Acessibilidade / Reportar erro

Claustrofobia: uma exploração performática e autoetnográfica sobre produção de conhecimento e justiça social

Claustrophobia: a performative and autoethnographic exploration on knowledge production and social justice

Claustrofobia: una exploración performatica y autoetnográfica de la producción de conocimiento y la justicia social

Resumo

Nesta autoetnografia performática, a autora, utilizando suas próprias histórias como recurso, explora a simultaneidade entre contar e resistir a experiências vividas, empregando a autoetnografia (AE) da performance e a escrita performática (EP) como referencial teórico-metodológico. Partindo de três histórias de violência - da autora e de sua mãe; de Dona Ana; e de Luciana - este artigo propõe um diálogo crítico sobre o papel da produção de conhecimento e da educação médica; uma teorização sobre as interfaces entre a academia e a luta por justiça social; e as particularidades das experiências escavadas neste processo. Sendo uma autoetnografia, a escrita do texto demanda a crítica ao nível mais básico das relações - o que inclui a ruptura com a estrutura acadêmica tradicional.

Palavras-chaves:
autoetnografia; estudos da performance; escrita performática; justiça social; educação médica

Abstract

In this performative autoethnography, the author, using her own stories as a resource, explores the simultaneity between telling and resisting lived experiences, using performance autoethnography (AE) and performative writing (EP) as a theoretical-methodological framework. Starting from three stories of violence - the author and her mother; of Dona Ana; and Luciana - this article proposes a critical dialogue on the role of knowledge production and medical education; a theorization about the interfaces between academia and the struggle for social justice and the particularities of the experiences excavated in this process. As an autoethnography, the writing of the text demands criticism at the most basic level of relationships - which includes a break with the traditional academic structure.

Keywords:
autoethnography; Performance Studies; performative writing; social justice; medical education

Resumen

En esta autoetnografía performativa, la autora, utilizando sus propias historias como recurso, explora la simultaneidad entre contar y resistir experiencias vividas, utilizando la autoetnografía (AE) performativa y la escritura performativa (EP) como marco teóricometodológico. A partir de tres historias de violencia: la autora y su madre; de Doña Ana; y Luciana - este artículo propone un diálogo crítico sobre el papel de la producción de conocimiento y la educación médica; una teorización sobre las interfaces entre la academia y la lucha por la justicia social; y las particularidades de las experiencias excavadas en este proceso. Como autoetnografía, la redacción del texto exige críticas en el nivel más básico de relaciones, lo que incluye una ruptura con la estructura académica tradicional.

Palabras clave:
autoetnografía; estudios de performance; escrita performativa, justicia social, educación médica

Prólogo

Eu busco uma forma de escrita que é performativa, dialógica, pedagógica - que diz, mostrando. [...] a performance é uma forma de conhecer, uma forma de entendimento, uma maneira de criar consciência crítica (Denzin, 2010DENZIN, Norman. 2010. The Qualitative Manifesto - A Call to Arms. Walnut Creek, CA: Left Coast Press., p. 12).

Compartilhando com Denzin a mesma inquetação, a autora parte da Autoetnografia da Performance (AP) como possibilidade de escrita acadêmica. Sendo questionadora em sua essência, a AP demanda uma crítica ao nível mais básico das relações, usando a própria estrutura do texto para criticar discursos hegemônicos e escritas convencionais, expondo contradições e significados de forma viva (Moreira; Diversi, 2011MOREIRA, Cláudio; DIVERSI, Marcelo. 2001. “Missing bodies: Troubling the colonial landscape of American academia”. Text and Performance Quarterly. vol. 31, núm.3. p. 229-248.).

Nesta performance, quatro mulheres e três histórias se encontram - autora e sua mãe, Dona Ana e Luciana. Nomes fictícios asseguram o anonimato necessário por questões éticas, excetuando-se o da própria autora e de sua mãe, ambas cientes desta publicação. Em comum, essas histórias trazem a marca da violência em suas diversas formas e levantam questionamentos sobre a justiça social que obtemos a partir das pesquisas que realizamos e das escritas que empreendemos. Sem qualquer pretensão de invalidar a escrita tradicional - embora traga a crítica acerca de sua imposição como única possibilidade - este artigo parte da incapacidade da autora de ficar muito tempo em ambientes fechados (mesmo na escrita). Disto decorre sua claustrofobia.

Para além de compartilhar reflexões, a centralidade na experiência pessoal da autora, representada no contexto das suas relações, descortina elementos inerentes ao fenômeno da violência, demonstrando aspectos da vida cultural que dificilmente são acessados na pesquisa convencional (Pelias, 2013PELIAS, Ronald. J. 2013. “Writing Autoethnography”. In: JONES, Stacy Holman.; ADAMS, Tony E.; ELLIS, Carolyn. (org.). Handbook of Autoethnography. Walnut Creek: Left Coast Press, p.384-405.). A experiência particular é, portanto, universalizada em/e por causa de seus efeitos singulares (Denzin, 2003DENZIN, Norman. 2003. Performance ethnography: Critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks, CA: Sage.). Trazer esse debate para a escrita acadêmica é necessário para revigorar o debate introduzido por diferentes matrizes sociológicas e antropológicas críticas e descolonizadoras, a partir das quais Denzin construiu o arcabouço da Autoetnografia da Performance (AP).

A partir deste momento, concluído o prólogo necessário, a autora abandona a terceira pessoa e torna-se primeira. A partir de agora, falo EU, da minha claustrofobia, da minhas marcas e das minhas reflexões sobre o papel da ciência na busca por justiça1 1 O presente artigo trata-se de uma Autoetnografia Performática, sendo, portanto, orientada pela episteme pós-colonial. Essa abordagem permite uma escrita descolonizadora que incorpora, no próprio corpo do texto, a linguagem e a estrutura poética, com trechos em poesia e linguagem subjetiva, a fim de aprofundar a experimentação desta pesquisa. social.

CLAUSTROFOBIA

You who understand the dehumanization of forced removal-relocation-reeducation-redefinition, the humiliation of having to falsify your own reality, your voice-you know. And often cannot say it. You try and keep on trying to unsay it, for if you don’t, they will not fail to fill in the blanks on your behalf, and you will be said (Minh-ha, 1989, p. 80MIN-HA, Trịnh Thị. 1992. Framer Framed: Film Scripts and Interviews. New York, Routledge.)

...

A.... hum...?!

...?....!

CLAUSTROFOBIA

Puxo o ar na tentativa de respirar. Me mandaram encontrar a verdade. Preciso encontrar a verdade! Me deram um mapa. O X marca o lugar. O X riscado pela caneta no índice, nas partes referentes às metodologias.

CLAUSTROFOBIA

A verdade...

Mas a única verdade que conheço é a fenda na cicatriz da minha testa e a elevação endurecida na cicatriz da minha boca.

A ferida da minha boca cicatrizou... Eu mordo o meu lábio inferior para sentir o tecido duro do colágeno; pra não esquecer.

Cicatriz que ainda sangra...

Minha verdade? O sangue na boca. O gosto de sangue na boca.

Nem entendi o porquê.

Sei que vi algo que não deveria ter visto. Foi o que ele falou antes de me pegar pelos cabelos e me arremessar sobre a mesa de vidro que se estilhaçou em vários fragmentos, misturando-se aos cacos da menina de 5 anos.

Não sei o que vi. Mas devia ser a verdade. Talvez por isso, até hoje, eu não consiga encontrá-la. Talvez por isso, até hoje, eu tenha medo dela.

A VERDADE

CLAUSTROFOBIA

É verdade que o cigarro faz mal. Dá câncer!

Minha mãe fuma. Meu pai odeia cigarros. Minha mãe esconde os cigarros. Não fuma em casa.

Mas a verdade dos cigarros em sua bolsa é descoberta.

O cigarro faz mal. Meu pai odeia cigarro. O cigarro faz mal.

E ele fez minha mãe entender. Ele fez minha mãe aceitar a “verdade”. Ele fez minha mãe engolir, um por um, todos os cigarros da carteira... e o pacote que os continha.

“Você precisa aprender” - tapa na nuca - “engole” - tapa na nuca

E ela engolia os cigarros e as lágrimas.

O copo d’água que eu trouxe foi jogado ao chão e se estilhaçou, se misturando aos fragmentos da menina de 7anos.

Minha mãe precisa aceitar a verdade. Precisa engolir os cigarros.

E me mandaram buscar a verdade nos livros de metodologia científica.

Me mandaram engolir esses livros para achar verdade.

“Você precisa aprender” “Engole”

CLAUSTROFOBIA

Eu vejo minhas cordas. São elas que me sufocam. As cordas puxam - as marionetes andam; circulam por um globo que é quadrado; enquadrado pelas fôrmas duras da objetividade. Dados quadrados, textos quadrados. Ou eu sou dado ou eu os calculo. Quadrados duros e objetivos - ocos de vidas. Tudo na busca pela “verdade” incontestável que nunca chega.

Verdade... Verdades...

Textos quadrados

...

“Mas e esse curativo em seu pescoço?”

“Foi um tiro, doutora, pegou de raspão”

“Como assim um tiro?”

“Um tiro, doutora. Um acerto de contas lá perto da minha casa. Acabou pegando em mim”

“Meu Deus que absurdo!”

“Ah...lá no Bom Jardim é assim.”

O Bom Jardim é o bairro de Fortaleza que apresenta os índices mais alarmantes de violência de uma forma geral e o maior número de registros de violências contra mulheres.

As estatísticas me mostram que é assim. Os números.

Os “dados”. As pesquisas.

Essas pesquisas honraram dona Ana e sua história? Seu filho com Paralisia Cerebral, sua filha dependente química e seu neto de 1 ano do qual cuida?

Se não, essas pesquisas não me servem.

Essas pesquisas beneficiaram a quem? A que justiça essas pesquisas servem? Que políticas públicas elas orientaram? Buscaram justiça social ou encarceraram a violência dentro do Bom Jardim?

A segunda opção não me serve.

Os números também me mostram que o Bom Jardim é o bairro de maior vulnerabilidade social da cidade.

O mais populoso

Mais pobre

Mais jovem

Mas alguns números importam mais que outros.

Quem diz quais números importam?

Naturalização da exclusão. Naturalização de desumanição. Naturalização do genocídio.

“Lá no Bom Jardim é assim ...”

Objetividade plena (e seletiva), distanciamento do pesquisador, análise pura de (alguns) números. É sempre assim que os vilões interplanetários dos filmes de ficção concluem que a Terra precisa ser destruída; que a humanidade não tem salvação. Segundo os números frios da objetividade oca, não temos mesmo! Segundo os números frios da objetividade... que levam a concluir que

“Lá no Bom Jardim é assim”.

Houve uma morte por tiro na minha rua, durante uma tentativa de assalto. Bairro nobre da cidade. Foi notícia por semanas. Ninguém noticiou o tiro em dona Ana.

“Lá no Bom Jardim é assim?”

Essas pesquisas beneficiam a quem? A que justiça essas pesquisas servem? Que políticas públicas elas orientaram? Buscaram justiça social? Pra quem?

Pra dona Ana, seus filhos e seus netos?

Ou para a parcela “preocupada” e “consciente” da classe média e alta poder aplacar suas consciências e dormir à noite?

A segunda opção não me serve.

...

“Mas é esse o protocolo, não há o que questionar...”

“Você viu como as mãos dela tremiam?

Meu professor me olhou com um ar interrogativo. Ele não tinha visto.

Luciana veio encaminhada por seu cardiologista para inserir um dispositivo Intrauterino. Ela não pode usar métodos contraceptivos hormonais.

“Mas doutor, eu não posso usar o DIU...”

“Por quê?”

“Meu marido não quer.”

“Luciana, diga para o seu marido que é o método mais seguro para você, que você não pode usar hormônios, que a camisinha falha muito. É o ideal.”

“Mas ele não quer...”

“Diga para ele vir na próxima consulta que eu explico”.

O professor não viu.

O tremor nas mãos, o arregalar dos olhos, o vibrar da voz...

“Não, doutor, ele não vem, não”.

Ele não viu... Medo.

Eu conheço esse medo. Não... não posso conhecer a medo de Luciana. Mas me lembro. As mãos, os olhos, a voz de minha mãe. Antes de apanhar, antes de ter que engolir os cigarros.

Luciana tremia, seus olhos marejaram.

Os meus não. Fui treinada para não chorar. Não pela medicina, mas por meu pai:

Sobrevivência.

Se eu choro, eu quebro e me misturo aos cacos de vidro.

Mesmo secos, meus olhos viram. Viram minha mãe, viram Luciana, viram cigarros engolidos e cacos quebrados.

O professor não viu. Ele foi treinado para não ver. Treinado por uma sociedade que oculta a violência de gênero, que ignora seus encontros com aspectos raciais e de classe, que busca explicações simplistas para a violência. Explicações simplistas implicam em soluções simplistas, superficiais, rasas, insustentáveis.

A sociedade gosta do simplório, gosta da cosmiatria, não quer o feio, o sujo. Então esconde, sob camadas de maquiagem que nos permite, a nós, da classe média e alta, dormir à noite com nossos privilégios.

Espelhos são colocados e a sociedade analisa Luciana por esses espelhos.

“É responsabilidade dela.”

“Apanha quem quer! Por que não sair dessa situação?”

“Eu não aguentava isso.”

“Cada um faz a sua sorte” “Meritocracia”

...

CLAUSTROFOBIA

Os espelhos não deixam ver Luciana. Seu corpo vibra em ondas de medo. Mas os espelhos a tornam invisível.

E eu? Vejo Luciana, ou o espelho?

Não posso conhecer a sua dor, apenas a minha.

“De qualquer maneira, antes disso, precisamos fazer o exame. Vá ao banheiro e troque de roupa.”

Luciana sai.

“Ela não quer colocar o DIU.”

“Mas é esse o protocolo, não há o que questionar...”

“Você viu como as mãos dela tremiam?

O olhar interrogativo, a arqueada de sobrancelha e de repente a compreensão. Ele conseguiu ver uma fresta nos espelhos. Ele viu o tremor e finalmente conversou com Luciana e não apenas falou pra ela.

Eu vi os cacos quebrados.

Ela nunca quis estar ali. Ela nunca quis o DIU. Ela quer escapar ao estupro marital cotidiano.

O marido de Luciana era violento quando bebia. Meu pai não bebia, mas era violento. O marido de Luciana bebia todo dia.

Condicionada à sujeição, Luciana não tinha forças para ir contra o marido; condicionada à sujeição, ela não tinha forças para ir contra as determinações médicas. Não tinha forças sequer para perguntar, esclarecer as dúvidas, vencer o medo.

As orientações sobre o DIU estavam erradas? Não. Tecnicamente a inserção do DIU seria uma escolha contraceptiva possível e segura para Luciana.

Mas era o que ela queria?

A prática em saúde baseada em evidências deve encontrar a prática centrada na pessoa, caso contrário, corre o risco de tornar-se um fim em si mesma (Weaver, 2015WEAVER, Robert. 2015. Reconciling evidence-based medicine and patient-centred care: defining evidence-based inputs to patient-centred decisions. J Eval Clin Pract. Vol. 21, núm. 6, p.1076-1080.) e tornar-se umbilicocêntrica. Conceitos teóricos deveriam dialogar com experiências vividas, e não as suplantar.

Subordinar experiências vividas a conceitos teóricos é desqualificá-las, minimizá-las, colonializá-las (Santos e Menezes, 2010SANTOS, Boaventura Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). 2010. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez.). Nos tornamos docentes melhores e pesquisadores melhores quando entendemos isso. Se uma pesquisa serve para manter estruturas hierárquicas de poder, que subjugam, oprimem, silenciam e desbotam mulheres, negros, homossexuais, transgêneros, pobres, pessoas com deficiência, sendo incapaz de se localizar nas tensões entre as experiências particulares e as expressões dominantes do poder discursivo (Neumann, 1996NEUMANN, Mark. 1996. “Collecting ourselves at the end of the century”. In: ELLIS, Carolyn; BOCHNER, Art. (org.) Composing ethnography: Alternative forms of qualitative writing. Walnut Creek, CA: Altamira. p. 172-198.), essa pesquisa não me interessa.

Se segue selecionando quem pode pertencer ao centro e quem está condenado à margem, excluído das salas de aula, da academia e das estruturas educacionais (Moreira e Diversi, 2011MOREIRA, Cláudio; DIVERSI, Marcelo. 2001. “Missing bodies: Troubling the colonial landscape of American academia”. Text and Performance Quarterly. vol. 31, núm.3. p. 229-248.), essa pesquisa já não me serve.

...

A história nos mostra que uma prática umbilicocêntrica, dogmática e sem criticidade construiu “degenerescências” que culminaram no genocídio de inúmeros “degenerados” - negros, pobres, gays, mulheres, pessoas com deficiência.

Seria meu filho autista um degenerado? Um dia, a ciência já disse que sim. A mutilação do cérebro de pessoas como ele fora inclusive laureada com um prêmio Nobel (Masiero, 2003MASIERO, André Luis. 2003. “A lobotomia e a leucotomia nos manicômios brasileiros”. Hist. cienc. saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 10, nº 2, p. 549-572.). Desde então, diferentes outras formas de segregação surgiram.

Deveriam as escolas ser inclusivas (Mantoan, 2003MANTOAN, Maria Teresa Egler. 2003. Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer?. São Paulo: Moderna.)? Teria meu filho autista o direito de estudar em uma escola regular? Ainda existe quem diga que não. Mas meu filho estuda. O filho de dona Ana, não.

“É que não tinha vaga para pessoas especiais”

Mudar na forma e não na estrutura: A forma mais eficaz de manutenção

...

Luciana já havia denunciado a violência do marido uma vez. Ficou em um abrigo por 3 meses. Depois, teve de sair.

Era a rua com os 4 filhos.

Ou voltar para o marido.

Enquanto estava no abrigo, Luciana participou de uma pesquisa.

“Respondi o que ela perguntou, mas não dá pra explicar isso. Tem que viver na carne pra saber. Por isso eu não falo mais. Não adianta. Não adianta eu falar. O que vai mudar?”

Em mim mudou. Reativou a dor. Mais uma vez não pude ajudar minha mãe. Passaram-se 17 anos e eu ainda não posso ajudar minha mãe. Inúmeras pesquisas foram realizadas, mudanças legais foram conquistadas, mas nada mudou para

Luciana

e eu ainda não posso ajudar minha mãe.

Números, falas, textos ou discursos... não importa. Se for para ignorar as questões de gênero, raça e classe que atravessam a realidade de

Dona Ana

Luciana Minha Mãe,

esse conhecimento é superficial e não me serve.

Cuidado, pesquisadores, com a realidade que nós medimos e pintamos!

Verdades embaçadas são bastante perigosas!

“Lá no Bom Jardim é assim”

Se não for para enfrentar “o componente ideológico central de todos os sistemas de dominação na sociedade ocidental” (hooks, 1984, p. 29HOOKS, Bell. 1984. Feminist Theory: From margin to center. Boston: South End Press.), se a luta é apenas por uma mudança de posições hierárquicas hegemônicas, esse ativismo seletivo e essa pesquisa ingênua não me servem.

Ingênua? Inocente?

Mesmo?

Nenhuma escrita é inocente (Denzin, 2010DENZIN, Norman. 2010. The Qualitative Manifesto - A Call to Arms. Walnut Creek, CA: Left Coast Press.) ...

Verdade?

Se for pra ignorar as experiências vividas e as histórias de opressão que se encontram nas intersecções entre os coletivos, essas pesquisas impositivas não me servem.

E pode ser imposição apesar da nossa boa intenção

Pode ser imposição apesar do nosso sorriso no rosto

Feridas narcísicas de “pessoas comprometidas”, mas impositivas, incapazes de autoanálise e de escutar as pessoas envolvidas, não me importam nem um pouco.

CLAUSTROFOBIA

...

Minha língua sente o sangue. A ferida na minha boca...

não...

a ferida que é a minha boca e pela qual eu falo (Weems, 2003WEEMS, Mary E. 2003. Public education and the imagination-intellect: I speak from the wound in my mouth. New York: Peter Lang, 2003.).

Meu sangue, a saliva, o cigarro

Saia de perto de mim, senhor “deus único do monoteísmo da objetividade” (Haraway, 1988HARAWAY, Donna. 1988. “Situated Knowledge: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies, vol.14, núm.3, p.575-599., p. 587) e das boas intenções colonialistas! Eu não serei mais jogada sobre o vidro. Seu sêmen não vai fecundar na minha saliva! Eu não vou fortalecer você. Meu trabalho não vai reforçar o braço do meu pai. Minha pesquisa não será comparte do massacre da minha mãe. Eu não serei cúmplice do genocídio contemporâneo. Eu não serei instrumentalizada em seu benefício.

Não vou utilizar suas ferramentas! (Lorde, 2018LORDE, Audre. 2018. The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House. Londres: Penguin Classics.).

Então, qual verdade eu (re)conheço?

A ferida, a cicatriz e o sangue na minha boca.

E que ninguém diga que não é conhecimento, que não é pedagógico, que não é político (Denzin, 2003DENZIN, Norman. 2003. Performance ethnography: Critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks, CA: Sage.).

Eu falo da minha dor.

E, então, respiro.

Referências Bibliográficas:

  • DENZIN, Norman. 2003. Performance ethnography: Critical pedagogy and the politics of culture Thousand Oaks, CA: Sage.
  • DENZIN, Norman. 2010. The Qualitative Manifesto - A Call to Arms Walnut Creek, CA: Left Coast Press.
  • HARAWAY, Donna. 1988. “Situated Knowledge: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective”. Feminist Studies, vol.14, núm.3, p.575-599.
  • HOOKS, Bell. 1984. Feminist Theory: From margin to center Boston: South End Press.
  • LORDE, Audre. 2018. The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House Londres: Penguin Classics.
  • MANTOAN, Maria Teresa Egler. 2003. Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna.
  • MASIERO, André Luis. 2003. “A lobotomia e a leucotomia nos manicômios brasileiros”. Hist. cienc. saúde-Manguinhos Rio de Janeiro, vol. 10, nº 2, p. 549-572.
  • MIN-HA, Trịnh Thị. 1992. Framer Framed: Film Scripts and Interviews New York, Routledge.
  • MOEN, Vigdis. 2018. “Identity and self-understanding among transgender women in Norway”. Nordic journal of social Research n. 9, p. 68-88.
  • MOREIRA, Cláudio; DIVERSI, Marcelo. 2001. “Missing bodies: Troubling the colonial landscape of American academia”. Text and Performance Quarterly vol. 31, núm.3. p. 229-248.
  • NEUMANN, Mark. 1996. “Collecting ourselves at the end of the century”. In: ELLIS, Carolyn; BOCHNER, Art. (org.) Composing ethnography: Alternative forms of qualitative writing Walnut Creek, CA: Altamira. p. 172-198.
  • PELIAS, Ronald. J. 2013. “Writing Autoethnography”. In: JONES, Stacy Holman.; ADAMS, Tony E.; ELLIS, Carolyn. (org.). Handbook of Autoethnography Walnut Creek: Left Coast Press, p.384-405.
  • SANTOS, Boaventura Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). 2010. Epistemologias do Sul São Paulo: Cortez.
  • WEAVER, Robert. 2015. Reconciling evidence-based medicine and patient-centred care: defining evidence-based inputs to patient-centred decisions J Eval Clin Pract. Vol. 21, núm. 6, p.1076-1080.
  • WEEMS, Mary E. 2003. Public education and the imagination-intellect: I speak from the wound in my mouth New York: Peter Lang, 2003.
  • 1
    O presente artigo trata-se de uma Autoetnografia Performática, sendo, portanto, orientada pela episteme pós-colonial. Essa abordagem permite uma escrita descolonizadora que incorpora, no próprio corpo do texto, a linguagem e a estrutura poética, com trechos em poesia e linguagem subjetiva, a fim de aprofundar a experimentação desta pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2021
  • Aceito
    24 Ago 2021
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) R. São Francisco Xavier, 524, 6º andar, Bloco E 20550-013 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel./Fax: (21) 2568-0599 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: sexualidadsaludysociedad@gmail.com