Acessibilidade / Reportar erro

Apenas um perfil no Grindr? Montando um corpo marcado

¿Solo un perfil en el Grindr? Ensamblando um cuerpo marcado

Just a profile on Grindr? Building a marked body

Resumo:

Este artigo, derivado de pesquisa mais ampla sobre o aplicativo de encontros Grindr, focaliza a produção dos corpos por meio de uma imersão pelas etapas de edição do perfil, por suas ferramentas e funções, e discute como disposições arquitetônicas e discursivas conduzem à produção de um corpo marcado. Refletir sobre efeitos subjetivos era o objetivo da pesquisa e a cartografia foi a escolha metodológica, o que possibilitou a deriva por diferentes espaços e materiais. A análise se deu de maneira anônima, a partir das ferramentas disponíveis pelo aplicativo, pensando a montagem dos corpos-perfis e indicou que marcadores sociais acabam por engendrar processos de individualização disciplinar e totalização biopolítica. Aderir a planos com custos maiores abrem novos e ampliados usos de ferramentas e funções, propiciando mais poder de filtragem e monitoramento na busca e interação com perfis. Conclui-se que o Grindr conduz à produção de subjetividades marcadas, por certa estética e saúde, e viabiliza uma paradoxal sociabilidade privatizada/privatizante em tempos neoliberais.

Palavras-chave:
Grindr; corpo; sexualidade; marcadores sociais de diferença; subjetividade

Resumen:

Este artículo, derivado de una investigación más amplia sobre Grindr, una aplicación de citas, se centra en la producción de cuerpos a través de una inmersión en las etapas de edición del perfil, sus herramientas y funciones, y analiza cómo las disposiciones arquitectónicas y discursivas conducen a la producción de un cuerpo marcado. La reflexión sobre los efectos subjetivos fue el objetivo de la investigación y la cartografía fue la elección metodológica, que permitió la deriva por diferentes espacios y materiales. El análisis se realizó de forma anónima, a partir de las herramientas disponibles a través de la aplicación, considerando el ensamblaje de cuerpos-perfiles e indicó que los marcadores sociales terminan engendrando procesos de individualización disciplinaria y totalización biopolítica. Comprar planes con costos más altos abre nuevos y expandidos usos de herramientas y funciones, proporcionando más poder de filtrar y monitorar perfiles. Se concluye que Grindr conduce a la producción de subjetividades marcadas, por cierta estética y salud, y posibilita una paradójica sociabilidad privatizadora/privatizadora en tiempos neoliberales.

Palabras clave:
Grindr; cuerpo; sexualidad; marcadores sociales de diferencia; subjetividad

Abstract:

This article, derived from broader research on Grindr, an dating app, focuses on the production of bodies through an immersion through the stages of editing the profile, tools and functions, and discusses how architectural and discursive dispositions lead to the production of a marked body. Reflecting on subjective effects was the objective of the research and cartography was the methodological choice, which allowed the drift through different spaces and materials. The analysis took place anonymously, based on the tools available through the app, considering the assembly of bodies-profiles and indicated that social markers engender processes of disciplinary individualization and biopolitical totalization. Joining plans with higher costs opens up new and expanded uses of tools and functions, providing more filtering and monitoring power when searching and interacting with profiles. It is concluded that Grindr leads to the production of subjectivities marked, by certain aesthetics and health, and enables a paradoxical privatized/privatizing sociability in neoliberal times.

Keywords:
Grindr; body; sexuality; social markers of difference; subjectivity

Introdução

O presente artigo advém de uma dissertação de mestrado que colocou como questão discutir a produção de corpos e os modos de subjetivação no aplicativo Grindr, uma rede social com tecnologia geolocalizada que viabiliza encontros sexuais. Lançado em 2009 como um “radar gay”, teve como público`inicial usuários cis-gays e homens que buscavam outros homens. Desde 2017, procurando ampliar seu alcance, o aplicativo vem modificando sua proposta, que passou a ser “conectar pessoas gays, bi, trans e queer” a fim de “agregar a comunidade LGBTQ+” (Grindr LLC, 2020). Atualmente o aplicativo consolida cerca de treze milhões de usuários pelo mundo.

Compreendemos o Grindr como um vetor do dispositivo da sexualidade pensado por Michel Foucault, por promover processos que incitam à produção de corpos marcados, aos encontros afetivo-sexuais e ao engendramento de práticas de diferentes pessoas LGBTQ+, tudo constantemente esquadrinhado (em localização e tempo real), de modo que há incessante constituição de verdades sobre o sujeito, o que acaba conduzindo suas condutas. Esta, que identificamos ser uma produção biopolítica (Foucault, 2014a) em tempos de racionalidade neoliberal (Foucault, 2008), se dá a partir de processos de monitoramento de dados sensíveis e controle dos corpos, e envolve circulação por espaços urbanos e digitais, formas de se ver, compor e exibir imagética, discursiva e capitalisticamente, jogar com preferências e marcadores sociais, e até mesmo aderir a programas de “saúde” sexual - sendo esses alguns dos elementos que problematizamos na pesquisa realizada. Sobretudo, entre o engendramento de práticas, que vão desde encontros afetivos sexuais às práticas de proteção (ou não), ao longo do trabalho destacamos o uso de PrEP1 1 O Ministério da Saúde (2019) explica que a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV é um método de prevenção à infecção ao HIV que consiste no consumo diário de um comprimido que impede que o vírus da AIDS infecte o organismo. , buscando problematizar como este tratamento modifica modos de escolha de parceiros, abrindo ou fechando possibilidades de encontros a partir das informações disponibilizadas em perfis do Grindr.

Como visávamos acompanhar processos de produção de subjetividade, realizar uma deriva cartográfica foi nossa escolha metodológica, por tratar de um modo de pesquisa-intervenção que fez pensar procedimentos inventivos (Passos, Kastrup e Escóssia, 2015PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana. 2015. Pistas do Método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina. )2 2 Os caminhos percorridos por meio da cartografia em espaços digitais se assemelham àqueles que são trilhados quando se adota a etnografia virtual, mas, assim como também em relação à etnografia digital, cada perspectiva guarda especificidades. . Não havendo “coleta de dados”, a produção de dados se deu a partir de diferentes materiais: a arquitetura do próprio Grindr, suas postagens, publicidades e vídeos (no site, aplicativo e YouTube), matérias sobre o Grindr em diferentes mídias, e acompanhamento de perfis online e off-line. Para tanto, foram criados, pelo primeiro autor, pesquisador-usuário, diferentes formatos de perfis para produzir a experiência de circular pelo aplicativo. Como a pesquisa não se baseou na interação com os usuários, a identidade de pesquisador não foi revelada. Tal experimentação rizomática implicou um “estar entre as coisas”, um mapa em constante processo, que recebia modificações constantes. Este deslizar e mapear ditos, imagens, corpos e links não buscava um centro, mas múltiplas entradas e saídas. Um mapa que se ramificava em várias direções, se ligando a um ponto qualquer, e logo a outro, crescendo de acordo com as conexões que se davam, propondo mesmo uma deriva sempre em aberto (Zambenedetti e Silva, 2011ZAMBENEDETTI, Gustavo; SILVA, Rosane Azevedo Neves. 2011. “Cartografia e genealogia: aproximações possíveis para a pesquisa em psicologia social”. Psicologia & Sociedade. Julho de 2011. Vol. 23, n° 3, p. 454-463.). Deste modo, se compôs o material de análise; foram considerados mais de 700 perfis, sendo que, para a dissertação, foram analisados 106 - sempre tomados de forma intencional, pelas conexões e discussões que possibilitavam (não para atender a uma busca por representatividade da pluralidade de usuários no aplicativo). Para tanto, houve o cuidado de desidentificar os perfis de usuários ao longo do processo de pesquisa e na redação final do trabalho. Foram utilizados somente fragmentos que não possibilitam riscos de reconhecimento.

A centralidade do corpo neste tipo de aplicativo e no próprio Grindr já foi apontada em estudos anteriores (Grohmann, 2016GROHMANN, Rafael. 2016. “Não sou/ não curto: sentidos circulantes nos discursos de apresentação do aplicativo Grindr”. Sessões do Imaginário. Agosto de 2016. Vol. 21, n° 35, p. 70-79. ; Maracci-Cardoso et al., 2019MARACCI-CARDOSO, João; PAZ, Bernard M.; ROCHA, Kátia B.; PIZZINATO, Adolfo. 2019. “Imagem, corpo e linguagem em usos do aplicativo Grindr”. Psicologia USP. Janeiro de 2019, Vol. 30, p. 1-11.; Miskolci, 2017MISKOLCI, Richard. 2017. Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. 1ª ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica. ), mas considerávamos ser pertinente avançar na produção de conhecimento quanto a esta questão de forma a contemplar as tensões referentes a aspectos biopolíticos do corpo. Assim, buscamos, a partir do que o Grindr coloca a circular e das práticas de uso, investigar como se dá o incitamento à produção, às diferentes formas de composição e à estilização dos corpos, pensando políticas da sexualidade e dos marcadores sociais da diferença de forma a refletir sobre os impactos da racionalidade biopolítica neoliberal na produção de subjetividades. Mais especificamente buscamos discutir sobre as atualizações no que tange a processos homonormativos neoliberais, que se caracterizam por modos de vida que aderem a formas de investimento no corpo, incitamento à individualização, produção de si enquanto capital humano, competitividade, e, sobretudo, práticas que não contestam a cisheteronormatividade. Por ser requisito imprescindível para começar a usar o aplicativo e por envolver uma disposição arquitetônica e discursiva que não se afigurava de modo algum “neutra” ou meramente “formal”, um dos aspectos que analisamos no processo de pesquisa foi a montagem dos perfis e os recursos para interações, que será o recorte que apresentamos neste artigo. Assim, focalizamos a produção dos corpos através dos mecanismos de produção e de edição do perfil do usuário, por suas ferramentas e funções, e discutimos os modos como conduzem à produção de um corpo marcado, com efeitos subjetivos que consideramos relevantes.

Criar um perfil no Grindr: montar e marcar um corpo

Para Foucault (2014bFOUCAULT, Michel. 2014b. “O jogo de Michel Foucault”. In: MOTTA, M. B. (org.). Ditos e escritos, volume IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), o conceito de dispositivo possibilita traçar e pensar determinada rede que se estabelece entre elementos heterogêneos. Dispositivos têm função estratégica, isto é, respondem a alguma urgência histórica. Neste sentido, Foucault (2014a)FOUCAULT, Michel. 2014a. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra. compreendeu que, no Ocidente, ao final do século XIX, se constituiu o dispositivo da sexualidade. Por meio de regulações, saberes, práticas religiosas, e, sobretudo, científicas (estatística, demografia, psiquiatria, entre outras) forjaram-se formas de controle e de normalização sobre os corpos sexuados. Como efeitos, se engendram certas posições de sujeito, socialmente aceitáveis e tidas como naturais, bem como aquelas concebidas como anormais, patológicas e criminosas. Cabe pontuar que, ao refletir sobre elementos discursivos e não discursivos colocados em jogo no dispositivo da sexualidade, Foucault (2014b) não deixa de referir arranjos arquitetônicos. Contemporaneamente, Gehl (2013)GHEL, Robert W. 2013. “What’s on your mind? Social media monopolies and noopower”. [online] First Monday. March 2013. Vol. 18, no 3 - 4, s/p. Disponível em: Disponível em: https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/download/4618/3421 [Acesso em 20.12.2020].
https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm...
propõe que as redes sociais, por sua arquitetura constitutiva, tornaram-se instituições-chave na modulação de formas de pensar e se relacionar.

Para usar o Grindr, é preciso criar um perfil, cuja função é apresentar o usuário, sobretudo seu corpo. Formas e medidas, características, práticas e interesses são compostos e exibidos - ou não - por quem faz seu perfil. Contudo, devido à arquitetura do aplicativo quanto ao processo de edição do perfil (sequência necessária de etapas, rol de predefinições à escolha, imagens e formas empregadas etc.), mesmo quem opta por editar um perfil vazio ou com poucos dados é convocado a pensar-se a partir de alguns parâmetros e marcas. Que os corpos são marcados social, simbólica e materialmente, tanto pelo próprio sujeito como pelos outros, é compreensão corrente, restando “pouco relevante definir quem tem a iniciativa dessa ‘marcação’ ou quais suas intenções, o que importa é examinar como ocorrem esses processos e seus efeitos” (Louro, 2018LOURO, Guacira Lopes. 2018. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. : 76-77).

A partir das análises realizadas acerca do processo de edição do perfil, no qual se cruza e opera o discursivo e o não discursivo, pudemos entender que o Grindr acaba conduzindo as condutas dos usuários ao propor e levar (em medidas variáveis) a certos caminhos e possibilidades (não outras) para ver e sentir, descrever, exibir e relacionar-se - consigo (com seu corpo) e com outros. Buscamos mostrar aqui que, no Grindr, as marcas, ou marcadores sociais de diferença, são colocados em jogo por meio de suas disposições, principalmente através de predefinições presentes, que não são aleatórias, mas marcas de saber-poder (Foucault, 2014aFOUCAULT, Michel. 2014a. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra.). O que tais marcas dizem dos corpos, se pergunta Louro (2018LOURO, Guacira Lopes. 2018. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. ): “Que significam? São tangíveis, palpáveis, físicas? Exibem-se facilmente, à espera de serem reconhecidas? Ou se insinuam, sugerindo, qualificando, nomeando?” (:69).

Focalizar a edição do perfil a fim de pensar processos de subjetivação se justifica pela compreensão de que os corpos são “significados culturalmente e é assim que se tornam (ou não) marcas de raça, de gênero, de etnia, e até mesmo de classe e de nacionalidade” (Louro, 2018LOURO, Guacira Lopes. 2018. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. : 69). Como pontuamos, até o usuário que divulga um perfil vazio não escapa às etapas de montagem de um corpo; mesmo a ação de não marcar é produzir marcas que se corporificam, já que a ausência de informações e imagens sobre o corpo também produzem efeitos nas formas de interação digital por meio do aplicativo.

Ao tomar o conceito de marcadores sociais, o que queremos dizer com diferença? Para Brah (2006BRAH, Avtar. 2006. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu. Janeiro-junho de 2006. Nº 26, p.329-376.), a articulação da diferença com a categoria experiência advém de estudos feministas e se refere a “um lugar de contestação: um espaço discursivo onde posições de sujeito e subjetividades diferentes e diferenciais são inscritas, reiteradas ou repudiadas” (:360). Já quando articulada à categoria relação social, diz do modo como “é constituída e organizada em relações sistemáticas através de discursos econômicos, culturais e políticos e práticas institucionais” (Brah, 2006: 362GHEL, Robert W. 2013. “What’s on your mind? Social media monopolies and noopower”. [online] First Monday. March 2013. Vol. 18, no 3 - 4, s/p. Disponível em: Disponível em: https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/download/4618/3421 [Acesso em 20.12.2020].
https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm...
). Pensada junto à categoria de subjetividade, o termo marcadores sociais problematiza o processo de formação, os investimentos “que fazemos ao assumir posições específicas de sujeito que são socialmente produzidas” (Brah, 2006: 370GHEL, Robert W. 2013. “What’s on your mind? Social media monopolies and noopower”. [online] First Monday. March 2013. Vol. 18, no 3 - 4, s/p. Disponível em: Disponível em: https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/download/4618/3421 [Acesso em 20.12.2020].
https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm...
). A articulação à categoria identidade implica impasses, apesar de estar em consonância com as anteriores e se referir à

...multiplicidade de posições de sujeito que constituem o sujeito. Portanto, a identidade não é fixa nem singular; ela é uma multiplicidade relacional em constante mudança. No curso desse fluxo, as identidades assumem padrões específicos, como num caleidoscópio, diante de conjuntos particulares de circunstâncias pessoais, sociais e históricas. De fato, a identidade pode ser entendida como o próprio processo pelo qual a multiplicidade, contradição e instabilidade da subjetividade é significada como tendo coerência, continuidade, estabilidade; como tendo um núcleo - um núcleo em constante mudança, mas de qualquer maneira um núcleo - que a qualquer momento é enunciado como o “eu” (Brah, 2006BRAH, Avtar. 2006. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu. Janeiro-junho de 2006. Nº 26, p.329-376.: 371).

Ao longo da pesquisa, pensar questões da diferença implicou em pensar a partir das categorias experiência, subjetividade e identidade. Essas categorias nos instrumentalizaram a discutir processos de subjetivação e a produção de corpos. Na sequência, iniciamos a análise de marcações e predefinições disponibilizadas no Grindr, convidando quem nos lê a imaginar as possibilidades de “diferenciação”, pela via da produção de um perfil-corpo, que o aplicativo lhe abriria (ou não).

Sequência, termos, predefinições: caminhos para montar corpos

Postar “Fotos”, no máximo cinco (atualizáveis a qualquer tempo), é a etapa inicial de edição do perfil. Essa etapa antecede a escolha de um “Nome” e a descrição “Sobre mim”, que vão acabar afetados pela busca primeira das (melhores, pode-se supor) “imagens de mim” a exibir. Marcada está a precedência fundamental da aparência, do corpo e seus traços. Não surpreende que, em 2020, mais de 855 milhões de fotos foram compartilhadas por mês no aplicativo, cerca de 10 bilhões no ano, conforme o Grindr Unwrapped3 3 Trata-se um “relatório informal estatístico que lança alguma luz sobre a atividade no Grindr durante o ano”, veiculado no próprio aplicativo em 18 de dezembro de 2020. Não está mais disponível, mas temos o material salvo em forma de print da página. Acesso: 28 dez. 2020. .

Sendo um de nós usuário do Grindr, foi possível analisar efeitos da criação de diferentes formatos de perfis, com e sem fotos. Essas se mostraram bem importantes para interações, sendo base de uma estratégia central do Grindr: potencializar uma experiência imagética. Esta centralidade de fotos do corpo convida e produz a prática (desfrute, por vezes, quase fixação) de continuamente olhar (mais e mais) fotos. Facilitar ou não encontros depende de vários outros fatores descontínuos e variantes, mas no entorno das imagens acontece o que usuários chamam de “enrolação”: ficar trocando nudes online e se masturbar ao invés de buscar efetivar encontros para sexo off-line.

Um clima extremamente avaliativo de si e do outro se produz, sendo que há usuários cuja estratégia é editar um perfil mais “genuíno”, e também aqueles que, de uma foto para outra, parecem alguém completamente diferente ao mudar de ângulo. Por vezes, as fotografias apresentam poses, gestuais e expressões faciais quase serializadas, que não são meras repetições, mas adesão a marcações, pois é no “corpo e através do corpo que os processos de afirmação ou transgressão das normas regulatórias se realizam e se expressam” (Louro, 2018LOURO, Guacira Lopes. 2018. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. :76).

A reiterada produção e divulgação de imagens nos convoca a pensar como se constituem processos de hierarquização dos corpos e práticas discursivas que reiteram normas de gênero-sexualidade-desejo, entre outros marcadores sociais de diferença, como de raça, etnia, idade etc. As marcas de gênero, por exemplo, são iteradas de modo importante no ambiente do aplicativo. Judith Butler (2015BUTLER, Judith. 2015.Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) refere-se ao gênero como restrição constitutiva em uma estrutura rígida, em que o corpo vem em gêneros. O gênero seria o significado cultural assumido pelo corpo sexuado. Em certo sentido, o Grindr funciona como uma instância social e cultural que opera “para garantir a coerência, solidez e permanência da norma em que são realizados investimentos - continuados, reiterativos, repetidos” (Louro, 2018LOURO, Guacira Lopes. 2018. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. :76).

Entendemos a potência da análise das diferenciações sociais por meio das interconexões entre os chamados marcadores da diferença, não os tomando como opostos e/ou fixos, nem alçando algum a lugar determinante. Junto com Brah (2006BRAH, Avtar. 2006. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu. Janeiro-junho de 2006. Nº 26, p.329-376.), pensamos que devem ser compreendidos em contextos históricos específicos, por meio de práticas discursivas e materiais, focalizando como se articulam, e como vão inscrevendo posições de sujeito e subjetividades.

Quanto às hierarquizações entre homens, são recorrentes perfis que buscam efetivar uma composição imagética associada ao que seria um ideal de masculinidade heteronormativa4 4 Neste artigo não lançamos mão da concepção de “masculinidade hegemônica”, criada e utilizada nos estudos de gênero nos anos 1980. O próprio Connell, em artigo com Messerschmidt (2013), revisitou criticamente tal conceito, que dizia respeito, inicialmente, a um padrão de práticas normativas que possibilitaria a manutenção de formas de dominação (via incorporação de modos mais “virtuosos” de ser homem exigindo legitimação ideológica e subordinação de mulheres e também de homens que não ocupavam tal posição). Com o tempo, passou-se a compreender que tais práticas normativas ocorrem em contextos específicos, mas são sempre levadas a mudanças históricas, sendo moduláveis e não fixas. Para a discussão que buscamos fazer aqui, mostra-se mais relevante o conceito de heteronormatividade, que, segundo Berlant e Warner (2002), remete às instituições, saberes e práticas que reiteram a heterossexualidade como a sexualidade coerente, privilegiada e natural. Esta coerência está sempre em um jogo provisional e pode produzir-se em e a partir de formas múltiplas e mesmo contraditórias. , assimilando e articulando toda uma pressão estético-corporal (valorização de tônus muscular, magreza, juventude, higiene, saúde, cuidado com pelos corporais, tamanho avantajado do pênis, perfeição da pele etc.), formas de embranquecimento e, nas descrições, tentativas de exibição de capital humano intelectual, psíquico, cultural. Foucault (2008FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978 - 1979). 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes . ) reflete sobre a figura subjetiva do empresário de si, que sabe que recursos são raros e empenha-se em fazer render o que identifica e produz enquanto capital de si mesmo. Tal posição subjetiva, característica da racionalidade neoliberal, onde a competição é chave, perpassa e é significativamente atualizada no/pelo Grindr.

A segunda etapa na edição do perfil é informar um “Nome de exibição” e escrever “Sobre mim”. Apesar de espaços abertos à criação e descrição, constatamos que em ambos os campos, frequentemente, são expressas a partir de estereótipos5 5 Silva (2000) define estereótipos como formas de produção social da diferença, entre elas, a reiteração de imagens, opiniões e representações sobre o outro que estão equivocadas, simplificadas e o fixam em determinadas posições. Os estereótipos enviesam comportamentos, atitudes e características de grupos sociais e culturais que não aquele ao qual se pertence. que circulam em mídias com foco na sexualidade e na pornografia, sendo comum realçar uma precedência ou atrativo corporal, que marca e define o sujeito: “Dotado 21cm”, “Macho de verdade”, “Novinho 18 anos”, “Coroa safado”, “Gordo cheiroso” etc. Instala-se um jogo em que cada usuário é interpelado a encontrar o melhor de si para se divulgar e concorrer por visibilidade e aceitabilidade. Muitos perfis usam a descrição para externar tipos de corpos e práticas desejadas - e/ou a rejeição taxativa de alguns - reiterando diversas normatizações.

A etapa seguinte, Estats, que traz a imagem de uma régua, talvez a indicar tratar-se de descritores de fácil leitura, engloba “Idade”, “Altura”, “Peso”, “Etnia”, “Porte Físico”, “Posição” e “Tribos”. Nestes, há um rol de predefinições, muitas sem qualquer elucidação, mas que são tomadas como de interesse de quem procura parceiros/as. Ao naturaliza-las, o Grindr reitera estereótipos, lança características que, em certa medida, passam a marcar identidades LGBTQ+. Outra etapa importante tange à Idade, que constamos variações (até bem significativas) de apresentação de idade em um mesmo perfil. A pressão pela juventude é preponderante. Com isso, o usuário pode se apresentar como mais novo, ou mais velho, de acordo com outros perfis de interesse. No campo das negociações, permeada por questões etárias e geracionais, a idade torna-se definidora de diferentes posições subjetivas, articuladas a outros marcadores. Dessa forma, no Grindr não há apenas uma demarcação de idade ideal, como em outros aplicativos de encontros, mas corpos jogando com diferentes informações e seus desdobramentos.

As interações durante a pesquisa mostraram que a apresentação de “Altura e “Peso é importante para usuários que buscam encontros: se não registradas no perfil, são questionadas no bate-papo privado, logo de início. Estas métricas corporais permitem um cálculo e prévia avaliação se o outro apresenta uma composição de corpo que interessa, e, combinadas a outras informações que fazem parte desta etapa, propiciam conjecturar questões menos óbvias, como posição sexual, possibilidade de determinadas práticas, experimentações de toques e texturas corporais, atributos normativos de masculinidades/feminilidades, e mesmo dissidentes etc. Um exemplo recorrente desta combinação em perfis normativos é “busco homem masculino, alto, com mais de 1,80, que seja ativo”.

A reiteração dessas composições corporais criteriosamente construídas funciona como um aprendizado do “idioma” do aplicativo, ainda que não exclusivo dele. Neste sentido, são produzidas descrições minuciosas que indicam a erotização de certas características e zonas corporais: tamanho do pênis, presença ou não de pelos, dimensões de pernas, braços, glúteos, foco no peitoral, abdomem, axilas, pelvis, mamilos, veias etc. Tais descrições sinalizam formas de valorização de determinados elementos que reiteram composições heteronormativas, o que pode aumentar as possibilidades de diálogo e de trocas sexuais (on-line e off-line). Marcadores étnico-raciais são também considerados importantes definidores. O Grindr convida o usuário a definir uma “Etnia a partir de um rol de opções, nesta ordem: “sem resposta”, “asiático”, “branco”, “indígena”, “latino”, “mestiço”, “negro”, “outro”, “sul asiático e árabe. Articulado a outros, este marcador desdobra uma série de tensões e preconceitos, que ocorrem das maneiras mais implícitas às mais explícitas. Conforme Brah (2006BRAH, Avtar. 2006. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu. Janeiro-junho de 2006. Nº 26, p.329-376.: 331), “a raça ainda atua como um marcador aparentemente inerradicável de diferença social”. Problemáticas tão impactantes nas relações em termos de diferenciação que, desde 2020 o Grindr passou a disponibilizar esta categoria somente como forma de apresentação do usuário no perfil, deixando de constar, como anteriormente, nos “Filtros Premium”, que servem para busca e bloqueio de usuários nas versões pagas. Deste modo, ciente ou não, sempre que o Grindr promove ferramentas que envolvem questões étnico-raciais potencialmente se desdobram efeitos problemáticos.

O descritor “Porte físico”, que arrola as opções sem resposta, “comum”, “grande”, “magro”, “musculoso”, “parrudo e torneado, por não trazer qualquer parâmetro, oportuniza apropriações variadas. O que seria um porte comum - corpos médios, nem magros, nem gordos? O que diferencia os parrudos, torneados e musculosos? Sendo o corpo um capital a ser investido e que rende, dizer-se torneado faz diferença? Cabe problematizar também o termo “grande”, que constatamos ser uma predefinição utilizada geralmente por pessoas que se consideram e/ou são consideradas gordas. É significativa a existência de algumas opções para corpos magros e/ou musculosos, e a opção gordo/gorda não figure. Nos jogos das objetivações e normalizações, o Grindr deixa uma pista de que coopera com uma dinâmica social que estimula, além de uma pressão estético-corporal com apelo à magreza viril, uma supressão/apagamento de certas características, indicando no caso uma nuance gordofóbica. Portanto, para quem gostaria de se predefinir automaticamente como gordo/a, não há opção, a não ser usando suas próprias palavras. Ressalte-se que a definição de porte físico comum, se nem magro nem gordo, não corresponde à incidência social dos corpos, pois ser avaliado como gordo ou obeso é o comum em vários países, inclusive Brasil e EUA. Mas esta realidade não reverbera nem nas predefinições nem na publicidade do Grindr. Abrimos questões: o termo gordo poderia estar sendo evitado por uma premissa específica de saúde e de produção de subjetividade do corpo “saudável”? Seria um termo não utilizado por carregar estigmas da patologização da gordura no corpo? De todo modo, nos últimos anos, mesmo que tenha buscado se tornar um ambiente mais inclusivo, percebemos que os modelos escolhidos para sua publicidade também são corpos gordos, mas não muito gordos. Não reivindicamos uma marcação automática para pessoas gordas ou qualquer outra categoria de “diferença”. Buscamos problematizar a existência de variadas predefinições (que passam a ser as mais “aceitáveis”), pelo potencial de estigma que podem ter, gerando exclusões e sofrimentos.

As objetivações quanto às práticas sexuais também atuam em processos de montagem do corpo, com importantes implicações no âmbito das relações, a partir de normas de sexualidade. Por exemplo, o descritor “Posição faz menção, especificamente, à posição sexual com acento significativo em práticas penetrativas. O Grindr disponibiliza as alternativas: sem resposta, “ativo”, “versátil ativo”, “versátil”, “versátil passivo e passivo. De algum modo, o usuário aprende formas específicas de condução de si e do outro pela via da sexualidade. E, ao menos no campo das masculinidades, estas marcações ainda têm desdobramentos muito fundantes. Para alguns indivíduos, elas posicionam formas de existir, não só posição sexual, isto é, há aqueles que vivem ativamente e aqueles que vivem passivamente as relações no campo afetivo, psíquico, social etc.

No relatório anual “Grindr Unwrapped”, sem muito explicar, mas dando relevo a tal terminologia - logo, às marcações hierárquicas que podem traçar - estas posições são alvo de um “escrutínio geolocalizado”. Segundo este relatório, o usuário experimentou “uma gama de posições, mas alguns países ficaram ‘on top’” - trocadilho para “ativo” e “topo”6 6 No original: “You ran the gamut of positions, but some countries came out on top”. ; e assim, são listados cinco países no topo, isto é, com maiores números de usuários que se identificaram como “ativos”. O jogo de palavras (e lista de países) prossegue com: “por trás de todo “ativo”/“topo” de sucesso há o poder de um passivo”7 7 No original: “Behind every successful top is a power bottom”. , e “E sim, versáteis existem”8 8 No original: “And yes, ‘vers’ does exist”. . Que implicações políticas e identitárias tal construção pode vir a ter?

O descritor “Tribos” delimita alguns subgrupos que compõem a comunidade LGBTQIA+ a partir de características físicas, psíquicas, sociais, culturais, étnico-raciais, de sexo e gênero, e até mesmo de saúde, sendo que várias guardam relação com a pornografia. As opções arroladas são: “urso”, “elegante”, “papai”, “discreto”, “nerd”, “barbie”, “couro”, “malhadinho”, “soropositivo”, “cafuçu”, “trans”, “garotos”, “sóbrio”. Quanto a este descritor, o Grindr permite marcar mais de uma opção, mas não se explicita sua função exata. Durante a pesquisa percebemos que as tribos ora são tomadas como grupo(s) de identificação do usuário, ora como alvo de seu interesse para interações.

Um primeiro ponto que se evidencia é serem centradas em estereótipos de diferentes masculinidades. Por não ter correspondente em outras línguas, a presença do termo “cafuçu” foi uma das predefinições que nos fez refletir a respeito de estereótipos que articulam normas de corpo-sexo-gênero, marcadores étnico-raciais, de classe e geográficos. No nordeste brasileiro o termo é utilizado para se referir ao diabo ou alguém sem qualquer qualidade. No âmbito das masculinidades, geralmente, “cafuçus” são referidos como homens negros e mestiços, moradores de periferias. Poucas vezes observamos sentidos valorizadores desta definição. Em contato com homens gays brancos no círculo do qual participamos, pudemos ouvir diferentes definições racistas de “cafuçus”: homens “mulatos”, “mistura de negro com índio”, “machos rudes”, “rústicos”, “gostosos de corpo e feios de rosto”. Produzindo outros estreitamentos entre preconceitos e desejos, algumas vezes ouvimos que “cafuçus” eram trabalhadores comuns, com “força braçal”, da construção civil, ou desempregados, “largados”, e mesmo homens em situação de rua; em geral, considerados homens de “baixa renda”, que por necessidade financeira aceitam realizar um eventual “serviço sexual”. Várias destas falas, eventualmente, acreditavam ser elogiosas. Isto é, composições do imaginário branco que, embora experimente vicissitudes estigmatizantes nas demarcações de subjetividades gays no cenário brasileiro, prosseguem produzindo processos heteronormativos e homonormativos racistas e classistas, oportunamente objetificando e “gozando” de todas as formas possíveis de processos de hierarquização dos corpos.

Pode-se conjecturar que a incorporação do termo no Grindr tenha se dado para trazer “tom local” às tribos. Talvez sua existência no aplicativo possibilite até ressignificações importante no que concerne a estereótipos, mas enquanto não houver debate sobre os empregos do termo por parte da branquitude usuária do Grindr, e apropriações marcadamente orgulhosas daqueles que se autoidentificam como “cafuçus”, sua caracterização e veiculação como uma tribo, sem qualquer diálogo sobre suas significações, parece questionável.

Já a inclusão da tribo “trans” demarca um dos poucos espaços do aplicativo a possibilitar que usuárias e usuários se integrem a partir de expressões de gênero que não seja pela cisgeneridade. Esta opção de “tribo”, que pode ser utilizada nas buscas de perfis nos “Filtros Premium”, faz pensar se essa seria estratégia suficiente por parte do aplicativo a não seguir sendo um “cistema”, desestabilizando a formação de uma comunidade majoritariamente de homens cisgênero.

O fato de o Grindr apresentar a tribo “soropositivo” oportuniza pensar ambiguidades, paradoxos quanto às suas premissas de produção de subjetividade pela via de corpos supostamente, mais ou menos, saudáveis. Ao traçar uma tribo que centraliza uma condição de saúde de determinados sujeitos, o Grindr parece vislumbrar possibilidades de certa integração, inclusive de visibilidade social e política. Paradoxalmente, de modos nada implícitos, vislumbra-se uma atenção cuidadosa-fóbica às sorologias positivas, seja em forma de anúncios e informações sobre cuidados e riscos, informações biomédicas de saúde sexual e estímulo ao uso contínuo da PrEP e à atualização sistemática de status-HIV. Posiciona-se politicamente engajado à causa HIV/Aids, mas mostra-se publicamente preocupado em ser incitador de certa propagação ao vírus HIV. Assim, o Grindr acopla-se a diferentes racionalidades, biomédicas, jurídicas, morais, fármaco-econômicas, políticas etc. Diante de outros achados, e pelo volume de dados que os perfis e interações possibilitam, no que tange a esta questão, é pertinente conjecturar que o Grindr talvez esteja mais engajado em reunir e definir estatísticas específicas para monitorar e conduzir àqueles considerados historicamente um “problema a ser administrado”, produzindo e atualizando formas diversas de controle biopolítico (Foucault, 2014bFOUCAULT, Michel. 2014b. “O jogo de Michel Foucault”. In: MOTTA, M. B. (org.). Ditos e escritos, volume IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.; Santos e Zago, 2013SANTOS, Luis Henrique Sacchi dos; ZAGO, Luíz Felipe. 2013. “Topologias dos corpos de homens gays: deslocamentos na produção de sensibilidades biopolíticas”. Nómadas. Outubro de 2013. Nº 39, p.137-151.).

De modo geral, a categoria “Tribos” foi, desde o começo, interessante em termos de análise, pois entendemos articulada à operação do Grindr no sentido da condução de condutas, e, sobretudo, de produção de efeitos que vão além de experimentações em seu ambiente. O Grindr incita reiteradamente seus usuários a lidar com uma série de categorizações, a partir de uma lógica que implica enquadrar sujeitos em determinadas formas de ser. Não se pode afirmar que o aplicativo possibilite a integração de “tribos”. Mas podemos dizer que, aliado às tentativas de conexão, o Grindr parece obstinado a estabelecer classificações, ora disciplinares-individualizantes (normalizantes/normatizadoras, fixando o indivíduo em determinadas identidades), ora biopolíticas-totalizantes (gestão dos corpos e processos de objetivação quanto aos fluxos vitais de determinados grupos/populações específicas), assim como nos indicava Michel Foucault (2005FOUCAULT, Michel. 2005. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 - 1976). 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes. , 2014aFOUCAULT, Michel. 2014a. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra.).

Uma etapa importante na produção do perfil é “Identidade”, dedicada a produzir definições quanto à identidade de gênero. As alternativas para “Gênero” são: “sem resposta”, “homem”, “homem cis”, “homem trans”, “homem personalizado”, “mulher”, “mulher cis”, “mulher trans”, “mulher personalizada”, “não binário”, “não conformista”, “queer”, “travesti”, “não binário personalizado”. Já “Pronomes” exibe as opções: “ele/dele”, “ela/dela”, “eles/deles”, e “pronomes personalizados9 9 A ferramenta permite digitar autodenominações. ”. Há uma observação que a última opção destina-se a usuários trans e não binários, e uma solicitação para que o campo não seja usado para piadas.

Até o ano de 2019 esta etapa denominava-se “Sexo” e a maioria das opções (referidas acima) era flexionada no masculino, ainda que a empresa, à época, já veiculava ser sua missão agregar a comunidade LGBTQ+. Além disso, chamou atenção, desde o início da pesquisa, não haver um espaço específico para a definição de “Orientação Sexual”, apesar (ou talvez em função) das várias formas através das quais o aplicativo incita usuários/as a se apresentar e que gravitam em torno da sexualidade e de uma identidade sexual. O compromisso com a “nova missão” do Grindr poderia implicar em promover aberturas importantes às subjetividades dissidentes das normas de gênero e sexualidade. Entretanto, se tudo se resumir a “reescrever” as opções de predefinição de “Identidade”, é bem provável que a iniciativa apenas amplie seu nicho de mercado, passando uma mera mensagem de que “todas” as identidades (de gênero e de sexualidade) são “bem vindas”.

Articulando a análise desta etapa de edição do perfil ao que traz o Grindr Unwrapped, nos deparamos mais uma vez com algo recorrente no Grindr: a maquinação biopolítica-totalizante e disciplinar-individualizante. Afinal, tal relatório se propõe a produzir e propiciar

um uma olhada nas tendências de sexo e namoro entre os quase 13 milhões de gays, bi, trans e queer que usam nosso aplicativo todos os meses. [...] é uma forma divertida e informal de ajudar nossos usuários a se conhecerem melhor, servir como um quebra-gelo para conversar no aplicativo e fornecer alguns insights sobre as tendências de atividade do Grindr durante o ano (Grindr LLC, 2020, grifos nossosGRINDR LLC. 2020. Grindr unwrapped [blog]. Disponível em: Disponível em: https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwrapped-2020 [Acesso em 28.12.2020].
https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwr...
).

Embora a partir das predefinições disponíveis, o usuário possa, conforme diz Louro (2018LOURO, Guacira Lopes. 2018. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. : 80), “jogar e brincar com esses códigos, ao exagerá-los e exaltá-los, [...] a perceber sua não-naturalidade”, se instalam outras ambiguidades e reiterações. Ao estabelecer que as diferenças podem ser fundamentalmente esquadrinhadas e englobadas à sua compreensão de identidade (de gênero), o Grindr põe também em prática certa banalização e um esvaziamento politico, que é estratégico ao mercado em sua premissa de captura, para que possa sempre agir sobre seus consumidores.

Tais sistematizações, fruto das mais variadas marcações que o Grindr incita, ora apagam singularizações, ora definem indivíduos e ora medem populações. Neste sentido, demandam reflexões a respeito das concretizações cotidianas do dispositivo da sexualidade (Foucault, 2014aFOUCAULT, Michel. 2014a. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra.). Estas atualizações do dispositivo da sexualidade nos indicam novas operações que normalizam, monitoram e controlam corpos, produzindo subjetividades.

O Grindr, que entendemos ser um dos vetores deste dispositivo em nossa configuração neoliberal contemporânea, agencia processos de regulação biopolítica, pois todos os corpos e populações são e devem ser produtivos e controlados. Nestes processos não só se efetivam possibilidades de montagem do corpo aos usuários, mas esses, por suas ações, postagens, uso geolocalizado, etc, acabam gerando infinitas possibilidades de combinações de dados pessoais e sensíveis à disposição da empresa. Informações que são entregues sem que haja qualquer possibilidade de controle sobre circulação e usos desses dados.

Neste âmbito biopolítico, chama especialmente nossa atenção a etapa de edição do perfil denominada Saúde sexual, que apresenta um laço como ícone, em alusão direta aos movimentos relacionados ao HIV/AIDS. É composta por “Status HIV, com as opções negativo”, “negativo usando PreP10 10 Não tínhamos como objetivo investigar prevalência de Status HIV ou grau de adesão à PreP, contudo foi possível constatar que um grande número de perfis registra seu uso. , “positivo”, “positivo não detectável”; e também por “Data do último teste”, com opção de datas inferiores a um ano. Há também a opção automática “Lembrar de fazer o teste depois, em que “um lembrete será exibido na caixa de entrada do seu Grindr no momento especificado”, e um link que remete a “Perguntas de saúde sexual”, cuja função é possibilitar que o usuário “aprenda mais sobre HIV, PrEP, como fazer teste para doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e outras perguntas frequentes”.

Ao estabelecer uma oposição entre saúde e doença, o Grindr atualiza um tipo de reducionismo que contribui para marcações estigmatizantes. De fato, a nomeação poderia ser algo como “Orientações sobre doenças sexuais”. Evidenciam-se arranjos biopolíticos aos quais o Grindr se compõe em termos de controle e regulação: estreita relação entre o mercado neoliberal (produtos e serviços privados como o Grindr; indústrias e laboratórios que produzem e comercializam testes e medicamentos) e setores do Estado (instituições públicas de saúde que disponibilizam informações e tratamentos preventivos como a PrEP). Composições em compasso às racionalidades biomédicas, jurídicas, econômicas e políticas, que sustentam diferentes tecnologias de monitoramento de corpos. Assim, o medo e o perigo prosseguem como dimensões importantes para conduzir corpos marcados pelo estigma do HIV/Aids, uma vez que, mesmo em espaços que seriam para o lazer/encontros, não cessam os procedimentos que visam:

identificação/testagem, confissão, culpabilização e responsabilização dos infectados; enumeração epidemiológico-estatística em termos populacionais; monitoração dos níveis de carga viral no corpo; adesão ao tratamento para manter-se saudável e não criar cepas virais mais resistentes (Santos e Zago, 2013SANTOS, Luis Henrique Sacchi dos; ZAGO, Luíz Felipe. 2013. “Topologias dos corpos de homens gays: deslocamentos na produção de sensibilidades biopolíticas”. Nómadas. Outubro de 2013. Nº 39, p.137-151.: 140).

Embora o Grindr seja um aplicativo difundido em nosso país e já exista um bom número de pesquisas a seu respeito, não encontramos estudos que coloquem em questão a produção desta subjetividade relacionada a um corpo “saudável”, segundo o que o aplicativo entende como tal. Conforme buscamos pontuar, algumas de suas iniciativas e funções são contrastantes. Enquanto os Status HIV”/“Status PrEP se constituem como predefinições a serem atualizadas constantemente, e remetem a uma série de informativos institucionais, outros descritores pouco são explicados, mas igualmente marcam os sujeitos a partir de condições de saúde e corpo (exemplo: as “Tribos” dos “Soropositivos” e “Sóbrios”, as predefinições de “Peso” e “Porte Físico” “Grande” etc).

Como poder e resistência formam par (Foucault, 2014aFOUCAULT, Michel. 2014a. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra.), verificamos ao longo da pesquisa que usuários jogam com as predefinições para negociações variadas. Com certa frequência encontramos perfis de usuários da PrEP buscando sexo sem preservativos (“bareback” e/ou “sexo no pelo”), sendo que estes produziam recusas e convites a experimentações alçando graus de liberdade, desestabilizando fronteiras entre o que são as práticas de segurança e de risco, de saúde e doença, entre outros binarismos que constituem a subjetividade do corpo saudável.

Entre as diferentes expressões das soropositividades, vimos usuários que buscavam engajar-se com perfis contestadores, com frases como: “pessoas soropositivas tratadas de forma eficaz não transmitem o vírus da aids”. Há também aqueles que expressavam a soropositividade como característica qualquer, circulando de maneira “tranquila” sem tornar a sua condição um tensionamento explícito - o que nos pareceu uma estratégia politicamente potente enquanto contraponto a um ambiente tão monitorável e sorofóbico. Sem dúvida, são necessários estudos que possam compreender práticas, desdobramentos e efeitos quanto a esta etapa/descritor/monitoramento no Grindr.

Quando finalizadas as etapas de edição do perfil, o usuário efetiva um corpo para apresentação de si aos outros usuários. Neste processo se produz um tipo de perfil com marcadores específicos ao seu público alvo de mercado, o nicho LGBTQ+, centralizado no corpo. Desde o início da sua experiência, o usuário é interpelado a processos de individualização disciplinar, isto é, a se fixar uma identidade e aprender a jogar com ela de acordo com as possibilidades deste ambiente. A partir da arquitetura do Grindr, quanto à edição do perfil e posteriores interações, é praticamente inevitável que encontros não tenham um crivo avaliativo anterior. Além disso, não demora muito para que, em meio a uma dinâmica biopolítica de subjetividades privatizadas/privatizantes, o usuário sinta que também ali há uma escassez de perspectivas agregadoras, mesmo em meio àquela que, marcada pela diferença, idealmente seria “sua comunidade”.

Corpo em ação: ferramentas, suas funções e planos pagos

Montado o corpo, ele é conduzido a outro modo de ação. Imediatamente o usuário passa a avaliar outros corpos, sendo também avaliado por usuários. Todo perfil possui um ícone de “Tap” (em forma de chama/fogo) e um ícone que leva ao “Bate-papo” privado (em forma de balão de texto). No site do Grindr é dito que os “taps podem ser usados para quebrar o gelo, ser acionado para mostrar interesse sem ter que usar palavras e iniciar uma conversa. Tal ícone de sinalização pode ter o formato de “fogo”, “diabo” ou “biscoito”. O ícone de biscoito é utilizado apenas no Brasil, e se refere à gíria “dar biscoito”, ou dar likes a alguém que exibe constantemente o corpo nas redes sociais. O Grindr disponibiliza ao usuário uma lista específica de taps recebidos. Como efeito de tal estímulo ao uso da ferramenta, no ano de 2020 foram acionados 7,85 bilhões de “taps” globalmente (Grindr LCC, 2020GRINDR LLC. 2020. Grindr unwrapped [blog]. Disponível em: Disponível em: https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwrapped-2020 [Acesso em 28.12.2020].
https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwr...
).

Em cada perfil também é possível visualizar o “Status online/off-line”. Quando um usuário está off-line, o Grindr mensura o tempo que o usuário esteve online (podendo aparecer em minutos, horas, dias ou semanas). Na parte superior do perfil há um ícone de estrela para salvar o perfil em uma lista pessoal de “Favoritos” e também há um ícone de “Bloqueio” para restringir interações com algum usuário específico. Diante das diversas (mas restritas) possibilidades de combinação, cada perfil é como se fosse uma “caixa de surpresas” em ação. Os usuários do Grindr são conduzidos para que estejam sempre em busca de diferentes interesses, o que produz subjetividades marcadas pelo corpo estilizável, montável e irrestrito, mas, paradoxalmente, um corpo sexual (disciplinar-biopolítico) que deve, sempre que possível, ser saudável, identificável e inteligível. Enquanto ferramenta, o bate-papo colabora para o Grindr se firmar como um lugar do que compreendemos ser uma sociabilidade privatizante. Ao clicar no ícone da caixa de bate-papo no perfil de outro usuário, se pode estabelecer diálogos, compartilhar fotos (de rosto e nudes), enviar emojis/figurinhas, que podem se desdobrar em interações mais ou menos intensas, mas, em geral, par-a-par.

Cabe apontar que durante a trajetória de pesquisa também percebemos que a ferramenta que permite a criação de “Grupos” se acopla e reconfigura algumas possibilidades de sexo em espaços públicos, o estadunidense “cruising”, ou como se diz no contexto brasileiro, práticas de “banheirão” e de “pegação” em espaços públicos geralmente marcados por incertezas e imprevisibilidades. Observamos a criação de perfis que direcionavam a grupos fechados no Grindr com o objetivo de encontros sexuais em parques da cidade de Porto Alegre (RS), criando uma dinâmica de maior previsibilidade nos encontros.

Outra ferramenta importante do Grindr é “Explorar”, que serve para busca de perfis em qualquer localidade nos planos pagos e somente na cidade, se gratuito. A partir do endereço escrito, abre-se um novo “grid” (espaço de interações) com perfis especificamente localizados no entorno do endereço solicitado (rua, bairro, estado e país). Ao abrir o mapa, o usuário pode deslizar com o dedo e definir o ponto exato onde gostaria de localizar perfis. Esta ferramenta concretiza a premissa do Grindr de que cada perfil é em tempo real um corpo geolocalizável. O Grindr divulga que a principal função da ferramenta “Explorar” é permitir a navegação e a conexão com pessoas do mundo inteiro. Isto é, a geolocalização permite que o Grindr divulgue-se como um radar global para que usuários “descubram” pessoas em muitas localidades. A geolocalização permite também que a empresa (Grindr LLC, 2020GRINDR LLC. 2020. Grindr unwrapped [blog]. Disponível em: Disponível em: https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwrapped-2020 [Acesso em 28.12.2020].
https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwr...
) monitore e saiba, por exemplo, quais são os países com maior número de usuários (Estados Unidos, Brasil, México, Índia, Reino Unido), as cidades com maior atividade online, e os países que mais entram e hospedam outros usuários. Além disso, este tipo de tecnologia permite dizer que os usuários ficam mais conectados ao Grindr no domingo à noite. Nestas explícitas e, ao mesmo tempo, lacunosas exibições estatísticas do Grindr, vemos mais uma vez a posse infinita de dados que vão desde as ações mais individuais, a grupos específicos pensados a partir de territórios.

Os usos da ferramenta “Explorar” são múltiplos e também revelam estratégias em termos de apropriações. Na web há exemplos de tutoriais que ensinam o usuário a “ativar GPS falso no Grindr”, permitindo descontinuar ou ocultar o compartilhamento do local em que o usuário está. Este tipo de hack mostra a necessidade de um falseamento que indica a existência daqueles usuários que querem não se localizáveis e/ou se incomodam com a coleta deste tipo de dados sensíveis. Pequeno exemplo de que, ocasionalmente, a geolocalização instaura uma sensação de monitoramento, de incerteza quanto à privacidade e possível ameaça à segurança.

As experimentações do corpo no Grindr são engendradas também a partir das diferentes possibilidades de pagamento, que, por conseguinte, amplificam as funções do aplicativo. A versão do Grindr grátis tem uma interface que acessa 99 perfis online e off-line do entorno do usuário. Já o plano Grindr XTRA possibilita a visualização de seis vezes mais perfis, permite “Salvar perfis favoritos de forma ilimitada”, acesso a todos os “Filtros Premium”, a opção de enviar várias fotos simultaneamente, entre outras. Os “Filtros Premium se dividem em dois subgrupos: “Filtros de perfil” e “Filtros Meu tipo”. O primeiro filtra: apenas os conectados”, os usuários que não conversei hoje”, usuários “só com fotos”, usuários que tem “foto de cara apenas”; já os “Filtros meu tipo” são: “idade”, “peso”, “altura”, “tribos”, “porte físico”, “posição”, “em busca de”, “status de relacionamento”, “local de encontro”, e se aceita “fotos NSFW11 11 Abreviação da gíria estadunidense “not safe for work” (algo como “não seguro para o trabalho”) indicando que as imagens podem conter conteúdos considerados impróprios a serem visualizados em locais públicos e compartilhados com outras pessoas. No Grindr, fotos NSFW geralmente se referem ao compartilhamento de nudes. ”. Atualmente os filtros não fazem buscas por orientação sexual ou gênero, além disso, em 2020 deixaram de existir os filtros étnico-raciais, justamente pelas frequentes denúncias de preconceito e violência racial e de gênero, que circulam no ambiente do aplicativo, conforme já mencionado.

Por meio da análise de perfis, vimos que o Grindr possibilita uma produção massiva de tipificações de corpos. São combinações de formatação de corpos que formam modelos dos mais variados. A partir destas predefinições, os filtros funcionam como aparelhagem para separar corpos de maneira rápida. Servem para deixar alguns corpos visíveis e invisibilizar outros, os corpos considerados indesejáveis.

O plano Grindr Unlimited, a versão mais cara, permite ao usuário ver perfis de forma ilimitada, acessar a “Quem viu você”, que é uma lista de visitantes do perfil pessoal com horário. E ainda conta com o uso do recurso “Incógnito”, em que o usuário pode navegar de forma invisível na grade de perfis por tempo ilimitado. Suas ferramentas são fundamentalmente focadas em permitir um nível ainda maior de monitoramento dos outros usuários, apresentando horários, visualização do momento exato de digitação de mensagens, possibilidade de ver perfis de modo invisível, lista de visitantes etc.As versões pagas também possibilitam o uso de outra ferramenta controversa, que é o “Ícone sigiloso”. Esta ferramenta, apesar de nada ser explicitado pelo aplicativo, é utilizada para camuflar no smartphone o logotipo original do Grindr (logotipo que é marcante e de fácil identificação), podendo transforma-lo em um ícone de calculadora, máquina fotográfica, aplicativo de música, lista de tarefas ou bloco de notas.

Este conjunto de ferramentas e funções nos indica que o Grindr busca abarcar usuários diversificados, e a partir de poderes aquisitivos variados, pode-se experimentar diferentes intensidades quanto ao caráter mais ou menos amplo do “menu” de perfis à disposição, sua limitação geográfica ou não, assim como às sempre sensíveis esferas e tensões público/privado. Sendo assim, o Grindr continuamente viabiliza uma paradoxal sociabilidade privatizada/privatizante, sintonizado à atual racionalidade neoliberal.

Considerações finais

Ao longo desta imersão analisamos formas pelas quais o Grindr direciona condutas e produz subjetividades. Entre as formas de direcionamento, a edição do perfil indica a montagem de um corpo marcado e monitorado. Refletimos sobre o potencial esvaziamento político dos marcadores sociais da diferença destes corpos, já que simultaneamente o Grindr produz formas de controle, processos normalizantes/normatizadores. Estes processos parecem fixar o indivíduo em determinadas identidades (individualização disciplinar) e operam uma gestão dos corpos (totalização biopolítica), por meio de processos de objetivação de fluxos vitais de determinados grupos em populações específicas (neste caso, LGBTQ+).

Compreendemos que o Grindr é um produtor de paradoxos: subjetividades marcadas pelo corpo montável e “irrestrito”, mas sexualidades esquadrinhadas enquanto produtoras de verdade do sujeito. Corpos continuamente moduláveis enquanto capital de si mesmo, e também identificáveis e inteligíveis. Incitação a corpos circulantes, porém geolocalizáveis. Corpos supostamente saudáveis e conscientes quanto ao HIV/Aids, embora necessariamente administráveis, já que associados a estigmas e “doenças”. Muitas são as questões que a análise do Grindr leva a pensar. Por fim, indicamos que resta para estudos futuros discutir a associação entre aplicativo para encontros (sexuais), monitoramento do “Status sorológico” e estímulo ao uso da PrEP como estratégica para formas de resistência quanto às capturas biopolítica neoliberais. Tal problematização fica para outro escrito.

Referências bibliográficas

  • BRAH, Avtar. 2006. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu Janeiro-junho de 2006. Nº 26, p.329-376.
  • BERLANT, Laurent; WARNER, Michael. 2002. “Sexo em público”. In: JIMÉNEZ, Rafael M. M. (ed.). Sexualidades transgressoras. Uma antologia de estúdios queer 1ª ed. Barcelona: Icaria editorial, p.229-257.
  • MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2019. Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) [online] Disponível em: Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/profilaxia-pre-exposicao-prep [Acesso em 12.08.2019].
    » http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/profilaxia-pre-exposicao-prep
  • BUTLER, Judith. 2015.Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. 2013. “Masculinidade hegemônica: repensando o conceito”. Revista Estudos Feministas Janeiro-abril de 2013. Vol. 21, n°1, p. 241-282.
  • FOUCAULT, Michel. 2005. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 - 1976) 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
  • FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978 - 1979) 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes .
  • FOUCAULT, Michel. 2014a. História da sexualidade I: a vontade de saber 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra.
  • FOUCAULT, Michel. 2014b. “O jogo de Michel Foucault”. In: MOTTA, M. B. (org.). Ditos e escritos, volume IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • GHEL, Robert W. 2013. “What’s on your mind? Social media monopolies and noopower”. [online] First Monday March 2013. Vol. 18, no 3 - 4, s/p. Disponível em: Disponível em: https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/download/4618/3421 [Acesso em 20.12.2020].
    » https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/download/4618/3421
  • GRINDR LLC. 2020. Grindr unwrapped [blog]. Disponível em: Disponível em: https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwrapped-2020 [Acesso em 28.12.2020].
    » https://blog.grindr.com/blog/grindr-unwrapped-2020
  • GROHMANN, Rafael. 2016. “Não sou/ não curto: sentidos circulantes nos discursos de apresentação do aplicativo Grindr”. Sessões do Imaginário Agosto de 2016. Vol. 21, n° 35, p. 70-79.
  • LOURO, Guacira Lopes. 2018. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica.
  • MARACCI-CARDOSO, João; PAZ, Bernard M.; ROCHA, Kátia B.; PIZZINATO, Adolfo. 2019. “Imagem, corpo e linguagem em usos do aplicativo Grindr”. Psicologia USP Janeiro de 2019, Vol. 30, p. 1-11.
  • MISKOLCI, Richard. 2017. Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line 1ª ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica.
  • PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana. 2015. Pistas do Método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade Porto Alegre: Editora Sulina.
  • SANTOS, Luis Henrique Sacchi dos; ZAGO, Luíz Felipe. 2013. “Topologias dos corpos de homens gays: deslocamentos na produção de sensibilidades biopolíticas”. Nómadas Outubro de 2013. Nº 39, p.137-151.
  • SILVA, Tomaz Tadeu. 2000. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica .
  • ZAMBENEDETTI, Gustavo; SILVA, Rosane Azevedo Neves. 2011. “Cartografia e genealogia: aproximações possíveis para a pesquisa em psicologia social”. Psicologia & Sociedade Julho de 2011. Vol. 23, n° 3, p. 454-463.
  • 1
    O Ministério da Saúde (2019)MINISTÉRIO DA SAÚDE. 2019. Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) [online] Disponível em: Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/profilaxia-pre-exposicao-prep [Acesso em 12.08.2019].
    http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-ger...
    explica que a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV é um método de prevenção à infecção ao HIV que consiste no consumo diário de um comprimido que impede que o vírus da AIDS infecte o organismo.
  • 2
    Os caminhos percorridos por meio da cartografia em espaços digitais se assemelham àqueles que são trilhados quando se adota a etnografia virtual, mas, assim como também em relação à etnografia digital, cada perspectiva guarda especificidades.
  • 3
    Trata-se um “relatório informal estatístico que lança alguma luz sobre a atividade no Grindr durante o ano”, veiculado no próprio aplicativo em 18 de dezembro de 2020. Não está mais disponível, mas temos o material salvo em forma de print da página. Acesso: 28 dez. 2020.
  • 4
    Neste artigo não lançamos mão da concepção de “masculinidade hegemônica”, criada e utilizada nos estudos de gênero nos anos 1980. O próprio Connell, em artigo com Messerschmidt (2013)CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. 2013. “Masculinidade hegemônica: repensando o conceito”. Revista Estudos Feministas. Janeiro-abril de 2013. Vol. 21, n°1, p. 241-282. , revisitou criticamente tal conceito, que dizia respeito, inicialmente, a um padrão de práticas normativas que possibilitaria a manutenção de formas de dominação (via incorporação de modos mais “virtuosos” de ser homem exigindo legitimação ideológica e subordinação de mulheres e também de homens que não ocupavam tal posição). Com o tempo, passou-se a compreender que tais práticas normativas ocorrem em contextos específicos, mas são sempre levadas a mudanças históricas, sendo moduláveis e não fixas. Para a discussão que buscamos fazer aqui, mostra-se mais relevante o conceito de heteronormatividade, que, segundo Berlant e Warner (2002)BERLANT, Laurent; WARNER, Michael. 2002. “Sexo em público”. In: JIMÉNEZ, Rafael M. M. (ed.). Sexualidades transgressoras. Uma antologia de estúdios queer. 1ª ed. Barcelona: Icaria editorial, p.229-257., remete às instituições, saberes e práticas que reiteram a heterossexualidade como a sexualidade coerente, privilegiada e natural. Esta coerência está sempre em um jogo provisional e pode produzir-se em e a partir de formas múltiplas e mesmo contraditórias.
  • 5
    Silva (2000)SILVA, Tomaz Tadeu. 2000. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica . define estereótipos como formas de produção social da diferença, entre elas, a reiteração de imagens, opiniões e representações sobre o outro que estão equivocadas, simplificadas e o fixam em determinadas posições. Os estereótipos enviesam comportamentos, atitudes e características de grupos sociais e culturais que não aquele ao qual se pertence.
  • 6
    No original: “You ran the gamut of positions, but some countries came out on top”.
  • 7
    No original: “Behind every successful top is a power bottom”.
  • 8
    No original: “And yes, ‘vers’ does exist”.
  • 9
    A ferramenta permite digitar autodenominações.
  • 10
    Não tínhamos como objetivo investigar prevalência de Status HIV ou grau de adesão à PreP, contudo foi possível constatar que um grande número de perfis registra seu uso.
  • 11
    Abreviação da gíria estadunidense “not safe for work” (algo como “não seguro para o trabalho”) indicando que as imagens podem conter conteúdos considerados impróprios a serem visualizados em locais públicos e compartilhados com outras pessoas. No Grindr, fotos NSFW geralmente se referem ao compartilhamento de nudes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2021
  • Aceito
    30 Ago 2021
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) R. São Francisco Xavier, 524, 6º andar, Bloco E 20550-013 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel./Fax: (21) 2568-0599 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: sexualidadsaludysociedad@gmail.com