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Itinerários terapêuticos da população trans em um município do nordeste brasileiro

Therapeutic Itineraries of the Transgender in a Northeastern Brazilian City

Itinerarios terapéuticos de la población transexual en una ciudad del noreste de Brasil

Resumo

O artigo apresenta resultados de pesquisa qualitativa sobre os itinerários terapêuticos da população trans no município de Timon - Maranhão a partir da realização de entrevistas individuais e semiestruturadas com oito pessoas trans (dois homens e seis mulheres). A análise dos dados foi realizada com base no referencial teórico da hermenêutica de Paul Ricoeur. A partir das narrativas dos participantes da pesquisa, foram reconhecidas três unidades de significado: “a construção do ser-trans”, “o acesso à saúde da população trans” e, também, “itinerários terapêuticos (trans)formados”. Os itinerários mencionados não apresentaram vínculos formais entre os serviços, nem tampouco garantia de acesso e continuidade do cuidado.

Palavras-chaves:
pessoas trans; acesso à saúde; transexualidade; saúde coletiva; Nordeste

Abstract

A qualitative research was carried out on the therapeutic itineraries followed by the trans population in the municipality of Timon - Maranhão, through individual and semistructured interviews with eight trans people (two men and six women). Data analysis was performed based on the theoretical framework of Paul Ricoeur’s hermeneutics. From the narratives of the research participants, three units of meaning were recognized: “the construction of the being-trans”, “the access to health of the trans population” and, also, “therapeutic (trans) formed itineraries”. The mentioned itineraries did not present formal links between the services, nor guarantee access and continuity of care.

Keywords:
trans people; access to health; transsexuality; collective health; North East

Resumen

Se realizó una investigación cualitativa sobre los itinerarios terapéuticos de la población trans en el municipio de Timón - Maranhão, a través de entrevistas individuales y semiestructuradas a ocho personas trans (dos hombres y seis mujeres). El análisis de los datos se realizó con base en el marco teórico de la hermenéutica de Paul Ricoeur. A partir de las narrativas de los participantes de la investigación, se reconocieron tres unidades de significado: “la construcción del ser-trans”, “el acceso a la salud de la población trans” y, también, “itinerarios terapéuticos (trans) formados”. Los itinerarios mencionados no presentaban vínculos formales entre los servicios, ni garantizaban el acceso y la continuidad de la atención.

Palabras clave:
personas trans; acceso a la salud; transexualidad; salud pública; Noreste

Introdução

Embora seja inegável que existem importantes conquistas sociais acerca da temática LGBTQI+ (que se refere à população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti, Transexual, Queer, Intersexual e de outras orientações sexuais, identidades e expressões de gênero), muito há que ser feito e discutido, em especial, no setor da saúde (Facchini, 2009FACCHINI, Regina. 2009. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond.; Reis, 2018REIS, Toni. (org.). 2018. Manual de Comunicação LGBTI+. Curitiba: Aliança Nacional LGBTI / GayLatino.). Isso se torna, ainda, mais específico e complexo, quando tratamos de homens e mulheres transexuais.

Os homens e mulheres transexuais (população trans) se identificam com uma masculinidade e/ou feminilidade diferente daquela esperada pela sociedade em função do seu sexo biológico. Diante da multiplicidade de fatores que levam aos conflitos com o corpo, é o sentimento que leva um indivíduo a se perceber como pertencente a um determinado gênero. Isso leva essas pessoas a reivindicar por intervenções corporais para adequar o sexo assignado ao nascer à identidade de gênero (Maksoud, Passos, Pegoraro, 2014MAKSOUD, Fernanda Resende; PASSOS, Xisto Sena; PEGORARO, Renata Fabiana. 2014. “Reflexões acerca do transtorno de identidade de gênero frente aos serviços de saúde: revisão bibliográfica”. Rev. Psicologia e Saúde. Dezembro de 2014. Rio de Janeiro. Vol. 6, nº 2, p. 47-55.; Jorge, 2018JORGE, Marco Antônio Coutinho; TRAVASSOS, Natália Pereira. 2018. Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.).

Dentre as demandas da população trans, podemos citar procedimentos médicos complexos, como as hormonioterapias, ablação das mamas, colocação de próteses, raspagens de protuberâncias ósseas e cirurgias de transgenitalização, por exemplo (Jorge, 2018JORGE, Marco Antônio Coutinho; TRAVASSOS, Natália Pereira. 2018. Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.). Nessa busca, não há, necessariamente, reivindicação por cirurgias de transgenitalização, uma vez que a transformação do corpo por meio de hormônios já seria suficiente para lhes garantir um sentido identitário (Santos, Sousa, 2017SANTOS, Francisco Rogery Martins; SOUSA, Maria Lidiany Tributino. 2017. “Implicações ético-políticas do corpo travesti nas políticas de saúde”. Sanare. Sobral. Vol. 16, supl. 01, p.48-57.). Contudo, é importante reconhecer as singularidades que giram em torno dessa temática e mencionar que todos esses procedimentos estão relacionados à atuação de uma equipe multiprofissional e com práticas interdisciplinares indispensáveis.

Há que se salientar ainda que embora a demanda pela cirurgia de transgenitalização não seja apresentada por todas as pessoas trans, existe uma longa fila de espera pelo procedimento no Sistema Único de Saúde (SUS) o que ocasiona um grande período de espera pelo procedimento. Esse período de espera, ou até mesmo o acesso ao procedimento, varia de acordo com a região e/ou cidade. O local no qual o estudo foi desenvolvido, por exemplo, não possui nenhum serviço de saúde direcionado ou que garanta o acesso dessa população aos procedimentos inerentes ao processo transexualizador.

De fato, a população trans apresenta uma pluralidade de necessidades e demandas para o setor da saúde, desde os modos de vida ao acesso às ações, serviços e tecnologias, à construção de relações e criação de vínculos afetivos e, também, à necessidade de autonomia. Vale mencionar que o acesso às ações, serviços e tecnologias não se restringem apenas ao uso, ou não, dos mesmos, mas incluem a qualificação profissional e suficiência de recursos (Cecílio, 2010CECÍLIO, Luiz Carlos de Oliveira. 2010. “As necessidades de saúde como Conceito Estruturante na Luta pela Integralidade e Equidade na Atenção em Saúde”. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (orgs.). Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, Abrasco. p. 113-126.; Brasil, 2010BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF. Disponível em:Disponível em:https://bvsms. saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf [Acesso em 12.08.2019].
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). Assim, são geradas muitas dúvidas quanto à suficiência de equipamentos e recursos, ao acesso à saúde nos diferentes níveis de atenção e às relações construídas nesses espaços. Desta forma, buscamos compreender os itinerários terapêuticos da população trans em um município do nordeste brasileiro, Timon, no Maranhão.

Nesse texto, optamos pela escrita do texto na primeira pessoa do plural, porque nós, autores, estamos implicados com o conteúdo expresso nesse artigo. Trata-se de uma possível compreensão diante do nosso esforço de nos aproximarmos desse objeto de estudo. É importante destacarmos aqui a forma com que essa nossa aproximação do tema nos afeta, bem como o lugar a partir do qual falamos. Somos profissionais de saúde, nordestinos, brancos, cisgêneros, com histórico de militância dentro e fora do ambiente acadêmico, imersos em uma cultura machista, homofóbica e transfóbica, com formação e desenvolvimento acadêmico que não contemplaram discussões relacionadas ao tema. Nosso envolvimento com o tema é uma reação à cultura machista da qual fazemos parte e desejamos contribuir para a transformação.

Diante disso, sentimos a necessidade de nos aproximarmos com o tema. Os resultados aqui apresentados são parte das conclusões de uma pesquisa desenvolvida em um mestrado profissional de saúde da família. O fator disparador para a referida pesquisa foi o fato de um dos pesquisadores ter vivenciado no seu processo de trabalho, junto à atenção básica do município no qual a pesquisa foi desenvolvida, um episódio de violência institucional no qual uma mulher trans foi induzida a buscar outro serviço de saúde, em face aos argumentos de que aquele serviço não era adequado para ela, recomendando que fosse em busca do Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) do município. A partir disso, entendi que era necessário promover alguma forma de modificação do atendimento em saúde naquele município.

No que se refere à metodologia, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa (Bosi, Mercado-Martínez, 2004BOSI, Maria Lucia Magalhães; MERCADO-MARTÍNEZ, Francisco (orgs.). 2004. Pesquisa Qualitativa de Serviços de Saúde. Petrópolis, RJ: Vozes.; Tong, Sainsbury, Craig, 2007TONG, Allison; SAINSBURY, Peter; CRAIG, Jonathan. 2007. “Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups”. International Journal for Quality in Health Care. Vol. 19, nº 6, p. 349-357.) sobre os itinerários terapêuticos da população trans no município de Timon, Maranhão. Trata-se do terceiro município mais populoso do estado, com população estimada de 169.107 habitantes para 2019 (IBGE, 2019IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. 2019. Disponível em: Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/timon/panorama . [Acesso em 10.09.2019].
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). Está conurbado à capital do vizinho estado do Piauí, Teresina, fazendo parte da Região Integrada de Desenvolvimento da Grande Teresina.

Optamos por realizar entrevistas individuais e semi-estruturadas com homens e mulheres trans. Entendemos que existem particularidades quanto às necessidades, demandas e representações de homens e mulheres trans. Contudo, partimos do pressuposto que os recursos nessa região de saúde são restritos para essa temática e intencionamos atentar para o acesso aos equipamentos e dispositivos de referência, assim como os itinerários terapêuticos construídos.

Houve dificuldades quanto ao recrutamento dos participantes, uma vez que não foram identificados grupos sociais organizados para essa temática no município. Aliado a isso, os profissionais de saúde não souberam informar nenhum caso nos seus territórios de atuação. Dessa forma, a mobilização ocorreu a partir de atores sociais e grupos de referência no município vizinho, Teresina, Piauí.

Na abordagem qualitativa de pesquisa, as amostras são propositais (purposeful sampling), já que se buscam apreender e entender certos casos selecionados sem necessidade de generalização para todos os casos possíveis (Palinkas et al, 2015PALINKAS, Lawrence; HORWITZ Sarah; GREEN Carla; WISDOM Jennifer; DUAN Naihua; HOAGWOOD Kimberlie. 2015. “Purposeful Sampling for Qualitative Data Collection and Analysis in Mixed Method Implementation Research”. Administration and Policy in Mental Health. Vol. 42, nº 5, p. 533-544.). A partir do primeiro participante recrutado, foi obtido um segundo contato e, assim, sucessivamente, utilizando a técnica metodológica intitulada Snowball, amplamente divulgada como Snowball Sampling (traduzida como “amostra Bola de Neve”). Essa é uma técnica muito aplicada em pesquisas sociais em que os sujeitos inicialmente recrutados indicam novos participantes que continuam a indicar outros sujeitos até que os objetivos sejam alcançados (Salganik; Heckathorn, 2004SALGANIK, Matthew; HECKATHORN Douglas. 2004. “Sampling and estimation in hidden populations using respondent-driven sampling”. Sociological Methodology 34: 193- 239).

As entrevistas foram realizadas entre maio e julho de 2019, em local sugerido pelos participantes, na Secretaria de Direitos Humanos do município, em suas residências ou locais de trabalho. A partir dos procedimentos de amostragem por saturação teórica (Fontanella et al, 2011FONTANELLA, Bruno Jose Barcellos et al. 2011. “Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cadernos de Saúde Pública. Fevereiro de 2011. Rio de Janeiro. Vol. 27, nº 2, p. 388-394.), foram realizadas entrevistas com oito participantes, sendo seis mulheres e dois homens trans. As entrevistas foram gravadas, transcritas pelo primeiro autor, com participação do segundo autor em algumas entrevistas. Analisamos as entrevistas em blocos, intercaladas ao processo imersão em campo, sem a utilização de nenhum software profissional, a partir do referencial teórico da hermenêutica de Paul Ricoeur (1976)RICOEUR, Paul. 1976. Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70..

Segundo o projeto filosófico e hermenêutico de Ricoeur, a hermenêutica não é só um trabalho de procura e apropriação do sentido dos textos, dos símbolos ou da ação, na dimensão temporal de uma narrativa, mas, sobretudo, um trabalho de compreensão de nós próprios e do mundo em que vivemos. A hermenêutica é o processo pelo qual o significado é desvelado para além do conteúdo manifesto, traz um pensamento com delineamentos novos, o qual só é possível ser compreendido a partir do contexto da história da sua vida e das reflexões realizadas das inúmeras correntes filosóficas, tanto afins como contrárias (Ricoeur, 1976RICOEUR, Paul. 1976. Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70.).

Aqui, a análise e interpretação das narrativas se deram em três fases: leitura inicial do texto, leitura crítica e apropriação. A leitura inicial do texto teve como objetivo compreendê-lo de maneira superficial, por meio da percepção dos primeiros significados. Foi realizada várias vezes e sem julgamentos, de modo que o pesquisador apreendeu os significados e pode organizá-los. Logo após, foi realizada a leitura crítica com a finalidade de interpretar e compreender os prováveis significados imbuídos no texto. Por fim, a apropriação foi feita com a compreensão e assimilação da mensagem desvelada (Terra et al, 2009)TERRA, Marlene Gomes et al. 2009. “Fenomenologia-hermenêutica de Paul Ricoeur como referencial metodológico numa pesquisa de ensino em enfermagem”. Acta Paulista de Enfermagem. Fevereiro de 2009. São Paulo. Vol. 22, nº 1, p. 93-99..

Enquanto projeto de pesquisa, a investigação cumpriu com os princípios éticos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil para a obtenção do consentimento Robin dos participantes e garantia da preservação da confidencialidade dos dados. O projeto foi aprovado pelo Comitê Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (CEP/UFPI) tendo seu parecer aprovado com o número 3.305.227.

Tendo em vista garantir o anonimato dos participantes entrevistados, utilizamos a identificação por meio de nomes fictícios inspirados em séries e filmes premiados que trataram da temática e cujos elencos eram compostos por pessoas trans, conforme o quadro sinóptico a seguir.

Quadro 1:
Registro dos participantes da pesquisa, segundo característica, idade, escolaridade e raça/cor:

No decorrer da pesquisa, embora não estivesse entre os objetivos inicialmente estabelecidos, acabamos por nos depararmos com a necessidade de caracterização das pessoas entrevistadas quanto a raça/cor, gênero e escolaridade. Apesar de considerarmos esses elementos de suma importância para compreendermos as questões, inclusive sociais, relativas à essa população, optamos por não incorporá-los às análises do presente artigo, servindo assim, para trabalhos futuros.

A partir das narrativas de homens e mulheres trans, reconhecemos três unidades de significado, a saber: a construção do ser-trans; o acesso à saúde da população trans; e itinerários terapêuticos (trans)formados. A seguir, trataremos de cada uma delas.

A construção do ser-trans

A primeira unidade de significado faz referência à construção de uma identidade relacionada ao grupo de participantes dessa pesquisa e ao “ser” imerso em muitas histórias de vida e que, por isso, compõe um grupo singular. Utilizamos o termo “ser-trans” como título dessa categoria, pois aqui trataremos da construção desses sujeitos enquanto pessoa, apresentando suas vivências e experiências que, durante a pesquisa, identificamos como sendo fator preponderante para as pessoas que se tornaram. Poderemos perceber isso nas falas que serão aqui apresentadas. Pretendemos ainda, responder quem são as pessoas que apresentam essas narrativas para além de um potencial epistemológico, uma vez que tratamos de aspectos relacionados ao cuidado em saúde (perspectiva ontológica).

Observamos que o processo de construção do ser-trans é arraigado por uma série de discordâncias entre o corpo e a percepção das pessoas em torno de si mesmas: ser trans é ser uma pessoa que não se sente bem com o corpo que nasceu” (A Candy); “é ter vontade de ser o que não nasceu” (A Angel). Trazemos então uma contribuição de Jesus (2012)JESUS, Jaqueline Gomes. 2012. “Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos”. Brasília, DF. Disponível em: Disponível em: http://www.diversidadesexual.com.br/wp-content/uploads/2013/04/G%C3%8ANERO-CONCEITOS-E-TERMOS.pdf [Acesso em 30.03.2021].
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Diria que as pessoas transexuais lidam de formas diferentes, e em diferentes graus, com o gênero ao qual se identificam. Uma parte das pessoas transexuais reconhece essa condição desde pequenas, outras tardiamente, pelas mais diferentes razões, em especial as sociais, como a repressão. A verdade é que ninguém sabe, atualmente, por que alguém é transexual, apesar das várias teorias.

A transexualidade é um fenômeno social e está marcada pela subjetividade. Está relacionada com a autodeclaração do sujeito, ou seja, com a forma de pensar, agir e sentir-se. Assim, é preciso valorizarmos as narrativas desses participantes sobre suas próprias vivências, sobre sua história e, principalmente, sobre o olhar sobre si mesmos (Alves; Moreira, 2015)ALVES, Cláudio Eduardo Resende; MOREIRA, Maria Ignez Costa. 2015. “Do uso do nome social ao uso do banheiro: (trans)subjetividades em escolas brasileiras”. Quaderns de Psicologia. Barcelona. Vol. 17, nº 3, p. 59-69..

A narrativa de uma das participantes quanto à forma com a qual se percebe é bastante inquietadora: “acredito que quanto mais eu me mutilo, mais brigo com o espelho” (A Blanca). Vale aqui especificarmos o sentido de mutilação apontado pela entrevistada. Para ela, os procedimentos que realiza na busca por um corpo feminizado, muitas vezes produziram marcas e sequelas tanto física como psicológicas. A esse respeito, a entrevistada mencionou ter buscado por uma cirurgia no rosto visando ter contornos mais femininos, e para tanto, provocou fraturas nos ossos da face.

Dessa forma, são percebidas as demandas e necessidades em saúde por um corpo cada vez mais consoante com a identidade de gênero. Para Merleau-Ponty (2006)MERLEAUPONTY, Maurice. 2006. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes., o corpo não é meramente um constructo passível de modificações que se efetiva conforme o sujeito se modifica e se constrói, não há uma separação ou dicotomia entre sujeito e corpo ou entre mente e corpo, mas o sujeito é seu corpo. É possível compreendermos que a discordância de como essas pessoas se veem no espelho e como se percebem traz um peso para o desenvolvimento das suas vidas.

A construção do ser-trans envolve, ainda, nuances relacionadas à falta de compreensão da transexualidade e dificuldades de se perceberem enquanto transexuais (Albuquerque, 2016)ALBUQUERQUE, Grayce Alencar et al. 2016. “Violência psicológica em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no interior do Ceará, Brasil”. Saúde em debate. Junho de 2016. Rio de Janeiro. Vol. 40, nº 109, p. 100-111.. Isso é inerente à subjetividade do sujeito e faz referência ao campo dos sentimentos: “até por volta dos dez anos de idade era tudo normal [...] quando começou a desenvolver minha mama, comecei a me incomodar e passei, então, a ficar mais masculino” (O Buck). Há que se falar, ainda, acerca das dificuldades de reconhecer a identidade de gênero: “no início, acreditava que eu era travesti, mas não bastava me vestir como mulher [...] sempre sentia falta de algo” (A Candy); “acreditava que era lésbica por sempre ter sido masculinizada, mas era mais que isso” (O Robin).

Outro ponto importante nesse processo de construção é a interferência provocada pela família, muitas vezes motivada pela não aceitação ou, até mesmo, incompreensão sobre a transexualidade: “em casa, eu tive alguns problemas, minha avó não me aceitava, dizia que não era coisa de Deus eu ser masculino” (O Robin). É notório, em todos os discursos, o quanto a família impacta diretamente as construções das pessoas trans participantes da pesquisa, tanto positivamente quanto negativamente: “gostava de futebol, mas brincava de boneca também [...] meus pais achavam estranho, mas não comentavam [...] meu pai até jogava futebol comigo” (O Buck).

O ser-trans tem sido construído a partir de um terreno bastante instável, potencializado pelos conceitos da cisheteronormatividade que impõe padrões aceitáveis e coloca toda manifestação diversa como errônea, equivocada e patologizada, intensificando as vulnerabilidades às quais as pessoas trans estão sujeitas e exigindo uma magnitude de esforços e a aglutinação de diferentes recursos.

Observamos, por meio das narrativas, que a violência é um dos alicerces para essa construção: “meu pai me espancava [...] me deixava presa no banheiro, depois se arrependia e vinha me ninar [...] aquilo era perturbador” (A Blanca). Isso parte da reação frente à patologização das identidades de gênero, uma vez que foge aos padrões estabelecidos socialmente e culmina com a falta de aceitação do sujeito (Rocon et al, 2016ROCON, Pablo Cardozo et al. 2016. “Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde”. Ciência e saúde coletiva. Agosto de 2016. Rio de Janeiro. Vol. 21, n. 8, p. 2517-2526.; Silva et al, 2016)SILVA, Glauber Weder dos Santos et al. 2016. “Situações de violência contra travestis e transexuais em um município do nordeste brasileiro”. Revista Gaúcha de Enfermagem. Junho de 2016. Porto Alegre. Vol. 37, nº 2, p. 1-7.. A sujeição a situações como essa potencializa a vulnerabilidade e interferem diretamente nos modos como essas pessoas se percebem.

É possível observarmos que, conforme o posicionamento familiar, as pessoas trans terão maior facilidade ou dificuldade de reconhecerem sua transexualidade, inclusive de conseguirem iniciar seus processos de transição de forma segura e acompanhada: “quando estava próximo de concluir o Ensino Médio, pedi que minha mãe me levasse ao endócrino [...] não queria que meus pais sofressem, por isso eu queria fazer tudo certo” (O Buck). Nesse caso, houve comentários acerca dos efeitos: “a médica iniciou a hormonioterapia comigo, parei de menstruar e meus seios foram diminuindo” (O Buck).

Para além da dificuldade enfrentada nos seus processos de construção do ser-trans, está a dificuldade da sociedade em fazer essa diferenciação entre gênero e orientação sexual. Essa barreira, muitas vezes colocada pela sociedade, traz implicações severas às vidas dessas pessoas, dentre elas, o fato de não conseguirem perceber normalidade em seus contextos ou, até mesmo, de se sentirem tolhidas quanto ao seu afeto: “meu maior problema é as pessoas não compreenderem que eu sou homem trans gay” (O Buck).

Acerca da construção social das pessoas transexuais, faz-se necessário refletirmos sobre como a sociedade vem tratando essa população e sobre a garantia dos direitos. Percebemos limitação quanto à permanência nas escolas e ocupação dos espaços de trabalho. Albuquerque (2016)ALBUQUERQUE, Grayce Alencar et al. 2016. “Violência psicológica em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no interior do Ceará, Brasil”. Saúde em debate. Junho de 2016. Rio de Janeiro. Vol. 40, nº 109, p. 100-111. menciona ser frequente nos depararmos com discursos de abandono escolar devido às violências sofridas nesses espaços: “essas violências aconteciam em todos os lugares, na escola, principalmente, [...] três meninos me trancaram no banheiro, me agrediram e um deles me estuprou [...] a diretora falou para minha mãe que era mentira e que a culpa era minha por ter esse meu jeito” (A Candy).

Para além dessas violências sofridas, observamos a negligência por parte das pessoas que deveriam zelar pela integridade física dessas crianças e adolescentes, bem como da permanência dessas pessoas nos espaços escolares. É como se as políticas públicas e as garantias mínimas de direitos não chegassem ou não assistissem às pessoas transexuais desde, até mesmo, o seu processo de formação enquanto membros da sociedade. Corroborando com essa reflexão, Luma Andrade, travesti, cearense e doutora em educação, nos traz elementos bastante significativos acerca da relação entre a escola, a sociedade e a família, onde a pesquisadora aponta que mesmo que haja a aceitação por parte da família, a escola tentará persuadir essa mulher trans ou travesti a não performar a sua feminilidade sob o julgo do que é melhor ou sob o escopo do socialmente aceitável (Andrade, 2019ANDRADE, Luma Nogueira. 2019. “ Assujeitamento e disrupção de um corpo que permanece e resiste: possibilidade de existência de uma travesti no ambiente escolar”. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde. Rio de Janeiro. Vol. 13 (2), nº 1822. Disponível em: https://www.reciis.icict.fiocruz.br/ index.php/reciis/article/view/1822 [Acesso em 12.07.2021].
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)

Devido a essas barreiras impostas pela sociedade, no que tange ao acesso e permanência da população trans nos espaços escolares, Rocon; Sodre; Rodrigues (2016)ROCON, Pablo Cardozo; SODRE, Francis; RODRIGUES, Alexsandro. 2016. “Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro: uma análise sobre a política pública”. Rev. katálysis. Setembro de 2016. Florianópolis. Vol. 19, nº 2, p. 260-269. relata que lhes restam poucas alternativas de trabalho. Uma delas, talvez a mais frequente, é a prostituição: “comecei a fazer programa por querer me arrumar melhor, colocar meus seios [...] foi difícil, porque os espaços são demarcados e, se entrar no espaço das outras, você é agredida” (A Jazmine).

Embora haja uma superioridade considerável acerca do exercício da prostituição por parte das mulheres Trans entrevistadas, existem casos em que essa opção é refutada por elas. No entanto, devido à baixa escolaridade, há barreiras impostas pela sociedade, preconceito e discriminação relacionada à identidade de gênero: “cheguei a participar de uma seleção de emprego, mas senti muito preconceito em quem fez a seleção” (A Angel). Foi frequente encontrarmos narrativas de que a alternativa foi atuarem no ramo da beleza e estética, mais especificamente, em salões de beleza: “[...] minha mãe temia que eu me vulgarizasse, ela me apoiou muito, me ajudou a montar o meu primeiro salão de beleza” (A Elektra).

Conforme Cardoso (2012)CARDOSO, Telma Abdalla de Oliveira. 2012. “Prazer e dor na docência: revisão bibliográfica sobre a Síndrome de Burnout”. Saúde e Sociedade. Março de 2012. São Paulo. Vol. 21, nº. 1, p. 129-140., com a ida dessas mulheres transexuais para a prostituição, outro problema se torna evidente, a violência sofrida nas ruas, quer seja pelos clientes, por outras mulheres transexuais ou, até mesmo, pela população de modo geral, em face à transfobia: “sofri espancamento, tive minha roupa queimada, fui arrastada [...] uma vez um cliente surtou, me arremessou do carro em movimento” (A Blanca). Isso potencializa a questão da vulnerabilidade: “quando você vai fazer o programa nunca sabe como vai ser [...] de que tipo de cliente é aquele [...] tem que estar preparada para qualquer situação [...] drogas, violência” (A Blanca). A rua contribuiu para o processo de construção do ser-trans: “minha construção como pessoa se deu a partir das vivências na rua” (A Blanca).

Com toda essa violência sofrida desde a infância no ambiente familiar, na escola e, posteriormente, nas ruas, a construção do ser-trans vem carregada de marcas nas vidas dessas pessoas, às quais, frequentemente, interferirão no seu desenvolvimento social e emocional. Segundo Lattanzio; Ribeiro (2017)LATTANZIO, Felippe Figueiredo; RIBEIRO, Paulo de Carvalho. 2017. “Transsexuality, psychosis and originary femininity: between psychoanalysis and feminist theory”. Psicologia USP. Abril de 2017. São Paulo. Vol. 28, nº 1, p. 72-82., essas marcas perpassam a necessidade de pertencimento que essas pessoas expressam, causando, assim, desordem na perspectiva da sua representação social: “eu acreditava que tendo um lugar só para mim, uma casa só minha seria melhor, mas não, aquela criança espancada ressurgia e eu não conseguia ter paz, não dormia, entrei em depressão” (A Blanca).

O acesso à saúde da população trans

Para essa discussão, trouxemos elementos importantes, identificados a partir das entrevistas, acerca de experiências vividas nos serviços de saúde, em especial, na perspectiva do acesso. Para fundamentar nosso discurso, partiremos dos conceitos de saúde e cuidado assumidos pelos participantes e no reconhecimento das suas necessidades e demandas: saúde é estar bem comigo mesmo [...] ser feliz [...] realizar minha hormonioterapia [...] conseguir um dia realizar a mastectomia [...] é não menstruar mais e ser lembrado todos os meses que eu era mulher” (O Robin); “é podermos ir a uma consulta médica [...] fazer nossos procedimentos [...] tomar uma medicação, quando for necessário” (A Lulu). Aqui, o conceito de saúde adotado rompe com a perspectiva biomédica e inclui aspectos subjetivos marcantes. De fato, a saúde transcende os processos biológicos e relaciona questões como o bem-estar-subjetivo, a satisfação pessoal e o acesso às ações, serviços de saúde e tecnologias. Aliado a isso, remete à garantia da integralidade e humanização.

O bem-estar-subjetivo compreende as dimensões de emoções positivas e negativas. No entanto, isso precisa ser resultante do balanceio positivo entre os tipos de emoções experienciadas durante a vida, ou seja, as emoções positivas precisam ser superiores às negativas. Esta dimensão de bem-estar-subjetivo guarda forte relação com a visão hedônica de felicidade na medida em que dá ênfase aos aspectos afetivos da vida (Keyes; Shmotkin; Ryff, 2002)KEYES, Corey; SHMOTKIN, Dov; RYFF, Carol. 2002. “Optimizing well-being: the empirical encounter of two traditions”. Journal of Personality and Social Psychology. Vol. 82, nº 6, p. 1007-1022..

Já a satisfação pessoal faz relação direta com aspectos cognitivos e subjetivos. Encontra-se assentada sobre aspectos e considerações individuais sobre a vida. A satisfação pessoal é um estado psicológico que infere diretamente no bem-estar, permitindo-nos entendê-la como um aspecto subjetivo da qualidade de vida onde estão imersas a felicidade e o bem estar, já no seu sentido objetivo, percebe-se a presença de aspectos mais práticos, como saúde, ambiente físico, moradia e outros determinantes perceptíveis e quantificáveis (Veloz; Nascimento-Schulze; Camargo, 1999)VELOZ, Maria Cristina Triguero; NASCIMENTO-SCHULZE, Clélia Maria; CAMARGO, Brigido Vizeu. 1999. “Representações sociais do envelhecimento”. Psicologia: Reflexão e Crítica. Porto Alegre. Vol. 12, nº 2, p. 479-501..

Nesse constructo, faz-se necessário que o sistema de saúde responda às necessidades e demandas da população transexual. No entanto, para que essa resposta seja satisfatória, é importante que haja uma compreensão mais ampla das demandas em saúde desta população. É imprescindível que questões subjetivas como, por exemplo, a felicidade para homens e mulheres transexuais, correspondente a um componente singular que remete ao olhar sobre si, sejam levadas em consideração.

Por vezes, isso não cessa, apesar das intervenções corporais. Isso implica no acompanhamento de todos os casos por meio de uma abordagem interdisciplinar. Nesse contexto e partindo dessa necessidade em saúde, no ano de 2008, o Ministério da Saúde legitimou o Processo Transexualizador no SUS por meio da Portaria nº 1707/2008, posteriormente revogada pela Portaria nº 2803/2013, que amplia as ações e procedimentos que estão inseridos no processo transexualizador, desde a atenção básica até o serviço especializado (Brasil, 2013BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 19 de novembro de 2013. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/ prt2803_19_11_2013.html [Acesso em 19.10.2019].
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). Essa conquista foi precedida por inúmeros processos de judicialização da atuação médica sobre os corpos trans e dessa demanda em saúde e pelas mobilizações e articulação do movimento social com o poder público (Rocon, 2016)ROCON, Pablo Cardozo et al. 2016. “Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde”. Ciência e saúde coletiva. Agosto de 2016. Rio de Janeiro. Vol. 21, n. 8, p. 2517-2526..

Aliado a isso, podemos perceber, a partir das narrativas, a importância do acesso às ações e serviços de saúde nos diversos níveis de atenção, seja para hormonioterapias, ablação das mamas, colocação de próteses, raspagens de protuberâncias ósseas e cirurgias de transgenitalização. Para essas necessidades e demandas, devemos pensar nas possíveis alternativas. Os pré-requisitos para o acesso aos serviços transgenitalizadores no Brasil ainda estão pautados por estereótipos sobre o ser homem ou ser mulher ‘de verdade’, arraigados pela forte interferência do binarismo de gênero, que trata de uma ‘mera heterossexualidade compulsória’ e diferencia o ser homem do ser mulher apenas pelas práticas e desejo sexual (Bento, 2008)BENTO, Berenice. 2008. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense..

Dentro desse contexto do acesso, Barros et al. (2016)BARROS, Fernando Passos Cupertino de et al. 2016. “Acesso e equidade nos serviços de saúde: uma revisão estruturada”. Saúde em debate. Setembro de 2016. Rio de Janeiro, Vol. 40, nº 110, p. 264-271. considera que, para cada demanda de cuidado, surge a necessidade de uma porta de entrada de fácil acesso aos serviços, conformando, assim, o que a autora denomina de sistemas de saúde. Nesses sistemas, é necessário que o indivíduo, entendendo que possui um “problema de saúde”, recorra a um profissional que esteja apto a fornecer atenção qualificada, ajudando-o a compreender se para atender a sua demanda se faz necessário um suporte maior do sistema ou é autolimitado, não requerendo assistência mais complexa.

Dentro da integralidade da assistência à saúde, falar de processos que envolvem desde o acolhimento até a resolução ou inserção do indivíduo na Rede de Atenção à Saúde (RAS) são preditivos para uma assistência de qualidade, pautada em princípios éticos e, acima de tudo, humanísticos. De fato, a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas, resguardados na Constituição Federal de 1988. Cabe ao Estado assegurar este direito, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais (Brasil,1988BRASIL. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 de outubro de 1988, Senado Federal.).

Apesar disso, percebemos que o serviço público não é a principal escolha da população trans entrevistada: “eu evito o máximo ser atendida no SUS por não acreditar no serviço oferecido ali [...] opto sempre pelos serviços privados” (A Blanca); “no serviço público, as pessoas não sabem como te atender [...] minha sorte é ter plano de saúde” (O Buck).

Alguns elementos contribuem para essa escolha. Um deles, diz respeito à violência institucional. Esta é reconhecida como uma questão social e da saúde que vai muito além dos problemas econômicos e de infraestrutura que os serviços de saúde sofrem. Envolve aspectos socioculturais relacionados às práticas violentas de caráter institucional, não sendo esta uma questão pessoal ou pontual (Azeredo; Schraiber, 2017)AZEREDO, Yuri Nishijima; SCHRAIBER, Lilia Blima. 2017. “Violência institucional e humanização em saúde: apontamentos para o debate”. Ciência & Saúde Coletiva. Setembro de 2017. Rio de Janeiro. Vol. 22, nº. 9, p. 3013-3022..

Essa violência institucional, que tanto embarreira o acesso da população transexual aos serviços de saúde, pode ser percebida de diversas formas. Algumas delas estão relacionadas aqui, como a violação ao uso do nome social e demais atos discriminatórios. Em se tratando do nome social, observamos, por meio das narrativas, que: “nos serviços, a primeira coisa que fazem é nos chamar pelo nome de registro” (A Blanca). A utilização do nome social pelos serviços é prevista no Decreto Presidencial nº 8.727/2016 que, no artigo 2º, menciona: “os órgãos e as entidades da administração pública, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu requerimento e com o disposto neste Decreto” (Brasil, 2016, p.1BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 28 de abril de 2016. Disponível em: < Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2016/decreto/d8727.htm > [Acesso em 19.10.2019].
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).

Por meio das narrativas, é possível perceber a violação de direitos relativas ao tema do nome social: “sempre que vou, digo o nome que quero ser chamada, mas algumas vezes eles insistem em chamar pelo nome do registro” (A Candy); “eu queria que o acesso aos serviços fosse melhor, as pessoas ainda insistem em nos chamar pelo nosso nome de registro” (O Buck). A negação desse direito acaba sendo uma excludente da presença dessas pessoas nos serviços, infringindo, inclusive, o que preconiza a Política Nacional de Humanização em relação ao acesso (Lionço, 2008)LIONÇO, Tatiana. 2008. “Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade”. Saúde e Sociedade. Junho de 2008. São Paulo. Vol. 17, nº 2, p. 11-21..

De fato, nesse estudo, o desrespeito ao uso do nome social implicou na não adesão de homens e mulheres trans aos serviços de saúde, em especial, o serviço público. No entanto, embora nos serviços privados haja um tratamento melhor, há um viés mercadológico: “penso que a falta de preparo está em qualquer tipo de serviço, público ou privado [...] o que vai diferenciar é a forma de atendimento” (O Robin).

A despreparo dos profissionais, tanto dos serviços públicos quanto dos privados, também dificulta o acesso da população transexual a esses serviços. Em alguns casos, observamos: “os profissionais não possuem preparo algum para lidar com a população LGBT [...] acreditam que devemos morrer mesmo” (A Blanca). Em algumas narrativas, houve o interesse do profissional em realizar o atendimento, mas havia fragilidades quanto à formação em saúde: “a enfermeira me atendeu bem, mesmo atrapalhada [...] disse que iria em busca de como me ajudar [...] me ligou depois pedindo que eu retornasse ao consultório dela [...] me deu algumas orientações”.

No que tange à relação entre a formação profissional em saúde e as questões relacionadas ao gênero e sexualidade, Silva; Paulino; Raimondi (2018)SILVA, J.M.N.; PAULINO, D.B.; RAIMONDI, G.A. 2018. “Gênero e Sexualidade na Graduação em Saúde Coletiva do Brasil”. Ciência e Saúde Coletiva. Outubro de 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/ artigos/genero-e-sexualidade-na-graduacao-em-saude-coletiva-do-brasil/16967 . [Acesso em 10.08.2019].
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considera que, embora nas últimas décadas os currículos dos cursos da área da saúde, em especial os relacionados à Saúde Coletiva, tenham investido em aprimoramento e enriquecimento das discussões de gênero no espaço acadêmico, ainda é tímida essa inserção e promoção de discussões. Isso dificulta e prejudica o processo de formação de profissionais de saúde preparados para lidarem com questões de gênero: “eu acreditaria no serviço público se existissem equipes preparadas para lidar com a população LGBT [...] o que não é a realidade” (A Blanca).

Nesse sentido, para Davini (2009)DAVINI, Maria Cristina. 2009. “Enfoques, problemas e perspectivas na educação permanente dos recursos humanos de saúde”. In: Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Departamento de Gestão da Educação em Saúde. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude.pdf . [Acesso em 10.09.2019]
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, a educação permanente em saúde constitui uma possibilidade de superação dessa fragilidade, uma vez que objetiva a modificação dos processos de trabalho, pautado na melhoria da qualidade dos serviços, e visa a equidade no cuidado e no acesso aos serviços de saúde. Para além dessa questão, é preciso criarmos a cultura de discussão dos temas relacionados à identidade de gênero desde o processo de formação, fazendo com que esses temas e discussões sejam cotidianas dentro do serviço.

Outra possibilidade apontada pelas entrevistadas foi a criação de serviços especializados em cuidados à saúde da população trans, no entanto, Carotta, Kawamura e Salazar (2009)CAROTTA, Flávia; KAWAMURA, Débora; SALAZAR, Janine. 2009. “Educação permanente em saúde: uma estratégia de gestão para pensar, refletir e construir práticas educativas e processos de trabalhos”. Saúde e Sociedade. Março de 2009. São Paulo. Vol. 18, nº supl. 1, p. 48-51. apontam esta como sendo uma alternativa segregadora e infeliz no seu intuito, uma vez que a criação de nichos de saúde específicos para a população trans não habilita e qualifica os demais serviços para o tipo de atendimento.

Itinerários terapêuticos (trans)formados

As discussões acerca dos itinerários terapêuticos da população trans no Brasil são, ainda, insuficientes. Embora tenham avançado consideravelmente, há dúvidas quanto à aproximação com os equipamentos e dispositivos da saúde, uma vez que cada indivíduo manifesta necessidades singulares e constrói caminhos diversos nesse processo transexualizador. Nesse contexto, é importante resgatar algumas barreiras que produzem efeitos sobre os itinerários. Aqui, as pessoas buscam formas de cuidado fora dos espaços de saúde formais devido à violência institucional sofrida e à própria negação desse acesso.

A partir disso, iremos construir os itinerários partindo de algumas narrativas: “gostaria que os serviços de saúde para a população trans fosse igual ao que os outros têm, mas parece que as pessoas trans não existem” (A Jazmine). Percebemos, assim, uma das dificuldades encontradas pela população transexual na tentativa do acesso aos serviços, que é a invisibilidade dessas pessoas. Esse fato interfere diretamente na construção do itinerário.

A dificuldade da população trans de ter seus direitos garantidos nos serviços provoca grande prejuízo a sua saúde. Diante das barreiras construídas pelos serviços e profissionais, esses usuários se obrigam a buscar espaços informais de cuidados em saúde no intuito de sanar as suas necessidades. Essa dificuldade pode ser relacionada ao desconhecimento dos profissionais sobre as questões específicas relacionadas à essa população (Rosa, 2019)ROSA, Danilo Fagundes et al. 2019. “Assistência de Enfermagem à população trans: gêneros na perspectiva da prática profissional”. Revista Brasileira de Enfermagem. Fevereiro de 2019. Brasília. Vol. 72, supl. 1, p. 299-306..

O itinerário terapêutico encontra-se no centro das discussões socioantropológicas da saúde. A partir disso, emergem situações e características que retratam as realidades vivenciadas de acordo com as demandas em saúde da população de modo geral, bem como de grupos específicos da população. Trata-se de um termo utilizado para designar as atividades desenvolvidas pelos usuários na busca de tratamento para a doença ou aflição. Cada um desses conceitos enfatiza determinados aspectos dos processos que envolvem perturbações físicas ou não para os quais os atores sociais buscam soluções (Alves, 2015)ALVES, Paulo. César. 2015. “Itinerário terapêutico e os nexus de significados da doença”. Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho. Outubro de 2015. Vol. 1, nº. 42, p. 29-43..

De fato, a construção do itinerário terapêutico depende das vivências e das necessidades em saúde de cada um dos usuários: “gostaria que existissem ações do governo como existem para outros grupos da população [...] que tivéssemos acesso à hormonioterapia, prótese de silicone e outros procedimentos” (A Blanca). Isso nos faz refletir sobre de que forma (e se) as ações em saúde estão contemplando a população transexual.

Neste questionamento, estamos nos referindo às ações em saúde e não às políticas públicas em saúde voltadas para a população transexual, uma vez que esta existe e prevê que essas necessidades sejam atendidas dentro de um aspecto de integralidade. No entanto, parece faltar compreensão por parte dos serviços e dos profissionais que o compõem, na perspectiva de inserir esses usuários na rede de atenção à saúde, com o intuito de responder a tais necessidades.

Ainda no campo das necessidades em saúde, é preciso compreendermos que essas necessidades, como outrora foi dito, são subjetivas, pessoais e vão ser diferentes pra cada um dos indivíduos, como é o caso da cirurgia de redesignação sexual. Durante a análise das entrevistas, foi possível perceber a heterogeneidade de concepções dos transexuais quanto à realização do procedimento: “eu até tinha vontade de fazer a cirurgia de redesignação sexual, mas com o tempo minha cabeça foi mudando e, hoje, eu não faria” (A Elektra). De fato, não há, necessariamente, reinvindicação por cirurgias de transgenitalização. A transformação do corpo por diferentes formas pode ser suficiente para garantir um sentido identitário (Santos e Sousa, 2017)SANTOS, Francisco Rogery Martins; SOUSA, Maria Lidiany Tributino. 2017. “Implicações ético-políticas do corpo travesti nas políticas de saúde”. Sanare. Sobral. Vol. 16, supl. 01, p.48-57..

A hormonioterapia, que consiste na utilização de hormônios femininos e masculinos, administrados via oral ou injetáveis, com o intuito de promover transformações nos corpos de pessoas trans, foram fortemente mencionadas: “me consultei em um hospital estadual com um endocrinologista que me orientou [...] iniciei a hormonioterapia [...] mas fiz um plano de saúde e, hoje, sou atendido por outro médico” (O Robin).

Apesar disso, este não é um discurso comumente relacionado à saúde da população trans. Devido às dificuldades encontradas no acesso aos serviços, a informação se dá por meio dos sites de busca disponíveis na internet, da família, dos amigos, assim como no contato com o trabalho ou de forma clandestina: “comecei a tomar hormônio por conta própria [...] minha irmã tinha uma farmácia e eu sempre fui curiosa [...] lia as bulas dos remédios” (A Elektra). Alguns episódios, tratam, inclusive, da forma como isso se deu. Em uma das situações, isso foi disparado no próprio ambiente de trabalho e oportunizou efeitos indesejáveis: “uma cliente foi comprar um remédio (na farmácia em que trabalhava) e eu vi que era um hormônio [...] decidi tomar para ficar feminina logo [...] eu tomava quatro, cinco comprimidos por dia [...] tinha muita enxaqueca” (A Elektra).

Ainda no contexto da relação entre as necessidades em saúde e as dificuldades de acesso aos serviços, encontramos a cirurgia de tireoplastia, que consiste na redução do pomo de adão, com o intuito de transformação da voz, bem como do corpo. No entanto, representa uma necessidade embarreirada devido à dificuldade de acesso à cirurgia: “gostaria bastante de fazer a cirurgia, mas, para tentar diminuir, eu pressiono o pomo de adão com um pano” (A Lulu).

Outra demanda bastante recorrente nas narrativas foi a necessidade de acesso aos serviços de saúde mental: “eu também gostaria de ir a um psicólogo [...] são tantas coisas ruins que passamos que acho que seria importante” (A Jazmine); “já tive ideação suicida [...] acredito que devido à depressão”. (A Lulu). De fato, a depressão tem sido apontada como evento muito frequente na população trans e não vemos estratégias potentes que respondam a esta necessidade, seja no setor saúde, seja nas áreas afins (Jorge, 2018)JORGE, Marco Antônio Coutinho; TRAVASSOS, Natália Pereira. 2018. Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.. Devemos refletir, ainda, sobre a garantia do acesso ao processo transexualizador no âmbito do SUS. Aqui, não estamos discutindo acerca do tempo para que isso se efetive, mas que sejam garantidas oportunidades de acesso às ações e serviços de saúde diante da necessidade do usuário e da avaliação minuciosa de uma equipe multiprofissional.

No que tange às dificuldades de acesso, podem mencionar a insuficiência de centros transexualizadores de referência em Candys regiões. Na região Norte do país, não há centro de referência e, na região Nordeste, encontramos apenas um, situado em Recife, Pernambuco. Em geral, temos este panorama de serviços representado no Quadro 2.

Quadro 2:
Registro de serviços de referência para pessoas trans por região do Brasil.

Devido à baixa oferta desses serviços, há a necessidade de sair dos seus locais de origem em busca desses procedimentos: “muitas vezes, é preciso irmos embora em busca de tratamento correto [...] nos sujeitando, inclusive, ao risco de morte” (O Buck). Rocon; Sodre; Rodrigues (2016)ROCON, Pablo Cardozo; SODRE, Francis; RODRIGUES, Alexsandro. 2016. “Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro: uma análise sobre a política pública”. Rev. katálysis. Setembro de 2016. Florianópolis. Vol. 19, nº 2, p. 260-269. considera a necessidade de mudança de cidade para o acesso ao processo transexualizador como um fator complicador. Muitas vezes, em especial as mulheres transexuais, não possuem qualquer suporte familiar. Nesses casos, algumas recorrem à prostitução como forma de se manterem nesses locais, como expressa uma das entrevistadas: “aqui não tem serviço adequado pra atender nossas necessidades de mudar o corpo, precisamos mudar pra outros lugares, geralmente é São Paulo, mas como que se mantém lá ? [...] a vantagem é que o programa lá é valorizado, dá pra sobreviver se tiver alguma madrinha (A Blanca).

Para responderem às suas demandas e diante da dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde, as pessoas entrevistadas mencionaram partir para os serviços privados: “sempre busquei atendimento na rede privada [...] na rede pública, acaba sendo estressante [...] você chega lá sofrendo e, ainda, precisa passar por humilhações” (A Blanca); “por sorte, tenho uma família boa, com estrutura [...] tenho plano de saúde” (O Buck). Quando questionados quanto aos serviços que já foram utilizados por eles, uma variedade de serviços e estabelecimentos públicos e privados foram elencados em Timon (MA), Teresina (PI) e São Paulo (SP).

A maioria dos serviços privados utilizados está no município de Teresina, no Piauí, uma vez que o município limítrofe, Timon, no Maranhão, não possui rede privada que contemple as necessidades identificadas. A falta de estrutura dos serviços públicos e carência de serviços privados de saúde naquele município são fatores propiciadores da saída da população de Timon para outras cidades em busca de cuidados em saúde. Para a população trans isso se torna um fator agravante, pois a porta de entrada para os serviços que contemplam o processo transexualizador no SUS dá-se através da atenção primária à saúde, sendo essa completamente negligente para as necessidades específicas dessa população.

Também foram nos serviços de saúde privados que foi mencionada a maior possibilidade de estabelecimento de vínculo e a forma mais humanizada de atendimento: “eu tinha um médico de referência que atendia em um hospital privado de Teresina [...] muito atencioso [...] inclusive, me encaminhou para a ginecologista para eu me sentir mais mulher” (A Elektra). Aqui, temos dúvidas em relação à intencionalidade do encaminhamento e qualificação profissional, já que esta não seria a especialidade mais apropriada para mulheres trans.

Diante da dificuldade de acessar serviços de referência, os participantes mencionaram, ainda, uma rede informal, construída a partir de equipamentos e dispositivos clandestinos: “fiz o procedimento dos seios em uma bombadeira [...] tive algumas complicações [...] fiquei bem debilitada [...] hoje, ainda dói bastante, mas o que importa é que ficou bonito e valoriza mais o programa” (A Lulu). As bombadeiras “são travestis ou transexuais mais velhas que dominam a técnica de aplicação de silicone industrial nos corpos, conhecida como “bombar” ou “bombação”. A partir da apropriação da técnica, “esculpirão e modelarão corpos em variadas formas e traços, constantemente relacionados aos ideais de beleza em jogo e com as perspectivas de gênero em deriva” (Rocon et al, 2017, p. 525ROCON, Pablo Cardozo et al. 2017. (Trans)formações corporais: reflexões sobre saúde e beleza. Saúde e Sociedade Junho de 2017. São Paulo, v. 26, n 2, p. 521-532.).

A partir das narrativas apresentadas, foi possível compreendermos de que forma se constroem os itinerários terapêuticos da população trans pesquisada. Esses itinerários não apresentam vínculos formais entre os serviços, nem tampouco garantia de acesso e continuidade do cuidado. A rede de cuidados construída a partir das bombadeiras anuncia o fracasso do sistema de saúde, quando tratamos da população trans. De fato, vários são os fatores que levam a esta procura, mas não podemos desconsiderar as barreiras funcionais dos serviços de saúde, além do preconceito e do estigma que alimentam as relações entre esse público e os profissionais de saúde.

Diante da dificuldade de se estabelecer uma rede de cuidados apropriada, nos deparamos com um caso angustiante: “tive uma lesão no ânus [...] coloquei um espelho debaixo de mim, passei a anestesia e cortei com a tesoura [...] eu mesma fiz a cirurgia” (A Blanca). Situações como essa não podem se repetir em nenhuma circunstância. Nem mesmo podemos aceitar serviços de saúde operando a partir do preconceito e estigma. Isso afasta os usuários dos serviços e legitima práticas inaceitáveis.

Por fim, é preciso avaliarmos que, para além do estabelecimento e criação de políticas públicas em saúde, é preciso inserirmos ações que visem e garantam a concretização desses direitos nos nossos processos de trabalho diários. É preciso que adotemos ações proativas e de empatia relacionadas à população transexual, uma vez que os problemas enfrentados por essa população, desde a construção do ser-trans, até a manifestação mais subjetiva de necessidade à saúde, já lhes causa grande impacto e sofrimento à vida.

Considerações finais

O processo de construção do ser-trans é permeado por situações que provocam sofrimento e dificultam o acesso a direitos das pessoas trans. Nessa perspectiva, a violência, em suas diversas formas de se manifestar, é ponto comum entre as falas das participantes da pesquisa, ou seja, é parte da construção subjetiva de cada uma delas. As violências identificadas na pesquisa tem múltiplas formas, origens e fatores relacionados. Dentre elas, a intolerância e a transfobia são os principais combustíveis para existência dessas violências que se manifestam de diversas maneiras e foram apresentadas no decorrer desse texto, tais como, violência física, psicológica, sexual, moral e institucional.

Com tudo isso, o itinerário dessas pessoas nos serviços de saúde torna-se completamente diferente do que encontramos na população de modo geral. Observamos a busca às redes informais de cuidados em saúde e, também, o processo de redesignação sexual feito de forma autônoma, a partir de autoadministração de hormônios e outras substâncias.

O que se espera desse estudo é que ele seja, de alguma forma, modificador da realidade de saúde da população trans a partir de uma interpretação crítica realizada por profissionais de saúde envolvidos a partir de suas experiências profissionais e acadêmicas. Consideramos que, se não por meio de restabelecimento de normas e diretrizes, mas, pelo menos, de modificação da visão dos profissionais ali inseridos, bem como de suas condutas frente às demandas dessa população, o cenário exposto pode ser positivamente transformado.

Apesar das limitações do estudo, por tratar-se de uma amostra restrita devido à dificuldade de recrutamento dos participantes, consideramos útil o compartilhamento dos resultados aqui expostos, especialmente porque eles foram construídos a partir das narrativas das pessoas que utilizam os serviços de saúde. Assim, é importante realizar outras pesquisas com profissionais e gestores para ampliar a compreensão sobre esta relevante e urgente temática.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2020
  • Aceito
    25 Mar 2021
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