Resumo
Analiso neste texto as narrativas de um interlocutor - Maurício, 62 anos, gay, negro, cisgênero, classe média-baixa - sobre os impactos do surgimento no Brasil das noções de “idosos LGBT” e “velhice LGBT” em suas expectativas (individual e coletiva) de futuro e concepções sobre o curso da vida. Tal exame, retomando a noção de teleologias heteronormativas, lança luz sobre dinâmicas mais amplas relacionadas a transformações contemporâneas na velhice, à produção de subjetividades e ao processo de constituição biopolítica de populações envelhecidas. Nesse sentido, desenvolvo um exame antropológico do modo como meu interlocutor dava sentido a uma existência marcada por um intenso imediatismo e uma dificuldade de vislumbrar o futuro (a ideia de “futuro como luxo” e um privilégio de poucos); e uma espécie de normatividade, em termos de gênero e sexualidade, sobre os modos de compreender e alcançar uma “vida plena”, “realizada” e “feliz”. O pano de fundo da análise se dá, por fim, a partir de um novo modo de politização do envelhecimento no contemporâneo - sobretudo através da crítica ao apagamento da diversidade sexual e de gênero na velhice - o qual abre espaço para reconfigurar esse momento da vida e o futuro como sítios em que a existência de pessoas LGBT se torna potencialmente viável.
Palavras-chave:
teleologias heteronormativas; velhices LGBT; temporalidade; curso da vida; futuros
Resumen
En este texto, analizo las narrativas de un interlocutor - Maurício, 62 años, gay, negro, cisgénero, clase media baja - sobre los impactos del surgimiento en Brasil de las no ciones de “ancianos LGBT” y “vejez LGBT” sobre sus expectativas (individual y colectiva) de futuro y concepciones sobre el curso de la vida. Tal examen, retomando la noción de teleologías heteronormativas, arroja luz sobre dinámicas más amplias relacionadas con las transformaciones contemporáneas en la vejez, la producción de subjetividades y el proceso de constitución biopolítica de poblaciones envejecidas. En este sentido, desarrollo un examen antropológico de la forma en que mi interlocutor dio sentido a una existencia marcada por una intensa inmediatez y una dificultad para vislumbrar el futuro (la idea del “futuro como un lujo” y privilegio de unos pocos); y una especie de normatividad, en términos de género y sexualidad, sobre las formas de entender y lograr una vida “plena” y “feliz”. El trasfondo de este análisis se fundamenta, finalmente, en el surgimiento de una nueva forma de politizar el envejecimiento en el contemporáneo - sobre todo a través de la crítica al borradura de la diversidad sexual y de género en la vejez - que abre espacios para reconfigurar este momento de la vida y el futuro como sitios en que la existencia de personas LGBT se vuelve potencialmente viable.
Palabras clave:
teleologías heteronormativas; vejeces LGBT; temporalid; curso de la vida; futuros
Abstract
In this text, I analyze the narratives of an interlocutor - Maurício, 62 years old, gay, black, cisgender, lower-middle class - about the impacts of the emergence in Brazil of the notions of “LGBT elderly” and “LGBT old age” on his (individual and collective) expectations of the future and conceptions about the life course. Such an examination, taking up the notion of heteronormative teleologies, sheds light on broader dynamics related to contemporary transformations in old age, the production of subjectivities and the process of biopolitical constitution of aging populations. In this sense, I develop an anthropological examination of the way in which my interlocutor gave meaning to an existence marked by intense immediacy and a difficulty in envisioning the future (the idea of “future as a luxury” and the privilege of a few); and a kind of normativity, in terms of gender and sexuality, on the ways of understanding and achieving a “fulfilled” and “happy” life. The background of this analysis is, finally, based on the rising of a new way of politicizing aging in the contemporary - above all through the criticism of the erasure of sexual and gender diversity in old age - which opens space to reconfigure this moment in life and the future as sites where the existence of LGBT people becomes potentially viable.
Keywords:
heteronormative teleologies; LGBT old age; temporality; life course; futures
Analiso neste texto as narrativas1 1 Neste artigo faço uso da noção de narrativa tomando-a como “maneiras, caminhos, veículos da experiência e do sentido - mesmo que se trate de um sentido precário, ou porque temporário ou porque nunca inteiramente ao alcance da compreensão (…). [Tendo em mente que] nem a experiência nem o sentido (ou os sentidos) são redutíveis à narrativa, ao discurso, ou ao texto em seu significado mais largo.” (Maluf, 1999, p. 71-72). de um interlocutor sobre os impactos do surgimento no Brasil das noções de “idosos LGBT” e de “velhice LGBT”, em especial em termos de suas expectativas de futuro e concepções sobre o curso da vida2 2 Este texto é um dos resultados de períodos de pós-doutorado que desenvolvi no Departamento de Antropologia da USP (2018-2019) e no Institute of Latin American Studies da Columbia University em Nova Iorque (2019). Gostaria de agradecer a Julio Assis Simões pela generosa supervisão na USP e a Richard Parker pelo apoio crucial na Columbia University. Agradeço a Miriam Grossi pelas sugestões prévias ao período em que estive na Columbia University. Sou grato também a Regina Facchini e Isadora Lins França por comentários ao presente texto e, por fim, às/aos pareceristas da Sexualidad, Salud y Sociedad pelas excelentes sugestões que acabaram incorporadas na versão final. . O exame mais detido de uma trajetória singular se mostrará pertinente para lançar luz sobre dinâmicas mais amplas relacionadas a transformações contemporâneas na velhice e a produção de subjetividades3 3 Embora não faça uso ostensivo neste texto da abordagem de “histórias de vida”, minha análise está sensibilizada pelas ponderações de Suely Kofes (1994, p. 118), a qual concebe tal abordagem como: “interpretações individuais de experiências sociais. [Tratando-se:] 1) de relatos motivados pelo pesquisador e implicando sua presença como ouvinte e interlocutor; 2) de um material restrito à situação de entrevista (…) considerando apenas o que foi narrado ao pesquisador pelo entrevistado (…); 3) daquela parcela da vida do sujeito que diz respeito ao tema da pesquisa, sem esgotar as várias facetas de uma biografia.” . Minha etnografia atual, assim sendo, examina o processo de constituição biopolítica4 4 Tomo a biopolítica em sua acepção foucaultiana, como uma forma social surgida a partir do século XVIII que procurou racionalizar as problemáticas encaradas pela prática governamental acerca de fenômenos específicos do conjunto de seres humanos tomados como uma população, englobando questões de saúde, higiene, taxas de natalidade, longevidade, raça, etc (Foucault, 1988, p. 131). dessa nova população envelhecida no Brasil através da atuação da organização não-governamental Eternamente Sou, fundada em 2017 na cidade de São Paulo.
Embora o processo de constituição dos “idosos LGBT” seja relativamente recente no Brasil, ele já conta com pelo menos cinquenta anos se considerada a literatura norte-americana de investigações sobre o envelhecimento de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, travestis, interssexuais, queers, entre outros sujeitos. Em outra ocasião pude apresentar uma revisão crítica e sistemática sobre a gerontologia LGBT, o campo que reúne esse conjunto de investigações e mais recentemente também instituições e profissionais voltados à gestão prática das necessidades tidas como específicas desses velhos (Henning, 2016aHENNING, Carlos Eduardo. 2016a. Is old age always already heterosexual and cisgender? The LGBT Gerontology and the formation of the “LGBT elders”. Vibrant. V.13 n.1. Pp. 132-154. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/vb/v13n1/1809-4341-vb-13-01-00132.pdf].
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, 2017HENNING, Carlos Eduardo. 2017. Gerontologia LGBT: velhice, gênero, sexualidade e a constituição dos ‘idosos LGBT’. Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 23, n. 47, Pp. 283-323. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/ha/v23n47/0104-7183-ha-23-47-0283.pdf].
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).
Tal campo tem criado saberes e discursos sobre a multiplicidade de experiências de envelhecimento quanto a diversidade de desejos, práticas sexuais, identidades de gênero e identidades sexuais de indivíduos vistos como idosos. Esse conjunto de análises de velhices e envelhecimentos propostos por tais especialistas como ‘não heterossexuais’ e/ou ‘não cisgêneros’ tem recebido denominações que implicam em projetos políticos, teóricos e analíticos, assim como enfoques empíricos variados. Entretanto, tal campo tem sido chamado mais comumente de gerontologia LGBT e seus marcos iniciais remontam a fins da década de 1960 (Henning, 2017: 287-288HENNING, Carlos Eduardo. 2017. Gerontologia LGBT: velhice, gênero, sexualidade e a constituição dos ‘idosos LGBT’. Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 23, n. 47, Pp. 283-323. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/ha/v23n47/0104-7183-ha-23-47-0283.pdf].
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).
Tendo isso em mente, a criação da ONG Eternamente Sou parece contribuir em grande medida para o desenvolvimento de uma gerontologia LGBT sui generis no Brasil. Desde a fundação sua equipe multidisciplinar de dezenas de voluntários tem organizado eventos, programas e cursos, além de auxiliar a fomentar matérias televisivas, em jornais e na internet sobre os “idosos LGBT”. Embora neste texto não analisarei centralmente a atuação dessa ONG ou de sua equipe, posso ponderar que o conjunto de ações e dinâmicas por ela produzidos nos últimos anos tem sido influente para o processo de constituição biopolítica dessa nova população envelhecida no país (Henning, 2020HENNING, Carlos Eduardo. 2020. O Nascimento do Orgulho Grisalho. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora. Ed. Direitos em Disputa: LGBTI+, Poder e Diferença no Brasil Contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp . Pp.72-86. [No prelo].).
Apresento neste trabalho também uma análise antropológica do modo como alguns de meus interlocutores davam sentido, mobilizavam, resistiam ou transformavam o que viam como uma espécie de normatividade, em termos de gênero e sexualidade, sobre os modos de compreender e alcançar uma vida “plena”, “realizada” e “feliz”. Sobretudo no que diz respeito ao curso da vida, às perspectivas de futuro, ao envelhecimento e o modo como tal ONG, entre outros atores, contribuem para transformar tais concepções. Para tanto, mobilizo alguns debates dos campos de estudos de gênero, sexualidade, velhice e curso da vida.
Minhas análises são debitárias, aliás, de um conjunto relativamente antigo de pesquisas socioantropológicas no Brasil sobre sexualidade e relações de gênero, o qual remonta a trabalhos pioneiros como, por exemplo, os de José Fábio Barbosa da Silva (2005 [1960]BARBOSA DA SILVA, José Fábio. 2005 [1960]. Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo minoritário. GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo. (orgs.) Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP.), Peter Fry (1982FRY, Peter. 1982. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: Para inglês ver. Identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar. Pp.87-115. ), Regina Maria Erdmann (1981ERDMANN, Regina Maria. 1981. Reis e Rainhas no Desterro - um estudo de caso. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFSC, Florianópolis.), Carmen Dora Guimarães (2004GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. (Coleção: sexualidade, gênero e sociedade).) e Nestor Perlongher (2008PERLONGHER, Nestor. 2008. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo: Editora Perseu Abramo. ). Tais pesquisas pioneiras, parte talvez do que Gayle Rubin (2016RUBIN, Gayle. “Geologias dos estudos queer: um déjà vu mais uma vez”. Trad. de Paula Nogueira Pires Batista, Roberto M. Xavier Reis, Carlos Eduardo Henning e Glauco B. Ferreira. Sociedade e Cultura , Goiânia, v. 19, n. 2, p. 117-125, jul./dez 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/view/48676/23898 . Acesso em: 15/03/2019.
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) chamaria de “camadas geológicas de conhecimentos queer” - se arriscarmos nomeá-las desse modo no caso brasileiro - foram centrais e paradigmáticas para os fundamentos daquelas que se expandiriam posteriormente de modo expressivo pelo Brasil, sobretudo a partir da primeira década do Século XXI.5
5
Sobre a questão, sugiro a consulta a alguns trabalhos que fazem parte e contribuem para compor olhares genealógicos para esse campo no Brasil: Facchini (2008; 2009); Simões & Facchini (2009); França (2006, 2012); Facchini; França & Braz (2014); Carrara & Simões (2007).
Se o estudo não patologizante das dissidências de gênero e sexualidade no Brasil possui um caminho de pouco mais de meio século, o interesse específico nesse campo sobre curso da vida, gerações e envelhecimento - temas centrais de minhas pesquisas e das de outros(as) colegas - é comparativamente recente. Em termos nacionais tal interesse específico se desenvolveu pelo menos desde a pesquisa de Julio Assis Simões (2004SIMÕES, Julio Assis. Homossexualidade masculina e curso da vida: pensando idades e identidades sexuais. In: PISCITELLI, A.; GREGORI, M. F.; CARRARA, S. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2004.), cuja contribuição antropológica se tornou basilar para o caráter prolífico de investigações posteriores em temas congêneres6 6 O tema do curso da vida, do envelhecimento e diversidade sexual e de gênero tem sido generosamente desenvolvido nas últimas duas décadas no Brasil. Nesse sentido, é possível citar, por exemplo, no que tange a homossexualidade masculina e envelhecimento: Paiva (2009), Mota (2009), Neman do Nascimento (2013), Pocahy (2011), Passamani (2015), Saggese (2015) e Duarte (2013). Já quanto a envelhecimento e mulheres lésbicas destacam-se os trabalhos de Lima (2006), Moraes (2010) e Lacombe (2005, 2010). No que diz respeito ao curso da vida e/ou envelhecimento de travestis e/ou pessoas trans constam os trabalhos de Siqueira (2004, 2009), Antunes (2010), Nogueira (2013), Sander & Oliveira (2016), Braz (2017). Sobre o tema mais amplo de velhices LGBT para além do debate sócio-antropológico, consultar os trabalhos recentes de Sobreira Leal & Oliveira Mendes (2017), Fernandes de Araújo & Pessoa (2018) e Crenitte, Miguel & Jacob Filho (2019). .
Enraizadas nesses trabalhos fundacionais as reflexões que apresento aqui partem de minhas investigações etnográficas iniciadas há mais de quinze anos. Na época de meu mestrado investiguei relações intergeracionais, configurações hierárquicas, apropriações sociais do espaço e marcadores sociais da diferença7
7
Sobre marcadores sociais da diferença e particularmente revisões sobre a noção feminista de interseccionalidade, consultar Piscitelli (2008), Mello & Gonçalves (2010), Henning (2015) e Akotirene (2019). Para as relações nem sempre simples e pacíficas entre as noções de “marcadores sociais da diferença” e “interseccionalidade” consultar também Hirano (2019).
em bares e boates - então denominados “GLS” (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) - na cidade de Florianópolis, Santa Catarina (Henning, 2008HENNING, Carlos Eduardo. 2008. As Diferenças na Diferença: hierarquia e interseções de geração, gênero, classe, raça e corporalidade em bares e boates GLS de Florianópolis, SC. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, UFSC. [Acessível via: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/92044]
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). Entretanto, foi ao longo de meu trabalho de campo para o doutorado, entre os anos de 2010 e 2012, que pude aprofundá-las com maior densidade (Henning, 2014).
Na etnografia para o doutorado entrevistei e convivi com dezenas de homens cisgênero com práticas sexuais homoeróticas, em sua maioria brancos, entre os 45 e os 70 anos de idade, de classes médias ou elites econômicas, com nível educacional relativamente alto e que residiam na região metropolitana da cidade de São Paulo. O propósito então era examinar as narrativas sobre suas experiências associadas ao envelhecimento e sexualidade (Henning, 2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
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, 2017HENNING, Carlos Eduardo. 2017. Gerontologia LGBT: velhice, gênero, sexualidade e a constituição dos ‘idosos LGBT’. Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 23, n. 47, Pp. 283-323. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/ha/v23n47/0104-7183-ha-23-47-0283.pdf].
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).
No referido campo um dos elementos que mais saltaram aos olhos foi a maneira como tais interlocutores narravam fortes pressões sociais pretéritas, sobretudo da família de origem, para realizar marcos considerados cruciais ao longo da vida. Em grande medida tais marcos supunham o desenvolvimento de relações afetivo-sexuais que desembocassem em casamentos com alguém do sexo oposto, seguidos pela chegada de filhos, a criação da prole e a manutenção consequente do lar em marcos heterossexuais e cisgêneros. Em termos gerais, tal pressão para seguir e alcançar uma vida considerada “adequada”, “digna”, “respeitável” e “com futuro” era considerada como quase inescapável para meus interlocutores de estratos mais velhos, embora fosse mais maleável, em termos gerais, para as coortes mais jovens naquela etnografia (Henning, 2014HENNING, Carlos Eduardo. 2014. Paizões, tiozões, tias e cacuras: envelhecimento, meia idade, velhice e homoerotismo masculino na cidade de São Paulo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Unicamp, Campinas. [Acessível via: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281147/1/Henning_CarlosEduardo_D.pdf].
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, 2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
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).
Entre os interlocutores de então, aliás, havia tanto homens que se consideravam homossexuais quanto aqueles que mantinham igualmente práticas sexuais regulares com outros homens, embora não se considerassem homossexuais. Nesse caso, na maior parte das vezes definiam-se como bissexuais ou evitavam a identificação estável em termos de identidades sexuais, afirmando, por exemplo, simplesmente “curtirem outros caras”. Entre esses últimos era comum que tivessem sido casados com mulheres, possuíssem filhos dessas relações, sendo que alguns, aliás, permaneciam casados com suas esposas, mantendo uma rotina de encontros casuais e secretos com outros homens, a qual, aos seus olhos, era relativamente bem sucedida e satisfatória (Henning, 2014HENNING, Carlos Eduardo. 2014. Paizões, tiozões, tias e cacuras: envelhecimento, meia idade, velhice e homoerotismo masculino na cidade de São Paulo. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Unicamp, Campinas. [Acessível via: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/281147/1/Henning_CarlosEduardo_D.pdf].
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, 2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
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).
Vários foram os interlocutores que apontavam em suas narrativas terem sentido tais pressões de conformação ao longo da vida de distintos modos, sendo que como um dos resultados de tal processo alguns chegaram a afirmar terem se casado e tido filhos sobretudo devido a tais interpelações. Embora tenha apresentado análises mais detalhadas sobre essa questão em outra ocasião (Henning, 2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
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), trarei novamente aqui dois breves exemplos dessas narrativas de maneira a melhor localizar o debate.
Este é o caso, por exemplo, de Ari, de 55 anos de idade na época da entrevista, o qual se considera branco, cisgênero, morador da Zona Norte de São Paulo, bancário aposentado, de classe média, e que manteve o casamento com a esposa por cerca de 20 anos, tendo com ela três filhas.8 8 Ari é um nome fictício, assim como ocorre em todos os demais nomes dos contatos de campo citados neste trabalho. O relato de Ari é representativo dessas pressões da família de origem em relação as quais venho me referindo:
“Eu mesmo nunca assumindo [a homossexualidade], (…) as pessoas sempre perceberam que eu era diferente. (…) Eu tenho sete irmãos (…) Sempre fui discriminado por eles, ainda mais depois que me separei [da esposa], eles sempre jogaram na minha cara por ser diferente deles. (…) A minha mãe, quando eu disse que iria casar, me disse: ‘pelo menos agora vão parar de falar pelas suas costas’. (…) [Ela] morreu há uns dez anos, mas foi ela que me manteve casado. Eu dizia a ela que queria me separar e ela sempre me aconselhava pra pensar nas crianças. Mas no fundo ela queria dizer: ‘Pensa que os outros vão voltar a falar de você!’. Ela e o meu pai faziam muita pressão quando eu era novo. Lembro que o meu pai me disse uma vez que eu podia fazer qualquer sem-vergonhice que fosse, desde que eu casasse e formasse família. Eu devia ter uns 20 [anos]. Era meio uma obrigação [casar], entende? Você não tinha muita alternativa. Eu só me divorciei mesmo depois que a minha mãe morreu. Um ano depois que ela morreu eu já tava divorciado. (…) Se eu pudesse [voltar ao tempo] não teria casado, mas daí também não teria minhas filhas. Minhas filhas são minha felicidade hoje em dia. Se eu fosse homo[ssexual] desde aquela época, acho que eu estaria sozinho agora, e infeliz, isso se tivesse vivo ainda, porque muitos morreram de Aids quando eu tava casado. Então, acho que não mudaria não. É bom eu ter conhecido esse outro lado mais velho. Se você é homo desde novo, você parece que não tem muito norte, muita referência, não tem muito uma orientação pra vida. Fica muito perdido mesmo”. [Entrevista em Junho de 2011, Henning (2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
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No relato de Ari é possível frisar a sua visão sobre as pressões dos pais e dos irmãos para que namorasse e se casasse com alguém do sexo oposto. Além disso, é possível acessar também aos significados que meu interlocutor produz para a associação entre “não se casar” e “não ter filhos” como uma questão determinante para não se alcançar a “felicidade”, para não se “ter um norte”, uma “referência”, “orientação” ou mesmo um “sentido” para a vida.
Algo semelhante foi afirmado, por exemplo, por Lauro, 52 anos, branco, cisgênero, engenheiro, morador do bairro Vila Madalena, pai de um rapaz, e ainda casado com a esposa:
“[Na minha juventude] Era muito diferente de hoje em dia. Você via seus irmãos mais velhos namorando, noivando, casando. As mulheres deles engravidando e vai chegando a sua vez. Não tem escapatória. E daí quando você casa não tem como mudar mais. Vem filho, vem responsabilidade. Você encontra sempre uns jeitos pra dar umas escapadas, mas é isso. (...) Nunca imaginei abandonar minha mulher e meu filho por causa disso [da atração e das práticas sexuais com outros homens]. Eu sou responsável, não vou destruir a minha vida e da minha família por causa disso. (...) Mas pra vocês hoje em dia é diferente. Vocês podem coisas que na minha época não podia, não tinha escapatória. Se eu fosse da tua idade, hoje em dia (...) seria diferente.” [Entrevista realizada em Abril de 2011, Henning (2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-44... )].
Portanto, Ari e Lauro, assim como outros contatos daquele campo, especialmente os das coortes mais velhas, tendiam a se conceber como socializados em um contexto histórico-cultural em que elementos como o casamento heterossexual e a reprodução subsequente - à semelhança das noções de “temporalidade reprodutiva” (Halberstam, 2005HALBERSTAM, Jack. 2005. In a Queer Time and Place: transgender bodies, subcultural lives. New York: New York University Press.) e de “futurismo reprodutivo” (Edelman, 2004EDELMAN, Lee. 2004. No Future: Queer Theory and the Death Drive. Durham, DC: Duke University Press.) - se mostravam elementos poderosamente incidentes na conformação de suas perspectivas de futuro.9 9 Para uma revisão sistemática e crítica dos debates dos estudos queer acerca das noções de tempo e temporalidade queer, assim como “futurismo reprodutivo” e “temporalidade reprodutiva”, consultar Henning (2016b).
Como desenvolvido mais detalhadamente em outro trabalho (Henning, 2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
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), esse conjunto de narrativas apontavam para a tremenda dificuldade em frustrar as expectativas familiares e sociais para o desenvolvimento de namoros e o casamento com alguém do sexo oposto. Para alguns de meus interlocutores, essas exigências e expectativas foram fortes o suficiente para fazê-los seguir um determinado arranjo de realizações pessoais e biográficas (sobretudo relações afetivas e casamento em bases heterossexuais) muito embora isso, na verdade, os frustrasse profundamente. Para outra parcela de contatos de campo, porém, tais expectativas e pressões não lhes pareciam terríveis de modo algum e a elas se adequaram com relativa facilidade. Já para outros, por fim, tais expectativas puderam, necessitaram e foram desafiadas de variadas maneiras.
Neste último caso, embora fortes e incisivas, tal processo que denomino como uma teleologia heteronormativa sobre o curso da vida na visão desses interlocutores poderia e de fato precisava ser desafiado. Esse desafio, entretanto, fazia a muitas dessas pessoas sentirem-se como se estivessem navegando por mares desconhecidos, revoltosos, inseguros rumo a um futuro incerto, sem bússola ou modelos de referência.
Para alguns deles - como veremos mais adiante na análise da narrativa de Maurício, já em meu novo campo - abdicar de seguir tais referenciais para uma vida supostamente “completa”, “correta” e “feliz”, em termos de um futuro tradicional e familiar poderia fazê-los sentir estar experimentando uma existência “sem futuro”, uma vez não contar com modelos-guia de referência. Tendo isso em mente, meu argumento neste artigo é que o curso da vida e as várias realizações e transições esperadas para cada momento do percurso biográfico são regulados, organizados e prescritos a partir de fortes - embora não inteiramente inescapáveis - referenciais heterossexuais e cisgêneros.10 10 Em termos gerais, “cisgênero” pode ser compreendido como um termo que diz respeito à adequação e coerência heteronormativas entre uma identidade de gênero particular e o sexo as-signado ao nascimento. Por exemplo, nascer com o que se compreende socialmente como próprio do “sexo masculino” e compreender-se como tendo uma identidade de gênero masculina. O termo tem sido utilizado como uma contraposição normativa e relacional às identidades “trans” (transgêneros, transexuais...), ou seja, aquelas identidades de gênero que desafiariam, de distintos modos, as convenções dominantes da inteligibilidade de gênero em uma “matriz heterossexual” da qual fala Judith Butler (2003). Em suma, pondero que o modo como meus interlocutores apontavam a definição, compreensão e anseio de/por uma “vida plena”, “realizada”, “completa” e “feliz”, particularmente na velhice, era ainda, em grande medida, impactado por uma teleologia heteronormativa.
Para tornar esse conceito menos abstrato, ele associa duas noções - “teleologia” e “heteronormatividade” - as quais foram produzidas em contextos bastante particulares. A primeira, teleologia, é uma palavra de origem grega que associa os termos τέλος (telos) - finalidade, resultado, produto, plenitude - a logía - estudo de algo. Desse modo, teleologia, em termos básicos, poderia ser compreendida como um estudo dos fins, dos propósitos e das finalidades últimas do que quer que seja. Na filosofia, por exemplo, há um longo campo de estudo, com variadas tradições, que analisam as doutrinas que identificam fins, metas, propósitos ou objetivos últimos os quais guiariam a natureza, a existência e a humanidade.11 11 Doutrinas teleológicas estão profundamente enraizadas no pensamento filosófico ocidental pelo menos desde Aristóteles, o qual auxiliou determinantemente a disseminar a ideia de que a existência e o universo como um todo se direcionam a uma finalidade última, a qual, porém, não seria passível de um escrutínio absoluto. A ponderação clássica da teleologia aristotélica, assim sendo, é a de que as coisas tenderiam a um bem genérico e que a finalidade de uma determinada coisa seria esse bem que lhe seria próprio (Aristóteles, 1984). De certo modo, se trata quase de uma tautologia.
Já o segundo termo em questão, “heteronormatividade”, por sua vez, compreende a junção da palavra grega ἕτερος (héteros) - diferente, outro - e de normatividade, do latim nōrma,ae - regra, preceito, padrão. Tal noção é um dos mais influentes e disseminados frutos contemporâneos dos estudos de gênero e sexualidade, tendo inclusive extravasado a sua utilização meramente em contextos acadêmicos. A heteronormatividade, ademais, é um conceito frequentemente atribuído a Michael Warner (1991), um dos teóricos vistos como fundadores dos estudos queer norte-americanos. As raízes do conceito, entretanto, são mais profundas e ele não teria existido sem a proposta do sistema sexo/gênero de Gayle Rubin (2011RUBIN, Gayle. “Geologias dos estudos queer: um déjà vu mais uma vez”. Trad. de Paula Nogueira Pires Batista, Roberto M. Xavier Reis, Carlos Eduardo Henning e Glauco B. Ferreira. Sociedade e Cultura , Goiânia, v. 19, n. 2, p. 117-125, jul./dez 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/view/48676/23898 . Acesso em: 15/03/2019.
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), e a ideia de “heterossexualidade compulsória” postulada por Adrienne Rich (1980). A teórica feminista estadunidense atrelada a estudos interseccionais Cathy CohenCOHEN, Lawrence. 1998. Não há velhice na índia. DEBERT, G. G. Antropologia e Velhice. Textos Didáticos, N. 13. Campinas: IFCH/Unicamp. (Tradução de Julio Assis Simões) (1997: 440COHEN, Cathy J. 1997. Punks, Bulldaggers, and Welfare Queens: the radical potential of queer politics. GLQ. Vol.3, pp.:437-465), por sua vez, define a heteronormatividade como: “tanto aquelas práticas localizadas quanto aquelas instituições centralizadas as quais legitimam e privilegiam a heterossexualidade e os relacionamentos heterossexuais como fundamentais e ‘naturais’ dentro da sociedade”.
Nesse sentido, considerando tais ponderações etimológico-conceituais, a noção de teleologia heteronormativa poderia ser compreendida como uma forma conceitual de dar sentido às expectativas, prescrições e normatividades que incidem persuasivamente em termos de gênero e sexualidade sobre o percurso biográfico ocidental contemporâneo. Em outras palavras, a teleologia heteronormativa seria:
“uma forma normativa de estipular metas, fins e objetivos últimos para o percurso biográfico (como relações sexuais [particulares], conjugalidade, reprodução, parentalidade e conformação familiar), os quais são guiados por referenciais heterossexuais [e cisgêneros] inequívocos e aparentemente inescapáveis, e cuja finalidade e sequencialidade linear e irretornável se tornam - em um efeito social pervasivo e convincente - princípios fundamentais de explicação, significação e ordenação da experiência biográfica.” (Henning, 2016b, pp.367-368HENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-44... ).
Tais debates, ademais, acionam discussões sobre o curso da vida, sobre os seus supostos propósitos, as concepções e expectativas que o sustentam, assim como sobre as categorias que o fundamentam, entre elas infância, adolescência, juventude, vida adulta, meia idade, velhice, e as maneiras como tal conjunto de concepções é histórica e culturalmente idiossincrático, plástico, variável e não-universal (Mead, 2015 [1928]MEAD, Margaret. 2015 [1928]. Adolescência em Samoa. CASTRO, Celso (Org.) Cultura e Personalidade: Margaret Mead, Ruth Benedict, Edward Sapir. Rio de Janeiro: Zahar Editora. Pp: 17-65.; Ariès, 1978ARIÈS, Philippe. 1978. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar Editores.; Del Priori, 1991DEL PRIORI, Mary. 1991. O papel branco, a infância e os Jesuítas na Colônia. DEL PRIORI, M. Org. História da Criança no Brasil. São Paulo: Contexto.; Featherstone, 1994FEATHERSTONE, Mike. 1994. O Curso da Vida: Corpo, Cultura e o Imaginário no Processo de Envelhecimento. DEBERT, Guita. Ed. Antropologia e Velhice, Campinas: IFCH/Unicamp . Pp.: 49-71.; Hareven, 1996HAREVEN, Tamara. 1996. Introduction. Aging and Generational Relations Over the Life Course. HAREVEN, T. (ed.) Aging and Generational Relations: life-course and cross-cultural perspectives. University of Delaware. Aldine de Gruyter. New York.; Debert, 1999DEBERT, Guita. 1999. A Reinvenção da Velhice: Socialização e Processos de Reprivatização do Envelhecimento. São Paulo: EDUSP. , 2010DEBERT, Guita. 2010. A dissolução vida adulta e a juventude como valor. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 16, n. 34, p. 49-70, jul./dez.; Tassinari, 2007TASSINARI, Antonella. 2007. Concepções indígenas de infância no Brasil. Tellus, ano 7, n. 13, p. 11-25.; Levine, 2007LEVINE, Robert A. 2007. Ethnographic Studies of Childhood: A Historical Overview. American Anthropologist, Vol. 109, Issue 2, pp. 247-260.; Abramo, 2007ABRAMO, Helena W. 2007. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. FÁVERO, O; SPÓSITO, M. P. Et ali. 2007. Juventude e Contemporaneidade. Brasília: UNESCO, MEC, ANPEd. Pp. 73-90.; Heath, 2009HEATH, Kay. 2009. Aging by the Book. The emergence of midlife in Victorian Britain. Albany: SUNNY Press.; Cohn, 2013COHN, Clarice. 2013. Concepções de infância e infâncias: Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil. CIVITAS, Vol.13, N.2, Pp.:221-244.; Groppo, 2016GROPPO, Luis Antônio. 2016. Sentidos de Juventude na Sociologia e nas Políticas Públicas do Brasil. Revista Políticas Públicas. São Luís, v. 20, n 1, p. 383-402, jan./jun.). Ademais, permitem pensarmos sobre as maneiras como o curso da vida e sua periodização se encontram em um caráter dinâmico e em transformação no contemporâneo. Nesse sentido, o surgimento em si do “problema social” da “velhice LGBT” é um forte indício dessa plasticidade e dinamicidade no/do curso da vida impactando e esgarçando, por exemplo, as concepções e a imagética relativamente ainda limitada associadas à velhice.
Antes de prosseguir, porém, um parênteses de distinção entre meus trabalhos de campo mais recentes se faz necessário. Embora em minha pesquisa para o doutorado enfoquei, como dito, um recorte específico em termos de interlocutores - em termos gerais, brancos, cisgêneros, que mantinham práticas sexuais homoeróticas, de classes médias e altas -, em minha investigação atual convivi, dialoguei e entrevistei, além de homens cisgêneros e homossexuais, também a mulheres cisgênero e lésbicas, mulheres trans e travestis, entre 45 e 81 anos, na sua maioria atendidas(os) pela ONG Eternamente Sou. Entretanto, terei condições de analisar as narrativas desse conjunto de interlocutores(as) somente em publicações futuras. Ademais, distinguindo-se de minha investigação anterior, a atual se mostrou mais ampla em termos, por exemplo, raciais e sócio-econômicos contando também com pessoas que se definiam como negras e pardas, de classe média-baixa ou de classes populares. Interessantemente, em minha pesquisa pregressa meus interlocutores afirmavam, em geral, não sentir uma falta significativa de uma instituição ou de programas específicos para “idosos LGBT”.
Isso ocorria, entre outras questões, pelo fato de quase todos os interlocutores daquela etnografia não se reconhecerem como “idosos” ou “velhos”. Aliás, uma parte minoritária, embora significativa, sequer se identificava como homossexual ou bissexual. Para estes realmente não parecia fazer sentido a produção de políticas específicas para “idosos LGBT”. De certa forma, eles poderiam ser vistos como “sujeitos evanescentes” no contexto do processo de constituição biopolítica desses velhos adjetivados, escapando às tentativas de assujeitamento enquanto tais. Já em meu campo atual - provavelmente por acessar pessoas que já tinham contato com a Eternamente Sou e talvez também por não focar tanto em contatos de classes médias e altas - a reivindicação de criação de instituições e programas sensibilizados ou específicos para pessoas LGBT na velhice se mostrou quase onipresente. Questões de classe, raça e nível educacional, entre outras, certamente têm um peso nessa distinção entre os campos.
Tendo isso em mente, na sequência analiso mais diretamente as narrativas de um de meus interlocutores mais próximos em meu campo mais recente. Abordarei primeiramente suas perspectivas sobre as pressões vividas ao longo do curso da vida para a adequação a marcos e realizações tidas como heterossexuais. Examinarei na sequência então o modo como seus relatos ressaltam os impactos positivos que o surgimento das noções de “velhos LGBT” e “velhice LGBT” provocaram - através de seu contato com a ONG paulistana Eternamente Sou - em seus prospectos individual e coletivo de futuro.
“O futuro, para mim, é um luxo!” Maurício, Imediatismos e Prospectos de Futuro
O interlocutor cujas narrativas debato mais centralmente a partir desse ponto é Maurício. Quando o conheci, ele estava começando a participar das atividades desenvolvidas pela Eternamente Sou. Nessa época ele estava com 62 anos, se definia, em geral, como gay, negro, cisgênero, de classe média-baixa, aposentado, com curso superior incompleto e relatava “ser um sobrevivente” lutando contra o HIV desde meados dos anos 1980. Além disso, há pouco menos de dez anos passou a combater também uma “leucemia crônica”. E além de tais desafios, nos últimos anos passou a resistir também a um câncer de próstata o qual, segundo ele: “já não valia a pena operar”.
Continuamos em contato mesmo após a minha saída de campo e assim permanecemos até poucas semanas antes de seu falecimento, no fim de 2019. Embora tivéssemos visões conflitantes sobre alguns assuntos político-culturais e apesar de não nos conhecermos há tanto tempo, eu admirava Maurício e o via não meramente como um interlocutor em campo, mas também como um amigo, uma referência e um exemplo de resiliência para a minha própria vida. Redijo este texto, portanto, a partir de um lugar ainda sensível de luto e reverência. Apesar de tantos desafios e dramas que vinha enfrentando, meu interlocutor fazia um esforço extraordinário para conseguir se manter participando com vivacidade de atividades sociais variadas. E aos olhos dos desavisados parecia mesmo estar com boa saúde, salvo breves momentos em que sua fragilidade saltava aos olhos.
Ao longo de nossa convivência percebi que suas narrativas costumavam captar com facilidade a atenção de quem quer estivesse ao seu redor. Elas abordavam um conjunto amplo de temas, alguns deles recorrentes, como a relação com sua família de origem e o fato de ter sido um garoto negro e afeminado no subúrbio do Rio de Janeiro, entre fins de 1950 e início dos 1960:
“a relação com eles [a família] na infância não era muito boa. (…) Eu fui filho único por alguns anos então eu fazia o que eu queria. (…) Provava vestidos da minha mãe, o que era um sacrilégio absurdo, né!? Se vissem a Pabblo [Vittar] hoje em dia morriam duros! [Risos] (…) Venho de uma família muito religiosa, minha avó materna era Testemunha de Jeová, o resto da família muito católica.” [Entrevista ocorrida em Outubro de 2018].
Lembro que Maurício costumava endereçar a sua vida como um caminho nebuloso, nunca conseguindo antever mais do que alguns passos adiante. Vivi sempre no agora, pensar no futuro sempre foi um luxo! - me disse, certa vez. Maurício comentava que desde sempre se percebeu em desacordo com as expectativas familiares para que fosse uma criança mais masculina e se interessasse por garotas:
“Eu me lembro de uma vez que meu pai me levou pro psiquiatria. Eu lembro que eu não entendi o que tava acontecendo. (…) Ele chegou, na verdade a minha mãe chegou dizendo pro médico que o marido dizia que o filho é mulherzinha… Aí eu entendi a razão dele me levar na psiquiatria. Meu pai dizia [para o psiquiatra] que estava preocupado comigo, com meu futuro, o que eu iria virar, para o psiquiatra fazer alguma coisa, me tratar. Eu era muito pequeno, devia ter uns 7 ou 8 anos. Na minha geração a gente descobria a sexualidade bem mais tarde. E eles ficavam me dando esses rótulos e eu nem sabia o que estava acontecendo. A minha infância e juventude inteira era essa coisa do meu pai dizer que precisava me endireitar. (…) Ele [o pai] chegava do nada e me dizia: ‘no dia em que você for pro exército você vai aprender a ser homem! Eu vou torcer para você ir pra guerra! Você vai aprender a matar pessoas…’ Nossa, pra mim aquilo era um horror máximo! Ele sabia o que tava falando pra mim. Aquilo era muito pesado. (…) Eu cresci sentindo que tinha algo errado comigo. No que eu fazia, como eu era, no rumo que eu tava tomando. Nem sabia que rumo era esse. Só sabia que era o único jeito que eu sabia ser, que eu conseguia ser. Só depois fui entender o que eles realmente esperavam pra mim. Do jeito que eles queriam eu nunca ia conseguir realizar.”
No relato de Maurício a preocupação de seu pai com a viabilidade do “futuro” do filho, com o que ele “iria virar”, parecia subscrever uma noção de ausência de rumo correto para a vida a partir de uma concepção de inadequação primária às expectativas de gênero e sexualidade para a infância. O fato do filho “ser mulherzinha”, na narrativa de Maurício, parecia a seu pai quase um decreto prospectivo de fracasso, de infelicidade e, no extremo, de um não-futuro. Tais receios dos pais o faziam sentir ter algo de muito errado em si, de estar trilhando “um rumo equivocado” na vida, embora ele sequer soubesse exatamente o que isso significava na época.
Para além dos dramas familiares, Maurício também abordou a sua experiência no contexto da Ditadura Militar (1964-1985) quando, ainda adolescente, foi preso por se envolver em movimentos religiosos cristãos que ele via na época como defendendo transformações sociais progressistas:
“Com 17 anos eu participei de um movimento religioso dos Estados Unidos chamado ‘Children of God’ ou ‘Meninos de Deus’. Isso foi no fim dos anos 1970. (…) Nesse período fui preso, era época do Regime Militar. Eu fui preso em Curitiba pela Polícia Federal, pois a gente foi denunciado como comunistas. A gente circulava boa parte do país pregando. Fomos presos por causa das coisas pregadas pelo Evangelho. A gente foi preso, mas foi rápido, logo liberaram a gente, ninguém foi torturado e tal. Mas a gente foi investigado, pois a gente entregava panfletos na rua. Não era nada subversivo, a gente não tinha rabo preso. Só distribuía e sempre tinha um agente da PF [Polícia Federal] por perto. (…) Isso foi marcante, aquela coisa meio de adolescente, da coisa nova, excitante… Eu brinco agora, mas na época era um terror, né? A gente achou que não sairia mais vivo. Os gringos sim [sairiam vivos], mas e eu?”
A saída da cadeia ocorreu em poucos dias e o fato da maior parte do grupo ter passaporte estadunidense e ser branca contribuiu certamente para a celeridade na libertação. De todo modo, Maurício em boa parte de seus relatos apresentava como central uma ansiedade pretérita com os rumos de sua vida e com o futuro. Tal incerteza parece ter inscrito aos poucos em meu interlocutor uma espécie de névoa sobre o que pensar e como planejar o futuro, quase como se o futuro fosse um sítio para privilegiados e que não lhe dizia respeito.
Desde muito cedo Maurício ponderava que não conseguia se imaginar namorando garotas e muito menos se casando, tendo filhos, “constituindo família”. De acordo com ele, fora desse roteiro que lhe era familiar de convenções e expectativas de gênero e sexualidade, havia poucas alternativas viáveis para a vida na época em que era jovem. Essa escassez de alternativas o teria levado a almejar por alguns anos a ideia de abraçar uma vida monástica na busca, talvez, de um roteiro viável para a vida:
“Nessa época [fim da adolescência] eu já sabia que era gay, mas não era assumido, não admitia. Viver com esse grupo religioso era uma forma de lidar com isso. Apagar a sexualidade, na verdade. (…) Quando era adolescente eu fantasiava muito em virar monge ou padre. Hoje eu vejo como uma forma de escapar daquela pressão por namoro, por ter que me definir pros outros. As pessoas não enchem o saco do padre sobre as namoradinhas, né? [Risos]”.
Além das experiências de repressão estatal e do flerte com a vida monástica na adolescência - como parte, entre outras questões, da lida com a teleologia heteronormativa da época - Maurício também abordaria outras batalhas que ainda viriam. Entretanto, ainda na juventude, Maurício teve uma experiência com o que chamava de um “caminho tradicional” na vida, quando desenvolveu uma breve relação com a prima de um namorado seu e com ela tido um filho:
“Eu fiquei com ela meio que por acaso, eu estava ficando com o primo dela na época, e nós fizemos esse filho que está hoje com 38 anos. (…) Era ela quem queria [um filho]. Ela sempre dizia que queria ter um filho antes de completar 30 anos, ela era mais velha que eu. (…) Ela uma vez jogou na minha cara isso: ‘puxa, e eu fui ter filho justamente de um gay!?’ Ela era homofóbica, mas também adorava transar com gay… Não fui o único. [Risos] (…) Hoje em dia a gente não tem mais nenhum contato. Depois que ele nasceu eu vi meu filho até os seis meses. Depois ela sumiu com ele. Ela não queria que ele tivesse nenhuma influência [minha]. Tinha medo que ele fosse também homossexual. Eu só vi meu filho de novo quando ele completou 16 ou 17 anos. Ele é a minha cara escarrada. (…) Ela sempre dizia mentiras pro meu filho. Dizendo que eu é que tinha abandonado eles ou que não queria contato. Meu filho hoje em dia diz que o verdadeiro pai dele é o padrinho. A gente não tem mais relação alguma hoje em dia. Ele acreditou na mãe. Aí teve uma época em que ele só me procurava quando precisava de algo. Não existia uma relação de afeto, mais de interesse. Até mesmo pelo que a mãe botou na cabeça dele. A gente se fala uma vez ou outra, muito raramente. Ele é hétero. Foi casado dez anos. (…) Na verdade eu nunca quis ter filho. Nunca sonhei [com isso]. E ele foi uma coisa meio forçada, ela é que queria, por mim eu nunca teria filho, nunca me passou pela cabeça. Quando eu me descobri homossexual eu já descartei isso de ter filho. Parecia impossível. Hoje em dia tem um monte de gay que pensa em ter filho, quer adotar, mas na época era diferente. Não passava pela cabeça. Eu nunca me senti preparado.”
Maurício comenta também que sua família, quando soube que ele teria um filho, se encheu de alegria com a esperança de que agora ele “tomaria rumo na vida”, se casaria, se tornaria pai de família, teria uma “vida respeitável” e “correta”. Ele frisa múltiplas vezes, entretanto, que embora tenha mesmo fantasiado com a ideia de casar-se com a mãe de seu filho, tal roteiro teleológico lhe parecia, na verdade, insustentável. Ademais comenta que os “gays assumidos” da sua época não cogitavam esse tipo de projeto de paternidade, pelo menos não com eventuais parceiros. A seu ver esse seria um investimento que se tornaria mais amplamente cogitável somente para gerações mais jovens, formadas em um contexto social mais receptivo às possibilidades de parentalidade e conjugalidade homoafetivas.12 12 Sobre o tema, consultar Mello (2005), Uziel, Mello & Grossi (2006), Tarnovski (2017). A experiência de ser pai, quiçá pelos conflitos com a mãe de seu filho mas, de qualquer forma, em oposição às expectativas de seus familiares, parece ter reafirmado sua intenção de não se guiar por tais referenciais ao longo da vida.
Meu interlocutor afirmava também ter demorado muito tempo na juventude para conhecer homens gays mais velhos e que chegava a se perguntar o que ocorria com tais homens quando alcançavam a velhice. Isso fazia com que pensasse em alguns momentos que a homossexualidade era algo próprio, ou mesmo exclusivo, da juventude. De acordo com ele, em sua época praticamente não existiam homossexuais na velhice representados, por exemplo, em novelas e filmes e que tais homens costumavam não estar presentes significativamente nos bares e boates que frequentava à época. Desse modo, a ausência de tais modelos de referência lhe causava grandes angústias existenciais e afetava as suas possibilidades de antever ou planejar o futuro fora de roteiros teleológicos heteronormativos. A instabilidade resultante desse conjunto de questões dificultava, a seu ver, o vislumbre do que “ser gay e velho” poderia significar no futuro. Mesmo com receio do que lhe parecia um “lançar-se no escuro” ao recusar seguir certos marcos para alcançar uma vida “bem-sucedida”, Maurício dizia que sentia que o único caminho possível era enfrentar tais medos de modo a poder existir da maneira desejada. Entretanto, ele afirmava que isso, por outro lado, também ajudou a lançá-lo em um imediatismo em oposição a um planejamento da vida.
Ainda como um jovem adulto, Maurício relata um acontecimento extraordinário em meados dos anos 1980 que teria acirrado ainda mais esse imediatismo: a ‘sentença de morte’ que afirma ter recebido com o diagnóstico da soropositividade. Tal experiência ganhou facetas peculiares em sua trajetória, uma vez que atuou como enfermeiro por muitos anos no setor hospitalar para pacientes soropositivos. Portanto, ele pondera ter acessado “os dois lados da moeda”:
“[O diagnóstico surgiu pois] eu tinha tido condiloma. Aí através de uma conhecida ela me levou para um médico e esse médico fez uma série de exames. Mas nessa época ainda não tinha exames de SUS e o SUS nem existia como hoje. Aí o médico chegou pra mim em 1986 e falou pra mim, ‘olha, você não tem muito tempo de vida… você tem um vírus letal, esse vírus vai te matar…’ Eu tinha 29 anos em 1986. ‘Você não vai viver muito e tal…’. Eu saí dali chocado, né? Estado de choque. Eu me lembro bem, foi no dia 20 e poucos de outubro. (…) E meu pai faleceu bem nessa época… (…) Parece novela, né? Ele teve infarto fulminante. (…) Com todas essas coisas eu sublimei o lance do HIV. Esqueci. Aí só em 1995 eu redescobri. Era como se nunca tivesse ouvido o diagnóstico. (…) E só em 1990 eu me vi como paciente mesmo. Acho que foi na verdade em 1990 que eu redescobri… Não, 1995, as datas tão meio embaralhadas. Quando o médico falou do vírus em 1986 ele não falou que era HIV. Ele só disse que era um vírus letal. Só fui descobrir depois. E como auxiliar de enfermagem nesse meio tempo eu precisei cuidar de muitos soropositivos. Eu precisava usar gorro, luvas, capote, máscaras e eu detestava aquilo. Eu tinha alergia, rinite… Os pacientes viviam isolados, era horrível. Aí um dia eu dei uma de rebelde e tirei tudo. Os outros gritavam que eu iria me contaminar e eu dei o dane-se. Isso era final dos anos 1980. Tinha medo, mas com aquela coisa de… Não ficar tão distante do paciente. Eu sou de tocar quando estava cuidando. Eu vi os dois lados. O do profissional e o do paciente.”
Retomando a ideia de interpretações individuais de experiências sociais mais amplas (Kofes, 1994KOFES, Suely. 1994. Experiências Sociais, Interpretações Individuais. Histórias de vida, suas possibilidades e limites. Cadernos Pagu , Campinas, n.3, pp. 117-141.), dialogar com Maurício e ouvi-lo narrar suas experiências densas ao longo da vida era, de certa forma, ter acesso a um conjunto amplo de dramas sociais, políticos e culturais brasileiros que marcaram a segunda metade do Século XX. Mais tarde, aliando a ausência de modelos de referência de homens gays na velhice com o diagnóstico da soropositividade, Maurício afirma ter se tornado ainda mais inviável ousar vislumbrar prognósticos de futuro. O futuro então, de fato, se tornaria a seu ver um artigo ainda mais luxuoso do que fora até então. Essa dificuldade em conceber o futuro, por outro lado, parece ter contribuído para um intenso imediatismo e investimento em prol de um ‘viver bem’ no momento presente. Esse apreço e valorização extrema do presente, a seu ver, eventualmente o levaria inclusive a desenvolver práticas meditativas budistas por mais de duas décadas, ao mesmo tempo em que era praticante e seguidor de religiões afro-brasileiras. De acordo com os relatos de Maurício, em meio ao processo de erigir uma viabilidade existencial foi necessário trilhar um caminho até certo ponto desviando e desafiando determinados roteiros, modelos e guias tradicionais para a vida.
Apesar de nunca imaginar que conseguiria alcançar a velhice, Maurício fazia questão de ponderar que “ser velho” não era algo que ele negasse ou em relação ao qual sentisse embaraço. Ao contrário, “ser velho” lhe dava um senso de vitória, realização e até mesmo privilégio:
“Nunca pensei que um dia seria velho. Que ía alcançar esse momento. Nunca! Quantos dos meus amigos não tiveram essa sorte? Todo mundo morre um dia, não é? Eu vivi bem cada dia. Acordava e pensava: pode ser o último, então vamos viver bem, né? Eu vivi bem, tanto o bom quanto o ruim. Posso dizer que vivi. Por isso não tenho medo da morte. Ela sempre esteve ali, não muito longe, minha vizinha. [Risos]. Nunca deixei dominar. (…) Pra mim, eu não entendo a vergonha de muitos gays de serem velhos. (…) Sou velho e gay, sim!” [Maurício apud Henning (2020HENNING, Carlos Eduardo. 2020. O Nascimento do Orgulho Grisalho. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora. Ed. Direitos em Disputa: LGBTI+, Poder e Diferença no Brasil Contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp . Pp.72-86. [No prelo].)]
Sua fala parece subverter a comum evitação da velhice, considerando ter alcançado a velhice como uma espécie de privilégio conquistado por poucos entre os amigos gays de sua geração. Maurício, em algumas ocasiões, performava através da narrativa uma “saída do armário” não somente quanto a homossexualidade, mas também quanto a velhice, em si (Henning, 2020HENNING, Carlos Eduardo. 2020. O Nascimento do Orgulho Grisalho. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora. Ed. Direitos em Disputa: LGBTI+, Poder e Diferença no Brasil Contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp . Pp.72-86. [No prelo].). De certo modo, meu interlocutor parecia questionar e se apropriar subversivamente da noção de velhice como estigma, tornando-a símbolo de resiliência e de sobrevivência13 13 Sobre a produção do “orgulho grisalho” no Brasil, associando o “orgulho LGBT” ao “orgulho de ser velho/a”, consultar Henning (2020). .
Na época em que começamos a dialogar, Maurício enfrentava ao mesmo tempo os desafios da soropositividade e a lida, sozinho, com o tratamento da leucemia e câncer de próstata. Tomava muitas medicações, realizava inúmeras terapias, atravessava a cidade para consultas e terapias acessíveis, muitas vezes sentindo-se extremamente fraco. Como se isso não bastasse, ainda enfrentava problemas sérios com as pessoas que viviam consigo. Contou que na modesta pensão onde morava as pessoas não sabiam que ele era gay e soropositivo. Isso o levava a esconder as medicações, a tomá-las no banheiro ou em momentos em que ninguém estivesse por perto. Tendo em mente essa situação tensa e estressante em que vivia, era compreensível que para Maurício a ideia de viver em um residencial para idosos LGBT lhe fosse muito ansiada (Ibidem).
A modo de conclusão, Maurício ponderava que apesar de ter ideia do pouco tempo de vida que lhe restava, a existência da Eternamente Sou e o avanço da “causa dos idosos LGBT” teriam lhe dado novas esperanças:
“A Eternamente [Sou] me dá uma esperança que eu nem sabia que podia existir. Contar com eles para apoiar o futuro é um tipo de alívio, ainda mais pra mim que passei por tanta coisa. (…) Eu consegui enfrentar tudo o que enfrentei do jeito que deu, mas tem LGBT que não vai conseguir chegar até aqui, como eu consegui. (…) É importante saber que se tem apoio do movimento até o fim. A gente tem que se apoiar uns aos outros (…) [Quando se revelou soropositivo] Muitas pessoas se afastaram de mim. E com a leucemia e câncer de próstata mais gente ainda se afastou de mim. Tinha uma época que era só eu e meu companheiro, antes da gente se separar. Não dava pra contar com a minha família pra nada, nada, nada… Só quando eles acharam que eu iria morrer por causa da leucemia é que a minha tia levou a minha mãe para me visitar, quando ela ainda estava um pouco lúcida. Eu nunca pude contar com a minha família pra nada. (…) Não tô falando isso pra parecer coitadinho, não. É que eu dei conta das coisas sozinho mesmo. Porque minha família sempre foi assim… Quer dizer, as minhas sobrinhas ajudam sim, mas só uma vive aqui em São Paulo. Elas ajudam como podem, mas quando meu irmão foi me buscar quando tive alta da leucemia ele disse: ‘ah, isso aí é mais uma batalha que você vai conseguir superar. Você é forte, se vira sozinho.’ Eu sempre fui muito forte e independente, mas essa independência também afastou eles de mim. Eu sei que sou forte, mas isso não quer dizer que não precise de ajuda de vez em quando, né?” (Ibidem).
Em suas narrativas o surgimento da Eternamente Sou e da “causa dos idosos LGBT”, expandia suas fontes de apoio e de cuidado, trazendo algum conforto, em especial em circunstâncias tão desafiadoras. Embora Maurício permanecesse com dificuldades para vislumbrar o seu próprio futuro - falava com frequência e naturalidade sobre a aceitação da finitude e do potencial tempo curto que lhe restava - ele mencionava com orgulho, porém, a produção de uma espécie de “futuro coletivo”. Quando diz que organizações como a Eternamente Sou são importantes, pois “tem muito LGBT que não vai conseguir chegar até aqui, como consegui”, Maurício parte do pressuposto da existência dada de um novo sujeito político envelhecido com características e necessidades específicas que precisam ser administradas por profissionais competentes. E é em prol da proteção dessa população envelhecida e de seus prospectos de futuro que ele parece depositar suas esperanças na atuação desses novos ativismos em defesa de pessoas LGBT na velhice.
Maurício afirmava também que contrariamente a sua experiência na juventude, quando não possuía contato com homens gays velhos e não conhecia as suas experiências e realidades, a Eternamente Sou também tornava as histórias de idosos LGBT conhecidas e divulgadas mais amplamente:
“Na Eternamente a gente está sempre convivendo com gente de todas as idades, gente jovem, gente velha, a gente acaba sendo visto, aprendendo junto. A gente ensina, mas aprende ao mesmo tempo. Quem me dera existisse isso quando eu era mais novo. Poder conhecer LGBTs na velhice, ver como vivem, ver que existem, que não viram purpurina quando ficam idosos, sabe? Isso já é uma coisa que é fantástica. A visibilidade, se você não vê, não conhece, é como se não existisse, né? A gente não vira raio-lazer [na velhice], não! [Risos]”
A concretude da velhice como homem gay - não “virar raio-lazer” ou “purpurina” ao tornar-se velho - e a necessidade de visibilidade e representatividade foram frisadas inúmeras vezes ao longo da entrevista. De acordo com ele a ideia de “ser velho e gay” em seus tempos de juventude era algo em grande medida ausente do imaginário teleológico sobre o percurso biográfico, pelo menos para pessoas de sua geração. E para Maurício, ironicamente, o vislumbre de um futuro que tornava a velhice um sítio viável e vivível para si e para pessoas LGBT em geral só veio se realizar no período final de sua vida. Esse envolvimento com o ativismo associado à politização das velhices LGBT, entretanto, parece ter-lhe aberto portas para ressignificar positivamente as potencialidades da velhice e do futuro no debate sobre diversidade sexual e de gênero.
Considerações Finais
Mesmo que Maurício tenha permanecido sem usufruir do privilégio de um horizonte de futuridade de algum modo, digamos, mais “planejável” ou “tangível”, o surgimento dos ativismos sobre velhices LGBT, os programas e atuação da Eternamente Sou, assim como o desenvolvimento da gerontologia LGBT no Brasil parecem estar contribuindo para a produção de um “futuro coletivo” para novos sujeitos envelhecidos.
Essas emergências, por sua vez, são parte do próprio processo de constituição biopolítica de sujeitos, identidades e populações discerníveis do fundo social, em especial a partir de novas politizações do envelhecimento14
14
Para um aprofundamento desse processo de constituição biopolítica dos “idosos LGBT” através do desenvolvimento da gerontologia LGBT, dos novos ativismos sobre velhices e diversidade sexual e de gênero, e também do surgimento do “orgulho grisalho”, consultar Henning (2017, 2020).
. O questionamento do panorama heteronormativo e cisnormativo sobre a velhice (Henning, 2016HENNING, Carlos Eduardo. 2016a. Is old age always already heterosexual and cisgender? The LGBT Gerontology and the formation of the “LGBT elders”. Vibrant. V.13 n.1. Pp. 132-154. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/vb/v13n1/1809-4341-vb-13-01-00132.pdf].
http://www.scielo.br/pdf/vb/v13n1/1809-4...
, 2017HENNING, Carlos Eduardo. 2017. Gerontologia LGBT: velhice, gênero, sexualidade e a constituição dos ‘idosos LGBT’. Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 23, n. 47, Pp. 283-323. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/ha/v23n47/0104-7183-ha-23-47-0283.pdf].
http://www.scielo.br/pdf/ha/v23n47/0104-...
), tem reconfigurado a imagética sobre esse momento da vida tornando-o mais habitável para sujeitos até então a ele tidos, em grande medida, como não associáveis. Se as teleologias heteronormativas sobre o curso da vida para pessoas LGBT da geração de Maurício pareciam tornar inóspita e inviável a velhice como horizonte de futuro, as formas contemporâneas de politização da velhice que venho analisando esgarçam, subvertem e ressignificam essas potencialidades15
15
Sobre sexualidade e velhice consultar Brigeiro (2002), Debert & Henning (2015) e Debert, Simões & Henning (2016). Sobre o processo de erotização da velhice, consultar Debert & Brigeiro (2012).
. Tais transformações - que permanecem em processo - contribuem, por fim, para a ampliação dos horizontes de futuridade coletivos, para uma nova compreensão da velhice, para a produção dos idosos LGBT e, por fim, para formas até certo ponto criativas e insubmissas de relacionar-se com o envelhecimento e o curso da vida no contemporâneo.
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Neste artigo faço uso da noção de narrativa tomando-a como “maneiras, caminhos, veículos da experiência e do sentido - mesmo que se trate de um sentido precário, ou porque temporário ou porque nunca inteiramente ao alcance da compreensão (…). [Tendo em mente que] nem a experiência nem o sentido (ou os sentidos) são redutíveis à narrativa, ao discurso, ou ao texto em seu significado mais largo.” (Maluf, 1999, p. 71-72MALUF, Sonia Weidner. 1999. Antropologia, Narrativas e a Busca de Sentido. Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 5, n.12, p. 69-82.).
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2
Este texto é um dos resultados de períodos de pós-doutorado que desenvolvi no Departamento de Antropologia da USP (2018-2019) e no Institute of Latin American Studies da Columbia University em Nova Iorque (2019). Gostaria de agradecer a Julio Assis Simões pela generosa supervisão na USP e a Richard Parker pelo apoio crucial na Columbia University. Agradeço a Miriam Grossi pelas sugestões prévias ao período em que estive na Columbia University. Sou grato também a Regina Facchini e Isadora Lins França por comentários ao presente texto e, por fim, às/aos pareceristas da Sexualidad, Salud y Sociedad pelas excelentes sugestões que acabaram incorporadas na versão final.
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3
Embora não faça uso ostensivo neste texto da abordagem de “histórias de vida”, minha análise está sensibilizada pelas ponderações de Suely Kofes (1994, p. 118KOFES, Suely. 1994. Experiências Sociais, Interpretações Individuais. Histórias de vida, suas possibilidades e limites. Cadernos Pagu , Campinas, n.3, pp. 117-141.), a qual concebe tal abordagem como: “interpretações individuais de experiências sociais. [Tratando-se:] 1) de relatos motivados pelo pesquisador e implicando sua presença como ouvinte e interlocutor; 2) de um material restrito à situação de entrevista (…) considerando apenas o que foi narrado ao pesquisador pelo entrevistado (…); 3) daquela parcela da vida do sujeito que diz respeito ao tema da pesquisa, sem esgotar as várias facetas de uma biografia.”
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Tomo a biopolítica em sua acepção foucaultiana, como uma forma social surgida a partir do século XVIII que procurou racionalizar as problemáticas encaradas pela prática governamental acerca de fenômenos específicos do conjunto de seres humanos tomados como uma população, englobando questões de saúde, higiene, taxas de natalidade, longevidade, raça, etc (Foucault, 1988, p. 131FOUCAULT, Michel. 1988. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.).
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Sobre a questão, sugiro a consulta a alguns trabalhos que fazem parte e contribuem para compor olhares genealógicos para esse campo no Brasil: Facchini (2008FACCHINI, Regina. 2005. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond.; 2009FACCHINI, Regina. 2009. Campo e arena do movimento LGBT brasileiro. Bagoas, n. 04. Pp.131-158.); Simões & Facchini (2009SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. 2009. Na Trilha do Arco-Íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.); França (2006FRANÇA, Isadora Lins. 2006. Cercas e pontes. O movimento GLBT e o mercado GLS na cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado, Antropologia Social, USP., 2012FRANÇA, Isadora Lins. 2012. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: CLAM/EDUERJ.); Facchini; França & Braz (2014FACCHINI, Regina; FRANÇA, I. L.; BRAZ, C. 2014. Estudos sobre sexualidade, sociabilidade e mercado: olhares antropológicos contemporâneos. Cadernos Pagu (42), Janeiro--Junho, Pp.99-140.); Carrara & Simões (2007CARRARA, Sérgio; Simões, Júlio. 2007. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. Cadernos Pagu (28), Campinas-SP: Unicamp, pp.65-99.).
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O tema do curso da vida, do envelhecimento e diversidade sexual e de gênero tem sido generosamente desenvolvido nas últimas duas décadas no Brasil. Nesse sentido, é possível citar, por exemplo, no que tange a homossexualidade masculina e envelhecimento: Paiva (2009PAIVA, Cristian. 2009. “Corpos/seres que não importam? Sobre homossexuais velhos”. Revista Bagoas , 04: 191-208.), Mota (2009MOTA, Murilo P. 2009. “Homossexualidade e envelhecimento: algumas reflexões no campo da experiência”. SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências Sociais,06(1): 26-51.), Neman do Nascimento (2013), Pocahy (2011POCAHY, Fernando A. 2011. Entre vapores e dublagens: dissidências homo/eróticas nas tramas do envelhecimento. Tese de Doutorado em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS, Porto Alegre, RS.), Passamani (2015PASSAMANI, Guilherme. 2015. Batalha de Confete no “Mar de Xarayés”: condutas homossexuais, envelhecimento e regimes de visibilidade. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Campinas.), Saggese (2015SAGGESE, Gustavo S. R. 2015. Entre Perdas e Ganhos: Homossexualidade masculina, geração e transformação social na cidade de São Paulo. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade de São Paulo.) e Duarte (2013DUARTE, Gustavo de Oliveira. 2013. O “Bloco das Irenes”: articulações entre amizade, homossexualidade(s), e o processo de envelhecimento. Tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Já quanto a envelhecimento e mulheres lésbicas destacam-se os trabalhos de Lima (2006LIMA, Tânia Gonçalves. 2006. Tornar-se velho: o olhar da mulher homossexual. Dissertação de Mestrado em Gerontologia, PUC/SP.), Moraes (2010MORAES, Andrea. 2010. “Envelhecimento, trajetórias e homossexualidade feminina”. Horizontes Antropológicos , 34: 213-233.) e Lacombe (2005LACOMBE, Andrea. 2016. Regimes de visibilidade, mudança social e convenções sobre sexualidade e envelhecimento: um estudo entre mulheres que mantêm relações homossexuais em São Paulo e Buenos Aires. Relatório Final de Pós-Doutorado. FAPESP: São Paulo., 2010LACOMBE, Andrea. 2010. Ler(Se) nas Entrelinhas: sociabilidades e subjetividades entendidas, lésbicas e afins. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro.). No que diz respeito ao curso da vida e/ou envelhecimento de travestis e/ou pessoas trans constam os trabalhos de Siqueira (2004SIQUEIRA, Monica. 2004. Sou senhora: um estudo antropológico sobre travestis na velhice. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis., 2009SIQUEIRA, Monica. 2009. Arrasando Horrores! Uma etnografia das memórias, formas de sociabilidade e itinerários urbanos de travestis das antigas. 2009. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Florianópolis: PPGAS Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).), Antunes (2010ANTUNES, Pedro Paulo Sanmarco Antunes. 2010. Travestis envelhecem? Dissertação de Mestrado em Gerontologia, PUC/SP.), Nogueira (2013NOGUEIRA, Francisco Jander de Sousa. 2013. ‘Mariconas’: itinerários da velhice travesti, (des)montagens e (in)visibilidades. Tese de Doutorado. Programa de PósGraduação em Sociologia. Universidade Federal da Paraíba.), Sander & Oliveira (2016SANDER, Vanessa; OLIVEIRA, Lorena Hellen. 2016. “Tias” e “novinhas”: envelhecimento e relações intergeracionais nas experiências de travestis trabalhadoras sexuais em Belo Horizonte. Revista Sociedade e Cultura , FCS/UFG, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 69-81, jul./dez.), Braz (2017BRAZ, Camilo. 2017. Transmasculinidades, temporalidades: antropologia do tempo, da espera e do acesso à saúde a partir de narrativas de homens trans. Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 11. Florianópolis.). Sobre o tema mais amplo de velhices LGBT para além do debate sócio-antropológico, consultar os trabalhos recentes de Sobreira Leal & Oliveira Mendes (2017SOBREIRA LEAL, Maria das Graças; OLIVEIRA MENDES, Márcia Regina. 2017. A geração duplamente silenciosa - velhice e homossexualidade. Revista Portal de Divulgação, n.51, Ano VII.), Fernandes de Araújo & Pessoa (2018FERNANDES DE ARAÚJO, Ludgleydson; PESSOA, Karolyna. 2018. Sexualidade na velhice. Um estudo sobre o envelhecimento LGBT. Psicología, Conocimiento y Sociedad 8(1), 218-237 (mayo-octubre).) e Crenitte, Miguel & Jacob Filho (2019CRENITTE, Milton; MIGUEL, Diego; JACOB FILHO, Wilson. 2019. An Approach to the Peculiarities of Lesbian, Gay, Bisexual, and Transgender Aging. Geriatrics, Gerontology and Aging. Vol. 13(1), Pp.: 50-56.).
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Sobre marcadores sociais da diferença e particularmente revisões sobre a noção feminista de interseccionalidade, consultar Piscitelli (2008PISCITELLI, Adriana. 2008. Interseccionalidade, categortias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez: 263-274.), Mello & Gonçalves (2010MELLO, Luiz; GONÇALVES, Eliane. 2010. Diferença e Interseccionalidade: notas para pensar práticas em saúde. Cronos - Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da UFRN. Vol.1 (2). Pp.: 163-173.), Henning (2015HENNING, Carlos Eduardo. 2015. Interseccionalidade e Pensamento Feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Revista Mediações. Londrina, Vol. 20. N.2, Julho-Dezembro. Pp. 97-128. [Acessível via: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/22900/pdf7].
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php... ) e Akotirene (2019AKOTIRENE, Carla. 2019. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Livros.). Para as relações nem sempre simples e pacíficas entre as noções de “marcadores sociais da diferença” e “interseccionalidade” consultar também Hirano (2019HIRANO, Luis Felipe Kojima. 2019. Marcodores Sociais das Diferenças: rastreando a construção de um conceito em relação à abordagem interseccional e a associação de categorias. HIRANO, L. F. K.; ACUÑA, M.; FONSECA MACHADO, B. Marcadores Sociais das Diferenças: fluxos, trânsitos e intersecções. Imprensa Universitária: Goiânia. [Acessível via: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/688/o/marcadores_sociais_das_diferencas.pdf].
https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/688... ). -
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Ari é um nome fictício, assim como ocorre em todos os demais nomes dos contatos de campo citados neste trabalho.
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Para uma revisão sistemática e crítica dos debates dos estudos queer acerca das noções de tempo e temporalidade queer, assim como “futurismo reprodutivo” e “temporalidade reprodutiva”, consultar Henning (2016bHENNING, Carlos Eduardo. 2016b. ‘Na minha época não tinha escapatória’: teleologias, temporalidades e heteronormatividade. Cadernos Pagu . (46), Janeiro-Abril: Pp. 341-371. ISSN 1809-4449. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0341.pdf].
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-44... ). -
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Em termos gerais, “cisgênero” pode ser compreendido como um termo que diz respeito à adequação e coerência heteronormativas entre uma identidade de gênero particular e o sexo as-signado ao nascimento. Por exemplo, nascer com o que se compreende socialmente como próprio do “sexo masculino” e compreender-se como tendo uma identidade de gênero masculina. O termo tem sido utilizado como uma contraposição normativa e relacional às identidades “trans” (transgêneros, transexuais...), ou seja, aquelas identidades de gênero que desafiariam, de distintos modos, as convenções dominantes da inteligibilidade de gênero em uma “matriz heterossexual” da qual fala Judith Butler (2003BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).
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Doutrinas teleológicas estão profundamente enraizadas no pensamento filosófico ocidental pelo menos desde Aristóteles, o qual auxiliou determinantemente a disseminar a ideia de que a existência e o universo como um todo se direcionam a uma finalidade última, a qual, porém, não seria passível de um escrutínio absoluto. A ponderação clássica da teleologia aristotélica, assim sendo, é a de que as coisas tenderiam a um bem genérico e que a finalidade de uma determinada coisa seria esse bem que lhe seria próprio (Aristóteles, 1984ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. 1a ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural. 1984.). De certo modo, se trata quase de uma tautologia.
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Sobre o tema, consultar Mello (2005MELLO, Luiz. 2005. Novas Famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond .), Uziel, Mello & Grossi (2006UZIEL, Ana Paula; MELLO, Luiz; GROSSI, Miriam P. 2006. Conjugalidades e Parentalidades de Gays, Lésbicas e Transgêneros no Brasil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 14(2): 248, Maio-Agosto.), Tarnovski (2017TARNOVSKI, Flávio Luiz. 2017. Prazer, Desejo e Verdade: narrativas de pais gays que tiveram seus filhos em uniões heterossexuais. HENNING, C. E.; BRAZ, C. Gênero, Sexualidade e Curso da Vida: diálogos latino-americanos. Goiânia: Imprensa Universitária. Pp.144-171. Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/uploads/sites/2/2018/06/ebook_genero_sexualidade.pdf
https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/u... ). -
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Sobre a produção do “orgulho grisalho” no Brasil, associando o “orgulho LGBT” ao “orgulho de ser velho/a”, consultar Henning (2020HENNING, Carlos Eduardo. 2020. O Nascimento do Orgulho Grisalho. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora. Ed. Direitos em Disputa: LGBTI+, Poder e Diferença no Brasil Contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp . Pp.72-86. [No prelo].).
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Para um aprofundamento desse processo de constituição biopolítica dos “idosos LGBT” através do desenvolvimento da gerontologia LGBT, dos novos ativismos sobre velhices e diversidade sexual e de gênero, e também do surgimento do “orgulho grisalho”, consultar Henning (2017HENNING, Carlos Eduardo. 2017. Gerontologia LGBT: velhice, gênero, sexualidade e a constituição dos ‘idosos LGBT’. Horizontes Antropológicos , Porto Alegre, ano 23, n. 47, Pp. 283-323. [Acessível via: http://www.scielo.br/pdf/ha/v23n47/0104-7183-ha-23-47-0283.pdf].
http://www.scielo.br/pdf/ha/v23n47/0104-... , 2020HENNING, Carlos Eduardo. 2020. O Nascimento do Orgulho Grisalho. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora. Ed. Direitos em Disputa: LGBTI+, Poder e Diferença no Brasil Contemporâneo. Campinas: Editora da Unicamp . Pp.72-86. [No prelo].). -
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Sobre sexualidade e velhice consultar Brigeiro (2002BRIGEIRO, M. Envelhecimento bem-sucedido e sexualidade: relativizando uma problemática. In: BARBOSA, R. et al. (Org.). Interfaces: gênero, sexualidade e saúde reprodutiva. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. p. 171-206.), Debert & Henning (2015DEBERT, Guita; HENNING, C. E. 2015. Velhice, gênero e sexualidade: revisando debates e apresentando tendências contemporâneas. MAIS 60 - Estudos sobre Envelhecimento, São Paulo: Edições Sesc, v. 26, n. 63, p. 8-31, dez. 2015. [Acessível via: https://www. sescsp.org.br/files/edicao_revista/a21b7270-e797-4ccc-a526-9f83f89db9df.pdf].
https://www. sescsp.org.br/files/edicao_... ) e Debert, Simões & Henning (2016DEBERT, Guita; SIMÕES, J. A.; HENNING, C. E. 2016. Entrelaçando Gênero, Sexualidade e Curso da Vida: apresentação e contextualização. Sociedade & Cultura. Goiânia. Vol. 19, n. 2, p. 3-12, jul./dez. [Acessível via: https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/view/48680/23960].
https://www.revistas.ufg.br/fchf/article... ). Sobre o processo de erotização da velhice, consultar Debert & Brigeiro (2012DEBERT, Guita; BRIGEIRO, Mauro. 2012. Fronteiras de Gênero e a Sexualidade na Velhice. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 27, n. 80.).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Out 2020 -
Data do Fascículo
May-Aug 2020
Histórico
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Recebido
12 Jun 2020 -
Aceito
20 Ago 2020