redistribuição de renda têm um influxo mais rápido e efetivo na redução da pobreza e da miséria, bem como na equalização das desigualdades sociais, do que um programa exclusivo de crescimento econômico. , entendido como estando supridas as questões elementares de sobrevivência e que seja estatisticamente desprezível o número de pessoas sobrevivendo abaixo da linha de pobreza. Para tanto, parte-se da premissa de que as políticas públicas de efetivação de direitos sociais podem garantir o denominado, na doutrina constitucional contemporânea, “mínimo existencial”, que consiste em condições materiais básicas para proporcionar uma existência humana digna3 3 Ingo Sarlet (2005, p. 32) define dignidade da pessoa humana “[...] como sendo a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa [...] condições de existência mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. e com justiça social, bem jurídico indispensável ao exercício concreto dos direitos individuais (autonomia privada) e dos direitos políticos de participação democrática (autonomia pública). E a razão disso é que, nas palavras de Norberto Bobbio (2004BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 206-207), “[...] os direitos de liberdade só podem ser assegurados garantindo-se a cada um o mínimo de bem-estar econômico que permite uma vida digna”4 4 Em outro trabalho, o autor italiano reforça essa ideia, ao considerar que “[...] o indivíduo instruído é mais livre do que um inculto; um indivíduo que tem um trabalho é mais livre do que um desempregado; um homem são é mais livre do que um enfermo.” (BOBBIO, 2000, p. 508). .

Há de se registrar o fato de que a Constituição de 1988, como um texto de natureza programática e dirigente, além de enunciar um amplo rol de direitos civis e políticos, prevê um importante catálogo de valores e direitos sociais direcionados para a realização de um Estado de bem-estar social no Brasil. Com efeito, desde o Preâmbulo, o Diploma Constitucional já orientou o legislador constituinte a instituir um sistema jurídico democrático para assegurar o exercício dos direitos sociais, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça social, bem como frisou que sobreditos valores são supremos em uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Além disso, a Constituição fixou a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como fundamentos do Estado Democrático de Direito (BRASIL, 1988, art. 1ºBRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988,). E, também, previu como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a formação de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e, ainda, a redução das desigualdades sociais e regionais (BRASIL, 1988, art. 3º).

A Lei Suprema traz, portanto, como escopo a “transformação da sociedade”, na medida em que, reconhecendo, contrario sensu dos fins previstos na Constituição, que o país é intensivamente marcado por desigualdades, fixa como imperativo jurídico-político a eliminação da miséria e da marginalização e ainda a redução das assimetrias sociais e regionais (COUTINHO, 2013COUTINHO, Diogo R. Direito, desigualdade e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013.). Noutras palavras, a intervenção do Estado por meio de prestações materiais de inclusão social de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade econômica não é uma faculdade do Poder público, mas sim uma obrigação constitucional para efetivar um desenvolvimento humano sustentável, que pressupõe a cumulação de desenvolvimento social e crescimento econômico5 5 Ver ainda sobre este tema Bercovici (2015). .

2 A Riqueza e a Miséria Produzida no Nordeste

Nesta seção, serão apresentados aspectos geográficos e características da formação socioeconômica da região Nordeste do Brasil, espaço aqui delimitado como campo de referência para as reflexões acerca da mensuração das influências e do potencial de desenvolvimento humano, com suporte em ações estatais sob a orientação das previsões constitucionais concernentes aos direitos sociais. Mais especificamente, a área do semiárido é onde a pobreza, a miséria e a distância do acesso aos bens materiais e imateriais entre as classes sociais sempre se mostraram elevadas, de sorte que o caso é de um fenômeno social historicamente estabelecido. Portanto, mesmo referenciando a problemática para a totalidade social brasileira, sempre que oportuno, será focado prioritariamente o Nordeste, uma vez que aí se verifica com maior agudez o objeto tratado neste estudo.

Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGEBRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Sistema Integrado de Projeções e Estimativas Populacionais e Indicadores Sociodemográficos. 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/tabela1.shtm >. Acesso em: 28 ago. 2015.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
), referentes ao ano de 2010, indicam que a região Nordeste do Brasil, com área aproximada de 1,5 milhão de Km2, equivalente a 18% do território brasileiro, e uma população de 53.091.850 pessoas, que representa 28% do total do contingente demográfico brasileiro, possui uma taxa de crescimento populacional anual de 1,1% e de urbanização de 65,2%, inferior ao que se verifica no Brasil, que é de 78,4%. A esperança de vida ao nascer é de 65,5 anos, menor do que a média nacional, de 68,4 anos. A taxa de mortalidade infantil, medida para menores de cinco anos de idade, alcança 58,9%, enquanto a do Brasil atinge 39,4%. Esse espaço é delimitado em quatro zonas geográficas: meio-norte, sertão, agreste e zona da mata. Será aqui focado o sertão, que possui um clima semiárido e uma vegetação predominante de caatinga.

No trabalho A invenção do Nordeste e outras artes, Albuquerque Júnior (1996ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1996.) defende a tese de que o Nordeste miserável, da seca, do cangaço, do misticismo, sociológico e romanticamente constituído, apreendido pelo discurso político e reelaborado como o Nordeste das vítimas, dos pedintes e dos injustiçados, foi gestado e instituído nos anos 30 do século XX. Para esse autor, a imagem do Nordeste miserável se edificou com amparo nas obras dos romancistas regionais, como José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Pensar esses autores como fundamentais na formação da idealização do Nordeste miserável é procedente; porém, precisar um momento para a sua constituição pode excluir outras visões que também contribuíram neste processo, como, por exemplo, a de José de Alencar, que inaugurou a seca como tema literário em O Sertanejo (1875ALENCAR, José de. O sertanejo. Rio de Janeiro: Editora Aguilar, (1875)/1965.), e, no campo científico, a de Carl Friedrich Phillip von Martius (1794-1868). É em Os Sertões, no entanto, publicado em 1902 por Euclides da Cunha, que se produzem asserções de cunho valorativo essenciais para a consolidação deste Nordeste no imaginário nacional. Isto porque, ao discriminar o sertão como um espaço marcado pela catástrofe, estigmatiza-o como um lugar impossível de ocasionar riqueza. Suas impressões descortinam uma região castigada pelo sol inclemente e pela chuva torrencial, e induzem à montagem de um quadro que desvenda uma terra num estado de permanente estio, que ocasionalmente assiste a um período curto de chuvas torrenciais. Descreve o sertão inóspito, fracassado, penoso em sua travessia, aos olhos e ao corpo do viajante:

[...] a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urtigantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; desdobra-se lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado. (CUNHA, 1979CUNHA, Euclides. Os sertões. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1979., p. 29)

Este discurso influenciou outros intelectuais que também reforçaram os aspectos mais adversos do sertão. Idealizaram-no como um lugar onde jamais vicejarão riqueza e abundância. Estudos sociológicos e econômicos sobre a Região percorreram essa mesma trilha e a ardência do sol tornou-se uma recorrência intensa nas análises realizadas. Consolidou-se a douta opinião de que o ato que motiva o insucesso econômico é a seca, o mal que castiga o solo, destrói as plantas e impede o florescimento dos negócios. O sociólogo francês Roger Bastide (1959BASTIDE, Roger. Brasil: Terra de Contrastes. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1959., p. 79), por exemplo, só enxergou desesperança para aqueles que insistem em labutar no sertão. Acreditava que “[...] o homem da caatinga nada tem diante de si, a não ser um céu imenso implacavelmente azul estendendo-se sobre seu chapéu de couro, e em que raras nuvens se esgarçam devoradas pelo sol insaciável”. O geógrafo Manuel Correia de Andrade (1986ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Editora Atlas, 1986.), ao definir o espaço que caracteriza o sertão, salienta seu aspecto climático como limite da prosperidade. Segundo ele,

[...] o sertanejo está sempre preocupado com a possibilidade de uma seca, já que desde os tempos coloniais ela se vem repetindo, com maior ou menor intensidade, mas com periodicidade impressionante. (ANDRADE, 1986ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Editora Atlas, 1986., p. 45)

A representação coletiva do Nordeste miserável deslocou-se do campo literário para o técnico-científico, daí para o terreno imagético do cinema e dos telejornais. Se tal representação, entretanto, não corresponde à verdade, então, onde se originava e para onde se dirigia a riqueza produzida no sertão?

Outros olhares se opuseram a esta generalização do Nordeste miserável e distinguiram espaços de produção de riqueza, mesmo na área concernente ao semiárido, fato este já existente antes mesmo da industrialização e do surgimento das metrópoles. O historiador Nobre (1989NOBRE, Geraldo da Silva. O processo histórico de industrialização do Ceará. Fortaleza: SENAI/DR-CE, 1989.) chama a atenção para a produção do algodão que, em alguns momentos, gerou mais recursos do que a exportação do açúcar; além do que aponta a existência de elevadas somas arrecadadas no sertão nordestino, com base no interesse internacional, que perdurou do período do surgimento das grandes indústrias até a Segunda Grande Guerra, relativas à produção de óleos vegetais, extraídos da mamona, da amêndoa do babaçu e do caroço do algodão. Arruda (2003ARRUDA, Gerardo Clésio Maia. Andarilhos do sertão: a mudança do padrão de comportamento do trabalhador rural na cidade do semiárido nordestino. 2003. 215 p. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2003.), por sua vez, salienta o capital produzido e acumulado pelos criadores de gado no sertão, que combinavam a atividade da criação extensiva para a exportação da carne e do couro com a atividade comercial nas vilas e cidades sertanejas.

O Nordeste miserável é uma representação construída que funcionou para escamotear a dominação que se exercia sobre trabalhadores rurais, ao naturalizar a miséria da terra e, por conseguinte, a do homem, assim tornando invisível a formação de capital e a sua acumulação concentrada, produzida em todas as subáreas geográficas do Nordeste, compreendendo a zona da mata, do agreste, sertão e meio norte. Uma riqueza construída apesar da baixa produtividade das atividades econômicas, principalmente quando comparada com a região sudeste, como foi exemplarmente diagnosticado pelo economista Celso Furtado (2007FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.). Saliente-se ainda, como demonstrado pelo sociólogo Francisco de OliveiraOLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma Re(li)gião: SUDENE, Nordeste, planejamento e conflito de classes. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1981. (1981OLIVEIRA, Nilton Marques; SOUZA, Luana Borges de. Estado de bem-estar social: à luz do pensamento de Gunnar Myrdal e Amartya Sen, 1981. Disponível em: <Disponível em: http://www.academia.edu/4108091/ESTADO_DE_BEM-ESTAR_SOCIAL >. Acesso em: 10 set. 2015.
http://www.academia.edu/4108091/ESTADO_D...
), que nesta economia de baixa produtividade a acumulação da riqueza era apropriada por uma minoria, o que resultava em efeitos danosos para o conjunto da população nordestina.

Furtado (1989FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.) descreveu a economia do Nordeste, que a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) procurou transformar, como sendo um sistema de baixa produtividade e dependente do comércio exterior. Historicamente se constituiu no Nordeste dois polos de produção; sendo um - economia de centro - de exploração agrícola na faixa litorânea voltada para a exportação; e, outro - economia periférica - dedicado à produção de animais de carga e para a alimentação, com o intuito de abastecer o primeiro polo, sendo complementado com a produção de subsistência alimentar. No primeiro polo, o trabalho escravo era parte do capital dos empreendimentos, que, nas fases de redução de demandas do mercado externo, levava as empresas a optarem pela redução da mão de obra livre, com o objetivo de diminuir as despesas e manter as taxas de lucro. Essa força de trabalho liberada engrossava a mão-de-obra ocupada na economia periférica, assim reduzindo ainda mais a produtividade deste polo e, simultaneamente, ampliando sua importância demográfica.

Entretanto, como a expansão das oportunidades de trabalho era mais elevada na economia de subsistência, este polo funcionava como lócus de absorção de excedente de mão-de-obra do setor exportador, que a partir do século XIX passou a se confrontar com uma permanente redução do seu mercado consumidor. Dessa forma, engendrou-se uma economia regional com fluxos entre os dois polos, onde a crise de exportação que se abatia crescentemente sobre as empresas da faixa litorânea reduzia as taxas de lucro e a renda do trabalho assalariado; porém, na economia de subsistência, assistia-se a uma degradação crescente das condições de sobrevivência, o que provocava um empobrecimento médio da região.

Considere-se ainda, na configuração econômica do Nordeste, a singularidade de que quanto mais a necessidade foi expandindo a exploração das terras mais afastadas do litoral, ou seja, quanto mais se avançou em direção ao sertão - corruptela de “desertão” - mais foi se praticando uma agricultura em áreas de baixos índices pluviométricos, o que foi expandindo a economia de baixa produtividade na região. Porém, floresceu na economia de subsistência, como salienta Furtado (1989FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.), a produção de mercadorias direcionados para exportação, principalmente algodão e oleaginosas, um fator que contribuiu para um aprofundamento da distância social existente nesta área onde a produtividade é mais baixa. Isto porque o binômio algodão-pecuária se assentou no latifúndio, de sorte que se ocuparam as maiores e as melhores faixas de terras para a exploração das mercadorias geradoras de lucros mais elevados, enquanto a mão-de-obra excedente se localizava em faixas de terras de baixa produtividade especializando-se na produção de alimentos. E, em função da concentração da terra, muitos exerciam essa atividade na terra de outros, sendo remunerados na forma de parceria, percebendo um terço ou metade da produção.

O crescimento demográfico combinado com a estrutura fundiária, marcada pela posse de latifúndios nas mãos de poucos proprietários, foi robustecendo as mazelas provocadas nas grandes estiagens, que a partir do século XIX ganhou visibilidade nacional. O problema da seca, que arrastava contingentes populacionais expressivos para a condição de miséria e fome tornou-se uma “questão social” a ser enfrentado pelo poder público. As ações invariavelmente se davam por intermédio das chamadas “frentes de trabalho”, onde levas de trabalhadores eram alocadas para a realização de serviços de construção de barragens e açudes, normalmente realizados nas grandes propriedades; ou ainda, na prestação de serviços outros, normalmente ligados aos interesses dos grandes proprietários, como estradas vicinais ou obras que facilitassem a estocagem e o escoamento da produção.

Nessa perspectiva, a ação estatal não alterava as características do sistema econômico da região, uma vez que favorecia a acumulação de poder dos donos dos latifúndios. Tem-se na intervenção do Estado para solucionar o problema da seca uma contribuição para aprofundar os problemas na região que, de acordo com Furtado (1989FURTADO, Celso. A fantasia desfeita. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989., p. 23), são originados por uma combinação onde “[...] o ecológico, o econômico, o social e o político se entrelaçaram para produzir o duro cimento em que se alicerçou o subdesenvolvimento do Nordeste”.

Foi principalmente nas cidades sertanejas que se edificaram os sobrados, símbolos do poder patriarcal, como nos diz Gilberto Freyre (1998FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Record, 1998.). Dos sobrados se originam dois tipos de dominação praticada no sertão: o tipo exercido mediante uma relação pessoal, mas praticada a distância; nesta, a riqueza se produzia no mocambo, nas fazendas de criação de gado e nas plantações de algodão, e a apropriação ocorria nos sobrados, nas cidades, sem que se estabelecesse uma vigilância diuturna sobre o trabalho realizado nos mocambos: mesmo longe dos olhos do dono, o gado engorda; e o tipo que se exercitava por via de um ajuste da dominação racional legal e pessoal, nas indústrias e nos comércios das cidades, comandados também pelos fazendeiros que empregavam e subjugavam os sertanejos migrantes, então, por meio de uma relação assalariada, mas fazendo-se questão de manter elementos constitutivos da sua relação com vaqueiros e agricultores. Estabeleceu-se uma contiguidade entre o mocambo da fazenda de gado e os da roça e da cidade, pois, se o patrão era o mesmo na fazenda, no roçado e na cidade, o operário da fábrica coincidia com a pessoa que transferiu o seu mocambo do sertão para a cidade, enfim, o mocambo do mato e o da cidade eram um só, e o poder do sobrado se estendia aos dois.

O trabalho urbano-industrial, comercial e de serviços foi largamente introduzido no Nordeste nos anos 1960; um tipo de trabalho formalmente regulado que estabelece direitos e obrigações inexistentes no trabalho do campo. Esse processo, porém, não foi capaz de reduzir a distância entre as classes sociais da região Nordeste, pois as suas causas que remontam ao período de sua ocupação territorial e ao início da exploração de suas riquezas permaneceram praticamente inalteradas.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2010BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Dimensão, evolução e projeção da pobreza por região e por estado no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2010., mediu, para o período de 1995 a 2008, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAP), as taxas de pessoas na condição de pobreza absoluta e extrema, sendo a primeira circunstância formada pelas pessoas com rendimento médio domiciliar per capita de até meio salário-mínimo e a segunda por aquelas pessoas de até um quarto de salário-mínimo mensal.

Grafico 1
Taxas de pobreza absoluta e extrema nas grandes regiões em 1995 e 2008 (em %)

Os 13 anos pesquisados indicam que a região Nordeste continua sendo um espaço onde imperam a pobreza e a desigualdade. As taxas de todas as regiões denotaram um comportamento decrescente, mas a região Nordeste ainda permanece com a maior taxa para a pobreza absoluta. Quanto à pobreza extrema, a percepção é de que o seu índice é disparadamente mais elevado do que o das demais regiões do Brasil. Isto demonstra que há uma necessidade de empreender esforços ainda mais relevantes, principalmente ao considerarmos que este quadro resulta de um longo decurso histórico que remete para os primeiros momentos de ocupação da região.

O quadro da pobreza delineado para a região Nordeste do Brasil e, em especial, para a área do semiárido, é a base sobre a qual devem ser pensadas a garantia dos diretos e a adoção das políticas sociais nacionais. Isso porque existe nesta região um contingente de miseráveis mais expressivo do que nas demais, portanto, são mais frequentes os necessitados de ações provisionais capazes de assegurar um mínimo existencial. Com efeito, a manutenção de vasto contingente populacional neste estado de sobrevivência frustra a possibilidade do debate acerca do alargamento da garantia dos direitos sociais.

3 A Proposição da Equidade nos Direitos Sociais Constitucionalizados

Para compreensão abalizada dos descaminhos experimentados na trajetória da conquista e da consolidação dos direitos sociais no Brasil, observados na inépcia das políticas públicas direcionadas à promoção da dignidade extensiva à coletividade, é preciso fazer breve incursão na história de sua emergência no processo civilizatório ocidental, no intuito de, com suporte em seus alicerces instituidores, verificar as influências que se projetaram nos textos constitucionais brasileiros, bem como para delinear um parâmetro comparativo entre o que se verificou aqui e alhures.

A emergência da sociedade industrial é reverenciada por Comte (1983COMTE, Augusto. Discurso sobre o espirito positivo. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.) como sendo o período em que de modo inconteste se inaugurou a prevalência da razão sobre o pensamento teológico e o metafísico. A ordem se constituiu desde aí, na condição necessária à realização do progresso, e que, por conseguinte, se posta como fim último para o qual se destina a ordem. O progresso resultante da crescente aplicação da ciência à produção material e dos serviços, contudo, como anotou a crítica do materialismo histórico, resultou em uma lógica, simultaneamente, produtora de riqueza e miséria. Esse fenômeno, entretanto, resultante da operação racional no processo de dominação e de transformação dos elementos da natureza, objetivando a produção de coisas destinadas ao bem-estar da humanidade, aparece no horizonte do pensamento comtiano como fato que pode ser superado com esteio no mesmo princípio que o fundou, isto é, da adoção da ciência na busca da solução das irracionalidades produzidas no rastro da racionalização produtiva. É possível derivar do pensamento de Augusto Comte a ideia de que a miséria é fomento para a desordem, portanto, para a inibição do progresso, e que por isso deve ser combatida para a subsistência necessária ao equilíbrio indispensável à evolução permanente da ordem.

Bobbio (1993BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993., p. 608), numa asserção contundente, explicita o objetivo do movimento iluminista da seguinte maneira: “O Iluminismo dá formas diferentes à tentativa de racionalizar a condição do homem, isto é, de torná-lo mais feliz”. Esse entendimento operou uma inversão no sentido atribuído à história humana, que passou a ser apreendida como uma marcha contínua em busca do aperfeiçoamento da vida em sociedade em todas as suas dimensões, seja econômica, moral ou civil. Retira-se o homem da submissão ao transcendente que, então, é posto na condição de ser histórico. Torna-se livre para, com supedâneo na razão, negar, afirmar ou reformar as instituições no intuito de promover o desenvolvimento econômico, o aperfeiçoamento legislativo e a universalização educacional, sendo, assim, o protagonista de uma organização social promotora do seu bem-estar (BOBBIO, 1993BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993., p. 609).

As ideias iluministas que essencialmente fomentam a luta da razão contra a autoridade, do conhecimento contradito a tradição, da ciência contrária ao preconceito, da “luz” oposta às “trevas” ressoaram na sociedade brasileira ainda escravocrata. Não foram capazes de erodir, entretanto, as instituições originadas no Brasil colonial. Como assinala Arruda (2010ARRUDA, Gerardo Clésio Maia. Gerardo Clésio Maia. Consenso político. Diário do Nordeste, Fortaleza, 13 setembro de 2010.), a modalidade da organização política aí delineada tracejou os pilares do objetivo social brasileiro fincados no período imperial: a busca do progresso material. Nos primeiros anos da República, a ordem estava consolidada; as rotinas instituídas edificaram uma economia assentada em parte de sua população, em que a riqueza produzida passou a ser usufruída por ínfima minoria e se constituiu expressivo contingente de miseráveis, excluídos da vida material e cultural, insertos numa rotina que, só marginal ou de forma subserviente, tangencia a rotina dos socialmente inseridos. Alternaram-se governos, democráticos e de exceções, que gerenciaram os recursos públicos, intentando alcançar o objetivo social estabelecido; mudanças foram realizadas, mas todas no sentido de aperfeiçoar o funcionamento das instituições e não de transformá-las. O exaurimento desse consenso, que simultaneamente fomentou a riqueza e a miséria, despontou na crítica indignada de setores da sociedade ao economista Delfim Neto que, nos anos de 1970, verbalizava: “deixem o bolo crescer para depois reparti-lo!”.

O governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso debateu-se contra essa força; entrincheirou-se ao lado dos interesses das estruturas sociais externas e estendeu o fôlego dos defensores do progresso econômico. No embate pela manutenção do poder, cedeu espaço: desenhou programas de combate à pobreza, porém, não disponibilizou recursos necessários ao funcionamento amplo e eficaz. A percepção popular desse engodo, vislumbrado no descompasso do discurso em relação à prática, criou as condições para a ascendência do metalúrgico nordestino Luís Inácio Lula da Silva, que alargou o escopo das ações sociais do antecessor, criando programas sociais (Prouni; Minha Casa, Minha Vida; Crédito Agrícola Familiar) e ampliou e fortaleceu com recursos aqueles já em curso.6 6 Bresser-Pereira (2015, p. 322) corrobora este pensamento quando acentua que: “[...] o processo de diminuição das desigualdades que ocorreu no Brasil começou no governo FHC, mas coube ao governo Lula dar impulso ao processo com sua política de salário mínimo e a ampliação dos beneficiários da bolsa família”.

Grosso modo, um rápido cotejo da concretização do pensamento iluminista, na perspectiva da feitura e adoção dos direitos sociais, em seus primeiros passos dados no espaço originário desse movimento e no Brasil, se percebe o quão desvirtuadas entre nós foram as suas ideias fundantes. Marshall (1967MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967., p. 88) esclarece que os direitos sociais europeus, quando do princípio de sua instituição, “[...] compreendiam um mínimo e não faziam parte do conceito de cidadania. A finalidade comum das tentativas voluntárias e legais era diminuir o ônus da pobreza sem alterar o padrão da desigualdade”. Para o Brasil, é válido asseverar que os esforços visando à instituição legal dos direitos sociais encontravam-se distante da possibilidade de geração de cidadania, pois não foram eficazes na eliminação da pobreza, a muito menos, na diminuição da desigualdade.

Trazendo, agora, a discussão para o caminho percorrido na institucionalização dos direitos sociais, poderemos verificar a característica marcante da instabilidade na constitucionalização de tais direitos. Consoante postula Barroso (2006BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.), tal característica resulta de um projeto institucional marcado pela frustração de propósitos sociais que, até a Constituição de 1988, não dedicava a devida importância à Lei Fundamental. Estes condicionantes deram ao Brasil feições de um Estado de caráter autoritário e aristocrático, instituído de cima para baixo. A dominação majoritariamente tradicional e patrimonialista que vigorou no País, lesou a eficiência governamental e afastou o Estado de um sistema racional-legal. Nesse sentido, é preciso refletir acerca dos limites que se impõem à efetivação dos direitos sociais na sociedade brasileira, considerando, simultaneamente, os sistemas sociais e o cultural-simbólico.

A Constituição Imperial de 1824 emergiu num contexto em que os padrões operativos do sistema econômico se realizavam com base na alternativa de produção de mercadorias in natura para o comércio exterior em associação ao trabalho no regime de escravidão7 7 A respeito da origem e evolução da estrutura econômica e social do Brasil, ver Caio Padro Júnior (1976). . O sistema político já instituído com esteio no interesse da Metrópole, em que preponderavam padrões operativos legitimadores de um lucro econômico garantidor da atuação da iniciativa privada na Terra do Pau-Brasil, reproduziu ações que engendraram uma Constituição que, a despeito de suas tendências liberais, subordinou os interesses sociais aos privilégios da nobreza. A Constituição de 1891, inauguradora do republicanismo, presidencialismo e federalismo, era estranha à participação popular, pois foi também elaborada sob a égide dos padrões operacionais dos sistemas social e cultural-simbólico vigentes na Constituição imediatamente anterior.

O avanço da produção manufatureira e industrial, associado ao crescimento da população urbana, resultante da transformação dos padrões operativos no sistema econômico, derivou transformações noutros sistemas, como o educacional, político e jurídico. Pode-se mencionar como exemplo a formalização contratual das relações de trabalho e de serviços como condição necessária à produção industrial, uma vez que a indústria demanda um ambiente no qual prepondera a previsibilidade, dado que a permanência da produção está atrelada à garantia da efetivação da compra, que, a seu turno, demanda a garantia da realização das tarefas e atividades produtivas, somente realizadas com a efetivação da entrega dos insumos e matérias-primas. Eis as condições que, em 1934, possibilitaram a recepção de novas ideologias advindas da República de Weimar, inovadoras do ordenamento jurídico brasileiro na perspectiva dos direitos sociais. As conquistas sociais daí advindas, entretanto, foram solapadas pelo autoritarismo político, recrudescido por uma ditadura civil (1937-1945); seguida, após breve interstício democrático, por uma longa ditadura civil-militar (1964-1985), consolidadoras de uma sociedade complexa que combina setores econômicos extremamente modernos a um radical conservadorismo político e atraso social.

Sob intensiva influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Constituição Federal Brasileira de 1988 representou significativo avanço normativo concernente aos direitos sociais e ao desenvolvimento. Enfatiza os princípios democráticos promotores de justiça social, sustentados na ordem econômica, na valorização do trabalho e na livre iniciativa, com vistas a garantir existência digna a todos. Também se prevê a ideia de que a dignidade da pessoa tem por alicerce implicações econômicas que resguardem, a todos os agentes sociais, as condições materiais mínimas de subsistência.

Seja destacado o fato de que, ante a natureza dirigente da Constituição Federal vigente, tem-se que cabe ao Poder público o protagonismo na ação direcionada para a melhoria da vida humana, evitando arbítrios, injustiças e abusos de poder. Aqui reside o ponto árduo da matéria, porquanto a efetividade dos direitos sociais e a sua proteção judicial enfrentam problemas de toda ordem no que concerne às prestações materiais vinculadas aos deveres sociais do Estado. Ao se interpretar os direitos sociais adequados ao perfil constitucional brasileiro, é preciso considerar as peculiaridades do Direito Constitucional positivo, que não revela claramente os instrumentos de compensação de desigualdades fáticas. Dentro da arquitetura constitucional, os direitos sociais estão fora do rol de direitos fundamentais (BRASIL, 1988, art. 5º) relevantes juridicamente, que, como enfatiza Alexy (1997ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionais, 1997.), não podem ser situados à disposição das maiorias parlamentares simples. Na esteira dessa discussão, Sarlet (2008SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.) enfatiza a inserção implícita dos direitos fundamentais ao seleto conjunto de “cláusulas pétreas”, tornando-os limites materiais ao poder de reforma constitucional (BRASIL, 1988, art. 60, §4º, inciso IV), bem como destaca a sua aplicabilidade imediata.

Com base nesses prolegômenos, atribui-se aos direitos sociais (BRASIL, 1988, art. 6º) um regime jurídico mais débil em relação aos direitos fundamentais. Por outro lado, a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal, no pertinente a direitos sociais, tem sido pelo reconhecimento de que estes são direitos fundamentais que merecem relevância no sentido de exigibilidade como direito subjetivo a prestações estatais. Os direitos sociais, entretanto, como direitos exigíveis perante o Poder público, possuem ainda outro aspecto que fragiliza sua efetividade - é a “reserva do possível”, que estabelece as limitações orçamentárias da atuação jurisdicional, ou seja, de que a prestação material dos direitos sociais estaria sob a reserva da capacidade financeira do Estado. Esta condição reforça a tese, de Gomes Canotilho (1982CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra, 1982., p. 369), de que os direitos sociais costumam ser encarados como também um autêntico problema em termos de competências constitucionais; uma vez que é atribuição do legislador, “[...] dentro das reservas orçamentais, dos planos econômicos e financeiros, das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, econômicos e culturais”.

Barcellos (2006BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do Estado, [S.l.], n. 3, p. 17-54, 2006.) chama a atenção para a realidade factual da limitação dos recursos públicos, mas salienta que se há de explorar outras possibilidades jurídicas para transcender a garantia do mínimo existencial. Com efeito, embora esteja dado um regime jurídico qualificado aos direitos sociais, essa condição não é, por si, suficiente para assegurar a todos os brasileiros uma vida digna. Tal empreendimento exige um enfrentamento de padrões operativos que estão nos sistemas social e cultural-simbólico, que ainda legitimam o todo social brasileiro vinculado a uma lógica de funcionamento estruturalmente avançada, mas que, na verdade, reflete a denominada revolução conservadora e autoritária do regime civil-militar, pela qual o Brasil se tornou um país moderno, industrializado e urbanizado, mas que continuou, paradoxalmente, subdesenvolvido (PAULA, 2015PAULA, João Antonio de. Brasil: passado e futuro. In: SOUZA, Pedro de (Org.). Brasil, sociedade em movimento . São Paulo: Paz e Terra , 2015. p. 13-22.). E a razão disso é que o crescimento da economia brasileira tem ocorrido historicamente de maneira

[...] excludente, como parte de um sistema geral concentrador de renda e riqueza, em que os frutos da modernidade e do crescimento são assimetricamente apropriados, resultando daí desigualdades sociais iníquas e confirmadoras do subdesenvolvimento. (PAULA, 2015PAULA, João Antonio de. Brasil: passado e futuro. In: SOUZA, Pedro de (Org.). Brasil, sociedade em movimento . São Paulo: Paz e Terra , 2015. p. 13-22., p. 19)8 8 Ainda sobre esse tema, ver Bercovici (2015) e, mais diretamente, Celso Furtado (2009).

4 Efeitos dos Direitos Sociais Positivados no Brasil e no Nordeste do Brasil: o Programa Bolsa Família

Elege-se aqui o Programa Bolsa Família como política pública fundamental de combate à pobreza no Brasil, dadas sua abrangência territorial e cobertura quantitativa; mas, principalmente, porque é apreendida nos estudos relativos a este tema como a ação estatal precipuamente responsável pela redução ocorrida nos últimos anos na quantidade de pessoas sobrevivendo abaixo da linha de pobreza; também porque atende aos objetivos propostos, neste artigo, que se direciona para a verificação de como a efetivação de direitos sociais podem funcionar como mecanismo gerador de desenvolvimento. Além do fato de que esse programa, uma vez que se enquadra na perspectiva da extensão da segurança alimentar, estende seus efeitos positivos a outros direitos sociais fundamentais, como educação e saúde (REGO; PINZZANI, 2014REGO, Walquiria Leão; PINZZANI, Alessandro. Vozes do bolsa família: autonomia, dinheiro e cidadania. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2014.). Isso porque é primário para a melhoria da capacidade cognitiva das crianças e ampliação da capacidade de resistência aos males orgânicos provocados pela desnutrição, que atinge as pessoas que sobrevivem na condição de precariedade alimentar. Além disso,

[...] se isso não for revertido por meio de políticas redistributivas, a situação de carência de renda e riquezas daqueles que não tiveram acesso ao sistema de ensino tenderá a ser transmitida para seus descendentes, num ciclo vicioso de reprodução de elites e mitigada mobilidade social. (COUTINHO, 2013COUTINHO, Diogo R. Direito, desigualdade e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013., p. 56)9 9 O sociólogo Jessé Souza (2016) sustenta que a causa principal da manutenção e transmissão da desigualdade é a concentração de dois principais recursos nas mãos das classes privilegiadas (média e alta), isto é, o conhecimento (capital cultural) e o capital econômico do Estado (patrimonialismo = apropriação privada dos bens e recursos públicos). Jessé Souza (2015, p. 232-233) é taxativo, ao afirmar que as classes subalternas são condenadas “a exercer todos os trabalhos mais duros, humilhantes, sujos, pesados e perigosos. As classes do privilégio exploram esse exército de pessoas disponíveis a fazer quase tudo. O motoboy que entrega pizza, o lavador de carros, o trabalhador que carrega a mudança nas costas, a prostituta pobre que vende o corpo para sobreviver, ou o exército de serviçais domésticos que fazem a comida e cuidam dos filhos das classes média e alta, que, assim, podem se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis. É este tempo ‘roubado’ de outra classe que permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes do privilégio”. O autor, ainda, pondera que a visão economicista dos problemas sociais, além de superficial e conservadora, encobre a origem e as causas das desigualdades sociais, dificultando, assim, o desenvolvimento de ações e medidas de interrupção do ciclo de perpetuação da pobreza e da miséria. Em verdade, os fatores reais de produção e reprodução das desigualdades, para Jessé Souza (2011), residem nas precondições sociais (valores familiares e capital escolar), e não no mercado (divinizado como espaço da virtude) e no Estado (demonizado como instituição corrupta).

De acordo com Britto (2016BRITTO, Tatiana. O programa Bolsa Família - caminhos futuros. [2016]. Disponível em: <Disponível em: http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/ >. Acesso em: 5 set. 2016.
http://www12.senado.gov.br/publicacoes/e...
), no início do breve transcurso do Governo Collor de Mello (15/03/1990 a 02/10/1992), com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Programa de Garantia de Renda Mínima Vinculada à Educação, teve início no Brasil um modo de atuação estatal no combate à pobreza, baseado na proposta de elaboração de uma rede nacional de proteção social às futuras gerações, em que se substituíam ações de corte clientelista, dependentes de ações irregulares e personalistas praticadas nos estados e municípios, por uma busca de implantação de uma política de “segurança de renda”. Este então modelo passou a ser denominado na literatura como “política compensatória condicionada”, em função da obrigatoriedade de contrapartidas, principalmente no que concerne à atenção conferida aos filhos no aspecto da saúde, como o cumprimento do calendário de vacinações infantis, e da educação, a obrigatoriedade de matrícula e frequência regular no Ensino Fundamental. Já em 2001, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 1998 e 1999 a 2002), por intermédio da Emenda Constitucional n. 31, de 2000, institucionalizou-se o aporte de recursos para o combate à pobreza, com a aprovação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Essa iniciativa foi revigorada e deu início a uma política mais consistente, com a criação dos programas Bolsa Escola e Bolsa Alimentação.

No governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2006 e 2007 a 2010), dentre os eixos que compunham sua linha programática, destacava-se o Fome Zero, que de início se estruturou com arrimo no

Programa Nacional de Acesso à Alimentação (cartão-alimentação), especialmente dirigido à região do semiárido e às populações vulneráveis à insegurança alimentar (como indígenas, quilombolas e assentados). (BRITTO, 2016BRITTO, Tatiana. O programa Bolsa Família - caminhos futuros. [2016]. Disponível em: <Disponível em: http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/ >. Acesso em: 5 set. 2016.
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, p. 3)

Talvez em razão do forte apelo de combate à pobreza, que norteou a campanha e a elaboração do Programa de Governo, ao final do seu primeiro ano, várias ações oriundas de pastas e secretarias diversas se sobrepunham no atendimento às carências de segmentos populacionais semelhantes. As críticas de que havia deficiência no gerenciamento do Fome Zero, que arguiam a ineficiência no que concerne a alcançar os objetivos propostos, levaram a que se promovesse a unificação das várias ações de transferência de renda, assim constituindo o Programa Bolsa Família, instituído via Medida Provisória n. 132, em 20 de outubro de 2003, convertida na Lei n. 10.836BRASIL. Lei n. 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.mds.gov.br/acesso-a-informacao/legislacao/bolsafamilia/leis/2004/Lei%252010836.pdf/ >. Acesso em: 10 set. 2015.
http://www.mds.gov.br/acesso-a-informaca...
, em 8 de janeiro de 2004.

O artigo 1o da Lei de criação do Programa Bolsa Família estatui que “Fica criado, no âmbito da Presidência da República, o Programa Bolsa Família, destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades”. Esse dispositivo legal expressa orientação na perspectiva do pensamento defensor de que a ação estatal assistencialista deve ser direcionada para o problema no presente, mas tencionando a sua superação no longo prazo, por isso reforça a obrigatoriedade de contrapartidas beneficiárias às gerações futuras. Os benefícios financeiros estão direcionados para dois segmentos considerados como unidades familiares, em situação de enorme vulnerabilidade social: sendo (I) o benefício básico, destinado a unidades familiares que se encontram em situação de extrema pobreza; e (II) o benefício variável, destinado a unidades familiares que estejam em situação de pobreza e extrema pobreza e que tenham em sua composição gestantes, nutrizes, crianças de zero e 12 anos ou adolescentes até 15 anos. As condicionalidades indicadas no artigo 3o apontam as seguintes obrigatoriedades, a variar de acordo com a situação da família beneficiária: exame pré-natal, acompanhamento nutricional, acompanhamento de saúde, frequência escolar de 85% em estabelecimento de ensino regular. Quanto à definição dos valores, está previsto no parágrafo 6o, do artigo 2o, que os valores do benefício podem ser majorados pelo Poder Executivo, em decorrência de questões orçamentárias da União ou de pareceres técnicos sobre o fenômeno da pobreza e da miséria no País. Considerando as diversas situações antevistas, os valores pagos para o exercício de 2016 variam do mínimo de R$ 39,00 (trinta e nove reais) ao máximo de R$ 170,00 (cento e setenta reais), salientando que as famílias podem se encontrar em situações que possibilitem o recebimento de mais de um benefício, de modo que o valor médio foi estimado para 2016 em R$ 182,00 (cento e oitenta e dois reais). Em seu artigo 4o, a Lei orienta a criação de um Conselho Gestor que, além de proceder à avaliação permanente, deverá propugnar ações complementares ao Programa com suporte em políticas públicas que viabilizem a autonomia familiar e possibilitem sua saída da condição de beneficiária.

As linhas gerais norteadoras do Programa Bolsa Família o delimitam como uma ação que se coaduna com o pensamento inaugurado pelo economista e sociólogo sueco Gunnar Myrdal, Nobel de Economia (1974), ao demonstrar que os países em desenvolvimento, em virtude da inserção dependente nas trocas comerciais internacionais, não podem superar a pobreza resultante da racionalização produtiva industrial exclusivamente com apoio nas forças do livre mercado. No capitalismo moderno, isso só é possível com amparo em ações públicas deliberadas de transferência de renda. Isto porque a pobreza é, para os países em desenvolvimento, num sistema econômico assentado em grandes fluxos de câmbios de mercadorias e de finanças internacionais, um fenômeno multicausal, que produz uma constelação circular negativa, ou seja, um círculo vicioso da pobreza. Myrdal (1965, p. 32MYRDAL, Gunnar. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Rio de Janeiro: Saga, 1965.) exemplifica essa determinação com a hipótese de um homem na situação de pobreza e de fome, que

[...] sendo subnutrido, sua saúde será fraca; sendo fraco, sua capacidade de trabalho será baixa, o que significa que será pobre, o que, por sua vez, implica dizer que não terá o suficiente para comer; e assim por diante.

A importância da participação do Estado no fomento ao acesso e ao desenvolvimento da educação, entre as preocupações de Myrdal, como salientam Nilton Oliveira e Luana de Souza, demonstra a aproximação entre os fundamentos do Bolsa Família com a ideia do bem-estar social, que tem a educação como uma das funções mais importantes do Estado, o qual, por meios institucionais, deve estabelecer “[...] o comparecimento obrigatório das crianças às escolas e que obtenha das pessoas o reconhecimento, através dos gastos nessa área, da importância da educação para uma sociedade democrática.” (OLIVEIRA; SOUSA, 2015, p. 5).

Para além da distribuição dos bens primários, é importante que sejam executadas ações que permitam aos indivíduos aumentarem suas capacidades, o que implicaria dotá-los de liberdade para conquistar as coisas desejadas, portanto, de levá-los a se tornarem empreendedores de seus desejos particulares, de se tornarem por si sós os descobridores de novas possibilidades, de inventarem fórmulas para seus sustentos. Entrementes, para que estas possibilidades se tornem factíveis, é preciso que os indivíduos sejam dotados de mecanismos, que os levem à autoemancipação, ofertados por um Estado democrático. Ao asseverar esta estratégia de autonomização dos indivíduos, Amarthya Sen (2010SEN, Amarthya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras , 2010.) se apoia na ideia de que os bens primários são os meios exclusivos e capazes de tornar os indivíduos livres, ou seja, livres para acessar renda, realizar riqueza, usufruir das liberdades públicas.

Em suma, a capacidade das pessoas está relacionada às questões de ordem pessoal e ao modelo de organização social. Daí a importância do Estado para o desenvolvimento das capacidades dos indivíduos. Assim, pode-se afirmar que a melhor organização social seria a mais apta à promoção das capacidades de uma coletividade específica, considerando que esta ação é fundamental para a efetivação das liberdades individuais. Nesse entendimento é que Sen (2010SEN, Amarthya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras , 2010.) ancora sua compreensão de que a pobreza tem que ser enfrentada conjuntamente por ações que supram a falta de recursos e de bens primários, simultaneamente, às ações de fomento à dotação de liberdades viabilizadoras de uma vida digna.

As pesquisas e estudos quantitativos e qualitativos apontam a ocorrência de alterações positivas na estrutura social brasileira e em variáveis diretamente relacionadas à melhoria das condições de vida dos segmentos populacionais de mais baixa renda. O trabalho desenvolvido por Paes de Barros e outros autores (2006BARROS, Ricardo Paes de et al. Uma análise das principais causas da queda recente na desigualdade de renda brasileira. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, 2006. (Texto para discussão, n. 1.203).), com base na correlação de variáveis influentes sobre a elevação da renda média das famílias e a distância de renda entre os grupos familiares, demonstrou, para os anos de 2001 a 2004, uma diminuição da desigualdade entre as famílias nos extremos de renda, a mais acentuada nos últimos 30 anos. A pesquisa indicou, como principais fatores causais desse fenômeno, a ampliação do mercado de trabalho formal, associado ao desenvolvimento de redes de proteção social. Vale ressaltar o fato de que o trabalho focou os dois primeiros anos do Programa Bolsa Família (2003-2004), quando foram intensas as críticas que apontavam ser o Programa gerador de um comportamento acomodado por parte dos beneficiários. Tais apreciações negativas foram respondidas com significativa reformulação, que alterou a equipe e o modo de gerenciar, o que resultou na criação de um mecanismo regulatório do acompanhamento das condicionalidades e dos mecanismos de revisão do cadastro das famílias beneficiárias (BRITTO, 2016BRITTO, Tatiana. O programa Bolsa Família - caminhos futuros. [2016]. Disponível em: <Disponível em: http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/ >. Acesso em: 5 set. 2016.
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).

Rocha (2010ROCHA, Sonia. O programa Bolsa família: evolução e efeitos sobre a pobreza. Campinas: Revista Economia e Sociedade, [S.l.], v. 20, n. 1, p. 113-139, 2010. ), ao examinar o Programa em termos de recursos mobilizados, registra a informação segundo a qual, no ano de 2007, com o equivalente a 1% do Produto Interno Bruto (PIB), foram concedidos 11 milhões de benefícios, cobrindo 19,4% do total de domicílios brasileiros. Convém evidenciar que o investimento realizado com o objetivo de retirar famílias da situação de pobreza e de pobreza extrema tem influência positiva em outras áreas sociais. Glewwe e Kassouf (2010GLEWWE, Paul; KASSOUF, Ana Lúcia. What is the impact of the Bolsa Família programme on education? One Pager No. 107. Brasília: International Policy Centre for Inclusive Growt, 2010.), por exemplo, apontam que, após a implantação do Programa, foram observados avanços na educação fundamental, verificados no aumento das taxas de matrículas nas primeiras séries do Ensino Fundamental em 4,5% e, nas séries finais, de 6,5%.

Especificamente no Nordeste do Brasil, contabilizou-se, em 2010, um total de 6.481.524 famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, o que representava 50,76% do total de grupos familiares brasileiros inscritos no Programa. Importa aqui ver, mais amiudadamente, como se comporta a desigualdade, nesta Região, onde se localiza o maior número de pessoas na situação pobreza. Marcelo Siqueira e Márcia Siqueira (2006SIQUEIRA, Marcelo Lettieri; SIQUEIRA, Márcia Lettieri. Desigualdade de renda no Nordeste do Brasil: uma análise de decomposição. Fortaleza: UFC, 2006. (Ensaios Sobre Pobreza n. 8).) asseveram que, enquanto, para o Brasil, se registra a realidade de que os 10% mais ricos, em 2003, detinham renda mensal 16,9 vezes maior do que a dos 40% mais pobres, no Nordeste, os 10% mais ricos possuíam renda mensal 18,2 vezes superior à dos 40% mais pobres. Assim, apesar da redução da desigualdade ter diminuído no período analisado, o Nordeste continua sendo a região mais desigual do País.

A pesquisa de Marcelo Siqueira e Márcia Siqueira (2006SIQUEIRA, Marcelo Lettieri; SIQUEIRA, Márcia Lettieri. Desigualdade de renda no Nordeste do Brasil: uma análise de decomposição. Fortaleza: UFC, 2006. (Ensaios Sobre Pobreza n. 8).) aponta que, desde 1995, a redução da desigualdade de renda sucede em todo o País; mas, quando se compara o Nordeste com o Sudeste, as duas regiões mais populosas do Brasil, verifica-se que no primeiro a concentração da renda se reduz mais lentamente. O fator preponderante para esse fenômeno radica numa elevada desigualdade entre os estados que compõem a Região, de sorte que os influxos positivos do Programa Bolsa Família são freados ali porque alguns estados remanescem tão desequilibrados do ponto de vista econômico-social que deveriam ser tratados desigualmente, ou seja, haveriam de ser objeto de maior número de ações direcionadas ao desenvolvimento humano. Tomando como exemplos os Estados de Pernambuco e Maranhão, em 2004, respectivamente as unidades federadas com o melhor e o pior nível de renda do Nordeste, e confrontando os dados concernentes à educação, é perceptível para estes uma taxa de analfabetismo de 16,73% e 19,31% (BRASIL - PNAD, 2009BRASIL. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio - PNAD, 2009. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/. Acesso em: 10 set. 2015.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/...
). Dessa maneira, o Estado com melhor nível de renda expressa menor taxa de analfabetismo, sendo o contrário para a unidade federada com nível de renda inferior.

5 Conclusão

No caso particular da Região Nordestina, os estudos investigativos dos resultados do programa Bolsa Família, conforme explicitado ao longo do texto, demonstram, no entanto, que efetivamente ocorreu redução da desigualdade, o que sinaliza ser a sua continuidade determinante para conduzir a sociedade brasileira a um ponto de inflexão que ponha fim ao círculo vicioso da pobreza e dê início a um círculo virtuoso consolidador de um mínimo de bem-estar. Entrementes, restou claro, principalmente quando se focaliza a região Nordeste, que a fragilidade das ações estatais garantidora dos direitos sociais em sua integralidade, ou seja, transpondo a assistência aos desamparados, freia os efeitos positivos sobre a desigualdade, de sorte que, nos estados com melhor sistema educacional, foi efetivada maior redução das taxas de pobreza e de pobreza extrema.

A constatação deste fato nos remete para a necessidade, primeiro, de dar publicidade aos avanços sociais obtidos com o programa Bolsa Família, salientando, principalmente, a módica dotação orçamentária para o seu custeio; segundo, no discurso acadêmico, reforçar o fato de que os direitos sociais resultam de uma conquista das lutas sociais que remontam ao período de vigência da Assembleia Constituinte que produziu o Texto Constitucional de 1988. As ações visando a sua efetivação, portanto, não têm paternidade governamental, pois representam ações do Estado, no intuito de atender demandas sociais legítimas, já que previstas expressamente na Constituição vigente.

Enfim, é preciso dar partida a um amplo consenso - que pode ser constituído com esteio no discurso acadêmico-científico - de que os direitos sociais são direitos fundamentais que visam em última instância, à promoção da igualdade e, por conseguinte, são direitos viabilizadores das condições concretas e fundantes do Estado Democrático e Social de Direito. Também se faz necessária a compreensão pública alargada de que os direitos sociais têm que ser efetivados em sua integralidade, pois realizados por intermédio de práticas parciais e isoladas, são incapazes de promover o desenvolvimento humano sustentável. A ressonância desse entendimento na totalidade do corpo político nacional é o caminho para a superação de barreiras cultural-simbólicas mantenedoras do autoritarismo personalista que sustenta a desigualdade social historicamente estabelecida, ou seja, instrumento para que as ações de promoção dos direitos sociais se tornem independentes de políticas parciais e subordinadas a contextos de maioria legislativa. Afinal, os programas sociais de redistribuição de renda, diferentemente do discurso conservador e elitista, não são favores ou dádivas do Estado para seus “súditos”, mas sim meios de efetivar direitos primários inalienáveis dos cidadãos em estado de carência e miséria incompatíveis em relação aos ideais e valores civilizatórios de um Estado constitucional de Direito e de Justiça (REGO: PINZZANI, 2014REGO, Walquiria Leão; PINZZANI, Alessandro. Vozes do bolsa família: autonomia, dinheiro e cidadania. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2014.). Portanto, sem manutenção e ampliação dos direitos sociais fundamentais, não é possível se reportar a um respeito real à democracia material estabelecida na Constituição Cidadão.

Referências

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  • SOUZA, Jessé. Entrevista. Revista Caros Amigos, [S.l], ano XIX, n. 226, p. 13-17, 2016.
  • 1
    Para Rego e Pinzani (2014, p. 43), a imagem negativa da sociedade em relação à pobreza e os pobres, “[...] passa pela atribuição aos indivíduos da responsabilidade pela sua situação (como se eles estivessem escolhidos ser pobres, nascer em família pobre, bairro pobre, área rural pobre, enfim em um país pobre, ou que não cuida deles) [...]”. No mesmo sentido, afirma Jessé Souza (2011SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.) que a chave de leitura liberal-conservadora naturaliza as desigualdades sociais, dado que explica os privilégios de classe e a apropriação desigual dos bens (materiais e imateriais) pela óptica da ideologia do mérito (meritocracia), de tal modo que o sucesso e o fracasso social decorrem, respectivamente, do talento e da incapacidade (culpa) dos próprios indivíduos e, com efeito, as assimetrias na sociedade seriam legítimas e justas.
  • 2
    Conforme Coutinho (2013), pesquisas recentes sustentam a tese de que as políticas públicasBERTEN, André. Filosofia política. São Paulo: Paulus, 2004. de redistribuição de renda têm um influxo mais rápido e efetivo na redução da pobreza e da miséria, bem como na equalização das desigualdades sociais, do que um programa exclusivo de crescimento econômico.
  • 3
    Ingo Sarlet (2005, p. 32SARLET, Ingo Wolfgang. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direitos constitucional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar , 2005. p. 319-369.) define dignidade da pessoa humana “[...] como sendo a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa [...] condições de existência mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
  • 4
    Em outro trabalho, o autor italiano reforça essa ideia, ao considerar que “[...] o indivíduo instruído é mais livre do que um inculto; um indivíduo que tem um trabalho é mais livre do que um desempregado; um homem são é mais livre do que um enfermo.” (BOBBIO, 2000, p. 508BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier , 2000.).
  • 5
    Ver ainda sobre este tema Bercovici (2015BERCOVICI, Gilberto. A questão social, a Constituição de 1988 e os desafios do desenvolvimento. In: SOUZA, Pedro de (Org.). Brasil, sociedade em movimento. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 77-83.).
  • 6
    Bresser-Pereira (2015, p. 322BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A construção política do Brasil: sociedade, economia e estado desde a Independência. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2015.) corrobora este pensamento quando acentua que: “[...] o processo de diminuição das desigualdades que ocorreu no Brasil começou no governo FHC, mas coube ao governo Lula dar impulso ao processo com sua política de salário mínimo e a ampliação dos beneficiários da bolsa família”.
  • 7
    A respeito da origem e evolução da estrutura econômica e social do Brasil, ver Caio Padro Júnior (1976PADRO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1976.).
  • 8
    Ainda sobre esse tema, ver Bercovici (2015) e, mais diretamente, Celso FurtadoFURTADO, Celso. O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1999. (2009FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2009.).
  • 9
    O sociólogo Jessé Souza (2016SOUZA, Jessé. Entrevista. Revista Caros Amigos, [S.l.], ano XIX, n. 226, p. 13-17, 2016.) sustenta que a causa principal da manutenção e transmissão da desigualdade é a concentração de dois principais recursos nas mãos das classes privilegiadas (média e alta), isto é, o conhecimento (capital cultural) e o capital econômico do Estado (patrimonialismo = apropriação privada dos bens e recursos públicos). Jessé Souza (2015, p. 232-233SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.) é taxativo, ao afirmar que as classes subalternas são condenadas “a exercer todos os trabalhos mais duros, humilhantes, sujos, pesados e perigosos. As classes do privilégio exploram esse exército de pessoas disponíveis a fazer quase tudo. O motoboy que entrega pizza, o lavador de carros, o trabalhador que carrega a mudança nas costas, a prostituta pobre que vende o corpo para sobreviver, ou o exército de serviçais domésticos que fazem a comida e cuidam dos filhos das classes média e alta, que, assim, podem se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis. É este tempo ‘roubado’ de outra classe que permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes do privilégio”. O autor, ainda, pondera que a visão economicista dos problemas sociais, além de superficial e conservadora, encobre a origem e as causas das desigualdades sociais, dificultando, assim, o desenvolvimento de ações e medidas de interrupção do ciclo de perpetuação da pobreza e da miséria. Em verdade, os fatores reais de produção e reprodução das desigualdades, para Jessé Souza (2011), residem nas precondições sociais (valores familiares e capital escolar), e não no mercado (divinizado como espaço da virtude) e no Estado (demonizado como instituição corrupta).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2018
  • Revisado
    18 Jun 2018
  • Aceito
    30 Jun 2018
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