Acessibilidade / Reportar erro

Responsabilidade, consentimento e cuidado. Ética e moral nos limites da sexualidade

Responsibility, consent and care. Ethics and morals at the limits of sexuality

Responsabilidad, consentimiento y cuidado. Ética y moral en los límites de la sexualidad

Resumo

Neste artigo pretendo apresentar alguns dos resultados de uma pesquisa de pós-

-doutoramento, na qual acompanhei grupos virtuais e encontros presenciais de interlocutores adeptos de práticas sexuais tidas como “de risco”, tais como o sexo bareback, em eventos exclusivos para homens cisgêneros. O objetivo aqui é analisar um certo regime de regulação ético-moral percebido em campo relativo à preocupação de se afirmar que essas práticas sexuais partem de valores como a “responsabilidade”, o “consentimento” e o “cuidado”. Nas dinâmicas observadas, esses valores se (re)constroem e fissuram a partir do atravessamento de elementos diversos como drogas e medicamentos, além de diversos tensores libidinais. É sobre a produção contextual desses conceitos e a sua relação frente às atuais políticas pública de prevenção que pretendo me debruçar no artigo.

Palavras-chave:
bareback; prevenção; risco; PrEP; HIV/Aids

Abstract

This article presents some results of a postdoctoral research, in which I followed virtual groups and face-to-face meetings of interlocutors engaging at sexual practices considered “risky”, such as bareback sex, in events exclusive for cisgender men. The objective here is to analyze a certain regime of ethical-moral regulation perceived in the fieldwork regarding a concern to assign to these sexual practices values such as “responsibility”, “consent” and “care”. In the observed dynamics, these values are (re)constructed and fissured at the intersection of diverse elements such as drugs and medications, in addition to several libidinal tensors. This article addresses these concepts contextual production and their relation to current public prevention policies.

Keywords:
bareback; prevention; risk; PrEP; HIV/Aids

Resumen

En este artículo tengo la intención de presentar algunos de los resultados de una investigación posdoctoral, en la que seguí grupos virtuales y reuniones cara a cara de interlocutores que eran expertos en prácticas sexuales consideradas “en riesgo”, como el sexo a pelo, en eventos exclusivos para hombres cisgénero. El objetivo aquí es analizar un cierto régimen de regulación ético-moral percibido en el campo con respecto a la preocupación de afirmar que estas prácticas sexuales parten de valores tales como “responsabilidad”, “consentimiento” y “cuidado”. En la dinámica observada, estos valores se (re) construyen y descifran a través del cruce de diferentes elementos, como drogas y medicamentos, además de varios tensores libidinales. Se trata de la producción contextual de estos conceptos y su relación con las políticas actuales de prevención pública que pretendo abordar en el artículo.

Palabras clave:
bareback; riesgo; PrEP; VIH / SIDA

Introdução1 1 Ao longo do texto utilizo aspas para citações e termos ou expressões êmicas, assim como para indicar o sentido metafórico e múltiplo de certas palavras. O itálico será utilizado para palavras estrangeiras, conceitos analíticos (seguidos da referência), instituições públicas e privadas, títulos de obras, nomes de protocolos e de políticas públicas, bem como para enfatizar alguns pontos do texto.

Nesse artigo apresento algumas das conclusões obtidas através de uma pesquisa etnográfica referente à um projeto de pós-doutorado em andamento iniciado na metade de 2017, no qual acompanho alguns grupos de conversas online (seja em aplicativos de celular como WhatsApp, ou alguns fóruns e sites) e seus respectivos encontros de sexo coletivo, nas quais problematizo a tensão prazer e risco encontrada nessas práticas. O foco nesse texto estará em grupos que organizam encontros e debates sobre sexo bareback (sem preservativo2 2 Também acompanho grupos de praticantes do chamado sexo pig. Para uma análise sobre a prática ver Barreto (2019b). ). Os encontros são exclusivos para homens cisgêneros (ainda que eventualmente pessoas transgêneros como travestis e transexuais sejam adicionadas às redes virtuais, sua participação nos encontros presenciais são vedadas3 3 Apesar desse recorte de gênero nos encontros, não há uma unanimidade com relação à exigência de uma performance masculina normativa. Dessa forma, não é incomum encontrar homens que gostam de usar certos adereços femininos (calcinhas, camisolas e outras lingeries), de serem chamados no feminino durante as interações, de serem tratados “como mulheres” (no sentido de uma leitura machista de submissão que pode envolver a encenação de atividades domésticas como limpeza e de “servir ao seu homem”) dentre outras maneiras de uma feminilização pela chave da humilhação. Essa contradição também se percebe pela fetichização de travestis e homens transexuais, principalmente nas conversas nos grupos virtuais. ). Os grupos virtuais costumam contar com até 250 participantes e seus encontros presenciais (marcados na cidade do Rio de Janeiro em uma frequência mensal) podem variar bastante de acordo com os interesses, de uma dinâmica de apenas uma dupla, ou um trio até de eventos festivos com mais de 100 participantes. Trabalho aqui, portanto, com dados produzidos numa interlocução em um continuum on/offline (Beleli, 2015BELELI, Iara. 2015. “O imperativo das imagens: construção de afinidades nas mídias digitais”. Cadernos Pagu, nº 44, p. 91-114.), tanto com os registros das interações nas plataformas virtuais quanto do trabalho de campo realizado nos eventos acompanhados4 4 A minha presença nos grupos e eventos foi autorizada por todos os seus respectivos organizadores, que não só aceitaram me conceder entrevistas como também indicaram outros participantes para essa etapa mais aprofundada e individual. As falas dos interlocutores foram recuperadas a partir das minhas notas em um caderno de campo que era preenchido após os eventos e dos prints das conversas nos grupos virtuais. .

Esses espaços de troca e encontros orgiásticos me parecem um território privilegiado para pensarmos as questões de prazer, risco e limites, já que é justamente sobre o manejo desses elementos, do controle de si com o cuidado e a imersão nos êxtases e em estados de alta intensidade que se trata essas práticas (Barreto, 2019aBARRETO, Victor Hugo de Souza. 2019a. “Limites, fissura, prazer e risco em festas de orgia para homens”. MANA, vol 25, nº 1, p. 009-037.). Daí entender o que passa nesses espaços como acontecimentos que estariam na borda do que Gregori (2010: 3GREGORI, Maria Filomena. 2010. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. Tese de livre docência, Departamento de Antropologia, IFCH, Universidade Estadual de Campinas.) chama de limites da sexualidade, que seria “a zona fronteiriça onde habitam norma e transgressão, consentimento e abuso, prazer e dor”.

Esse artigo, portanto, trata de uma fronteira complexa e que, como espero demonstrar ao longo do texto, também porosa. Aquela entre o prazer e o risco, ou do prazer no risco em certas práticas sexuais. E isso já coloca para o autor alguns desafios que é o de definir “prazer”, “risco” ou “cuidado” sem que essas catego rias correspondam ou sejam capturadas por um sentido “estatal” dado a elas. Falar de práticas sexuais “de risco”, de “cuidado” e “prevenção” nos termos do Estado é concordar não só com uma classificação da qual deriva políticas públicas de saúde e epidemiológicas que podem (e devem) ser problematizadas em vários níveis, como também corresponder a uma biopolítica (Foucault, 2009FOUCAULT, Michel. 2009. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. 176 p.) que atende historicamente ao controle de certas populações específicas (seja em termos de gênero e sexualidade, como também de raça, classe, idade e etc.). A maneira como esses termos irão aparecer nesse trabalho se referem àquilo que meus interlocutores atendem ou entendem enquanto tais, mesmo que os sentidos dados por eles também correspondam ou sejam atravessados por esses mesmos sentidos “estatais”.

No que diz respeito ao campo em questão isso pode ser visto através das contemporâneas políticas públicas referentes ao HIV/Aids. Na quarta década de epidemia assistimos a recente implementação de novos protocolos, a partir da recomendação de agências internacionais, principalmente aquelas referentes a TasP - Tratamento enquanto Prevenção que afetam e impactam diretamente o campo etnográfico em questão. Tornando-se necessário explorar os efeitos, a recepção e a própria (res)significação nesses contextos dessas políticas em determinados usos de uma tecnologia farmacêutica, que são os medicamentos utilizados para PEP (Profilaxia pós-exposição) e PrEP (Profilaxia pré-exposição)5 5 De acordo com o site oficial do governo brasileiro (http://www.aids.gov.br) a PrEP (cuja distribuição pelo SUS começou em Dezembro de 2017) é usada como estratégia de intervenção para a prevenção da transmissão entre “populações prioritárias” - homens que fazem sexo com homens (HSH), gays, profissionais do sexo, travestis, transexuais, pessoas que usam drogas, pessoas privadas de liberdade e em situação de rua. A PrEP é o uso diário de antirretrovirais em pessoas não infectadas, mas que estão em risco muito elevado de infecção pelo HIV, de forma a bloquear a aquisição do vírus. E a PEP é uma medida de prevenção que consiste no início do uso de medicamentos até 72 horas decorridas de uma provável exposição ao vírus HIV e já é utilizada, basicamente, em três situações: em casos de risco de contaminação por HIV de profissionais de saúde na atividade laboral, devido a acidentes; em casos de estupro; e em casos de relações sexuais em que ocorre falha nas medidas de prevenção, para reduzir o risco de transmissão do HIV. .

Minhas incursões no campo revelam que o debate sobre esses remédios são a todo momento acionados e que um número significativo de interlocutores afirmam já fazer uso dessas tecnologias. O que não é algo que seja livre de conflitos com os outros participantes dos grupos. Em um deles, por exemplo, após uma serie de postagens de vídeos com interações sexuais sem camisinha um dos participantes disse: “O pessoal desse grupo só transa sem proteção???” e recebeu como resposta de outro participante: “PrEP é proteção. Espero ter ajudado.” O argumento de que a PrEP não tem efeito sobre outras ISTs além do HIV, também costuma receber contra argumentos:

Quem usa PrEP sabe que ela só tem proteção para HIV. Da mesma forma que mulher que toma anticoncepcional sabe que só protege da gravidez. Você fica perguntando pra mulher que toma anticoncepcional o porque ela não usa camisinha? Você é impertinente, só isso!

Percebe-se que alguns interlocutores apontam uma sensação de maior “segurança” ou mesmo “liberdade” para as interações, ainda que as dúvidas sobre a eficácia e formas de uso desses remédios seja motivo de debate e mesmo de conflito6 6 Uma das questões que as primeiras aproximações com o campo já apontou e que será preciso aprofundar seria a descrição e problematização um pouco mais detalhada sobre a diferença entre os usos da PEP e da PrEP, até mesmo nas suas formas de acesso e em relação ao discurso e comportamento da equipe médica. Os interlocutores apontam que a PEP costuma ser distribuída em postos de saúde específicos para casos emergenciais em que o paciente precisa buscá-la se utilizando de um discurso de “acidente” (com o preservativo, por exemplo) ou de “erro”, e que acabaram passando quase que por um “tribunal de expiação de culpa” ou de “lição de moral” por parte de técnicos como psicólogos e enfermeiros, enquanto que a PrEP seria visto como uma atitude ou escolha mais “responsável”, de maior comprometimento com uma medicação que precisa ser tomada diariamente. . Em qualquer visita rápida aos grupos virtuais e fóruns de discussão, já é possível perceber a grande maioria dos participantes que são usuários desse tratamento se identificando enquanto tais, o que revelaria, pelo menos, a criação de novos posicionamentos, categorias, hábitos e mesmo de roteiros sexuais (Gagnon, 2006GAGNON, John. 2006. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond. 456 p.). A ideia de uma maior “libertação” ou “liberdade” proporcionada pela PrEP, tal como descrita por alguns interlocutores, revelam mudanças na hierarquia dos riscos elaborada nesses contextos? Como as práticas de cuidado e prevenção são afetadas com a inserção desses medicamentos? Afinal, essas novas políticas permitem uma “rearrumação das categorias”, como preconizam as cartilhas médicas recentes (Bezerra, 2017BEZERRA, Vladimir. 2017. “Práticas e sentidos da sexualidade de alguns usuários de PrEP”. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, nº 23, p. 140-160.) ?

O objetivo aqui é analisar um certo regime de regulação ético-moral percebido em campo relativo à preocupação de se afirmar que essas práticas sexuais partem de valores como a “responsabilidade”, o “consentimento” e o “cuidado”. Nas dinâmicas observadas, esses valores se (re)constroem e fissuram7 7 Uso aqui o conceito de fissura trazido por Díaz-Benítez em sua pesquisa sobre filmes pornográficos de humilhação. Os momentos de “fissura” como aqueles instantes de fronteira, nos quais as práticas (ainda que consentidas) “alcançam uma intensidade que não era possível prever ou antecipar” e “que rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções que evocam mais perigo do que prazer” (2015: 4). a partir do atravessamento de elementos diversos como drogas e medicamentos, além de diferentes tensores libidinais8 8 A ideia de tensor libidinal é inspirada nas análises de Perlongher (1987), na qual o autor apon ta como certos marcadores sociais da diferença atuam tensionando libidinalmente desejos e práticas sexuais. . É sobre a produção contextual desses conceitos que pretendo me debruçar no artigo.

Um ponto importante é que apesar de separar esses valores em itens ao longo do texto, o leitor perceberá que eles funcionam nesse campo agenciados uns aos outros, sendo confundidos ou mesmo usados como sinônimos. A ideia de responsabilidade acaba tomando um peso maior, por ser entendida como um fundo comum do qual os outros valores partem e por, como também argumentarei, se conectar a um debate que aponta o neoliberalismo como atual forma de governamentalidade e de consequente produção de subjetividade.

Consentimento

O elemento que se convencionou como principal critério para a separação entre o ato permitido e o abusivo (ou mesmo como legal e legítimo) é o “consentimento”. Elemento fundamental como ferramenta de legitimação de determinadas práticas sexuais como o BDSM9 9 BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) é a sigla que agrupa um conjunto de práticas eróticas que ritualizam jogos de poder. (Cf. Zilli, 2009ZILLI, Bruno. 2009. “BDSM da A a Z: A despatologização através do consentimento nos ‘manuais’ da internet”. In: DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. e FÍGARI, C. Prazeres Dissidentes. Rio de Janeiro, Garamond, p.481-508.); daí a sigla que se convencionou chamar SSC (são, seguro e consentido). Não haveria nenhum tipo de abuso ou violência sexual, já que se tratariam de práticas seguras nas quais todos ali participam conscientes e consensualmente. Como afirma Lowenkron (2015: 35LOWENKRON, Laura. 2015. “Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual”. Cadernos Pagu , vol. 45, p. 225-258.), a ideia de consentimento é herdada de um determinado paradigma liberal, “nos princípios de livre disposição de si e autonomia da vontade do sujeito racional responsável e senhor de si (...) no ideal individualista moderno”.

O que a princípio poderia ser lido como uma “atualização” do SSC, percebo em campo muito mais uma forma singular de produção de valores ético-morais territorializada na dinâmica e na performance de desejos e prazeres voltada para a gestão do excesso, característica central das práticas desse campo (Barreto, 2019bBARRETO, Victor Hugo de Souza. 2019b. “Sexo pig: algumas notas sobre prazeres extremos”. In: OLIVEIRA, T. e MAIA, H. T. (orgs.), Práticas Sexuais: Itinerários, Possibilidades e Limites de Pesquisa. Salvador: Editora Devires, p. 125-151.). O BDSM lutou durante muito tempo pela legitimação através de um regime discursivo que pregava um conjunto de “boas práticas”, na qual a segurança e o consentimento figuravam como centrais10 10 O que não quer dizer que elas fossem livres de conflitos e disputas (Cf. Facchini e Rossetti, 2013). . Já as práticas “de risco” que trago são justificadas por um certo direito de “cada um fazer o que se quer com a sua vida, seu corpo e seu prazer”. Inclusive de se expor à certos riscos, caso esse seja o desejo. De uma aposta na responsabilidade de si.

É claro que a prática sexual sem preservativo, o contato direto com fluidos corporais do outro, ou aquelas que experimentam os limites com relação à violência, jogos de humilhação e a resistência à dor são empreendimentos de risco, tal como conceitua Gregori (2010: 4GREGORI, Maria Filomena. 2010. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. Tese de livre docência, Departamento de Antropologia, IFCH, Universidade Estadual de Campinas.), um evento no qual “o risco à integridade física e moral das pessoas é uma possibilidade aberta e não dada de antemão”. A intenção não é a de invisibilizar os riscos em prol de uma valorização do gozo e dos prazeres e nem dizer que os meus interlocutores façam estritamente isso. Ainda mais que muito do desejo e do prazer nas práticas analisadas aqui vem justamente de certa erotização dos riscos e perigos e não do desconhecimento deles.

Percebo, inclusive, nos eventos que a escolha do uso em si do preservativo é algo que costuma ser decidido ali no próprio jogo contextual de cada interação. O fato de você estar participando de um evento bareback, não implica na obrigação de não usar o preservativo e que isso seja permanente em todas as relações. Em todos os eventos que estive presente percebi que o uso da camisinha podia ser negociado continuamente entre os participantes11 11 Além disso, não é a minha intenção entrar no debate sobre a classificação (acusatória ou não) do bareback para o sexo entre homens sem camisinha. Parto de um certo entendimento do bareback enquanto “cultura”, ou seja, um universo já circunscrito por práticas, simbologias, tags e mesmo de um segmento de produção mercadológica. .

Mesmo que alguns interlocutores gostem de afirmar que são adeptos de práticas “livres”, “libertárias”, “sem limites”, “sem frescuras” e etc; esse “poder tudo” parte de algumas interdições específicas que percebi nos grupos e eventos: são definitivamente proibidas a presença e a troca de qualquer material pornográfico que envolvam menores de idade, além de qualquer discurso de incitação a pedofilia; qualquer prática que não parta de um consentimento mútuo dos envolvidos (e nesse sentido o sexo com animais acaba sendo banido da maioria dos grupos, mas principalmente vídeos de desastres e tragédias, e as raríssimas tentativas de postar algo relacionado à necrofilia) e qualquer atividade que infrinja alguma lei. O material com encenação de atos não consentidos, como estupros, por exemplo, só são aceitos na medida em que se percebe como trechos de filmes pornográficos, ou seja, em que há subentendido o fato de ser uma produção comercial com atores que aceitaram atuar naquela performance. Já a questão do fetiche do incesto é debatida livremente tornando os grupos espaços seguros para o relato de fantasias eróticas com parentes como primos, tios, cunhados, irmãos ou pais.

O valor do consentimento nesse campo, dessa forma, se dá pela ideia de riscos que são assumidos conscientemente. Aqui caberia algumas palavras sobre a questão do fetiche do “carimbo”. A polêmica que se iniciou a partir de um blog da internet e que ganhou repercussão após algumas matérias de tom sensacionalista no ano de 2015. O blog tratava do compartilhamento de textos, fotos e vídeos sobre a prática bareback e incentivando que pessoas soropositivas transmitissem o vírus (que “carimbassem”) de propósito a outras, a partir de técnicas como furando a camisinha antes do ato ou retirando o preservativo durante o sexo sem que o parceiro perceba. A intencionalidade da contaminação retirando o poder de consentimento do outro. Muitos pesquisadores da área relativa à saúde se pronunciaram para desmistificarem alguns sensos comuns sobre a ideia de contaminação colocados ali e do risco de que essa midiatização sensacionalista gerasse um pânico moral e uma perseguição para as pessoas que convivem com o HIV e com aque les que, costumeiramente, são associados à doença: homossexuais, transgêneros e profissionais do sexo.

Essa questão mereceria um espaço de desenvolvimento maior, mas é importante destacar o posicionamento dos organizadores dos eventos sobre essa questão:

Quem curte foder sem preservativo sabe dos riscos e consequências e as assume sem problemas e neuroses! Em tempos de PEP e PrEP só pega algo quem quer! Ninguém aqui é inocente. Praticar sexo sem camisinha não é considerado crime. O que é crime, segundo os artigos 129, 130 e 131 do Código Penal Brasileiro, é uma pessoa transmitir propositalmente qualquer doença sexualmente. O que num grupo bareback não se encaixa! Não temos a obrigação de avisar nada! Se o sexo é consensual sem preservativo cada um sabe das suas responsabilidades. Outra coisa, você até pode ter o fetiche de carimbar ou ser carimbado, mas como que isso é possível hoje em dia? Quem é soropositivo, toma o coquetel, fica com carga viral indetectável e não transmite a doença; quem não é soropositivo toma PEP ou PrEP e não pega! (Felipe12 12 Todos os nomes citados no texto são fictícios e os trechos de suas falas foram autorizadas em entrevistas pelos respectivos participantes. , branco, produtor de eventos, 35 anos)

É pelo valor do consentimento, por exemplo, que um dos organizadores das festas fez questão de separar a prática bareback daquilo que ficou conhecido como “carimbadores”.

A chave da diferença é o consentimento. Essa coisa de você mentir, dizer que não é soropositivo, que não tem nada, ou então, pior ainda, furar camisinha antes, tirar escondido na hora e tal, isso aí tá errado e tem que ser crime mesmo. Faço questão de demarcar essa diferença. É claro que isso não quer dizer que não exista esse fetiche do vírus ou da doença. Tem pessoas sim que querem se contaminar, que tem prazer nisso e tal, eu mesmo várias vezes, transando com carinhas eles pedem: “Me dá leite podre”, “Vitamina”13 13 “Vitamina” é uma expressão utilizada nesses grupos para nomear o esperma que, possivelmente, contenha o vírus HIV. Porém, também vi essa expressão ser utilizada em situações que não se relacionavam à algum desejo de contaminação, mas sim à um certo valor nutritivo do esperma em si, de um desejo de se alimentar pelo fluido do outro. Para uma análise sobre a circulação de fluidos nesses contextos, ver Barreto (2019c). e essas coisas na hora que tá gozando e eu entro no jogo: “Claro, dou sim, toma aí”. Tudo um jogo, porque eu sou soropositivo, mas estou indetectável e não tem como contaminar ninguém (risos). (Luís, negro, advogado, 40 anos)

O valor compartilhado pelo consentimento não é isento de situações de conflitos entre os participantes. As autorizações mútuas dadas para o início ou durante as interações nos encontros presenciais dificilmente são verbalizadas. A aproximação e o consentimento das práticas costumam ser feitas através da troca de olhares, de gestos que trazem para perto o que se quer ou que afastam o que é indesejado, de pequenos sons ou gemidos que são traduzidos como: “Sim, você pode fazer isso” ou “Não, eu não quero”. Uma linguagem muito mais corporal, portanto, que poucas vezes faz uso do enunciamento de frases, perguntas ou respostas14 14 Sobre a “linguagem corporal” em práticas sexuais coletivas, ver etnografias de Díaz-Benítez (2008) e Barreto (2017a). .

Nesse sentido, essas autorizações podem ficar um pouco nebulosas com o aumento da intensidade das práticas sexuais. Seja porque pode-se perder um pouco o controle sobre os limites da interação, seja porque não se quer ser a pessoa que vai “quebrar” ou “esfriar” o andamento da prática em questão. Não foram poucos os interlocutores que me disseram que em algumas interações coletivas nos encontros se sentiram constrangidos a transarem com certos parceiros, mesmo sem o desejarem, porque não queriam acabar com a cena dizendo “não”. Um exemplo clássico desses espaços é a interação de um casal com um terceiro parceiro. Este só se sente atraído por um da dupla, mas “acaba fazendo” com aquele que não se deseja para não causar um desconforto maior. Ou mesmo no exemplo da interação com uma quantidade de parceiros maiores:

Você pode perceber: a putaria começa sempre quando alguém dá o start transando. Alguém começou a meter, pronto, já junta uma galera em volta pra participar junto do casal. E é isso mesmo, o cara tá dando ali, então você já passa a mão, já coloca para te chupar, já entra na fila para meter também. Você nem sabe mais quem tá fazendo o que… às vezes você nem quer fazer com fulano, mas já tá ali né. Aqui é uma orgia. Então não tem essa de transar escondido ou sozinho. Quer fazer só você e outra pessoa vai para um motel! Aqui é todo mundo junto. (André, branco, taxista, 28 anos)

Tampouco o valor do consentimento é livre das fissuras que podem ocorrer durante as interações. Um dos casos extremos foi a de uma acusação de estupro numa das festas coletivas que foi compartilhada no grupo de conversas do evento. Pedro (negro, estudante de psicologia, 25 anos) fez uma postagem relatando que no último evento fez uso de ketamina15 15 Também conhecida como “Key”, “Keyla”, “Keta”, “Cetamina”, “Special K” e “Vitamina K”, é um anestésico às vezes citado como “tranqüilizante de cavalo”. Substância legal para fins medicinais, mas de uso controlado e ilegal para outros usos. Costuma ser usada como psicotrópico em danceterias ou durante o sexo. Nesse contexto é consumida em forma de pó que pode ser cheirado ou diluído em bebidas (preferencialmente não-alcóolicas). Causa uma sensação de flutuamento. Em excesso ou má administrada pode causar um “apagão” conhecido como ‘K hole’. com álcool, acabou desacordado e nu após uma interação sexual em uma das camas coletivas e recobrou a consciência quando estava sendo penetrado contra a sua vontade por outro participante que não conseguiu identificar. A postagem era uma reclamação diante da “falta de ação” da organização do evento. Esta se defende no grupo dizendo que forneceu o apoio possível na ocasião ao tomarem conhecimento do fato, mas que com a impossibilidade de identificação do agressor, pouco puderam fazer, apesar de terem se oferecido para acompanhá-lo em alguma delegacia, o que Pedro recusou naquele momento.

As posições diante da postagem de Pedro foram diversas. Houve todo um debate sobre a questão do estupro nesses eventos, a importância do consentimento e de não se aproveitar de pessoas que não podem ou não conseguem autorizar a interação. Mas também houve um debate sobre a “irresponsabilidade” e “falta de cuidado” de Pedro no uso de substâncias e em sua aparente exposição voluntária à uma situação de risco (“Mas pra que que se entope de droga e vai fuder no meio da galera, gente?”; “Isso que dá não saber brincar. Essas crianças de hoje em dia só quer fuder doidona, aí acaba acontecendo isso”; “Não é culpabilizando a vítima não, mas eu entendo que quem está no meio da bagunça está pra jogo. Tem umas quinze pessoas misturadas na cama, na escuridão, como é que eu vou saber quem tá de boa e quem não tá?”).

Cuidado

Em trabalho anterior (Barreto, 2017bBARRETO, Victor Hugo de Souza. 2017b, “Risco, prazer e cuidado: técnicas de si nos limites da sexualidade”. Revista Avá, nº 31, p. 119-142.) pude apontar o quanto formas, maneiras ou técnicas de cuidado de si atravessam essas práticas a todo momento, seja “negociando”, “gerenciando” ou “reduzindo” os riscos e os perigos constituintes dessas interações, produzindo uma verdadeira “ciência do concreto” local. Busquei destacar ali o quanto a ideia de “prevenção” ou “cuidado” nesse contexto observado é atravessado por uma série de experiências pessoais e “saberes encorporados”, nas quais até mesmo sentidos como a visão, o gosto e o cheiro servem como categoria científica para identificar qualidades e perigos. O quanto “se expor ou não a algo é um ‘cálculo infinitesimal’ feito a partir do prazer que se sente, da intensidade da interação e do que se percebe como riscos menores ou maiores” (2017b: 130BARRETO, Victor Hugo de Souza. 2017b, “Risco, prazer e cuidado: técnicas de si nos limites da sexualidade”. Revista Avá, nº 31, p. 119-142.).

Foi através dessa “teoria nativa” que procurei pensar concepções estabilizadas de saúde, doença, cuidado e etc. As técnicas de cuidado de si que são apontadas por meus interlocutores compõem parte significativa do que poderíamos entender, sob o ponto de vista dos estudos da Saúde, como seus itinerários terapêuticos (Cabral et. al, 2011CABRAL, Ana Lucia et al. 2011. “Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil”. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 16, nº 11, p. 4433-4442.). Assim como as fronteiras de controle de si, de êxtase e intensidade são negociadas e tensionadas a cada interação, o mesmo pode ser observado com relação à uma construção da ideia de doença nessas práticas sexuais. Se aproxima daquilo que Moll (2002MOLL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: London. 211 p.) afirma sobre a doença enquanto um processo que se constrói numa prática, relacionalmente e contextualmente.

Ser saudável nesse contexto é se cuidar e se proteger não dentro de uma lógica ou discurso “estatal” necessariamente, mas sim a partir de um entendimento no qual a responsabilidade (de si e de consciência das possíveis consequências) esteja presente. Um território feito de escolhas livres, em que as opções são dadas (mesmo que você não as conheça cabe a si inclusive procurar por elas). A saúde tem a ver com o prazer que essa liberdade permite, uma qualidade de vida na qual esse prazer esteja presente, que não seja preciso abrir mão dele ou de qualquer outro.

Os cuidados observados durante o trabalho de campo estão presentes em vários âmbitos das práticas sexuais, seja como forma de intensificá- las ou como preservação do corpo ou da saúde, antes, durante e depois das mesmas. Há toda uma ideia do que se pode ou não fazer, do que “pega” ou “não pega”, do que é perigoso ou não. Analgésicos, antiinflamatórios, antibióticos, pomadas, vermífugos, tratamentos de prevenção para ISTs e HIV/Aids como PEP e PrEP são, dentre outros, elementos agenciados em toda uma medicina singular que é produzida nesse contexto. Seja como contribuição à efervescência, em sua contenção, em sua “redução de danos” ou “gerenciamento de riscos”, essas substâncias acionadas pelos interlocutores possibilitam formas mais “seguras” de experimentação dos excessos das práticas e sua fruição.

Como no exemplo de Rodrigo (branco, designer, 30 anos). Soropositivo, indetectável há muitos anos e que diz tomar seus remédios “religiosamente”. Faz exames de ISTs e carga viral periodicamente e acompanhamento médico constante. Para ele, essa é uma forma de cuidado e proteção. Não tem problema nenhum de falar sobre sua sorologia e sempre que perguntam responde. Diz que houve um tempo em que uma grande parte dos frequentadores desses eventos também era de soropositivos e que, atualmente, o público foi se diferenciando com a possibilidade do tratamento pela PrEP. A camisinha para ele funciona assim: quando é ativo não usa (“Não consigo, me brocha, só se tiver com um tesão absurdo”) e quando é passivo deixa a escolha para o parceiro, sempre usando bastante lubrificante à base d’água para evitar machucados. Para ele, “abrir o jogo” sobre a sua condição para os parceiros sexuais já é uma primeira forma de cuidado e prevenção na interação.

Toda vez que falo de PrEP e PEP no bareback me dizem que só evita o HIV. Explico que o acompanhamento regular dessas profilaxias exi gem exames que te permitem descobrir outras ISTs logo no início. Tenho amigos médicos infectologistas que frequentam as festas e tem o seguinte método: tomam uma dose única de azitromicina de 2000mg que previne contra sífilis, clamídia, gonorréia e uma outra que esqueci. Você pode conseguir uma receita com alguém ou ir num posto e tomar uma injeção até 72 hrs após a exposição. E para hepatites existem as vacinas. Um segundo ponto é que essas coisas são riscos menores que cada um está exposto em qualquer situação e que podem ser curadas. Não é uma coisa incontrolável. Qualquer um pode pegar qualquer coisa de qualquer maneira. Uma gripe, sapinho, uma infecção, uma fissura anal, um machucado no pau, enfim…Você pode até ter uma infecção na garganta de tanto beijar na bocaI Vai morrer disso?

Dessa forma, nesse campo, o risco é entendido como um elemento constituinte, um tensor libidinal constantemente presente nas interações. Em seu texto sobre risco e cuidado no bareback, Tomso (2004TOMSO, Gregory. 2004. “Bug Chasing, Barebacking, and the Risks of Care”. Literature and Medicine, vol. 23, nº 1, p. 88-111.) problematiza o julgamento moral embutido na pergunta “Por que eles fazem o que fazem?” e busca um entendimento que fuja às tentativas de captura patologizantes, moralistas e mesmo criminosas. De buscar perceber que para algumas pessoas “as práticas de risco são mesmo afirmativas de um poder de agência sobre a própria vida e de não querer abrir mão de certos prazeres, por mais perigosos que eles sejam” (2004: 103-104).

É importante chamar atenção para o fato de que a dimensão do cuidado não se trata necessariamente de um cuidado ao/com o outro, mas consigo mesmo. Como lembram no grupo: “Que o outro cuide de si mesmo, porque cada um é responsável por si. E se não se cuidar está se arriscando a pagar um preço alto por isso”. E esse “preço” também é entendido como um problema individual, consequência de atos feitos a partir de escolhas e decisões próprias e livres. Isso é repetido como uma máxima diversas vezes nos grupos e nos encontros:

Você não pode confiar que alguém te diga que não tenha nada ou que tome seus remédios certinho, vai saber…mas você pode tomar os seus. Eu não posso tomar cuidado pelo outro.

O cuidado, portanto, está totalmente relacionado à responsabilidade individual; à consciência de cada um. Que vai desde pesquisar e ler, buscar e ter informações de cuidado e prevenção até “correr atrás”. Daí o elemento que costume causar fissuras nesse valor seja o da “confiança”. Confiar no outro é abrir mão do próprio cuidado. Logo, se arriscar.

Pergunte aos médicos, vá nos sites do governo, amigos e conhecidos que saibam e etc. Você pode ir nos postos conseguir os remédios, entrar em algum programa de testes ou pesquisa do governo, comprar em sites ou encomendar pela internet, enfim, a informação está aí. Cabe a você. Quer se jogar? Seja responsável e consciente e aguente as consequências. Teve um cara com quem eu ficava, um comissário de bordo que depois veio me falar que descobriu que estava soropositivo. Eu respondi: “Mas claro, você achou que todo mundo ia ser legal como eu que te falei que sou e estou indetectável?” Não dá para confiar em todo mundo e em qualquer um. Você tem que fazer o seu. Foi irresponsável? Então pague o preço (Rodrigo, branco, designer, 30 anos)

Responsabilidade

É interessante notar que a responsabilidade seja o valor mais importante de legitimação de práticas sexuais tidas como “de risco”. Lembro que em minha primeira visita a um dos eventos bareback marcados pelo grupo, numa sauna da cidade do Rio de Janeiro, dois interlocutores amigos estavam na área de armários se despindo e conversando sobre assuntos aleatórios. Um deles termina de se despir primeiro e, vestindo apenas uma cueca jockstrap16 16 A peça consiste normalmente em uma cinta elástica trazendo atrás somente duas tiras entre as pernas que sustentam a parte de baixo das nádegas e deixam a “bunda” de fora. , se dirige sozinho às áreas das cabines e das interações sexuais. Enquanto o amigo se distancia, o outro o chama e lhe diz: “Juízo, hein!”. E este volta-se e responde sorrindo: “Pode deixar que eu vou perder ele”.

Essa imagem me marcou principalmente pela performance desse interlocutor que chamarei aqui de Flávio. Flávio é branco, tem 35 anos, é gaúcho, mas trabalha como advogado no Rio. Chama a atenção por ter um corpo e performance dentro dos padrões normativos de masculinidade. É uma figura que costuma ser apontada como alguém que realmente gosta de “se jogar”. Nas festas Flávio se postava na beirada das camas, de jockstrap e aceitava todos que quisessem penetrá-lo indiscriminadamente, com ou sem camisinha (deixava a escolha para o outro). Me dizia que o seu maior prazer era sair das festas com a máxima quantidade de esperma acumulada em seu corpo.

Em um grupo de Whatsapp (no qual Flávio não estava presente) sua performance foi motivo de debate. Um dos participantes condenou o comportamento de Flávio como “irresponsável” e “perigoso”. Foi imediatamente recriminado pelos outros participantes e expulso do grupo por ter ferido uma das regras principais ali: julgamento preconceituoso. O “juízo” de Flávio era dele e só dele, inclusive se quisesse perdê-lo.

Eu não entendo por que certas pessoas entram nesses grupos se tem esse tipo de pensamento. Não tem nenhuma criança aqui, é todo mundo adulto e responsável pelo que quer e pelo que curte. Se você não gosta do que o outro gosta, só não fazer. Ninguém obriga ninguém a nada. Pra que julgar? (Mário, negro, professor de academia, 35 anos)

O valor da responsabilidade é produzido nesses espaços como um âmbito individual no qual cada um tem o livre arbítrio para suas escolhas e as decorrentes consequências delas. Há um entendimento de que não cabe a responsabilização e, muito menos, a culpabilização do outro, principalmente naquilo que se relaciona aos riscos inerentes das práticas. Uma das máximas compartilhadas quando o assunto é a contaminação por alguma IST nesse campo, por exemplo, é: “Ninguém TE infecta, você SE infecta”. Se a responsabilidade é individual, dentro de um certo campo de escolhas, a culpa (enquanto responsabilização do Outro) deixa de fazer sentido, se torna compartilhada enquanto consequência colateral das escolhas individuais17 17 Tal ideia se aproxima da questão da “responsabilidade” apontada no filme francês 120 batimentos por minuto (2017) sobre as ações do Act Up nos anos 1990. Em uma das cenas, o personagem protagonista conta como ele foi infectado pelo HIV, na relação sexual com seu professor de matemática quando ainda era adolescente. O amante atual questiona a “irresponsabilidade” do professor. O personagem nega que tenha havido isso: “A responsabilidade não se divide. Quando você contamina alguém, você é 100% responsável. Quando você é contaminado, também”. .

Quando no grupo houve uma denúncia sobre um dos participantes, essa máxima se fez presente:

Pedro: Só um aviso. Aquele Marcos que estava falando aqui ainda pouco é um safado mentiroso e filho da puta…Ele me confessou no sábado que pegou um cara que dizia estar com suspeita de HIV…Tenham cuidado com ele. Minha sorte é que isso aconteceu depois que eu e ele ficamos.

Thiago: Cara, você fode bare18 18 Redução de bareback. achando que todo mundo é negativo? Se você curte bare tem que se ligar nesses riscos né…

Pedro: Thiago, a questão não é essa. A questão é que ele é um mentiroso. Eu até vou fazer o teste amanhã mesmo para saber se eu não me ferrei. Tô expondo ele, porque ele me fez de trouxa ontem e pensa que vai sair ileso… Ele deve estar com HIV e nem aí se vai passar para os outros ou não. E eu tô expondo isso.

Thiago: Olha, primeiro, não vai adiantar nada você fazer o exame amanhã. O que você pode fazer agora é a PEP e daqui a um mês fazer o teste. Procura na internet o posto mais próximo da sua casa e se informe. Segundo, você acha bonito escrachar o cara pra geral aqui??? Fode bare e vem se fazer de iludido agora…isso é feio.

Fabiano: Exatamente. Vai culpar o cara de que? No sexo, a “culpa” é dividida. Se você transou sem capa, foi consentido. Sabia dos riscos, ou você é tão desinformado assim? Não acho certo vir fazer denúncia aqui.

Pedro: Eu acho certo sim. Ele não merece ficar impune. Não to me fazendo de vítima, to expondo alguém que merece ser exposto.

Rodrigo: Cara, quando você vai nessas putarias bare você trepa com gente que nunca viu e duvido que peça algum exame pra alguém. Aí trepa com um cara que, por sinal, foi honesto em te dizer que pode ter sido infectado (o que ele não tem obrigação) e você vem dizer que é ele que tá errado??? Melhore, vá!

Mesmo nas práticas tidas como mais extremas o valor da responsabilidade de si é colocado como um princípio. Um dos participantes de um dos grupos virtuais, por exemplo, compartilhou o seu desejo de ser “estuprado violentamente por um grupo de machos” e que tal ato fosse filmado para ser postado posteriormente em seu perfil num site de vídeos pornográficos:

Procuro machos ou grupos de machos para me estuprar sem dó de verdade. Podem fazer tudo que quiser, sem exceção. Podem me dominar, imobilizar e socar rola à força o tanto que quiserem, mesmo se na hora eu não quiser, eu me responsabilizo.

Junto à essa mensagem anexou um arquivo de documento: “Declaração de Isenção de Responsabilidade e Renúncia de Direitos de Som e Imagem”. A declaração vinha assinada e autenticada em cartório. Ainda que a real validade legal de tal documento seja discutível, chama a atenção o uso de um instrumento de consentimento e de responsabilização para a realização de uma encenação consensual que simule algo não consentido.

A responsabilidade enquanto um valor importante no regime ético-moral produzido nesse campo reproduz um regime discursivo de igualdade e de atualização dos valores ligados ao individualismo moderno e a sua retomada no pensamento neoliberal, como veremos adiante. Porém, o que pude perceber em campo é que os conflitos naquilo que se relaciona a esse valor vem justamente de uma distribuição de responsabilidade desigual, de uma falsa assimetria das relações a partir de certos marcadores. Destaco aqui o fator da sorologia. Enunciar ou expor que se é soropositivo é um gerador de ansiedades que causa um desequilíbrio nas relações, seja como categoria de acusação, seja pela presunção de exposição maior ao perigo, como foi apontado em um dos exemplos acima.

Essa assimetria de posições de sujeitos produz uma disjunção de responsabilidades e expectativas: há uma tendência para que soronegativos e não-testados assumam o estado negativo de seus parceiros sexuais e expectativas concomitantes para que os parceiros soropositivos divulguem seu status. Em contrapartida os soropositivos tendem a destacar a responsabilidade de cada indivíduo para gerenciar sua própria saúde, já que falar de seu status é sempre se expor às dificuldades que essa revelação traz (Adam, 2005: 336ADAM, Barry. 2005. “Constructing the neoliberal sexual actor: Responsibility and care of the self in the discourse of barebackers”. Culture, Health & Sexuality, Vol. 7, No. 4, p. 333-346.)

Dentro da prática bareback é interessante comparar o papel liminar que as figuras do “assintomático” e do “indetectável” tomaram ao longo do tempo. O “assintomático” dos anos 1980/90 e a figura do “indetectável” atual. Enquanto o primeiro estava numa fronteira por não apresentar os sinais físicos clássicos da doença, ou seja, conseguia se livrar de um estigma marcado na própria apresentação corporal, o segundo se vale de uma afirmação científica (carga viral indetectável = instransmissível, ou I=I), mas que nem sempre é bem aceita por todos os interlocutores com quem tive contato. Há sempre uma dúvida e ansiedade que pode romper em fissuras, eventualmente.

Essas figuras geram receios que podem ser percebidos tanto na preferência por interações com outros homens que tenham uma apresentação corporal entendida como mais “saudável” (e que invariavelmente se relaciona a padrões eurocêntricos e normativos de beleza) quanto na evitação de interações com certos corpos lidos como “mal cuidados”, “magros ou gordos demais” ou que se distanciem do padrão desejado.

É o que eu sempre digo, mas parece difícil para as pessoas entenderem por causa do preconceito: Sou soropositivo e definitivamente é mais seguro transar comigo que sei o que tenho, faço exames de todas as doenças sempre e tomo os meus remédios do que transar com alguém que não sabe se é soropositivo, que nunca fez o exame ou que fez tem muito tempo e pode estar com a carga viral lá em cima ou com qualquer outra doença que não sabe ainda (Rodrigo, branco, designer, 30 anos).

Relação com a política neoliberal

É importante perceber o quanto a criação desse regime ético-moral apresentado se relaciona com uma mudança naquilo que Foucault apontou como nosso dispositivo da sexualidade (2009FOUCAULT, Michel. 2009. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. 176 p.) e com o desenvolvimento de políticas públicas baseadas em formas de farmaceuticalização (Biehl e Petryna, 2013BIEHL, João; PETRYNA, Adriana. 2013. “Introduction: critical global health”. In: BIEHL, J; PETRYNA, A. (eds.). When People Come First: critical studies in global health. Princeton/Oxford: Princeton University Press, p. 1-20.). Os valores apontados nesse texto não estão apenas nos discursos e na prática bareback, mas também nas próprias diretrizes do Estado, principalmente no avanço de uma racionalidade neoliberal19 19 Para Foucault (2008), o neoliberalismo está além de uma mudança de política econômica voltada para a redução do Estado, para as privatizações e corte de direitos sociais. Também é uma forma de racionalidade governamental que se faz por processos de subjetivação, produzindo indivíduos que seriam “empresários de si mesmos” (2008: 311). .

É Sergio Carrara quem aponta a produção de um novo dispositivo da sexualidade relacionado à emergência da noção de “direitos sexuais”, na possível passagem de um regime da sexualidade pautado na linguagem biomédica para um novo regime pautado na linguagem sociojurídica, envolvendo os planos das moralidades, da racionalidade e da política. Estariam em jogo nessa passagem novos critérios para definir os limites do aceitável do ponto de vista da sexualidade - que passariam do caráter reprodutivo ou não das práticas sexuais para a consensualidade, o autocontrole e a responsabilidade - e novos estilos de regulação moral. Desse modo, “aumenta a inquietação (que às vezes assume a dimensão de pânico moral) em relação a fenômenos como a pedofilia, o assédio sexual, o abuso sexual, o turismo sexual, a exploração sexual, a compulsão sexual etc.” (Carrara, 2015: 332CARRARA, Sérgio. 2015. “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345.). Nessa lógica, apontada pelo autor, do ponto de vista do Estado e das agências reguladoras, as práticas “de risco” tratadas nesse artigo seriam “desejos indesejáveis”, ou seja, indivíduos que não teriam auto controle o suficiente em face do próprio desejo sexual, colocando a integridade de si e do outro em risco.

Tal processo apontado pelo autor perfaz o entendimento e as ações públicas na história da epidemia do HIV/Aids, por exemplo. As propostas de intervenção surgidas como resposta a epidemia de Aids apontadas por estudiosos (Parker e Terto Jr., 2002PARKER, Richard; TERTO JR., Veriano (orgs.). 2002. Prevenção à AIDS: limites e possibilidades na terceira década. Rio de Janeiro: ABIA.; Bastos, 2006BASTOS, Francisco Inácio. 2006. AIDS na Terceira Década. Rio de Janeiro: Ed. da Fiocruz. 86 p.) em distintas épocas, lugares e contextos demonstram que desde o seu início a doença, para além de algo apenas físico, também era lida como uma “doença moral”. É esta “dimensão moral” da doença que faz com que a noção de “responsabilidade”, por exemplo, esteja intrínseca aos modos de compreensão e significação da Aids desde o início de sua epidemia (Fassin, 2012FASSIN, Didier. 2012. “Introduction: toward a critical moral anthropology”. In: FASSIN, D. A Companion to Moral Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, p. 1-17.), uma vez que as pessoas são tomadas como “responsáveis” não só por se infectarem/infectarem o outro, mas também pelo “sucesso” do próprio tratamento com a terapia antirretroviral20 20 No contexto brasileiro atual, por exemplo, projetos de lei buscam criminalizar a transmissão do HIV em um movimento de judicialização de questões de saúde pública. Para um debate sobre o tema ver Pereira e Monteiro (2015) e matéria publicada no site da ABIA: http://abiaids. org.br/sobre-criminalizacao-da-transmissao-do-hiv-no-brasil/29572 .

As novas políticas e protocolos relativos à prevenção (re)atualizam a discussão da “responsabilidade” e do HIV/Aids enquanto uma “doença moral”, já que a eficácia do tratamento e da não contaminação é atrelada a uma responsabilidade individual de prevenção, no que alguns autores apontam como a adoção de valores neoliberais nas políticas de Saúde (Adam, 2005ADAM, Barry. 2005. “Constructing the neoliberal sexual actor: Responsibility and care of the self in the discourse of barebackers”. Culture, Health & Sexuality, Vol. 7, No. 4, p. 333-346.), de políticas do tipo “bala mágica”21 21 As abordagens do tipo “bala mágica” se caracterizam pela ausência de reflexão sobre as condições sociais, políticas, econômicas, culturais etc. nas quais se desenvolvem determinadas doenças. A “bala mágica” seria então o medicamento por si só, visto por certos profissionais da área da saúde como a única forma de tratamento possível. Abrindo mão da atenção àquilo que Ayres chamou de contextos de vulnerabilidade (Ayres et.al, 2006). .

Em sua pesquisa sobre a construção da narrativa hegemônica sobre o atual modelo de prevenção ao HIV/Aids como política pública, Oscar (2017OSCAR, Raquel. 2017. “Pílulas diárias anti-HIV: Novas tecnologias preventivas, novos paradigmas de prevenção?”. Trabalho apresentado na II Reunião de Antropologia da Saúde, Brasília.; 2019OSCAR, Raquel. 2019. Pílulas diárias anti-HIV: a construção de uma narrativa antropológica sobre a Profilaxia de Pré-Exposição ao HIV (PrEP). Tese de Doutorado. IMS - UERJ.) refaz esse percurso histórico a partir do triunfo das últimas descobertas biomédicas que solidificaram a política do “Tratamento como Prevenção (TasP) engrossando a remedicalização da epidemia e tendo como consequência as ações públicas de ‘bala mágica’”. Isto é, todo um “retorno da perspectiva exclusivamente médica e epidemiológica na gerência e controle dos dados da doença” (2017: 4OSCAR, Raquel. 2017. “Pílulas diárias anti-HIV: Novas tecnologias preventivas, novos paradigmas de prevenção?”. Trabalho apresentado na II Reunião de Antropologia da Saúde, Brasília.).

A visão neoliberal adotada nessas políticas se imiscui enquanto um modo de vida e de consequente produção de subjetividade:

A visão neoliberal constrói os atores humanos como indivíduos racionais, adultos e contratantes em um mercado livre de opções. Não é responsável pelos motivadores e vulnerabilidades muito mais complexas que caracterizam a interação humana real e nega as vulnerabilidades, as emoções e os dilemas difíceis enfrentados pelas pessoas em suas vidas cotidianas (…) Reinforça um modelo de subjetividade hiper racional, masculino, competitivo, individualista, especialmente em interações sexuais breves, anônimas e governadas por presunções da esfera pública (Adam, 2005: 344ADAM, Barry. 2005. “Constructing the neoliberal sexual actor: Responsibility and care of the self in the discourse of barebackers”. Culture, Health & Sexuality, Vol. 7, No. 4, p. 333-346.)

É importante destacar que o regime discursivo e as práticas que descrevi ao longo do texto são produzidas na relação com esses processos “macro”, mas nem sempre o confirmando. Tal composição pode ser percebida pela própria sociabilidade cotidiana nos grupos virtuais. Tratam-se de territórios que servem tanto para a troca de informações, dicas, receitas e contatos22 22 Servindo até como consultório médico, como descrevo em Barreto (2017b). , quanto também como um espaço seguro e empático para a exposição de ansiedades, dúvidas, medos, inseguranças e desejos inconfessos. Nem sempre confirmando, portanto, esse modelo neoliberal de sujeito. Estão ora em conformidade, ora em contraposição, ora produzindo fissuras a partir de uma relação singular de apropriação e (re)criação e na intersecção de diversos fatores. Ao serem taxados de “irresponsáveis”, “imorais” e “perigosos”, meus interlocutores demonstram, através do uso particular das políticas públicas e da criação de valores próprios, um regime ético-moral singular.

Adesão aos novos protocolos e cenário pós-2018

Ainda que um olhar crítico a respeito dos novos protocolos precise ser feito no sentido de que tais modelos se baseiam em um tipo de poder hegemônico do discurso científico ao formular “soluções técnicas imediatas e infalíveis” (Biehl e Petryna, 2013: 8BIEHL, João; PETRYNA, Adriana. 2013. “Introduction: critical global health”. In: BIEHL, J; PETRYNA, A. (eds.). When People Come First: critical studies in global health. Princeton/Oxford: Princeton University Press, p. 1-20.) desenhadas por profissionais da epidemiologia e da farmacologia; também não podemos fechar os olhos para os resultados apontados como positivos pelos interlocutores desde a sua implementação. Eles apontam como, de fato, o discurso da camisinha, ou pior ainda da abstinência, enquanto política pública é “fracassado” e que a possibilidade de uma prevenção que não passe pelo preservativo é ir ao encontro de seus desejos.

A camisinha é importante, mas tem gente que não usa. Tem gente que brocha, que não gosta da sensação, que gosta de sentir a porra na pele. A gente precisa parar de associar o não uso da camisinha à irresponsabilidade e começar a falar também de outras estratégias de prevenção23 23 Os agentes de saúde usam a expressão Prevenção Combinada para caracterizar diferentes métodos de prevenção que podem ser adotadas ao mesmo tempo ou em sequência. Para isso, há um esquema visual chamado “mandala da prevenção”. Ver: http://www.blog.saude.gov.br/ index.php/geral/53172-prevencao-combinada-vai-alem-da-camisinha (tweet publicado no grupo)

Para esses interlocutores (que podem ser localizados no amplo espectro do que se chama de “classes médias”) a PrEP aparece como uma “grande resolvedora de problemas”, como já apontado por analistas:

A PrEP depende do consumo individual, diário e constante de um conjunto de fármacos pelos interessados. E aí se localiza a principal diferença entre os métodos profiláticos: o uso da camisinha, por exemplo, requer graus mínimos de negociação e ação coletiva. Engajamento de todos os participantes, de modo simétrico ou assimétrico, de maior ou menor responsabilidade na inclusão do preservativo naquele roteiro sexual. Neste sentido, a PrEP responderia aos anseios de autonomia, liberdade e auto cuidado, valores modulares nas sociedades ocidentais modernas, mas que podem ofuscar as articulações sociais pertinentes neste processo de construção de uma profilaxia medicamentosa (Oscar, 2017: 10-11OSCAR, Raquel. 2017. “Pílulas diárias anti-HIV: Novas tecnologias preventivas, novos paradigmas de prevenção?”. Trabalho apresentado na II Reunião de Antropologia da Saúde, Brasília.)

Eu incluiria na argumentação da autora o fato da PrEP não exigir do indivíduo que ele abra mão de um prazer que é caro a ele, o contato direto “pele com pele” e com os fluidos do parceiro como está explícito no tweet citado.

Da mesma forma as políticas de prevenção estão colocadas no centro do debate pelo governo federal que assumiu o poder desde o final de 201824 24 “O Programa Nacional de Aids foi desfeito em 17 de maio de 2019 com a publicação do decreto no 9.795 pelo atual governo. A resolução extingue o “Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais” que passa a se chamar “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”. Tal medida foi tomada em contexto de aumento do número absoluto de novos diagnósticos da doença no país, na contramão da tendência mundial. Segundo os dados divulgados pela UNAIDS, o total de novas infecções a cada ano no Brasil aumentou em 3% entre 2010 e 2016, enquanto que no mundo, essa taxa sofreu uma contração de 11%. O Boletim Epidemiológico HIV e Aids de 2018 reafirmou o crescimento expressivo de novos casos no país, em particular entre homens jovens. Enquanto o atual Ministro da Saúde, Luiz Mandetta, demonstrou publicamente descontentamento com as ações de prevenção ao afirmar ser necessária a adoção de estratégias que não “ofendessem” as famílias brasileiras” (Oscar, 2019: 36). . A atual ameaça de corte de investimentos e políticas do governo que possibilita tanto a suspensão do tratamento de pessoas que vivem com o HIV e que dependem de remédios fornecidos gratuitamente pelo SUS para continuarem a viver, como aqueles que não estão infectados, mas que já adaptaram seus “roteiros sexuais” (Gagnon, 2006GAGNON, John. 2006. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond. 456 p.) às novas formas de prevenção e evitam as novas infecções (“Já desaprendi a usar camisinha. Não sei mais o que faria se tivesse que voltar a usar”)25 25 Além disso, muitos dos interlocutores que não possuem plano de saúde privado me dizem que o acompanhamento da PrEP é seu único acesso ao sistema de saúde público com exames rotineiros e preventivos. .

Tal ameaça de corte também faz parte de uma característica de uma política neoliberal de saúde, que não são exclusivas da sexualidade, estão presentes em outros contextos como no caso da obesidade, apontado por Sibilia:

A lógica de distribuição do bem-estar foi relegada aos indivíduos, pois com a crise do Estado benfeitor cada um deve cuidar de si. De acordo com seu novo perfil, agora o Estado só pode cuidar dos prudentes. Neste sentido, é sintomática a proposta do governo da Austrália de instituir um imposto especial para os obesos mórbidos - aqueles que excedem em mais de 50 quilos o peso considerado padrão - por eles onerarem o sistema público de saúde. A mensagem é clara: se a culpa é deles, então não cabe ao Estado assumir a responsabilidade; são eles próprios que devem pagar por isso. (Sibilia, 2006: 115-116SIBILIA, Maria Paula. 2006. O Pavor da Carne: riscos da pureza e do sacrifício no corpo-imagem contemporâneo. Tese de Doutorado. IMS-UERJ.)

Algo não muito distante dos comentários de representantes do governo brasileiro sobre as políticas de saúde relacionadas às ISTs e ao HIV/Aids, em particular26 26 No dia 05/02/2020, comentando a campanha de abstinência sexual como prevenção de gravidez precoce e ISTs, o Presidente Jair Bolsonaro disse em entrevista para jornalistas: “Uma pessoa com HIV, além de ser um problema sério para ela, é uma despesa para todos aqui no Brasil”. Fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica/uma-pessoa-com-hiv-e-uma-despe- sa-para-todos-aqui-no-brasil-diz-bolsonaro/?fbclid=IwAR2CcBYvQFnPgzn49J3IZjsg2vUTJj kOrqCgFCrnb1uslAG28dUCTiKMsvU#.XjrVC23mVwc.facebook .

Considerações finais

O que propus nesse artigo foi trazer a tensão entre “prazer” e “risco” como elemento para se pensar o desafio das políticas de saúde contemporâneas. Através da descrição etnográfica procurei mostrar a criação de um regime discursivo ético-moral próprio baseado nos valores da responsabilidade, do consentimento e do cuidado, seus conflitos e a forma como se relaciona com um modelo político-estatal que cada vez mais vem ganhando espaço.

Nesse sentido, a tensão “prazer-risco”, dentro do debate das políticas de prevenção ao HIV/ Aids, torna-se essencial para se problematizar e questionar tanto o vínculo e a intersecção entre “sexualidade”, “saúde” e “Estado” quanto questões relacionadas a prevenção de doenças, o cuidado de si e a avaliação dos “riscos” e suas formas de apropriação e (res)significação em contextos particulares assim como para o entendimento de desejos que se colocam na fronteira com o perigo, em práticas que se encontram nos limites da sexualidade.

Referências Bibliográficas

  • ADAM, Barry. 2005. “Constructing the neoliberal sexual actor: Responsibility and care of the self in the discourse of barebackers”. Culture, Health & Sexuality, Vol. 7, No. 4, p. 333-346.
  • AYRES, J. R. C. M. et al. 2006. “Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde”. In: CAMPOS, G. W. S. et al (Org). Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, p. 375-417.
  • BARRETO, Victor Hugo de Souza. 2017a. Festas de Orgia para Homens: Territórios de Intensidade e Socialidade Masculina. Salvador, Editora Devires. 284p.
  • BARRETO, Victor Hugo de Souza. 2017b, “Risco, prazer e cuidado: técnicas de si nos limites da sexualidade”. Revista Avá, nº 31, p. 119-142.
  • BARRETO, Victor Hugo de Souza. 2019a. “Limites, fissura, prazer e risco em festas de orgia para homens”. MANA, vol 25, nº 1, p. 009-037.
  • BARRETO, Victor Hugo de Souza. 2019b. “Sexo pig: algumas notas sobre prazeres extremos”. In: OLIVEIRA, T. e MAIA, H. T. (orgs.), Práticas Sexuais: Itinerários, Possibilidades e Limites de Pesquisa. Salvador: Editora Devires, p. 125-151.
  • BARRETO, Victor Hugo de Souza. 2019c. “Erótica dos fluidos masculinos em práticas sexuais coletivas”. Etnográfica, vol. 23, nº 3, p. 717-738.
  • BASTOS, Francisco Inácio. 2006. AIDS na Terceira Década. Rio de Janeiro: Ed. da Fiocruz. 86 p.
  • BELELI, Iara. 2015. “O imperativo das imagens: construção de afinidades nas mídias digitais”. Cadernos Pagu, nº 44, p. 91-114.
  • BEZERRA, Vladimir. 2017. “Práticas e sentidos da sexualidade de alguns usuários de PrEP”. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, nº 23, p. 140-160.
  • BIEHL, João; PETRYNA, Adriana. 2013. “Introduction: critical global health”. In: BIEHL, J; PETRYNA, A. (eds.). When People Come First: critical studies in global health. Princeton/Oxford: Princeton University Press, p. 1-20.
  • CABRAL, Ana Lucia et al. 2011. “Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil”. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 16, nº 11, p. 4433-4442.
  • CARRARA, Sérgio. 2015. “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345.
  • DÍAZ-BENITEZ, María Elvira. 2008. “Dark Room Aqui”: um ritual de escuridão e silêncio”. Cadernos de Campo, nº 16, p. 93-112.
  • DÍAZ-BENITEZ, María Elvira. 2015. “O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade”. Mana (UFRJ. Impresso), v. 21, p. 65-90.
  • FACCHINI, Regina e ROSSETTI, Sarah. 2013. “Praticamos SM, repudiamos agressão: classificações, redes e organização comunitária em torno do BDSM no contexto brasileiro”. Sexualidade, salud y sociedad: Revista latinoamericana. n.14, p. 195-228.
  • FASSIN, Didier. 2012. “Introduction: toward a critical moral anthropology”. In: FASSIN, D. A Companion to Moral Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, p. 1-17.
  • FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. 452 p.
  • FOUCAULT, Michel. 2009. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. 176 p.
  • GAGNON, John. 2006. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond. 456 p.
  • GREGORI, Maria Filomena. 2010. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. Tese de livre docência, Departamento de Antropologia, IFCH, Universidade Estadual de Campinas.
  • LOWENKRON, Laura. 2015. “Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual”. Cadernos Pagu , vol. 45, p. 225-258.
  • MOLL, Annemarie. 2002. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: London. 211 p.
  • PARKER, Richard; TERTO JR., Veriano (orgs.). 2002. Prevenção à AIDS: limites e possibilidades na terceira década. Rio de Janeiro: ABIA.
  • PEREIRA, Carla Rocha e MONTEIRO, Simone Souza. 2015. “A criminalização da transmissão do HIV no Brasil: avanços, retrocessos e lacunas”. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, p. 1185-1205.
  • PERLONGHER, Nestor. 1987. O negócio do michê: a prostituição viril. Editora Brasiliense, São Paulo. 272 p.
  • OSCAR, Raquel. 2017. “Pílulas diárias anti-HIV: Novas tecnologias preventivas, novos paradigmas de prevenção?”. Trabalho apresentado na II Reunião de Antropologia da Saúde, Brasília.
  • OSCAR, Raquel. 2019. Pílulas diárias anti-HIV: a construção de uma narrativa antropológica sobre a Profilaxia de Pré-Exposição ao HIV (PrEP). Tese de Doutorado. IMS - UERJ.
  • SIBILIA, Maria Paula. 2006. O Pavor da Carne: riscos da pureza e do sacrifício no corpo-imagem contemporâneo. Tese de Doutorado. IMS-UERJ.
  • TOMSO, Gregory. 2004. “Bug Chasing, Barebacking, and the Risks of Care”. Literature and Medicine, vol. 23, nº 1, p. 88-111.
  • ZILLI, Bruno. 2009. “BDSM da A a Z: A despatologização através do consentimento nos ‘manuais’ da internet”. In: DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. e FÍGARI, C. Prazeres Dissidentes. Rio de Janeiro, Garamond, p.481-508.
  • 1
    Ao longo do texto utilizo aspas para citações e termos ou expressões êmicas, assim como para indicar o sentido metafórico e múltiplo de certas palavras. O itálico será utilizado para palavras estrangeiras, conceitos analíticos (seguidos da referência), instituições públicas e privadas, títulos de obras, nomes de protocolos e de políticas públicas, bem como para enfatizar alguns pontos do texto.
  • 2
    Também acompanho grupos de praticantes do chamado sexo pig. Para uma análise sobre a prática ver Barreto (2019bBARRETO, Victor Hugo de Souza. 2019b. “Sexo pig: algumas notas sobre prazeres extremos”. In: OLIVEIRA, T. e MAIA, H. T. (orgs.), Práticas Sexuais: Itinerários, Possibilidades e Limites de Pesquisa. Salvador: Editora Devires, p. 125-151.).
  • 3
    Apesar desse recorte de gênero nos encontros, não há uma unanimidade com relação à exigência de uma performance masculina normativa. Dessa forma, não é incomum encontrar homens que gostam de usar certos adereços femininos (calcinhas, camisolas e outras lingeries), de serem chamados no feminino durante as interações, de serem tratados “como mulheres” (no sentido de uma leitura machista de submissão que pode envolver a encenação de atividades domésticas como limpeza e de “servir ao seu homem”) dentre outras maneiras de uma feminilização pela chave da humilhação. Essa contradição também se percebe pela fetichização de travestis e homens transexuais, principalmente nas conversas nos grupos virtuais.
  • 4
    A minha presença nos grupos e eventos foi autorizada por todos os seus respectivos organizadores, que não só aceitaram me conceder entrevistas como também indicaram outros participantes para essa etapa mais aprofundada e individual. As falas dos interlocutores foram recuperadas a partir das minhas notas em um caderno de campo que era preenchido após os eventos e dos prints das conversas nos grupos virtuais.
  • 5
    De acordo com o site oficial do governo brasileiro (http://www.aids.gov.br) a PrEP (cuja distribuição pelo SUS começou em Dezembro de 2017) é usada como estratégia de intervenção para a prevenção da transmissão entre “populações prioritárias” - homens que fazem sexo com homens (HSH), gays, profissionais do sexo, travestis, transexuais, pessoas que usam drogas, pessoas privadas de liberdade e em situação de rua. A PrEP é o uso diário de antirretrovirais em pessoas não infectadas, mas que estão em risco muito elevado de infecção pelo HIV, de forma a bloquear a aquisição do vírus. E a PEP é uma medida de prevenção que consiste no início do uso de medicamentos até 72 horas decorridas de uma provável exposição ao vírus HIV e já é utilizada, basicamente, em três situações: em casos de risco de contaminação por HIV de profissionais de saúde na atividade laboral, devido a acidentes; em casos de estupro; e em casos de relações sexuais em que ocorre falha nas medidas de prevenção, para reduzir o risco de transmissão do HIV.
  • 6
    Uma das questões que as primeiras aproximações com o campo já apontou e que será preciso aprofundar seria a descrição e problematização um pouco mais detalhada sobre a diferença entre os usos da PEP e da PrEP, até mesmo nas suas formas de acesso e em relação ao discurso e comportamento da equipe médica. Os interlocutores apontam que a PEP costuma ser distribuída em postos de saúde específicos para casos emergenciais em que o paciente precisa buscá-la se utilizando de um discurso de “acidente” (com o preservativo, por exemplo) ou de “erro”, e que acabaram passando quase que por um “tribunal de expiação de culpa” ou de “lição de moral” por parte de técnicos como psicólogos e enfermeiros, enquanto que a PrEP seria visto como uma atitude ou escolha mais “responsável”, de maior comprometimento com uma medicação que precisa ser tomada diariamente.
  • 7
    Uso aqui o conceito de fissura trazido por Díaz-Benítez em sua pesquisa sobre filmes pornográficos de humilhação. Os momentos de “fissura” como aqueles instantes de fronteira, nos quais as práticas (ainda que consentidas) “alcançam uma intensidade que não era possível prever ou antecipar” e “que rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções que evocam mais perigo do que prazer” (2015: 4DÍAZ-BENITEZ, María Elvira. 2015. “O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade”. Mana (UFRJ. Impresso), v. 21, p. 65-90.).
  • 8
    A ideia de tensor libidinal é inspirada nas análises de Perlongher (1987PERLONGHER, Nestor. 1987. O negócio do michê: a prostituição viril. Editora Brasiliense, São Paulo. 272 p.), na qual o autor apon ta como certos marcadores sociais da diferença atuam tensionando libidinalmente desejos e práticas sexuais.
  • 9
    BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) é a sigla que agrupa um conjunto de práticas eróticas que ritualizam jogos de poder.
  • 10
    O que não quer dizer que elas fossem livres de conflitos e disputas (Cf. Facchini e Rossetti, 2013FACCHINI, Regina e ROSSETTI, Sarah. 2013. “Praticamos SM, repudiamos agressão: classificações, redes e organização comunitária em torno do BDSM no contexto brasileiro”. Sexualidade, salud y sociedad: Revista latinoamericana. n.14, p. 195-228.).
  • 11
    Além disso, não é a minha intenção entrar no debate sobre a classificação (acusatória ou não) do bareback para o sexo entre homens sem camisinha. Parto de um certo entendimento do bareback enquanto “cultura”, ou seja, um universo já circunscrito por práticas, simbologias, tags e mesmo de um segmento de produção mercadológica.
  • 12
    Todos os nomes citados no texto são fictícios e os trechos de suas falas foram autorizadas em entrevistas pelos respectivos participantes.
  • 13
    “Vitamina” é uma expressão utilizada nesses grupos para nomear o esperma que, possivelmente, contenha o vírus HIV. Porém, também vi essa expressão ser utilizada em situações que não se relacionavam à algum desejo de contaminação, mas sim à um certo valor nutritivo do esperma em si, de um desejo de se alimentar pelo fluido do outro. Para uma análise sobre a circulação de fluidos nesses contextos, ver Barreto (2019cBARRETO, Victor Hugo de Souza. 2019c. “Erótica dos fluidos masculinos em práticas sexuais coletivas”. Etnográfica, vol. 23, nº 3, p. 717-738.).
  • 14
    Sobre a “linguagem corporal” em práticas sexuais coletivas, ver etnografias de Díaz-Benítez (2008DÍAZ-BENITEZ, María Elvira. 2008. “Dark Room Aqui”: um ritual de escuridão e silêncio”. Cadernos de Campo, nº 16, p. 93-112.) e Barreto (2017aBARRETO, Victor Hugo de Souza. 2017a. Festas de Orgia para Homens: Territórios de Intensidade e Socialidade Masculina. Salvador, Editora Devires. 284p.).
  • 15
    Também conhecida como “Key”, “Keyla”, “Keta”, “Cetamina”, “Special K” e “Vitamina K”, é um anestésico às vezes citado como “tranqüilizante de cavalo”. Substância legal para fins medicinais, mas de uso controlado e ilegal para outros usos. Costuma ser usada como psicotrópico em danceterias ou durante o sexo. Nesse contexto é consumida em forma de pó que pode ser cheirado ou diluído em bebidas (preferencialmente não-alcóolicas). Causa uma sensação de flutuamento. Em excesso ou má administrada pode causar um “apagão” conhecido como ‘K hole’.
  • 16
    A peça consiste normalmente em uma cinta elástica trazendo atrás somente duas tiras entre as pernas que sustentam a parte de baixo das nádegas e deixam a “bunda” de fora.
  • 17
    Tal ideia se aproxima da questão da “responsabilidade” apontada no filme francês 120 batimentos por minuto (2017) sobre as ações do Act Up nos anos 1990. Em uma das cenas, o personagem protagonista conta como ele foi infectado pelo HIV, na relação sexual com seu professor de matemática quando ainda era adolescente. O amante atual questiona a “irresponsabilidade” do professor. O personagem nega que tenha havido isso: “A responsabilidade não se divide. Quando você contamina alguém, você é 100% responsável. Quando você é contaminado, também”.
  • 18
    Redução de bareback.
  • 19
    Para Foucault (2008FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. 452 p.), o neoliberalismo está além de uma mudança de política econômica voltada para a redução do Estado, para as privatizações e corte de direitos sociais. Também é uma forma de racionalidade governamental que se faz por processos de subjetivação, produzindo indivíduos que seriam “empresários de si mesmos” (2008: 311FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. 452 p.).
  • 20
    No contexto brasileiro atual, por exemplo, projetos de lei buscam criminalizar a transmissão do HIV em um movimento de judicialização de questões de saúde pública. Para um debate sobre o tema ver Pereira e Monteiro (2015PEREIRA, Carla Rocha e MONTEIRO, Simone Souza. 2015. “A criminalização da transmissão do HIV no Brasil: avanços, retrocessos e lacunas”. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 25, nº 4, p. 1185-1205.) e matéria publicada no site da ABIA: http://abiaids. org.br/sobre-criminalizacao-da-transmissao-do-hiv-no-brasil/29572
  • 21
    As abordagens do tipo “bala mágica” se caracterizam pela ausência de reflexão sobre as condições sociais, políticas, econômicas, culturais etc. nas quais se desenvolvem determinadas doenças. A “bala mágica” seria então o medicamento por si só, visto por certos profissionais da área da saúde como a única forma de tratamento possível. Abrindo mão da atenção àquilo que Ayres chamou de contextos de vulnerabilidade (Ayres et.al, 2006AYRES, J. R. C. M. et al. 2006. “Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde”. In: CAMPOS, G. W. S. et al (Org). Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, p. 375-417.).
  • 22
    Servindo até como consultório médico, como descrevo em Barreto (2017b).
  • 23
    Os agentes de saúde usam a expressão Prevenção Combinada para caracterizar diferentes métodos de prevenção que podem ser adotadas ao mesmo tempo ou em sequência. Para isso, há um esquema visual chamado “mandala da prevenção”. Ver: http://www.blog.saude.gov.br/ index.php/geral/53172-prevencao-combinada-vai-alem-da-camisinha
  • 24
    “O Programa Nacional de Aids foi desfeito em 17 de maio de 2019 com a publicação do decreto no 9.795 pelo atual governo. A resolução extingue o “Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais” que passa a se chamar “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”. Tal medida foi tomada em contexto de aumento do número absoluto de novos diagnósticos da doença no país, na contramão da tendência mundial. Segundo os dados divulgados pela UNAIDS, o total de novas infecções a cada ano no Brasil aumentou em 3% entre 2010 e 2016, enquanto que no mundo, essa taxa sofreu uma contração de 11%. O Boletim Epidemiológico HIV e Aids de 2018 reafirmou o crescimento expressivo de novos casos no país, em particular entre homens jovens. Enquanto o atual Ministro da Saúde, Luiz Mandetta, demonstrou publicamente descontentamento com as ações de prevenção ao afirmar ser necessária a adoção de estratégias que não “ofendessem” as famílias brasileiras” (Oscar, 2019: 36OSCAR, Raquel. 2019. Pílulas diárias anti-HIV: a construção de uma narrativa antropológica sobre a Profilaxia de Pré-Exposição ao HIV (PrEP). Tese de Doutorado. IMS - UERJ.).
  • 25
    Além disso, muitos dos interlocutores que não possuem plano de saúde privado me dizem que o acompanhamento da PrEP é seu único acesso ao sistema de saúde público com exames rotineiros e preventivos.
  • 26
    No dia 05/02/2020, comentando a campanha de abstinência sexual como prevenção de gravidez precoce e ISTs, o Presidente Jair Bolsonaro disse em entrevista para jornalistas: “Uma pessoa com HIV, além de ser um problema sério para ela, é uma despesa para todos aqui no Brasil”. Fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica/uma-pessoa-com-hiv-e-uma-despe- sa-para-todos-aqui-no-brasil-diz-bolsonaro/?fbclid=IwAR2CcBYvQFnPgzn49J3IZjsg2vUTJj kOrqCgFCrnb1uslAG28dUCTiKMsvU#.XjrVC23mVwc.facebook

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2020
  • Aceito
    29 Jul 2020
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) R. São Francisco Xavier, 524, 6º andar, Bloco E 20550-013 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel./Fax: (21) 2568-0599 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: sexualidadsaludysociedad@gmail.com