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A sessão de desenho de modelo nu: produção artística e marcadores sociais da diferença

La sesión de dibujo con modelo al desnudo: Producción artística y marcadores sociales de diferencia

The nude model sketch session: artistic production, creativity and social markers of difference

Resumos

Este artigo apresenta a etnografia de uma sessão de desenho de modelo nu, com dois artistas plásticos na faixa etária dos 50 anos, que se afirmam como homossexuais e fazem parte de uma rede de homossexuais da elite paulistana. A partir da análise desta situação, tomada como característica do universo gay masculino em camadas altas, o texto apresenta reflexões sobre a relação entre a representação no contexto da produção artística e certos marcadores sociais da diferença (gênero, sexualidade, raça, classe e geração).

homossexualidade; arte; classe; HIV/AIDS; marcadores sociais da diferença


Este artículo presenta una etnografía de una sesión de dibujo con modelo al desnudo, junto a dos artistas plásticos en la franja etaria de los 50 años que se asumen homosexuales y forman parte de una red de homosexuales de la elite paulista. A partir del análisis de esta situación, tomada como característica del universo gay masculino de camadas altas, se reflexiona sobre la relación entre la representación en el contexto de la producción artística y determinados marcadores sociales de diferencia (género, sexualidad, raza, clase y generación).

homosexualidad; arte; clase social; HIV/Sida; marcadores sociales de diferencia


This article presents the ethnography of a nude model sketch session with two male artists in their fifties, assertive of their homosexuality. They both belong to a network of upper class gay men and women in the city of São Paulo. This event, taken as characteristic of the universe of upper class gay men, prompts reflections on the relationship between artistic representation and social markers of difference such as gender, sexuality, race, class and generation).

Homosexuality; Art; Social Class; HIV/ AIDS; Social Markers of Difference


ARTIGOS

A sessão de desenho de modelo nu: produção artística e marcadores sociais da diferença

La sesión de dibujo con modelo al desnudo: producción artística y marcadores sociales de diferencia

The nude model sketch session: artistic production, creativity and social markers of difference

Marcio Zamboni

Graduado em Ciências Sociais Mestrando em Antropologia Social, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, Brasil, marcio.zamboni@usp.br

RESUMO

Este artigo apresenta a etnografia de uma sessão de desenho de modelo nu, com dois artistas plásticos na faixa etária dos 50 anos, que se afirmam como homossexuais e fazem parte de uma rede de homossexuais da elite paulistana. A partir da análise desta situação, tomada como característica do universo gay masculino em camadas altas, o texto apresenta reflexões sobre a relação entre a representação no contexto da produção artística e certos marcadores sociais da diferença (gênero, sexualidade, raça, classe e geração).

Palavras-chave: homossexualidade, arte, classe, HIV/AIDS, marcadores sociais da diferença.

RESUMEN

Este artículo presenta una etnografía de una sesión de dibujo con modelo al desnudo, junto a dos artistas plásticos en la franja etaria de los 50 años que se asumen homosexuales y forman parte de una red de homosexuales de la elite paulista. A partir del análisis de esta situación, tomada como característica del universo gay masculino de camadas altas, se reflexiona sobre la relación entre la representación en el contexto de la producción artística y determinados marcadores sociales de diferencia (género, sexualidad, raza, clase y generación).

Palabras clave: homosexualidad; arte; clase social; HIV/Sida; marcadores sociales de diferencia

ABSTRACT

This article presents the ethnography of a nude model sketch session with two male artists in their fifties, assertive of their homosexuality. They both belong to a network of upper class gay men and women in the city of São Paulo. This event, taken as characteristic of the universe of upper class gay men, prompts reflections on the relationship between artistic representation and social markers of difference such as gender, sexuality, race, class and generation).

Keywords: Homosexuality; Art; Social Class; HIV/ AIDS; Social Markers of Difference.

Introdução

O objetivo deste artigo1 1 A reflexão aqui apresentada foi construída através de um longo diálogo com diversos pesquisadores. A primeira versão deste artigo foi apresentada no encontro "Numas em Maio", realizado na USP em maio de 2011, ocasião em que foi debatido pelas professoras Regina Fachinni e Heloísa Buarque de Almeida. Antes e depois da apresentação, mostrou-se sempre fundamental a orientação da professora Laura Moutinho e o debate com colegas do Numas (Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença), dentre os quais destaco Pedro Lopes e Valéria Alves. Na discussão de outra versão deste trabalho no "Círculo de Experiências de Campo", realizado na UFPA (por ocasião da missão discente do Procad USP/ UFPA), foi produtivo o diálogo com a professora Cristina Donza e com os colegas Ramon Reis, Rafael Noleto e Milton Ribeiro. Por fim, agradeço a leitura cuidadosa realizada por Gibran Teixeira Braga para o fechamento da atual versão. é propor uma série de reflexões acerca da relação entre a representação no contexto da produção artística e certos marcadores sociais da diferença (gênero, sexualidade, raça, classe e geração) a partir de uma situação etnográfica que me parece característica do universo homossexual masculino,2 2 O trabalho de campo envolveu tanto homens quanto mulheres. Apesar de acreditar que algumas das questões aqui discutidas possam se estender à experiência da homossexualidade feminina, decidi no espaço restrito deste artigo focalizar o universo masculino devido às particularidades da situação social específica que me proponho debater. em camadas altas da cidade de São Paulo.3 3 Este trabalho se insere no contexto da minha pesquisa de mestrado, Redes de Sociabilidade e Campos em negociação: homossexualidades e possibilidades de agência na articulação de certos marcadores da diferença.

O evento analisado se deu no contexto da minha primeira pesquisa de iniciação científica: Homossexualidades em Camadas Altas na Cidade de São Paulo.4 4 Realizada nos anos de 2009 e 2010 na Universidade de São Paulo com o financiamento da Fapesp e sob a orientação da professora Laura Moutinho. O foco desta pesquisa foi, em seu primeiro momento, pensar as interações entre classe, raça e (homos)sexualidade, focalizando a questão da agência entre indivíduos pertencentes a camadas altas. O projeto proposto para a Fapesp se estruturava sobre duas lacunas identificadas através de um levantamento no banco de teses da Capes5 5 Pesquisa realizada em abril de 2008 no banco de teses da Capes, disponível no site www.capes.gov.br. acerca da bibliografia que trata da homossexualidade. Por um lado, a categoria "classe", embora fosse apropriada com alguma frequência para definir ou recortar o campo, era pouquíssimas vezes tematizada pelas pesquisas. Por outro lado, se as camadas médias e baixas eram recorrentemente referidas, não encontrei naquele momento nenhum projeto que se propusesse a trabalhar com camadas altas.

Minha entrada em uma rede6 6 Sobre o uso do conceito de rede em contextos urbanos, ver Mitchell (1969). A respeito de sua utilização em pesquisas antropológicas sobre sexualidade, ver também Benítez (2010) e Fachini (2008). de homens e mulheres homossexuais na faixa entre 40 e 55 anos, que acabaria se consolidando como o principal núcleo da pesquisa e definindo em parte seus rumos, não ocorreu como resultado de um planejamento prévio – foi antes uma oportunidade inesperada que acabou por render muito mais do que eu imaginava. No primeiro projeto de pesquisa elaborado, expressava apenas a intenção de trabalhar com indivíduos que se afirmassem como homossexuais e fossem provenientes de camadas altas, justamente com o intuito de oferecer um contraponto à bibliografia, apresentando um problema historicamente importante para os estudos antropológicos sobre sexualidade no Brasil (a relação entre classe e sexualidade) a partir de um contexto etnográfico pouco explorado (camadas altas). Não havia, a princípio, um corte geracional.

Durante o processo de elaboração do projeto de pesquisa, conversei com a minha mãe sobre o campo de estudos no qual estava me inserindo – informação que não a deixou muito confortável em um primeiro momento. Algumas semanas depois, no entanto, tivemos um novo diálogo. Ela me contou que havia conversado em uma festa com seu amigo Ricardo7 7 Nomes fictícios. (um "gay assumido" que tinha então 50 anos) e havia dito para ele que eu estava começando uma pesquisa na faculdade sobre homossexualidade. Ele, em resposta, mostrou-se bastante interessado e disse que se eu precisasse fazer entrevistas, poderia procurá-lo.

Essa possibilidade me deixou, a princípio, bastante dividido. Não havia pensado em trabalhar com essa faixa etária e achava que poderia ser estranho ou constrangedor conversar sobre sexualidade com um amigo da minha mãe. Algum tempo depois me convenci de que se tratava de fato de uma oportunidade interessante: Ricardo era filho de um advogado conhecido e tinha uma bem-sucedida carreira como médico, representando certamente o perfil que eu pretendia pesquisar.

Depois de uma breve correspondência virtual, marcamos uma data para realizar a entrevista na casa do Ricardo. Ao final desta, pedi para ele indicar, se possível, amigos seus para realizarmos novas entrevistas. Recebi, poucos dias depois, nome, e-mail e telefone de dois amigos que haviam também se mostrado dispostos a contribuir com a pesquisa. Uma dinâmica semelhante caracterizou o trabalho de campo até que, seis meses depois, eu havia feito nove longas entrevistas (com seis homens e três mulheres) no formato história de vida.8 8 Parte desse material foi transcrito com o apoio à pesquisa «Entre a exclusão, o reconhecimento e a negociação: (homos)sexualidade e raça em uma perspectiva comparada», financiada pelo CNPq (Edital Gênero – processo Nº 402916/2008-5 – coordenada pela professora Laura Moutinho).

O desenvolvimento do trabalho de campo se deu dessa forma: não como efeito de um planejamento prévio, mas porque foi esse o espaço que me foi aberto pela rede. Percebi que havia nesses indivíduos uma disposição para falar abertamente sobre suas vidas, e procurei ser sensível a tal demanda. Os entrevistados compartilhavam com seus amigos a experiência e estes, quando por curiosidade ou interesse se mostravam dispostos, eram-me indicados para conversarmos. A entrada no trabalho de campo se desenhou, então, como o inverso do que eu havia imaginado no projeto de pesquisa: os indivíduos foram a princípio recrutados para entrevistas em profundidade, mostrando-se imediatamente disponíveis ou tendo sido indicados por amigos.

Imaginava que uma associação muito direta com minha mãe poderia gerar certos constrangimentos na dinâmica do campo. Restringi a sua mediação aos dois entrevistados iniciais e percorri a rede tendo como direção pessoas com as quais ela tinha menos contato (minha mãe não conhecia ou conhecia vagamente a maior parte dos entrevistados). Em verdade, a impressão que tive no curso do trabalho de campo foi a de que o mapeamento da minha origem, sendo de fato bastante significativo inicialmente, deixava de fazer parte do horizonte da conversa a maior parte do tempo, Estabelecida a confiança necessária para um primeiro contato, o aprofundamento da relação com os entrevistados era motivada por outros fatores: curiosidade pela experiência da pesquisa ou adesão a seus objetivos, afinidades interpessoais (senso de humor parecido, simpatia), formas de identificação (experiências de vida semelhantes) ou diversos outros interesses compartilhados (arte, cinema, gastronomia).

A hipótese de interesse sexual ou afetivo pelo pesquisador não pode ser excluída neste caso, mesmo porque eu estava conscientemente atravessando um mercado erótico bastante conhecido (e irritantemente moralizado). Essa espécie de interesse, no entanto, se apresentou de forma sempre muito discreta, e não tive dificuldades de contorná-lo sem maiores constrangimentos.9 9 Neste caso, o parentesco pode muito bem ter sido um elemento significativo: o fato de eu ter um lugar específico nos limites da rede pode desencorajar bastante um investimento mais incisivo sobre um jovem pesquisador. Talvez as mesmas características que me tornem confiável como pesquisador me tornem inconveniente como objeto de desejo.

Duas características dessa rede que ganharam relevo ao longo do trabalho de campo passaram a integrar o núcleo de problemas teóricos que orientou o desenvolvimento da pesquisa. A primeira: a faixa etária elevada dos interlocutores (em contraste com a minha), que caracteriza de forma decisiva a elaboração de narrativas por parte dos entrevistados e a natureza das relações de sociabilidade que o grupo pesquisado estabelece. A segunda: a soropositividade se afirmou como uma questão pertinente, uma vez que a maior parte dos homens entrevistados se declarou soropositiva no decorrer da entrevista e afirmou em vários sentidos a importância desta condição (e da convivência com pessoas que são portadoras do vírus) em sua trajetória e na forma como hoje administram suas vidas.10 10 A questão do HIV/AIDS no universo pesquisado começou a ser desenvolvida no meu segundo projeto de iniciação científica – "Entre memórias, dores e (re)negociações: o lugar da AIDS na trajetória de indivíduos que viveram o início da epidemia na cidade de São Paulo" – realizado na Universidade de São Paulo sob a orientação da professora Laura Moutinho e com o financiamento do CNPq. Há, por fim, uma articulação fundamental entre estas questões: a epidemia de HIV/AIDS parece ser o evento crítico que conforma os homens homossexuais desta faixa etária a uma geração específica, diferente da minha (Simões, 2013).

Está então esboçado o quadro mais amplo no qual se insere a situação etnográfica sobre a qual me propus a refletir.

Convite

A primeira vez em que participei de uma sessão de desenho de modelo nu foi em 2010, a convite de João, 50 anos, artista plástico e professor de desenho, que seria um dos informantes privilegiados da minha pesquisa de iniciação científica, e que me fora apresentado, a princípio, para a realização de uma entrevista em profundidade.

A entrevista de João já havia sido finalizada, mas continuávamos nos encontrando por motivos diversos. Logo no nosso primeiro encontro sentimos uma afinidade muito grande, de forma que conversamos muito sobre outros assuntos antes, depois e algumas vezes mesmo durante a entrevista. Trocamos vários e-mails e combinamos algumas idas a cafés, cinemas, restaurantes e exposições paralelas à realização da entrevista.

João é um homem de estatura mediana, cabelos castanhos levemente grisalhos (sem sinal de entradas), muitos pelos nos braços e no tórax e um semblante distinto: maxilar bem definido, um nariz anguloso e charmosas marcas de expressão nas laterais da boca. Sua fisionomia cairia bem em um respeitável senhor de meia-idade, mas suas roupas, modos e temperamento logo mudam essa impressão. Possui um gênio inquieto e personalidade expansiva, fazendo-se sempre notar pelo seu inabalável bom humor e um carisma particular. Veste frequentemente alguma peça de roupa mais colorida, em geral manchada de tinta, e anda carregado com inúmeras sacolas com material de desenho, livros recém-comprados e trabalhos de seus alunos.

Naquela época, eu fazia cadernos para artistas como forma de complementar minha renda,11 11 Já estava há alguns meses realizando um curso de encadernação com a profa. Maria Isabel Garcia e dominava então a técnica para confeccionar cadernos mais adequados para artistas, que eram produzidos tendo em vista projetos particulares, com materiais de melhor qualidade e acabamento artesanal. e João tinha me encomendado alguns, o que serviria de pretexto para diversos encontros. No dia em que recebi o convite para desenhar havíamos combinado de nos encontrar em um final de tarde perto do seu trabalho para que ele efetuasse o pagamento de seu último pedido.

Quando o encontrei, João me informou que iria para a casa de Bernardo, escultor e amigo seu de longa data, onde praticariam desenho com a presença de um modelo vivo. João já havia comentado comigo em outra ocasião que os dois vinham se encontrando regularmente para praticar desenho de modelo.

Bernardo havia me concedido uma entrevista por indicação do próprio João. Tivemos também uma grande afinidade, e os assuntos (especialmente arte) sobre os quais conversávamos antes e depois da entrevista acabaram por nos mobilizar mais nos encontros do que o roteiro propriamente dito. Mas depois de finalizada a entrevista não havíamos tido, até aquele momento, nenhum pretexto para nos reencontrarmos.

Bernardo é um homem discreto e vaidoso, de 50 e poucos anos. Filho de alemães, nasceu no Brasil e viveu aqui a maior parte da sua vida. Possui um volumoso cabelo grisalho (quase todo branco), sempre elegantemente ondulado. Poderia ser descrito, utilizando a linguagem dos sites de relacionamento que utiliza, como um "coroa enxuto" pela combinação das marcas de idade com um corpo moldado na academia. Ostenta certa masculinidade cavalheiresca: postura firme, gestos precisos, gosto sofisticado. Sua erudição poderia sugerir alguma arrogância, mas essa impressão é logo desmentida por seu sorriso simpático (e ligeiramente tímido) e por suas relações com rapazes mais novos, frequentemente mais pobres e mais escuros.

O interesse que cultivo por produção artística (tanto por encadernação como por desenho), que se manifesta também em conhecimentos, habilidades e disposições bastante específicos, teve portanto um papel fundamental para a inserção nessa rede, a qual seria, por sua vez, muito importante para o desenvolvimento da minha produção artística. Pode-se dizer, em outras palavras, que uma relativa qualificação para acompanhar a produção dos dois, assim como o interesse de ambos em seguir a minha foram provavelmente os elementos mais significativos para o aprofundamento do nosso contato.

Aceitei o convite movido quase exclusivamente pela dimensão artística da experiência. Só algumas semanas depois, conversando com a minha orientadora a este respeito, tomei consciência da relevância do evento enquanto experiência etnográfica. Ela perguntou: "Você está anotando essas coisas no caderno de campo, não?". Eu não havia anotado.

Preliminares

João ligou para Bernardo confirmando a minha presença e perguntou se ele queria que levássemos alguma coisa.12 12 Também não contribuí para o pagamento do modelo – despesa que João divide com Bernardo nas sessões em que comparece. O valor gira em torno de R$ 70 por sessão, podendo ser bem mais alto no caso de modelos profissionais. Já estava escuro quando estacionamos o carro na garagem do prédio onde Bernardo mora, uma torre relativamente antiga com projeto assinado por um arquiteto reconhecido, na região do Itaim. Há sempre uma vaga disponível, pois Bernardo não tem carro (desloca-se pela cidade basicamente de táxi). Eu ficaria sabendo depois que o apartamento onde ele mora e trabalha pertence a um amigo dele – um rico comerciante de tecidos, também homossexual, que coleciona seu trabalho e recebe o aluguel na forma de obras. Esse estilo de vida garante, como se pode imaginar, uma maior autonomia para se dedicar à produção artística: trabalho caracterizado por uma constante instabilidade financeira.

Mostraram-se recorrentes ao longo do meu trabalho de campo amostras dessa espécie de solidariedade entre artistas plásticos reconhecidos (que em termos de renda estão mais próximos de profissionais liberais) e o que poderíamos chamar de uma elite política e econômica (proprietários de grandes volumes de capital ou cargos eminentes no aparelho do estado), especialmente quando passei a frequentar um outro espaço de produção artística, cuja descrição neste momento me parece um contraste útil para pensarmos a sessão de desenho de modelo nu.

Algumas semanas depois do dia em questão, Bernardo me convidou para praticar pintura em cerâmica no ateliê que ele frequenta no Jardim Paulistano. Aceitei o convite, mais uma vez movido pela singular oportunidade de desenvolver outra técnica de produção artística (pintura em baixo esmalte sobre cerâmica). Logo perceberia que um certo grau de concentração no trabalho artístico deixava fluir um diálogo constante e despreocupado, que pouco a pouco me dava mais intimidade em relação àquele universo. Ao mesmo tempo, o fato de eu estar trabalhando nas minhas próprias peças me integrava mais facilmente ao espaço, permitindo que eu o observasse e dele participasse sem ser percebido como estranho ou inconveniente.13 13 Não deixa de ser relevante para a inserção nesse campo o reconhecimento por parte das proprietárias da condição de classe em que me situo (estudante de uma instituição prestigiada e descendente de uma família de empresários da indústria, executivos e profissionais liberais) – expressa pelas experiências de vida e as narrativas familiares.

O ateliê é propriedade de duas senhoras da alta sociedade (uma casada com o proprietário de um grande grupo empresarial e outra com um político bem-sucedido), que desenvolvem naquele espaço projetos individuais com relativa autonomia, sem se preocuparem com o sucesso econômico da empreitada (suas contas sendo equilibradas através da venda de peças para lojas de decoração), nem em competir com os maridos, irmãos, filhos, cunhados e genros nos negócios mais lucrativos de suas famílias. Ao mesmo tempo, mantêm um campo em que cultivam seu círculo de amizades e alianças: ali são ministradas aulas de pintura sobre cerâmica frequentadas por outras senhoras distintas.

A presença de artistas reconhecidos (muitos deles homossexuais), em um ambiente separado do dessas senhoras, confere maior status para o lugar e também aproxima as proprietárias de figuras pelas quais nutrem grande interesse e admiração, e com as quais desenvolvem longevas relações de amizade. Os artistas que frequentam o ateliê são muitas vezes convidados para animar e enriquecer almoços e eventos organizados pelas proprietárias (e eventualmente pelas alunas), onde também estão presentes os maridos e os aliados da família. De volta ao ateliê, com sua atmosfera feminina, entre a pintura de um prato e de uma travessa, circulam narrativas carregadas de impressões que muitas vezes esclarecem os bastidores de suas alianças políticas, econômicas e familiares – tramas muito úteis para se situarem nesse universo.

Para os artistas, além de um espaço bem equipado e agradável para trabalhar, onde frequentemente encontram e se socializam com outros artistas, o ateliê permite o contato com um interessante mercado para seu trabalho. Não apenas as proprietárias, mas também alunas já adquiriram algumas de suas obras e frequentam as vernissages de suas exposições. Esses dois grupos (artistas reconhecidos e senhoras da alta sociedade) se distinguem pelo acúmulo de diferentes tipos de capital (Bourdieu, 2008). Se é especialmente o capital econômico que garante os privilégios das alunas e das proprietárias, é o grande acúmulo de capital cultural a fonte do prestígio dos artistas. Através da encomenda e da compra de obras de arte elas podem incrementar seu capital cultural enquanto eles podem adquirir capital econômico – e ambos os grupos compartilham capital social ao ampliarem suas redes de relações estratégicas.14 14 Um impressionante acúmulo deste tipo de capital caracteriza os artistas e se mostra fundamental para o exercício da sua profissão. A vernissage é, em certo sentido, o momento de expressão agonística do poder de mobilização dessas redes de relações.

Voltemos ao percurso que vínhamos fazendo em direção a um lugar onde trocas diferentes estão em jogo. Depois de estacionarmos e pegarmos no banco traseiro o material de desenho que João trazia no carro, subimos até o apartamento pelo elevador. No hall social, à direita da porta de entrada, podia-se observar um pequeno painel de azulejos feito por João com a figura de um homem nu segurando uma balança – representação do signo de Bernardo (Libra). João tocou a campainha e abriu a porta, que estava destrancada, antes de esperar resposta, anunciando animadamente nossa chegada.

É um ambiente amplo que funciona como sala e ateliê. O apartamento como um todo tem poucos móveis e uma grande quantidade de livros, CDs e obras de arte: esculturas, peças de cerâmicas, desenhos e pinturas – a grande maioria delas da autoria de Bernardo. Em termos de temática, poderíamos dizer que o corpo masculino nu reina confortavelmente em regime quase absoluto.

Fomos recebidos calmamente por Bernardo, que respondeu com naturalidade às exaltações características do amigo. Depois de deixar suas coisas no quarto de hóspedes, João pediu para utilizar o computador. Enquanto ele via qualquer coisa no site do banco, os dois conversavam sobre assuntos corriqueiros com grande intimidade, como saúde, despesas, estado de parentes e amigos em comum. Eu fazia agrados em um dos dois gatos de Bernardo, sem saber exatamente como me inserir na conversa.

Pouco tempo depois, os dois tendo acabado de pôr a conversa em dia, engatei um diálogo com Bernardo. Estávamos vendo os últimos desenhos da série na qual ele estava trabalhando e falando sobre questões como temática, técnica e composição. Aguardávamos Luiz, o modelo, que havia ligado dizendo estar a caminho.

O modelo era um homem de 20 e poucos anos, faixa etária que o inclui na categoria nativa "menino", na qual, aliás, eu costumo ser acomodado. Bernardo descreve Luiz como "um amigo". No vocabulário de Bernardo, no entanto, o termo "amigo" é utilizado indistintamente, e vem carregado de significados muito diversos, sendo dois os mais recorrentes.15 15 Sobre os múltiplos significados que a amizade pode ganhar em diferentes contextos, ver Rezende (2002).

Por um lado, existe um significado muito forte de "amigo", que se refere àqueles que o são de longa data e com os quais mantém uma relação densa – a maior parte deles homens homossexuais, de faixa etária e classe social semelhantes.16 16 Ao contrário do que se observou em outros contextos (Pollak, 1985, 1990), a linguagem do parentesco não é mobilizada para descrever essas relações. Um grande amigo não é "como um irmão". Pelo contrário, essa amizade costuma ter um valor diferente (ou mesmo superior) daquele da família – a espontaneidade e a afinidade que a caracterizam se opõem à obrigatoriedade e à artificialidade atribuídas às relações familiares. Não parece estar presente também, no caso dessas amizades duradouras entre homens, a ambiguidade entre amizade e parceria potencial nos termos descritos por Regina Facchini (2008) no contexto da homossexualidade feminina em camadas médias. Ex-parceiros podem se tornar grandes amigos, mas a ambiguidade tende a diminuir muito e rapidamente depois que cessam as relações sexuais e o relacionamento se converte em amizade. A origem da amizade remete aos espaços e às redes de sociabilidade da juventude, em geral caracterizados por um ethos intelectual e artístico ou mesmo marcadamente homossexual (como o restaurante/bar Ritz17 17 De acordo com Bernardo, o Ritz foi o primeiro lugar onde os "meninos bem criados de São Paulo" viveram a homossexualidade de forma mais aberta. Até meados da década de 1980, os espaços de sociabilidade homossexuais se concentravam no centro da cidade (como o Homo Sapiens) ou na região da Bela Vista (como o Medieval). da Alameda Franca nos anos 1980). É nesse sentido que se inscreve, por exemplo, a amizade com João.

O mesmo termo "amigo" é empregado, simultaneamente, para descrever um outro tipo de relação com um forte componente (homo)erótico e potencialmente sexual: trata-se dos "meninos" com os quais Bernardo entra em contato através da internet. Esses contatos podem evoluir para encontros mais ou menos íntimos e relacionamentos mais ou menos duradouros. Além da acentuada diferença de idade (cerca de 30 anos), há com frequência uma significativa diferença de classe. É este o sentido da amizade com Luiz.

Apesar da dimensão erótico-afetiva ser o elemento mais marcante dessas relações e o fator decisivo na lógica que organiza os contatos, ela não é certamente a única, e a diversidade de rumos que esses encontros engendram parece ser uma pista importante. Apesar de Bernardo falar frequentemente sobre seus "amigos" em nossas conversas, a dimensão sexual dos encontros foi poucas vezes mencionada. Não é possível saber, senão indiretamente, se ela está ou não presente na relação em questão. Falamos em geral sobre as questões suscitadas pelos "amigos" nas conversas que travam com Bernardo, ou sobre as impressões que este desenvolve sobre a personalidade daqueles.

A forma como Gibran Teixeira Braga (2013) analisa a dinâmica de redes sociais e salas de bate-papo que promovem encontros entre homens para sexo e/ou relacionamentos pode ser evocada como referência para entender melhor o lugar do sexo nessas relações. O autor sugere que a utilização desses espaços não se resume à promoção de encontros, mas envolve todo um "jogo de flerte, sedução, troca de fotos, exibição na webcam, entre outras formas de interação online", de maneira que "o termo sexo não contempla as diversas modalidades de interação erótica encontradas nesse universo" (2013:21). Braga propõe, então, que o conceito foucaultiano de aphrodisia – aqueles "atos, gestos, contatos que proporcionam uma certa forma de prazer" (Foucault, 2010:53) – contempla melhor esse universo de interações.

Partindo dessa concepção alargada de interação erótica (que não se resume a uma fatigante negociação acerca da possibilidade de consumar ou não o ato sexual), poderia dizer que Bernardo pratica aphrodisia com esses "meninos", que extrai prazer desse jogo ambivalente de flertes, que pode ou não terminar na cama. O exercício desse jogo não exclui a possibilidade (nem a expectativa) de que se desenvolva uma relação mais densa entre ambos, muito pelo contrário: as interações que costumam dar mais prazer a Bernardo são justamente aquelas que combinam a aphrodisia com elementos característicos de suas amizades mais antigas (longas conversas sobre problemas e projetos de vida, trocas de impressões sobre obras de arte, compartilhamento de refeições e programas culturais).

A unidade do termo "amigo" é mais do que uma estratégia (pouco eficiente) para disfarçar a natureza dessas relações e parece revelar, ao contrário, uma determinada intenção – a de não hierarquizar as diversas formas de amizade, marcando uma oposição ao julgamento profundamente moralizante que costuma se voltar para a relação de Bernardo com esses "meninos", inclusive por amigos homossexuais.18 18 Um julgamento moral de natureza semelhante marcou meu próprio percurso pelo campo. Como um "menino" em meio a "coroas" estava sempre sob suspeita.

O desconforto que alguns amigos homossexuais de Bernardo expressam em relação a seus parceiros mais novos é uma das dimensões de uma linha de tensão mais ampla que atravessa a rede em diversos pontos e opõe, em certas ocasiões, aqueles que privilegiam relações duradouras com homens de idade, classe e raça19 19 A semelhança da estética racial dos parceiros se mostra aqui mais como uma consequência do sistema mais amplo de produção e naturalização de desigualdades que preside a constituição dessas redes de sociabilidade – que acabam impermeáveis a indivíduos identificados como "não brancos" – do que uma preferência sexual e estética explícita por corpos "brancos". semelhantes aos que com frequência investem em relações relativamente mais efêmeras com homens (ou "meninos") mais novos, mais pobres e mais escuros. Em comentários difusos, os primeiros desqualificam certos relacionamentos dos segundos como superficiais, assimétricos,20 20 Os trabalhos de Guimarães (2004 [1978]) e Fry (1982) ressaltam a importância que ganha em certos contextos urbanos a questão da simetria ou da igualdade no interior dos relacionamentos homossexuais a partir do final da década de 1970. imaturos ou excessivamente centrados no sexo. Em oposição, os segundos muitas vezes descrevem os primeiros como caretas, pouco abertos à diferença, possessivos ou presos ao modelo heterossexual.

Voltando à questão da amizade, é interessante notar também que a referência aos primeiros amigos costuma se formular no plural ("fui ao cinema com meus amigos"), enquanto aos segundos costuma se referir no singular ("encontrei aquele amigo que estuda ciências sociais na Unicamp"). Estamos falando de dois estilos de sociabilidade: por um lado, de amizades articuladas segundo uma lógica de rede (uma sociabilidade de rede) e, do outro lado, uma relação articulada segundo uma lógica individualizante (em poucos casos envolve seus outros amigos ou os amigos do amigo).

Estes dois estilos de sociabilidade se referem, por sua vez, a dois momentos da vida de Bernardo. O primeiro, à sua juventude, quando conheceu esses amigos de longa data, caracterizado por uma vida noturna muito intensa. O segundo, aos últimos 10 ou 15 anos, quando começou a utilizar a internet como ferramenta na busca de novas relações. A passagem entre um tempo e outro é marcada por um evento traumático: a epidemia de HIV/AIDS.21 21 Para uma reflexão sistemática sobre a relação entre a epidemia e o uso das mídias digitais por homens que buscam relações sexuais e afetivas com outros homens, ver Miskolci (2013).

Trabalho com a perspectiva, desenvolvida com mais vagar em outros textos (Zamboni, 2012; 2013a), de que a epidemia significou uma ruptura brutal (Das, 1999) na forma de vida que caracterizava as redes de sociabilidade homossexuais em meados dos anos 1980. Trata-se de um conjunto compartilhado de experiências de sofrimento, que articula a dor vivida no corpo doente, a transmissão da dor sentida em corpos (física e afetivamente) próximos e a tristeza associada às perdas – uma dor localizada simultaneamente em muitos corpos e compartilhada por meio de delicadas dinâmicas de solidariedade. Destacando o caráter multifocal e interlocutório do sofrimento produzido pela epidemia, argumento que a ruptura que ela instaura ultrapassa as diferenças entre aqueles que contraíram o vírus e aqueles que tiveram seu contato com a epidemia mediado pelos corpos de outros.22 22 Não ignoro as diferentes perspectivas associadas a essas posições distintas. Para os efeitos deste artigo, no entanto, decidi não explorá-las para expor ao mínimo meus interlocutores.

A crise que se abateu sobre o universo de Bernardo neste contexto o afastaria desses espaços de sociabilidade durante alguns anos, entre o final da década de 1980 e meados da década de 1990. Quando voltou a frequentar esses mesmos espaços alguns anos depois, Bernardo conta que já não se sentia confortável nos mesmos ambientes – esses espaços haviam se transformado profundamente naquele período.23 23 Sobre as transformações nos espaços de sociabilidade homossexual na cidade, ver França (2007, 2010) e Green et al. (2005). A manutenção e a ampliação das antigas redes,24 24 É importante lembrar das transformações que as redes sofreram no contexto do primeiro momento da epidemia de HIV. Por um lado, as perdas sofridas desarticularam certas relações, deixando "lacunas" nas redes. Por outro, a intensa solidariedade vivida nos períodos de grandes dores e graves enfermidades fortaleceu certas relações, constituindo vínculos particularmente profundos e duradouros (ver Zamboni, 2013a). agora desarticuladas dos espaços que marcaram sua formação, combinaram-se ao uso da internet na constituição do que seria seu novo estilo de vida.

João e Luiz conviveram na sessão de modelo, cada um deles ocupando lugares bem definidos na vida de Bernardo. E que lugar eu ocupava? Por um lado, minha idade me aproximava imediatamente de Luiz. Nossa identificação em oposição aos outros ia, no entanto, além do pertencimento a um grupo etário semelhante: a epidemia de HIV/AIDS, vivida em seu momento mais dramático por João e Bernardo, era um evento crítico que nos diferenciava em termos de geração (Simões, 2013). Havia uma compreensão dessa experiência compartilhada por ambos (e por toda uma geração de homens homossexuais) que simplesmente não era parte do nosso universo.25 25 Essa diferença parece ser a mesma que diferenciava Bernardo dos novos frequentadores do Ritz quando ele tentou voltar a frequentar o lugar. Por outro lado, o meu lugar na atividade que estávamos ali para praticar e a forma com que me inseri naquela situação (como amigo de um amigo de longa data) me associavam a João.

Luiz finalmente chegou. Era um "menino" alto, de ombros largos e porte atlético. Estava vestido com calça jeans, malha listrada e tênis de marca. Nada em suas maneiras e atitudes destoava do estereótipo de um rapaz heterossexual de classe média baixa. Suas feições angulosas e certas marcas de uma ascendência indígena ou negra (sugeridas também pela pele mais morena) me lembraram imediatamente o traço e a forma de muitos dos trabalhos do Bernardo: não havia dúvida de que se tratava do modelo.

João logo sugeriu que comêssemos antes de desenhar, e fomos para a cozinha – um ambiente relativamente espaçoso e que funciona também como copa. A conversa envolvente que eu travava com Bernardo antes da chegada do modelo havia se dissolvido, e os assuntos pareciam se arrastar. A forma, acanhada e um tanto grosseira, de Luiz se colocar na conversa e o limitado espectro de assuntos que o mobilizavam dificultavam a fluidez do diálogo. Em algum momento a conversa estacionou na própria comida, e discutimos desinteressadamente a preferência entre os tipos de esfiha. Tive então a impressão de que o marcador de diferença mais significativo naquele encontro talvez não fosse a geração, mas sim a classe. De alguma forma, eu, Bernardo e João compartilhávamos uma certa etiqueta e um repertório de assuntos muito específicos que Luiz parecia não dominar.

Essa dimensão de classe se tornava visível também como uma diferença de raça. Em certa medida, o contraste estava marcado na própria materialidade dos corpos: Bernardo, João e eu éramos muito mais brancos que Luiz. Mas a diferença ia além da cor: Luiz igualmente não dominava as narrativas familiares que produzem os tipos de ascendência mais valorizados no contexto das camadas altas (famílias tradicionais da aristocracia rural ou imigração europeia recente). Ao menos na cidade de São Paulo, as diferenças raciais não se expressam apenas em termos fenotípicos como marcas raciais (Nogueira, 1985), mas também no sentido de pertencimento a grupos racializados de ascendência mais ou menos valorizada socialmente.26 26 Sobre a dinâmica de diferenciação racial no universo homossexual de camadas altas em São Paulo, ver Zamboni (2013b). O lugar social compartilhado pelos dois artistas e por mim era produzido, nesse sentido, pelo entrecruzamento de raça e classe.

A desvalorização em termos de status social desses fenótipos e grupos de ascendência não significa uma igual desvalorização no mercado de trocas eróticas e afetivas. Os trabalhos de Laura Moutinho sobre relações inter-raciais, tanto no universo dos casamentos formais (Moutinho, 2004) quanto no mundo dos intercâmbios homossexuais entre "gringos" e rapazes negros (Moutinho, 2006), ressaltam a relevância do erotismo associado à cor negra na dinâmica dessas trocas. Quando se trata do homem negro como objeto de desejo, é particularmente significativa a vinculação com a masculinidade, que se expressa em metáforas térmicas, viris, de desempenho e proporções.

Luiz, mais novo, mais escuro e mais pobre era também de certa forma mais masculino – e talvez fosse precisamente essa combinação que o tornava desejável. O conceito de tensores libidinais, desenvolvido por Perlongher (1987) e mobilizado por Moutinho (2004, 2006), procura dar sentido a contextos nos quais o cruzamento de certas fronteiras socialmente estabelecidas coincide com a manifestação do desejo. Trata-se de pensar que os cordões de isolamento produzidos pelos sistemas classificatórios são também zonas de contato que permitem a expressão de um desejo animado pela transgressão, colocando em movimento (desafiando, reordenando ou obscurecendo) as dinâmicas de diferenciação.

Pouco tempo depois terminamos de comer e Bernardo sugeriu que começássemos a sessão de desenho. Bernardo colocou um edredon grosso com algumas almofadas no chão em uma das extremidades do ambiente, fechou as janelas (estava um dia frio), verificou se o material de desenho estava separado e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Enquanto isso o modelo se despia, deixando as roupas sobre uma cadeira até ficar apenas de cueca.

Sentamo-nos então em um semicírculo de frente para o lugar reservado ao modelo (eu e João no chão, Bernardo em uma cadeira), e Bernardo finalmente lhe pediu para que tirasse a peça que lhe restava no corpo. Estava montada a cena.

Ação

A sessão de desenho em si foi relativamente breve (pouco menos de uma hora), mas intensa e envolvente. A disponibilidade do corpo humano nu como referencial (modelo) para o desenho caracteriza uma situação muito valorizada por artistas de formação mais clássica, e foi por mim vivida como uma experiência de fato singular.

João e Bernardo têm em suas respectivas carreiras uma relação muito significativa com o desenho de modelo nu. Ambos já fizeram séries de trabalhos e exposições a respeito e, enquanto professor, João é um grande defensor da prática frequente do desenho de modelo nos cursos de arquitetura e artes plásticas.

A sessão é composta de uma sequência de posições fixas mediadas por movimentações sutis. O número reduzido de pessoas praticando – privilégio dispendioso ao qual nem todos os artistas se permitem – possibilita uma interação extraordinária com o modelo, e é também muito interessante para ele. João mudava frequentemente de posição, procurando ângulos inusitados (muitas vezes indiscretos), enquanto Bernardo se mantinha sentado na mesma posição e muito centrado em seu trabalho.

O exercício de desenhar um corpo humano vai muito além de um registro no papel, orientado por um conjunto cristalizado de técnicas (mais ou menos favorecidas por certas aptidões), ou da somatória dos dados visuais captados pelos nossos olhos. O traço não é certamente uma transposição do contorno, dos limites da superfície do corpo refletidos na retina. O desenho é uma espécie de síntese criativa de uma experiência interativa de observação e, nesse sentido, lembra muito a escrita etnográfica.

É impossível não se orientar pelo que consideramos ser comum e universal em qualquer corpo humano (como não deixa de ser o nosso): um conhecimento prévio de sua anatomia. O esqueleto, como uma estrutura ordenada, segura e cristalizada, se apresenta imediatamente como um referencial útil sobre o qual projetar a continuidade dos traços no papel. Mas os tecidos superficiais (aquilo que efetivamente vemos), embora sustentados pela ossatura que acreditamos conhecer, se dispõem caprichosamente em linhas sinuosas e superfícies de cartografia misteriosa, encerrando um universo imponderável de carnes e fluidos, cujos volume e consistência queremos adivinhar, inquirindo os delicados movimentos que denunciam sua presença.

Trata-se de produzir, através do desenho, uma representação do corpo que possa ser reconhecida enquanto tal e, para isso, basta que corresponda a uma anatomia conhecida disposta em uma pose específica e vista de determinada perspectiva. Mas o desenho de modelo, assim como a etnografia (bem nos lembra Malinowski com sua célebre metáfora27 27 Na famosa introdução de Os Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski (1978) compara a estrutura social descrita por meio da etnografia à anatomia do corpo humano. O trabalho etnográfico teria, então, três dimensões: esqueleto (atos culturais cristalizados), carne e sangue (fatos imponderáveis da vida real) e espírito (mentalidade nativa). ), quer ir além de uma descrição plausível do real, quer expressar algo de sua peculiaridade, registrar-lhe o espírito – algo que acreditamos emergir de uma interação, da experiência e do olhar particulares do artista (ou do etnógrafo), e que por isso mesmo ganha algo de produção criativa, para além de uma reprodução arbitrária de percepções.

A representação dessa anatomia significava também, em certo sentido, uma atualização de algumas convenções de gênero. Como sugerem, entre outros, Scott (1995), Butler (1999) e Laqueur (2001), a representação de corpos masculinos e femininos como fundamentalmente contrastantes é ativa na elaboração e na reafirmação das diferenças de gênero (e, no limite, em sua "invenção" histórica). No conjunto de traços que forma a imagem do corpo, certas proporções associadas a anatomias masculinas e femininas (não apenas genitália, mas também a forma de quadris e ombros, a espessura de braços e pernas, mãos e pés, proeminência do maxilar etc.) são fundamentais para essa diferenciação. Trata-se de regiões perigosas no percurso das linhas: um pequeno desvio de curva pode causar uma estranha ambiguidade. São, talvez por isso mesmo, superfícies particularmente prazerosas de se percorrer com o traço, de se flertar com a ambiguidade: dimensão erógena da representação potencializada por um regime de diferenciação sexual.

É difícil pensar sobre a relação entre representação e gênero sem lembrar da mais influente obra de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo (1994 [1949]). Particularmente a partir da leitura de Adelman (2009:85) em diálogo com Tereza de Laurentis, podemos enxergar na obra de Beauvoir uma relação direta entre representação, criatividade, desejo e produção de diferenças. Colocar a mulher no lugar de musa, ao mesmo tempo objeto de desejo e fonte de inspiração, é também deslocá-la de um regime de reciprocidade para uma relação de objetificação, que supõe (e produz) a passividade de quem é representado. O elogio não exclui nesse momento a hierarquia entre aquele que é livre para elaborá-lo e enunciá-lo e aquela que é aprisionada pelas misteriosas virtudes que lhe são atribuídas. A criatividade que move a produção desses discursos se potencializa pelo desejo de compreender e domar o mito incontrolável que produz mas se desenvolve sobretudo para realizar o desejo de quem representa, desejo este que é fundamental para sua constituição enquanto sujeito.

Estamos diante, no entanto, de uma situação na qual homens representam o corpo masculino. Mas os homens que representam e o corpo masculino representado não ocupam o mesmo espaço social. A relação que estabelecemos entre criatividade, representação, hierarquia e desejo continua fazendo sentido. O que muda é a natureza das diferenças produzidas, expandindo a formulação de Beauvoir: trata-se da dinâmica de representação do outro de forma mais ampla. Como propôs Scott (1995), gênero é categoria útil para pensarmos as relações de poder, não apenas como uma forma privilegiada pelo qual o poder se articula, mas também como uma poderosa metáfora pela qual ele é representado, tornando-se inteligível historicamente.

Helène Clastres (1980), por sua vez, reflete sobre o significado de os indígenas americanos terem se tornado modelos para a produção artística e para o pensamento filosófico europeu a partir do século XVI. Além disso, o já citado trabalho de Laura Moutinho (2004), ao discutir a sexualização da raça, nos lembra da simultaneidade com a qual é produzida a diferença do e pelo desejo do corpo negro no contexto brasileiro.

Voltando à metáfora da relação entre o desenho do corpo e a escrita etnográfica, não deixa de se colocar na antropologia a questão da assimetria entre aquele que representa (o antropólogo) e aquele que é representado (o "nativo"). A produção da alteridade, neste sentido, se coloca como um ideal desafiador (e talvez por isso mesmo produtivo) tanto para a arte quanto para a antropologia.

Todas estas questões me ocorreram depois: os desafios do desenho naquele momento me envolviam sem deixar muito espaço para reflexões. Mas como esse exercício era sentido por Luiz, que habitava um corpo avidamente percorrido por olhares curiosos? Ele parecia se manter mais ou menos distante da situação – ou talvez um pouco constrangido (quem sabe pela minha presença).

O que parecia diferenciar então o modelo daqueles que estavam praticando desenho era o domínio de uma determinada técnica – ou ao menos a disposição para o desenvolvimento dessa habilidade. Somando-se a isto o fato de que, independentemente de suas motivações subjetivas, o modelo está sendo pago para realizar este trabalho, temos mais uma vez a classe como um significativo marcador de diferença.

A agência e as impressões do modelo não deixam de figurar como questões interessantes.28 28 Sobre possibilidades de agência de jovens envolvidos em relações (homo)eróticas marcadas por desigualdades sociais, ver Moutinho (2006), Moutinho et al. (2010) e Simões et al. (2010). Tive, no entanto, acesso muito restrito a esse universo devido à interação limitada com Luiz naquele dia – ou com qualquer pessoa que tenha trabalhado como modelo nestas condições. Mais próximo daqueles que representavam, acabei contribuindo para a delineação dessa distância. Sei, porém, que as motivações do modelo podem variar imensamente e ir muito além da financeira.

Depois de Luiz, Bernardo trabalharia algum tempo com outro modelo (que não cheguei a conhecer). Este, que atuava como designer gráfico, admirava a arte de Bernardo e, sabendo que ele trabalhava frequentemente com modelos nus, entrou em contato com ele e se ofereceu para posar, recebendo o pagamento na forma de obras (o que significa, em última instância, um reconhecimento do alto valor das obras e uma disposição em colecioná-las, o que é característica de certa condição de classe). Este modelo dizia ter uma grande satisfação em posar e em ver os resultados das sessões, mantendo em seu site pessoal um currículo (com fotos) dos resultados deste tipo de trabalho.

A tensão erótica entre modelo e artista é algo bastante reconhecido nessas sessões. Finalizada a atividade, João me ofereceu uma carona (apesar de ter de voltar depois para a casa de Bernardo, onde dormiria) – estratégia conveniente para Bernardo, já que, segundo João, "rolava sempre um clima" entre ele e Luiz, de forma que sua ausência permitiria que eles fossem depois para o quarto sem constrangimentos.

Enquanto o modelo se vestia, observamos e discutimos brevemente os desenhos uns dos outros. Em seguida, Bernardo ofereceu a todos uma última taça de vinho – Luiz, novamente vestido, voltava a confraternizar com aqueles que mais cedo haviam sido seus comensais.

Desdobramentos

O que está em jogo em uma sessão de desenho de modelo nu como esta da qual tive a oportunidade (e o prazer) de participar? Como uma situação social (Gluckman, 2010), pode-se dizer que ela é capaz de agregar respostas para diversas demandas. Como uma espécie de ritual, ela reafirma e aprofunda certas relações ao mesmo tempo em que abre espaço para o desenvolvimento de outras.

Em primeiro lugar, e em uma posição decisiva para a definição da matriz do evento, está sua importância para a prática e o desenvolvimento da arte enquanto habilidade e para a criação de obras artísticas concretas. O fato de os dois serem artistas profissionais intensifica a potência desse recurso, assim como exercita o compartilhamento de um ethos artístico (que não deixa der ser, em certa medida, um ethos de classe).

Depois, está em jogo o cultivo de uma amizade profunda e duradoura que tem um lugar afetivamente muito importante para ambos (e cuja densidade pode ser associada ao compartilhamento de uma experiência de sofrimento no contexto da epidemia de HIV/AIDS).

Não deixa de estar presente, ainda, a possibilidade de a sessão de modelo engendrar, para um dos artistas, uma espécie de relação erótica e afetiva com o modelo.29 29 É importante ressaltar que, se um desfecho possível para a tensão erótica que frequentemente caracteriza a relação entre modelo e artista é a concretização do ato sexual, este não é o único nem necessariamente o mais desejado ou valorizado pelos artistas. Nas palavras de João: "Se você me perguntar se eu troco uma trepada por uma sessão de modelo, eu [diria que] troco. Eu posso até ter desejo e atração e vontade de transar, mas eu acho que eu gozo mais desenhando". Assim, embora não se exclua a "vontade de transar" durante uma sessão de desenho de modelo nu, a atuação criativa que caracteriza o ato de desenhar pode proporcionar uma realização mais significativa. Ao que tudo indica, a iniciativa de "chamar para posar" algum "menino" pelo qual se está interessado é uma estratégia de aproximação bastante conhecida (e muitas vezes efetiva) no meio artístico.30 30 Como o valor de uma sessão de modelo é amplamente negociável (em especial quando se trata de modelos amadores), as fronteiras entre o que poderia ou não figurar como prostituição, em alguns casos, são extremamente sutis. De uma forma ou de outra, o estatuto do artista parece ser capaz de atribuir significados positivos e produtivos a esses encontros. Em outras palavras: mais importante que classificar (como prostituição ou não) é compreender a riqueza e a complexidade das trocas envolvidas. Uma dinâmica semelhante foi descrita por Perlongher (1987) na relação entre certos michês e os "professores" (categoria na qual o próprio autor parecia se inserir): homens mais velhos e intelectualizados que teriam outros atrativos além do dinheiro.

Por fim, parece haver – e é este aspecto que eu gostaria de discutir mais detidamente neste momento – uma dimensão ritualística de valorização de um ethos (ou, se preferirmos, de uma identidade) propriamente homossexual nesta sessão de desenho de modelo nu.

Em diversos momentos de sua entrevista em profundidade, João se refere à homossexualidade como uma questão estética, ou seja, como a preferência (sobretudo estética, mas também sexual e afetiva) pelo corpo masculino. É significativo então o fato de que em seus encontros com Bernardo os modelos sejam invariavelmente homens e, mais do que isso, figurem como corpos desejáveis para os artistas.

A sessão de desenho de modelo nu é, assim, um momento de contemplação e elaboração de elogios ao corpo masculino nu – a expressão estética de um desejo e, se quisermos, também a afirmação e a valorização de uma identidade (gay) caracterizada pela particularidade desse desejo (de um homem por outro homem). A semelhança observável entre o corpo do modelo e o traço dos artistas parece ser a expressão mais concreta da correspondência lógica entre preferência estética e orientação do desejo. O corpo do modelo materializa um sistema de preferências estéticas31 31 É interessante ver, paralelamente, como esse sistema de preferências significa também o compartilhamento pelos artistas da admiração por determinadas obras de arte. Para citar um caso que me parece sugestivo neste contexto, mais de uma vez e em ocasiões diferentes conversei com ambos sobre as virtudes da famosa tela O Mulato, de Cândido Portinari. ao mesmo tempo em que é um referencial (modelo) para a expressão (artística) de tais preferências.

Neste contexto, é possível enxergar a identidade homossexual através de duas perspectivas complementares: como algo produzido e como algo produtivo. Podemos observar, por um lado, as tramas que tecem a identificação, que cristalizam um espectro diversificado de experiências em torno de uma categoria de classificação (gay). Por outro lado, é importante notar que a sociabilidade gay faz mais do que solidificar uma identidade: ela produz espaços, redes de solidariedade, novas gírias e usos da linguagem, padrões de consumo, plataformas de comunicação e, é claro, arte. Mesmo que sejam muitas vezes identificados com o universo gay, esses produtos da sociabilidade ultrapassam frequentemente esse universo e transformam a sociedade mais ampla.

Ao longo deste artigo refleti em diversos níveis sobre o lugar de marcadores sociais da diferença no processo de produção de uma forma específica de representação (o desenho de modelo nu). Procurei mostrar como certas diferenças estruturam a cena que permite essa produção, enquanto esta parece reordenar os significados envolvidos pelos sistemas classificatórios. A sessão de desenho delineia tanto identificações quanto diferenças, e a representação é fruto dessas ambivalências.

Observei como determinados aspectos da experiência social dos artistas são decisivos para o seu trabalho, ao mesmo tempo em que um vocabulário característico da arte é frequentemente apropriado para falar de tal experiência. Neste artigo, busquei me apropriar desses diálogos, interpretando as relações através da linguagem da antropologia. A contrapartida em linguagem artística desta reflexão antropológica não deixa de estar disponível: são os desenhos que fizemos naquela sessão com a presença do modelo nu.

Recebido: 15/04/2013

Aceito para publicação:30/09/2013

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  • ZAMBONI, Marcio. 2013b. "Herança, Distinção e Desejo: raça e homossexualidade em camadas altas". Fortaleza, IV Reunião Equatorial de Antropologia.
  • 1
    A reflexão aqui apresentada foi construída através de um longo diálogo com diversos pesquisadores. A primeira versão deste artigo foi apresentada no encontro "Numas em Maio", realizado na USP em maio de 2011, ocasião em que foi debatido pelas professoras Regina Fachinni e Heloísa Buarque de Almeida. Antes e depois da apresentação, mostrou-se sempre fundamental a orientação da professora Laura Moutinho e o debate com colegas do Numas (Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença), dentre os quais destaco Pedro Lopes e Valéria Alves. Na discussão de outra versão deste trabalho no "Círculo de Experiências de Campo", realizado na UFPA (por ocasião da missão discente do Procad USP/ UFPA), foi produtivo o diálogo com a professora Cristina Donza e com os colegas Ramon Reis, Rafael Noleto e Milton Ribeiro. Por fim, agradeço a leitura cuidadosa realizada por Gibran Teixeira Braga para o fechamento da atual versão.
  • 2
    O trabalho de campo envolveu tanto homens quanto mulheres. Apesar de acreditar que algumas das questões aqui discutidas possam se estender à experiência da homossexualidade feminina, decidi no espaço restrito deste artigo focalizar o universo masculino devido às particularidades da situação social específica que me proponho debater.
  • 3
    Este trabalho se insere no contexto da minha pesquisa de mestrado,
    Redes de Sociabilidade e Campos em negociação: homossexualidades e possibilidades de agência na articulação de certos marcadores da diferença.
  • 4
    Realizada nos anos de 2009 e 2010 na Universidade de São Paulo com o financiamento da Fapesp e sob a orientação da professora Laura Moutinho.
  • 5
    Pesquisa realizada em abril de 2008 no banco de teses da Capes, disponível no site
  • 6
    Sobre o uso do conceito de rede em contextos urbanos, ver Mitchell (1969). A respeito de sua utilização em pesquisas antropológicas sobre sexualidade, ver também Benítez (2010) e Fachini (2008).
  • 7
    Nomes fictícios.
  • 8
    Parte desse material foi transcrito com o apoio à pesquisa «Entre a exclusão, o reconhecimento e a negociação: (homos)sexualidade e raça em uma perspectiva comparada», financiada pelo CNPq (Edital Gênero – processo Nº 402916/2008-5 – coordenada pela professora Laura Moutinho).
  • 9
    Neste caso, o parentesco pode muito bem ter sido um elemento significativo: o fato de eu ter um lugar específico nos limites da rede pode desencorajar bastante um investimento mais incisivo sobre um jovem pesquisador. Talvez as mesmas características que me tornem confiável como pesquisador me tornem inconveniente como objeto de desejo.
  • 10
    A questão do HIV/AIDS no universo pesquisado começou a ser desenvolvida no meu segundo projeto de iniciação científica – "Entre memórias, dores e (re)negociações: o lugar da AIDS na trajetória de indivíduos que viveram o início da epidemia na cidade de São Paulo" – realizado na Universidade de São Paulo sob a orientação da professora Laura Moutinho e com o financiamento do CNPq.
  • 11
    Já estava há alguns meses realizando um curso de encadernação com a profa. Maria Isabel Garcia e dominava então a técnica para confeccionar cadernos mais adequados para artistas, que eram produzidos tendo em vista projetos particulares, com materiais de melhor qualidade e acabamento artesanal.
  • 12
    Também não contribuí para o pagamento do modelo – despesa que João divide com Bernardo nas sessões em que comparece. O valor gira em torno de R$ 70 por sessão, podendo ser bem mais alto no caso de modelos profissionais.
  • 13
    Não deixa de ser relevante para a inserção nesse campo o reconhecimento por parte das proprietárias da condição de classe em que me situo (estudante de uma instituição prestigiada e descendente de uma família de empresários da indústria, executivos e profissionais liberais) – expressa pelas experiências de vida e as narrativas familiares.
  • 14
    Um impressionante acúmulo deste tipo de capital caracteriza os artistas e se mostra fundamental para o exercício da sua profissão. A
    vernissage é, em certo sentido, o momento de expressão agonística do poder de mobilização dessas redes de relações.
  • 15
    Sobre os múltiplos significados que a amizade pode ganhar em diferentes contextos, ver Rezende (2002).
  • 16
    Ao contrário do que se observou em outros contextos (Pollak, 1985, 1990), a linguagem do parentesco não é mobilizada para descrever essas relações. Um grande amigo não é "como um irmão". Pelo contrário, essa amizade costuma ter um valor diferente (ou mesmo superior) daquele da família – a espontaneidade e a afinidade que a caracterizam se opõem à obrigatoriedade e à artificialidade atribuídas às relações familiares. Não parece estar presente também, no caso dessas amizades duradouras entre homens, a ambiguidade entre amizade e parceria potencial nos termos descritos por Regina Facchini (2008) no contexto da homossexualidade feminina em camadas médias. Ex-parceiros podem se tornar grandes amigos, mas a ambiguidade tende a diminuir muito e rapidamente depois que cessam as relações sexuais e o relacionamento se converte em amizade.
  • 17
    De acordo com Bernardo, o Ritz foi o primeiro lugar onde os "meninos bem criados de São Paulo" viveram a homossexualidade de forma mais aberta. Até meados da década de 1980, os espaços de sociabilidade homossexuais se concentravam no centro da cidade (como o Homo Sapiens) ou na região da Bela Vista (como o Medieval).
  • 18
    Um julgamento moral de natureza semelhante marcou meu próprio percurso pelo campo. Como um "menino" em meio a "coroas" estava sempre sob suspeita.
  • 19
    A semelhança da estética racial dos parceiros se mostra aqui mais como uma consequência do sistema mais amplo de produção e naturalização de desigualdades que preside a constituição dessas redes de sociabilidade – que acabam impermeáveis a indivíduos identificados como "não brancos" – do que uma preferência sexual e estética explícita por corpos "brancos".
  • 20
    Os trabalhos de Guimarães (2004 [1978]) e Fry (1982) ressaltam a importância que ganha em certos contextos urbanos a questão da simetria ou da igualdade no interior dos relacionamentos homossexuais a partir do final da década de 1970.
  • 21
    Para uma reflexão sistemática sobre a relação entre a epidemia e o uso das mídias digitais por homens que buscam relações sexuais e afetivas com outros homens, ver Miskolci (2013).
  • 22
    Não ignoro as diferentes perspectivas associadas a essas posições distintas. Para os efeitos deste artigo, no entanto, decidi não explorá-las para expor ao mínimo meus interlocutores.
  • 23
    Sobre as transformações nos espaços de sociabilidade homossexual na cidade, ver França (2007, 2010) e Green
    et al. (2005).
  • 24
    É importante lembrar das transformações que as redes sofreram no contexto do primeiro momento da epidemia de HIV. Por um lado, as perdas sofridas desarticularam certas relações, deixando "lacunas" nas redes. Por outro, a intensa solidariedade vivida nos períodos de grandes dores e graves enfermidades fortaleceu certas relações, constituindo vínculos particularmente profundos e duradouros (ver Zamboni, 2013a).
  • 25
    Essa diferença parece ser a mesma que diferenciava Bernardo dos novos frequentadores do Ritz quando ele tentou voltar a frequentar o lugar.
  • 26
    Sobre a dinâmica de diferenciação racial no universo homossexual de camadas altas em São Paulo, ver Zamboni (2013b).
  • 27
    Na famosa introdução de
    Os Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski (1978) compara a estrutura social descrita por meio da etnografia à anatomia do corpo humano. O trabalho etnográfico teria, então, três dimensões: esqueleto (atos culturais cristalizados), carne e sangue (fatos imponderáveis da vida real) e espírito (mentalidade nativa).
  • 28
    Sobre possibilidades de agência de jovens envolvidos em relações (homo)eróticas marcadas por desigualdades sociais, ver Moutinho (2006), Moutinho
    et al. (2010) e Simões
    et al. (2010).
  • 29
    É importante ressaltar que, se um desfecho possível para a tensão erótica que frequentemente caracteriza a relação entre modelo e artista é a concretização do ato sexual, este não é o único nem necessariamente o mais desejado ou valorizado pelos artistas. Nas palavras de João: "Se você me perguntar se eu troco uma trepada por uma sessão de modelo, eu [diria que] troco. Eu posso até ter desejo e atração e vontade de transar, mas eu acho que eu gozo mais desenhando". Assim, embora não se exclua a "vontade de transar" durante uma sessão de desenho de modelo nu, a atuação criativa que caracteriza o ato de desenhar pode proporcionar uma realização mais significativa.
  • 30
    Como o valor de uma sessão de modelo é amplamente negociável (em especial quando se trata de modelos amadores), as fronteiras entre o que poderia ou não figurar como prostituição, em alguns casos, são extremamente sutis. De uma forma ou de outra, o estatuto do artista parece ser capaz de atribuir significados positivos e produtivos a esses encontros. Em outras palavras: mais importante que classificar (como prostituição ou não) é compreender a riqueza e a complexidade das trocas envolvidas. Uma dinâmica semelhante foi descrita por Perlongher (1987) na relação entre certos michês e os "professores" (categoria na qual o próprio autor parecia se inserir): homens mais velhos e intelectualizados que teriam outros atrativos além do dinheiro.
  • 31
    É interessante ver, paralelamente, como esse sistema de preferências significa também o compartilhamento pelos artistas da admiração por determinadas obras de arte. Para citar um caso que me parece sugestivo neste contexto, mais de uma vez e em ocasiões diferentes conversei com ambos sobre as virtudes da famosa tela
    O Mulato, de Cândido Portinari.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      15 Abr 2013
    • Aceito
      30 Set 2013
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