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SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171p.

SOUZA, Neusa Santos. . 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171p.

Tornar-se negro: ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social de Neusa Santos Souza, originalmente uma dissertação de mestrado, publicada como livro em 1983, está sendo relançada pela Zahar, com novo prefácio de Maria Lúcia da Silva, além do reputado prefácio à edição original Da Cor ao Corpo, escrito por Jurandir Freire. A relevância da republicação está no fato da obra ter sido simultaneamente um marco político e intelectual da década de 1980, pioneira em abordar o tema do racismo, particularmente brasileiro, com olhar para a construção da emocionalidade do/a negro/a em via de ascensão, sem deixar de ser atual e instrumento fundamental para aqueles engajados na consolidação e avanço da produção de pensamento e prática antirracistas no presente.

Enquanto marco de seu tempo, em contexto de regime ditatorial, Tornar-se negro bem sinaliza a sociedade brasileira do mito da democracia racial arraigada e do racismo velado - e nem por isso menos brutal, atento às dimensões constitutivas psicossociais da violência racial. Ao trazer à discussão um tema silenciado pela ditadura, que tinha como discurso oficial a democracia racial enquanto identidade nacional, e ao escancarar uma realidade crua e extremamente dolorosa da introjeção do “desejo de ser branco” por negros/as, apresentando uma saída política via positivação da identidade racial negra, Neusa impacta a cena ativista negra carioca, atrelada ao Movimento Negro Unificado (MNU). Não à toa, o livro teve como local delançamento o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), que era uma das principais organizações do movimento negro com espaço físico na cidade do Rio de Janeiro, localde agregação de muitas das frentes políticas negras do final dos anos 70 e início dos 80.

Alguns anos após o lançamento, Neusa se afasta do movimento negro organizado e passa a se dedicar exclusivamente à vida intelectual, clínica e de ensino na psicanálise, afinando-se cada vez à perspectiva freudiana-lacaniana, tornando-se gradualmente uma referência no tratamento de sujeitos psicóticos e exercendo influência, sobretudo, no Núcleo de Saúde Mental Casa Verde, no Rio de Janeiro. Neusa atesta - em entrevista para o Programa Espelho, no Canal Brasil, em 2008 - que passa a investir no tema dos “loucos”, sujeitos também socialmente marginalizados. No entanto, como bem atesta Maria Lúcia da Silva no prefácio à nova edição, esse afastamento da temática racial não a coloca alheia à questão racial enquanto preocupação política e prática antirracista cotidiana. “Não seria militância sustentar-se, ano após ano, em espaços ‘reservados’ às pessoas não negras? Não seria militância lidar,cotidianamente, com a irracionalidade, a estupidez e o disparate próprios do racismo? Não teria ela escapado da armadilha que destina a luta antirracista somente às pessoas negras?”, nos questiona Maria Lúcia (2021: 19).

Na mesma linha, Silvio Almeida (2021ALMEIDA, Silvio. 2021. “Prefácio à edição brasileira”. In: DUBOIS, W.E.B. As almas do povo negro. São Paulo: Veneta. 11 p.) nos alerta que todo intelectual negro padece da sina de ser reduzido a um “intelectual negro”. Não podemos cair nessa armadilha com Neusa Souza, sob o risco de não captar a amplitude de seu legado, que não se esgota às suas significativas publicações, que, além do Tornar-se negro, incluem, dentre outras: A ciência e a verdade: Um comentário (1996FREIRE, A. B.; FERNANDES, F. L. F.; SOUZA, N. S. 1996. A Ciência e a Verdade: Um Comentário. Rio de Janeiro: Revinter. ); A Psicose: um estudo lacaniano (1999SOUZA, N. S. 1999. A Psicose: um estudo lacaniano. Rio de Janeiro: Revinter .); e O objeto da angústia (2005SOUZA, N. S.; HANNA, M. S. G. F. 2005.O objeto da angústia.Rio de Janeiro: Editora 7 Letras.), obras de autoria única e coletiva.

Nascida em Cachoeira, no recôncavo baiano, em 1948, Neusa estudou na Faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador, no mesmo lastro intelectual que Juliano Moreira e Nise da Silveira, que se formaram na mesma instituição, e, como Neusa, seguiram para o Rio de Janeiro para dedicarem-se à psiquiatria e ao tratamento não convencional de sujeitos psicóticos, a contrapelo dos tratamentos medicamentosos, das internações forçadas e do eletrochoque. Ainda na graduação, Neusa trabalhou na clínica Sanatório Bahia, onde já exercia seu interesse em proporcionar amparo psíquico alternativo e criativo aos internos, precedendo às experiências da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Penna, 2019PENNA, William Pereira. Escrevivências das memórias de Neusa Santos Souza: apagamentos e lembranças negras nas práticas PSIS. 2019. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói.). Anos depois, no Centro Psiquiátrico Pedro II, atual Instituto Municipal Nise da Silveira, e em outras instituições nas quais passou e contribuiu como psicanalista no Rio de Janeiro - como o Núcleo de Atendimento e Transmissão e a Casa Verde - Neusa avançou nesses objetivos, reconhecendo o psicótico não a partir de um déficit em relação ao neurótico, mas como um sujeito que nos tem a ensinar e com o qual se pode dialogar e fazer contato com outra linguagem.

Como afirma Clélia Prestes (2020PRESTES, Clélia R. S. 2020. “Não sou eu do campo psi? Vozes de Juliano Moreira e outras figuras negras”. Revista da ABPN. Outubro de 2020, V. 12, Ed. Especial, p. 52-77.), Neusa, Nise e Juliano se encontram em percurso e pelas marcas significativas deixadas ao campo psi enquanto figuras revolucionárias, ao inovarem na compreensão e nas práticas de cuidado em saúde mental. Clélia ainda demarca que enquanto Nise da Silveira foi largamente reconhecida, Juliano Moreira e Neusa Souza são figuras cujas contribuições ao campo foram sistematicamente apagadas, o que denuncia “o reconhecimento no campo psi não ser proporcional, no caso das figuras negras ou da temática das relações raciais” (Prestes, 2020: 63). Tornar-se negro retorna em publicação como resposta ao reconhecimento público ainda modesto de Neusa Souza e aos regimes de silenciamento-esquecimento, levando em conta os apelos político-epistêmicos que reforçam a necessidade da descolonização do pensamento e da recuperação da contribuição histórica de autores negras e negros, tensionadas, sobretudo, pelos movimentos sociais negros e pelo crescimento de estudantes e pesquisadores negros e negras nas universidades públicas, a partir dos anos 2000 com as políticas de cotas.

Resultado da pesquisa de mestrado no Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB), Tornar-se negro deve ser lembrado como um trabalho realizado em pleno regime militar, desenvolvido em uma instituiçãode psiquiatria considerada bastante conservadora. Nesse sentido, Neusa inova e transgride ao propor uma discussão sobre o racismo e suas implicações psíquicas, em um momento em que levantar a “questão do negro” era vista como ameaça à segurança nacional, pois a própria ideia de discriminação racial era silenciada pelo regime e seu discurso criminalizado, como foram os movimentos negros organizados, seus principais enunciadores. Além disso, de forma pioneira, se apropria da perspectiva psicanalítica freudiana para argumentar sobre a vida emocional de negros/as, tema de absoluta ausência na disciplina da psicanálise à época, e que ainda hoje é bastante marginal ao campo, apesar de reconhecido esforço feito por alguns no interior da disciplina em incorporar os efeitos psicossociais do racismo como perspectivas clínicas relevantes (Silva, 2021SILVA, M. L. 2021. “Prefácio a esta edição”. In: Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 9 p.).

Com inspiração na obra de Franz Fanon (2008FANON, F. 2008.Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.), que se debruça sobre as dimensões psicossociais do sofrimento efeito do colonialismo e racismo, e construindo uma tentativa de tradução de seu pensamento para o contexto sócio-histórico brasileiro, podemos considerar Neusa Souza uma das primeiras a levar a análise do “racismo à brasileira” (Telles, 2003TELLES, E. 2003.Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Ford.) para o campo das subjetividades e da dimensão psíquica. Traz à discussão, de forma inédita no campo da psicanálise brasileira, os efeitos psíquicos e o custo emocional do racismo. Analisa a introjeção do pensamento racista na formação da subjetividade de indivíduos negros/as, em especial, dos/as que atravessam as etapas de ascensão social, considerada, pela autora, um processo de dolorosa assimilação e submissão ideológica aos padrões brancos das relações sociais. Posiciona, assim, sua crítica à ideologia de branqueamento e também à sua contraface, o mito da democracia racial. Segundo Neusa, tal ideologia forja o Ideal de Ego, conceito freudiano, enquanto ideal branco, fazendo com que o/a negro/a não enxergue o próprio corpo como lugar de prazer, mas sim de auto-ódio (Costa, 1983COSTA, J. F. 1983. “Da cor ao corpo: a violência do racismo”. In: Souza, N. S. Tornar-se negro: ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal. ), o que Isildinha Nogueira denominou de “sofrer o próprio corpo” (1998NOGUEIRA, Isildinha. 1998. Significações do corpo negro. Tese de doutorado em Psicologia. Universidade de São Paulo. São Paulo.).

Tornar-se negro é estruturado em 6 capítulos, além de Introdução, Metodologia e Conclusão, e se utiliza de narrativas de história de vida de 10 interlocutores de pesquisa - mulheres e homens negros, de diferentes idades, em mobilidade social ascendente - a fim de analisar o complexo de interiorização, ou epidermização, nos termos de Fanon (2008FANON, F. 2008.Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.), do lugar de inferioridade do negro instituído por uma hierarquia pautada na cor. No primeiro capítulo - Antecedentes históricos da ascensão social do negro brasileiro, Neusa percorre as particularidades do racismo no Brasil que se apoia, ao invés de numa linha de cor dualista (Dubois, 2021DUBOIS, W.E.B. 2021. As almas do povo negro. (Tradução de Alexandre Boide). São Paulo: Veneta .), em um “contínuo de cor”, em que “branco e negro representavam apenas os extremos de uma linha ininterrupta onde, às diferentes nuances de cor, se adscreviam significados diversos, segundo o critério de que quanto maior a brancura, maiores as possibilidades de êxito e aceitação” (Souza, 2021SOUZA, N. S. 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar . 171p.: 50). Referencia-se a importantes teóricos das relações raciais no Brasil como Florestan Fernandes (1978FERNANDES, F. 1978.A integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Ática. ), Octavio Ianni (1972IANNI, O. 1972.Raças e Classes Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), Roger Bastide (1959BASTIDE, R.; FERNANDES, F. 1959. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Nacional.) e Carlos Hasenbalg (1979HASENBALG, C. A. 1979.Discriminação e Desigualdade Raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal .), cujas contribuições instituíram que: (1) a raça, enquanto noção sócio-histórica, não carrega nenhum componente biológico justificável de diferenciação humana; (2) os padrões de interação racial no Brasil designaram certo paralelismo entre cor e posição na estrutura de classes; (3) a discriminação de cor/racial não deriva somente de uma herança do período escravocrata, mas se enraíza e se dinamiza através de estruturas específicas do capitalismo moderno; (4) ideologia de embranquecimento e democracia racial são dois lados de uma mesma moeda; (5) o caráter individualista de ascensão social do/a negro/a produz o impedimento do combate efetivo das dinâmicas estruturais das desigualdades raciais e um desestímulo à solidariedade e afirmação do grupo racial negro enquanto coletividade política.

Partindo destes pressupostos teóricos, Neusa argumenta que o/a negro/a brasileiro/a é impelido a vestir o “figurino do branco”, a fim de adquirir inserção e aceitação social. No entanto, demonstra que o custo emocional para ser reconhecido como equivalente moral do branco é muito dispendioso, pois implica uma dupla negação de si: enquanto sujeito (e enquanto corpo), e enquanto pertencente a um contingente social/racial. Assim, argumenta que tal saída à angústia produzida pela discriminação racial, via ascensão individual enquanto “exceção que confirma a regra”, é uma saída traiçoeira, na medida em que estipula “o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação” (2021: 53).

Para desenvolver tal argumento, apresenta, no capítulo seguinte, O mito negro, histórias concretas de negros/as, a partir de trechos de entrevistas narrados em primeira pessoa, acompanhados de uma análise psicossocial. Discorre como tais sujeitos se reconhecem na imagem alienada produzida pelo “mito negro”, um discurso ilusório que nega a história para transformá-la em “natureza”, reunindo todos os simbolismos pejorativos associados aos sujeitos negros capazes de “estruturar um espaço, feito de expectativas e exigências, ocupado e vivido pelo negro como objeto da história” (2021: 55). Esses sujeitos vivenciam, portanto, a introjeção do “complexo de inferioridade” e incorporam para si os valores da ideologia de branqueamento, engendrados, sobretudo, na esfera familiar. É nesta esfera, fundamental para a formação do sujeito e da introdução à linguagem e à cultura (Freud, 1969FREUD, S. 1969. Sobre o Narcisismo: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Imago.), que a brancura é construída como um valor.

Para Neusa, o Ideal de Ego, na cultura ocidental e capitalista, é fundado na dupla opressão de classe e cor, e o modelo idealizado a ser subjetivado será o de riqueza e brancura. Este será o argumento percorrido, através da teoria freudiana, no capítulo Narcisismo e Ideal de Ego. Aqui, a psicanalista argumenta que a tentativa de aproximação do Ego em relação ao Ideal do Ego, em geral frustrada, demarca, na subjetividade negra, uma tentativa de realização impossível. “É que o Ideal do Ego do negro, que é em grande parte constituído pelos ideais dominantes, é branco. E ser branco lhe é impossível” (Souza, 2021SOUZA, N. S. 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar . 171p.: 73). Segundo a autora, este processo institui uma ferida narcísica, cujo efeito psíquico toma o feitio de culpa, inferioridade, defesa fóbica e depressão, conclusão que será observada empiricamente através das histórias de vida trazidas nos últimos 2 capítulos - A história de Luísa e Temas privilegiados.

Em A história de Luísa - interlocutora que a autora prioriza em capítulo integral pela riqueza ilustrativa de sua história - e em Temas privilegiados - onde se sintetiza os principais temas narrados pelos entrevistados - será abordado o tripé temático que “irá homogeneizar, a despeito da heterogeneidade, as histórias de vida dos entrevistados” (2021: 98). Tal tripé é constituído: pela representação que o negro tem de si, as estratégias e o preço da ascensão. Assim, analisa-se de que forma negros e negras, ao reconhecerem-se em um corpo produzido socialmente enquanto desvalor, mobilizam estratégias diversas para transformá-lo em um corpo “branco”. Quando constatada a “experiência do inverossímil” de transformar-se em branco, a escolha por um/a parceiro/a branco/a passa a ser uma saída via fantasia de que através da relação afetivo-sexual seja possível realizar o Ideal de Ego inatingível. Tais processos sócio-subjetivos denunciam a força intrapsíquica do racismo e o sofrimento por este produzido em uma sociedade cujo referencial de beleza e modelo de realização é a brancura. Como afirmou também Fanon: “No paroxismo da dor, só há uma solução para o infeliz preto: provar sua brancura aos outros e sobretudo a si mesmo” (2008:179).

Tornar-se negro oferece, entretanto, uma alternativa ao processo de interiorização da subjugação no âmbito da recusa à ideologia de branqueamento, via produção de uma concepção positiva de si mesmo, proposta que será elaborada na Conclusão. Este processo de emancipação emerge como efeito da ação política e do (re)conhecimento sócio-histórico, ou, nas palavras da autora, “saber que - racional e emocionalmente - reivindico como indispensável para negros e brancos, num processo real de libertação” (2021: 46). Para a psicanalista, é através do processo de tornar-se negro que o indivíduo negro/a se emancipa do massacre de sua identidade, efeito do empenho a “embranquecer-se” como estratégia deascensão. “O negro que elege o branco como Ideal do Ego engendra em si mesmo uma ferida narcísica, grave e dilacerante, que, como condição de cura, demanda ao negro a construção de um outro Ideal de Ego” (2021: 77). A partir da rejeição ao Ideal de Ego branco e da construção de outro Ideal de Ego via afirmação da identidade negra, o/a negro/a lança mão da “experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades” (2021: 46).

A grande novidade da abordagemde Neusa, em relação a estudos anteriores, é, por um lado, fazer uso da teoria psicanalítica freudiana, ao elaborar diagnósticos para tal sofrimento psicossocial, e, por outro, propor uma saída política, em que o tornar-se negro é parte fundamental do processo de transmutação do sofrimento provocado pelo racismo, através da afirmação de si como projeto de autonomia. Para sair da armadilha da mistificadora democracia racial brasileira, querendo realizar-se como “negro de alma branca”, o sujeito negro/a deve engajar-se em um processo de reconstrução de si, forjando uma nova identidade “que lhe dê feições próprias” (2021: 116). Este é o desfecho conclusivo de sua obra que vem sendo cada vez mais recuperada em contextos presentes. Parte importante da justificativa para este retorno às formulações desenvolvidas no livro é o trato à questão identitária, tão cara ao debate racial e as pautas políticas contemporâneas. Neste aspecto é importante ressaltar que Neusa aborda a questão da identidade negra como identidade histórico-existencial, e sua produção é percebida a partir de um processo de vir a ser, que diz respeito a um processo simultaneamente político e subjetivo.

Nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negróide e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial, não organiza, por si só, uma identidade negra. Ser negro é, alem disto, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência [...] Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori, é um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro. (Souza, 2021SOUZA, N. S. 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar . 171p.: 115).

Etapa fundamental da construção desta “nova consciência”, que organiza as condições para que o/a negro/a tenha um “rosto próprio”, é a possibilidade de autodefinição e da produção de um discurso acerca de si mesmo. “Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo”, escreve Neusa na abertura do Tornar-se negro (2021: 45). Possuir um discurso sobre si é compreendido como uma das etapas da produção da nova identidade, a partir de processos de identificação positiva com a negritude. Essas conclusões nos aproximam da atual obra de Grada Kilomba, que reconhece que o entendimento e o estudo da própria marginalidade criam a possibilidade de devir como um novo sujeito a partir da descolonização do eu (2019: 69KILOMBA, G. 2019. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó. ).

Neusa nos dá pistas, logo na Introdução, que o texto parte de um processo autorreflexivo da autora: escreve saber-se negra, no feminino, enquanto o próprio título da obra encontra-se no masculino. “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas” (2021: 46). Tornar-se negro é, portanto, uma escrita de si, e traduz um processo também autobiográfico - ou, como diria Conceição Evaristo, uma escrevivência. Neusa, mulher de origem pobre, negra, nordestina e de criação religiosa candomblecista, passa por vários degraus de ascensão social, em que o diploma de médica e o mestrado em psiquiatria são apenas alguns exemplos. Muitos dos depoimentos presentes em seu livro espelham processos experienciados em sua própria trajetória de ascensão e de conquista de posição em um “mundo branco”, como era (e ainda é hoje) o campo de atuação da psiquiatria e psicanálise. A escrita deste livro pode ser percebida como uma etapa fundamental do processo de devir negra de Neusa - processo de deixar-se refazer, despindo-se do Ideal de Ego branco e forjando uma nova identidade negra, pautada na autonomia e no amor a si.

O que faz com que o Tonar-se negro seja ainda uma escrita tão atual talvez seja a capacidade de que muitos negros/as, leitores da obra, reconheçam-se nos processos vividos das diferentes histórias contempladas no livro, que tocam de forma direta e intensa múltiplas subjetividades negras, que vivenciam de forma diversa e singular o processo de “descobrir-se” e “tornar-se” negra/o. Assim, mesmo que tenhamos avançado na desmistificação da democracia racial, na desestabilização das barreiras estruturais e subjetivas produzidas pelo racismo, e na penetração do debate racial em diferentes campos da produção do saberantes impermeáveis, as “vicissitudes do negro brasileiro” permanecem entrecortadas por experiências dilacerantes, o que nos impele a uma revisão e discussão constante e permanente, até que a ficção da diferença racial não signifique mais predação ontológica (Mbembe, 2018MBEMBE, A. 2018. Crítica da razão negra. N-1 edições. ). Como afirmou a professora Iolanda de Oliveira, no evento Racismo e Legado de Neusa Santos Souza, ocorrido em dezembro de 2018, na Universidade Federal Fluminense: “Nós permanecemos com essa obra como um clássico, na expectativa de que um dia nós possamos colocá-la nas nossas prateleiras, mas ainda hoje tem que ser uma obra de cabeceira”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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