Resumos
O estudo das diversas formas de poder (e suas teorias), dentre elas a do Estado são relacionadas, neste texto, às abordagens e às singularidades expressas no poder local. Este é compreendido não como um recorte territorial localizado e localizável, mas como um espaço com história e memória próprias, com identidades e práticas políticas determinadas, ou seja, socialmente construído. O que se pode considerar, tendo em vista a investigação realizada é que, como nas demais instâncias sócio-territoriais, também no poder local (e talvez até muito mais nele), é ímpar uma pluralidade de poderes que se digladiam ou se associam (depende do objetivo e do momento) como os do Estado, das elites, dos micro-poderes, do poder simbólico, do poder de influência etc. Nesse sentido, revela-se a atuação dos mesmos em decisões reais, impostas ou ofertadas por alguns atores e atendidas ou não por outros e, então, as alianças e os conflitos.
Poder; Estado; grupos de poder; estudos de poder local
The study of the diverse forms of being able (and its theories), amongst them of the State they are related, in this text, to the boarding and the expressed singularities in the local power. This is understood not as a located and locatable territorial clipping, but as a space with proper history and memory, identities and practical determined politics, that is, socially constructed. What if it can consider, in view of the carried through inquiry is that, as in the too much instances partner-territorial also in the local power (and perhaps until much more in it), it is uneven a plurality of being able that if they debate or if they associate (depends on the objective and the moment), as of the State, the elites, them micron-powers, the symbolic power, the power of influence etc. In this direction, shows performance to it of the same ones in decisions real, imposed or offered for some actors and taken care of or not for others and, then, the alliances and the conflicts.
Power; State; local groups; studies of local power
Poder local: conceito e exemplos de estudos no Brasil
Local powers: concept and examples of studies in Brazil
Márcia da Silva
Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava-PR, msilva@unicentro.br/smarcias@superig.com.br
RESUMO
O estudo das diversas formas de poder (e suas teorias), dentre elas a do Estado são relacionadas, neste texto, às abordagens e às singularidades expressas no poder local. Este é compreendido não como um recorte territorial localizado e localizável, mas como um espaço com história e memória próprias, com identidades e práticas políticas determinadas, ou seja, socialmente construído. O que se pode considerar, tendo em vista a investigação realizada é que, como nas demais instâncias sócio-territoriais, também no poder local (e talvez até muito mais nele), é ímpar uma pluralidade de poderes que se digladiam ou se associam (depende do objetivo e do momento) como os do Estado, das elites, dos micro-poderes, do poder simbólico, do poder de influência etc. Nesse sentido, revela-se a atuação dos mesmos em decisões reais, impostas ou ofertadas por alguns atores e atendidas ou não por outros e, então, as alianças e os conflitos.
Palavras-chave: Poder, Estado, grupos de poder, estudos de poder local.
ABSTRACT
The study of the diverse forms of being able (and its theories), amongst them of the State they are related, in this text, to the boarding and the expressed singularities in the local power. This is understood not as a located and locatable territorial clipping, but as a space with proper history and memory, identities and practical determined politics, that is, socially constructed. What if it can consider, in view of the carried through inquiry is that, as in the too much instances partner-territorial also in the local power (and perhaps until much more in it), it is uneven a plurality of being able that if they debate or if they associate (depends on the objective and the moment), as of the State, the elites, them micron-powers, the symbolic power, the power of influence etc. In this direction, shows performance to it of the same ones in decisions real, imposed or offered for some actors and taken care of or not for others and, then, the alliances and the conflicts.
Key-words: Power, State, local groups, studies of local power.
1. A ANÁLISE DO LOCAL NO PODER LOCAL
Analisar a natureza e o significado do poder enquanto um campo de investigação com inúmeras diversidades teórico-metodológicas é uma tarefa complexa, independente de sua escala, mesmo considerando "relações concretas, socialmente construídas e territorialmente localizadas - a chamada análise do local" (Fischer, 1992, p. 106). O que se denomina de local, remete-se, no Brasil, à esfera municipal, o lugar de exercício do poder, prefeitura e câmara municipal e as múltiplas instituições sociais a esta esfera vinculadas (Daniel, 1988). Compreende-se, também, como Fischer (1992), que o poder local constitui-se nas relações que delimitam o poder entre os diferentes grupos sociais, ocorrendo externamente a esta esfera.
Para entender o local e as relações de poder nele existentes, não basta identificá-lo ao poder político. É preciso conceituá-lo como o poder exercido econômico, social, cultural e simbolicamente. Nas palavras de Fischer (1992, p. 106):
A noção de 'local' contém duas idéias complementares em um sentido e antagônicos em outro. Se o 'local' refere-se a um âmbito espacial delimitado e pode ser identificado como base, território, microrregião e outras designações que sugerem constância e certa inércia, contém igualmente o sentido de espaço abstrato de relações sociais que se deseja privilegiar e, portanto, indica movimento e interação de grupos sociais que se articulam e se opõem em relação a interesses comuns. E, assim, invariavelmente a análise do 'local' remete ao estudo do poder enquanto relação de forças, por meio das quais se processam as alianças e os confrontos entre atores sociais, bem como ao conceito de espaço delimitado e à formação de identidades e práticas políticas específicas. No entanto, se o espaço local tem um fundamento territorial inegável, não se resume a este, como, aliás, assinalam os geógrafos ao nos dizerem das muitas maneiras de se construir os espaços, refutando fronteiras institucionais e reconstruindo-as em função de problemáticas adotadas.
Concorda-se, ainda, com a autora que o poder local "alude-se ao conjunto de redes sociais que se articulam e se superpõem, com relações de cooperação e conflito, em torno de interesses, recursos e valores, em um espaço cujo contorno é definido pela configuração desse conjunto" (FISCHER, 1992, p. 106).
Villasante (1988, apud Fischer, 1992) conclui que o local é menos um espaço físico e mais um conjunto de redes estruturadas em torno de interesses identificáveis. Essa identificação leva a indagações sobre o espaço político local, as competições e os conflitos, sobre a memória política local e as formas de exercício do poder. O local é, então, a singularidade, com história e memória próprias, com identidades e práticas políticas determinadas. "Como objeto de investigação o local não é, portanto, apenas fisicamente localizado, mas socialmente construído" (FISCHER, 1992, 107).
É bem verdade que as dimensões escalares do espaço geográfico sofreram mudanças com as transformações econômicas, sociais e políticas impetradas pelo processo de globalização. Alguns chegam a afirmar que a falência de projetos de desenvolvimento regional tornaram essa escala obsoleta. Outros, que a redefinição do significado do Estado-Nação coloca em questão a escala nacional. Apesar de não concordar com essas abordagens, indica-se que o local assume, nesse contexto, um papel importante, pois é nele que as diferentes articulações, advindas desses processos, tornam-se mais visíveis. É o acontecimento configurando o que é local. É a realidade vivida e vivenciada, mas também a realidade vinculada a relações maiores, de contornos nacionais e globais.
Para Davidovich (1993), a viabilidade de uma escala local de poder, mesmo numa economia capitalista e ainda que articulada a outras instâncias de dominação, passa por um suporte de bases sociais específico, sustentado pelas elites, grupos econômicos, políticos e instituições com influência efetiva. Nesse sentido, os grupos dominantes não justificam seu poder exclusivamente pela possessão de fato, mas também pela base moral e legal que buscam para este poder, representando-o como conseqüência lógica e necessária de doutrinas e crenças que são geralmente reconhecidas e aceitas, como as religiosas e as científicas.
Como Davidovich (1993), Daniel (1988, p. 30) também conforma que os grupos dominantes locais
...se representam como portadores da tradição local e do esclarecimento, razão pela qual se percebem como responsáveis pela condução do município e pelo seu futuro. (...) Na medida em que sua constituição se dá no nível simbólico [são formados] por agentes sociais de raízes heterogêneas: profissionais liberais, membros do empresariado local, das classes médias assalariadas do município, etc.
Esses grupos, quase sempre em minoria, acabam por ter poder sobre a região e sua população, inclusive repassando às novas gerações sua maneira de agir e de pensar, permitindo se não perpetuar, ao menos consolidar a hegemonia nas decisões locais. A população é manipulada, voluntariamente ou não, pelo caráter simbólico de crenças, valores e outros, bem como pelos meios de comunicação (que transmitem essas ideologias), legitimando as ações dos grupos detentores de poder.
Os grupos, entretanto, tendem a atuar de maneira relativa, mas não completamente autônoma, já que se articulam em partidos políticos, entidades de classe e/ou associações para ganharem maior legitimidade. A existência de articulação não significa ausência do conflito (lutas, negociações, alianças, antagonismos), que pode existir com ou sem a articulação, o que, de certa forma, garante a não perpetuação do domínio de forças tradicionais duradouras (DAVIDOVICH, 1993).
É neste sentido que se justifica o fato de atualmente, no Brasil, nenhum grupo exercer sozinho o controle sobre as decisões políticas, não somente locais. Temos como exemplo o que já dizia, em 1994, José de Souza Martins:
...as oligarquias políticas no Brasil colocaram a seu serviço as instituições da moderna dominação política, submetendo a seu controle todo o aparelho de Estado. Em conseqüência, nenhum grupo ou partido político tem hoje condições de governar o Brasil senão através de alianças com esses grupos tradicionais. (MARTINS, 1994, p. 20)
2. A ANÁLISE DO PODER LOCAL
Nas abordagens apresentadas acima pode-se perceber que o Estado é só um entre os vários modelos da organização institucional do poder (embora o mais bem elaborado). O universo político, marcado por transformações ao longo de sua existência, demonstra que algumas das mais importantes delas são relativamente recentes. Assim, a tradição de pensamento científico-social tende a situar na transição para a época moderna o principal ponto de mudança na percepção que atualmente se tem do Estado.
O Estado é uma das figuras que mediam o poder local, uma vez que é no cruzamento de suas várias concepções e das lutas simbólicas por elas desencadeadas que se projeta igualmente a idéia da atuação deste em nível local (Felizes, 1999), o que não implica que não se deva ultrapassar a fronteira do poder nele ou por ele estabelecido, o que conforma quando se pensa na existência de uma sociedade estratificada, com grupos de interesses, micro-poderes, relações individuais e de grupos estrategicamente formados. É o que nos lembra Felizes (1999): "o poder político não orbita unicamente em torno do Estado, pois os Estados coexistem com outras organizações, com outras estruturas igualmente relevantes do ponto de vista da sua capacidade de determinar as trajetórias globais das sociedades". São os chamados 'contra-poderes' ou mesmo a 'instrumentalização' do Estado por meio de diversos agentes.
No universo do poder local (mas claramente não só dele) é possível a observação de um complexo relacionamento entre o poder político e uma rede de poderes difusos que, como indica o autor acima "posicionam-se diferentemente perante o poder político e, de acordo com os atributos que lhes são próprios, podem disputar com ele a capacidade de decisão" (FELIZES, 1999, p. 125).
Para o autor, a interpretação da forma como se configuram estes poderes vai no sentido de distinguir entre, de um lado, os poderes difusos mais 'organizados', como é o caso das elites político-econômicas locais e, de outro lado, um poder difuso mais próximo do quotidiano social, das relações que envolvem estratégias mais ou menos conscientes de apropriação e utilização desse poder, que não é o poder político ou econômico formalmente reconhecido, mas sim o poder de 'classificar', de 'ver' e de 'fazer ver' o mundo, de reconhecê-lo com outros atributos, a exemplo dos simbólicos, como afirma Bourdieu (1989).
Interessa-nos saber como se articulam estes poderes. Como nos sugere a argumentação de Russ (1994), podemos questionar 'quem detém o poder' de diferentes formas, apelando a figuras como as elites, os grupos de interesses/pressão, a rede de relacionamentos ou mesmo uma pluralidade de poderes. Tem-se, então, lançada uma das questões mais triviais dos estudos sobre o poder ou o poder local: quem governa? Aqui, ousamos perguntar: quem efetivamente tem o poder de decidir? Quem manda, afinal?
A Sociologia e a Ciência Política desenvolveram três linhas explicativas principais das dinâmicas políticas e das políticas locais: a teoria das elites, o pluralismo (também considerada por vários estudiosos como parte da teoria das elites, mudando apenas o método de análise) e o marxismo, que enfocaram fenômenos particulares e atores específicos, por isso representam visões praticamente impossíveis de se conciliarem em termos teóricos. Marques (2003), por sua vez, afirma que em nível analítico os mecanismos e atores destacados por elas são passíveis de articulação.
De acordo com este autor, em termos cronológicos, a teoria das elites, investigada a partir do método reputacional, foi a primeira a se destacar na temática, com o estudo de Floyd Hunter (1953) sobre o governo urbano na cidade de Atlanta (EUA). Para ele, a estrutura de poder local se comporia a partir da influência de determinados grupos. No topo da pirâmide estariam, principalmente, os empresários de sucesso e as lideranças políticas de destaque (as econômicas, as governamentais, as religiosas e as culturais). A inserção na estrutura de poder aconteceria pela riqueza, pelo prestígio social e pela utilização da máquina política. A coesão se daria pelos interesses comuns, pelas obrigações mútuas ou pelos hábitos partilhados por essa elite. Nesta teoria, a sociedade seria frequentemente composta por uma minoria detentora de poder ("classe superior") em contraposição a uma maioria dele privada (MARQUES, 2003).
A principal conclusão, nesse sentido, é que a conformação do jogo do poder local, marcado pelo controle da elite, assim como a manutenção desse controle de maneira estável no tempo, levariam a que as políticas implementadas seguissem sempre os interesses dos indivíduos ali representados, tornando completamente viciados os resultados do governo sob a democracia representativa. (MARQUES, 2003, p. 27)
Assim, os grupos que dominariam as várias dinâmicas políticas e que se apropriariam do Estado seriam sempre da elite, ajudados muitas vezes pelo próprio Estado, que seria parcialmente responsável pela reprodução da mesma. Consubstanciar-se-ia, assim, uma relação indissociável entre poder político e poder econômico (FISCHER, 1992).
O poder, nessa perspectiva, se reproduziria na socialização, na educação familiar, na estrutura de propriedades, na distribuição da riqueza (acesso a certo padrão de vida), instituições de lazer (clubes e outros que complementariam as organizações anteriores), enfim, na composição do pertencimento a redes de relacionamentos ou de organizações as quais habitualmente frequentariam, "através das quais seriam veiculados informação, negócios, apoios (...), assim como construídas e comungadas visões de mundo e valores" (MARQUES, 2003).
Ainda de acordo com Marques (2003), a teoria das elites apresenta dois problemas principais de análise: dificuldade em incorporar as mudanças e as contingências ao processo político (alternância de poder) e de considerar a importância de atores localizados no próprio Estado. A política elaborada pela teoria das elites "causa sérios problemas à idéia de democracia e ao princípio democrático de controle dos eleitores sobre o governo" (MARQUES, 2003, p. 30).
Em busca de sanar o que se apresenta como problema da teoria das elites, desenvolveu-se também, ao final dos anos 1950, a perspectiva pluralista do poder. O estudo em que efetivamente abordou-se o tema foi o de Robert Dahl (1961), citado há pouco. Nele, a principal crítica à teoria das elites é a de que diminui a participação dos políticos e dos indivíduos em suas análises. Para os pluralistas quem governa, num primeiro patamar, são os partidos políticos e as organizações de interesses. Mas, aponta ainda o autor (2003) que, na própria teoria, muitas vezes os partidos políticos são reduzidos a pouco mais que grupos de interesses ou conjuntos de indivíduos com propósitos comuns. "A unidade básica da política seria, portanto, os grupos de interesses" (DAHL, 1961, p. 31).
Defendem os pluralistas, como o próprio nome indica, que "a sociedade seria composta por uma pluralidade de grupos, cada qual com seus instrumentos de poder e seus interesses específicos e temáticos" (Marques, 2003, p. 31). Assim, em primeiro momento, nenhum grupo ficaria no poder de forma estável ao longo de muito tempo. As críticas de Marques (2003) a essa abordagem mais uma vez se fundamentam na análise equivocada do Estado, que é considerado uma página em branco a "ser preenchida" pelos grupos vitoriosos na política. Nela, ainda, valoriza-se precariamente os funcionários, as instituições, os capitais por ele (Estado) contratados, bem como os detentores de cargos eletivos.
Para as duas teorias, foram elaboradas, ao longo do tempo, várias análises de caráter teórico-metodológico. Felizes (1999) aponta que, na teoria das elites, Hunter desenvolveu aquilo que mais tarde passou a ser conhecido como método reputacional, concluindo que quem detinha as 'rédeas do poder' eram quase que exclusivamente os grandes homens de negócios de Atlanta, embora operassem mais nos bastidores.
Já o trabalho de Dahl (1961) estaria assentado numa metodologia mais plural, subsidiado no método decisional, com o objetivo de "examinar decisões para ver que processos de influência estão presentes", bem como de "identificar os participantes na formulação das políticas e descrever o que eles faziam" (Dahl, 1961, p. 17). Para Judge (1995), as principais conclusões de Dahl contradizem em grande parte as de Hunter. New Haven teria transitado, naqueles últimos dois séculos, de uma oligarquia a um pluralismo e, ao invés de uma elite, Dahl teria encontrado um 'estrato' de indivíduos envolvidos em questões políticas. Já os adeptos às conclusões de Dahl colocaram em causa o pluralismo moderado de New Haven, no sentido de que, a partir dos anos 1960, a tensão social urbana e o envolvimento dos cidadãos no debate político aumentaram. Neste ponto, afirma Felizes (1999), alguns podem pensar que em vez de se perguntar: 'quem governa?', dever-se-ia perguntar: 'será que alguém governa?'
A divergência entre os dois grupos, então, giraria em torno de questões fundamentais, como as metodológicas e as teóricas. Mesmo com a polêmica que dividiu os primeiros defensores do elitismo e do pluralismo, tanto o trabalho de Hunter quanto o de Dahl foram inicialmente atacados justamente por suas supostas debilidades metodológicas. Em nível internacional, de acordo com Marques (2003), essas duas correntes de pensamento foram expressivas nos estudos das dinâmicas políticas e do poder local. No Brasil, no entanto, a inserção de ambas as abordagens foi acanhada.
A última das três linhas explicativas das dinâmicas políticas é a marxista. Ela, em função da importância da análise do marxismo estruturalista althusseriano e dos estudos de Poulantzas, nos anos 1970 e 1980, procede a uma revisão do Estado e de sua relação com o poder. Marques (2003) afirma que as maiores contribuições foram dadas pela literatura francesa, fundando, posteriormente, os dois ramos da escola de sociologia urbana representados, especialmente, pelas correntes neomarxistas criadas por Castells e Lojkine.
A crítica marxista à teoria das elites e ao pluralismo se constitui a partir de uma interpretação diversa de sociedade realizada por essa vertente. Nela, a sociedade é compreendida como o conjunto de relações entre dominantes e dominados, ou seja, duas classes antagônicas que conduzem, a partir de contradições, o cerne do movimento histórico, e não meramente como elites e massa, passivas entre si, com a existência de conflitos apenas no interior das elites. Além disso, a concepção de sociedade depende da estrutura ou da base econômica, e da superestrutura, sendo a forma de produção determinante, embora nem sempre dominante. Longe de ousar interpretar, neste ensaio, esta análise da sociedade, cabe afirmar que o núcleo da teoria marxista está na ruptura da ordem (diga-se do modo de produção) ou na passagem de uma ordem a outra, o que se daria mediante as contradições internas ao próprio sistema, em suas forças produtivas e nas relações de produção. A mudança social, então, é considerada o grande objetivo de Marx e da maior parte dos marxistas.
Para Marques (2003), mesmo não concordando com a captura estrutural do Estado, um elemento pode ser destacado nessa vertente, qual seja, a da ação dos capitais envolvidos com a produção da política, já que, para ele, esses se constituem em importantes atores políticos, pois possuem interesses próprios e recursos de poder não só financeiros, mas também simbólicos, organizacionais e discursivos, como alguns dos estudos exemplificados abaixo.
3. OS ESTUDOS DE PODER LOCAL NO BRASIL
Os estudos de poder local realizados no Brasil a partir dos anos 1950 foram sistematizados por alguns autores, especialmente como resultados de pesquisas de mestrado e de doutorado. Dentre as análises, podemos destacar as de Tabak (1961), Gomes e Costa (1968), Carvalho (1969) e Castro (1974). Em função dos aportes metodológicos e dos critérios específicos das abordagens, no entanto, suas observações foram diferenciadas.
Pode-se afirmar que esses estudos constituem-se em clássicos sobre o tema, aqueles da primeira geração, estando divididos em dois grupos. No primeiro deles estão os estudos publicados pela Revista Brasileira de Estudos Políticos, caracterizados por Carvalho (1969) como estudos políticos. No segundo estão os estudos de comunidades locais realizados por antropólogos brasileiros e norte-americanos da USP e denominados, por Carvalho (1969), de estudos antropológicos.
Diante do interesse, aqui, pelos trabalhos de cunho político, optou-se pela análise de alguns desses. Dentre os citados, o de Carvalho, em 1969, alerta para elementos que devem ser considerados ao se estudar a questão do poder local, elementos citados também por Castro, em 1974, e que tem sido preocupação daqueles que trabalham com o tema. Afirma ele que o conceito de poder local (como os demais) deve ser cuidadosamente definido e ter em vista a elaboração de uma discussão mais geral do poder em nível estadual ou nacional.
Castro (1974) acrescenta que é preciso atentar para não se fazer apenas descrições e narrações, lembrando-nos da importância do papel da estrutura de classes e/ou dos grupos na dinâmica das relações de poder. Para a autora deve-se buscar entender, ainda, os discursos dos grupos não detentores de poder e verificar o porquê de assim se encontrarem. Nesse sentido, questiona-se de quais recursos alguns grupos locais são controladores para que se sobrepunham aos demais. E os excluídos, estão suprimidos do quê?
Outra análise, mais recente, é realizada por Kerbauy (1992) em sua tese de doutorado. A autora repensa o poder local no Brasil a partir das transformações ocorridas no período de 1964 a 1982. Objetiva, em especial: "contrapor a velha imagem da política local, como esfera privilegiada do coronelismo, aos novos padrões e procedimentos locais que se desenvolveram à medida que progrediu a interação nacional e se rompeu o isolamento local" (KERBAUY, 1992, p. 1).
Kerbauy (1992) afirma que a implantação de um regime autoritário, no Brasil, em 1964, deu início a um processo de modernização conservadora, com o Estado ampliando sua intervenção sobre a sociedade e a economia, tendo em vista romper com os limites para a implantação do modo de produção capitalista. Demonstra, também, que as relações sócio-econômicas de então apresentaram algum dinamismo, com as transformações urbanas e a industrialização, o avanço nos níveis de ensino, os transportes que romperam, de certa forma, o isolamento etc., mas também demonstra que as relações políticas não passaram por essa transformação, mesmo porque não permitiram a participação da sociedade em decisões fundamentais, como a própria escolha de seus representantes. Assim, pouco foram modificadas as relações entre Estado e sociedade. Nesse sentido, segundo ela, torna-se imperativo um esforço analítico mais matizado, que leve em conta alguns processos de mudança estrutural, mas também as transformações políticas.
Em sua análise, ainda, a autora afirma que há um vazio teórico, nas Ciências Sociais do país, sobre o tema poder político local. Para ela, aqui, não se consolidou uma teoria, e justamente porque existem incertezas do conceito de poder local. Assim, a busca pela articulação e interpretação teórica é o desafio a ser alcançado. Para a autora, no Brasil, os estudos passam (não se aprofundam) pelos métodos de investigação reputacional e decisional. Como já citado, no primeiro, o poder está associado às pessoas com maior reputação ou prestígio em uma determinada comunidade. No segundo, o poder está associado às decisões locais tomadas por pessoas/famílias com base em seus interesses. A partir daí seguem as linhas direcionadas aos estudos de poder político local (antropológicos e históricos) desenvolvidas, em especial, na UFMG, por meio da Revista Brasileira de Estudos Políticos disseminados, posteriormente, a outros meios científicos.
Vale ressaltar, afirma Kerbauy (1992), mais recentemente, o desenvolvimento das pesquisas comparativas entre municípios/cidades. Nessas, é preciso instigar o desenvolvimento de análises,
...as quais pouco tem se oferecido (sic) relevância ao papel do governo municipal enquanto espaço político institucional em que se expressam à representação, a aliança, o conflito e a disputa de interesses, forças e organizações sociais que marcam e moldam o território político local dentro do contexto regional e nacional (KERBAUY, 1992, p. 20-21).
Além dessas pesquisas, nos lembra Kerbauy (1992), há uma série de estudos que trabalha com análises de políticas públicas, de movimentos sociais e participativos, da questão fiscal (descentralização, reforma tributária, papel do poder local na construção do espaço urbano) e outros.
Nesse contexto, é preciso observar que o local não é simplesmente um recorte de algo maior, mas resultado de relações entre o nacional e o global e vice-versa. Com isso, os estudos de poder local não necessariamente têm que se encontrar limitados pelas fronteiras político-administrativas de um município. O fundamental, para o controle político hegemônico de alguns grupos, nem sempre se encontra no interior desses limites e, muitas vezes, não tem nem existência física nos mesmos, muito embora sua influência seja decisiva.
Fischer (1992, p. 106) destaca duas vertentes principais de estudos do poder local:
A primeira é a própria realidade, isto é, um cenário onde as questões de poder revelam-se concretamente no quotidiano das cidades como, por exemplo, nas cidades brasileiras, onde a discussão de planos-diretores tem como pano de fundo a progressiva degradação urbana, a carência de serviços essenciais, a relativa desilusão com o poder de transformação dos movimentos sociais, o desgaste dos prefeitos por não responderem a expectativas mínimas de qualidade da vida urbana. A segunda vertente (...) é a rica reflexão propiciada pelas abordagens teóricas do poder local, que são desenvolvidas por grupos europeus.
Na França, os estudos concentram-se na escola de sociologia marxista e no chamado funcionalismo institucional. Como exposto por Marques (2003), também para Fischer (1992), a escola francesa de sociologia urbana vem debatendo temas importantes desde os anos 1960. Destacam-se os relacionados ao Estado como instrumento de dominação, tendo o local como produto da lógica capitalista monopolista global e os que entendem o espaço urbano como resultado da organização da dominação de classe (são exemplos os estudos das primeiras fases de Castells e Lojkine, como já apontados, e os de Topalov e Lipietz).
Os estudos dos marxistas dos anos 1970, de acordo com Preteceille (1990, apud Fischer, 1992, p. 109) "já revelaram que o local não é decalque do nacional. No Brasil, a produção acadêmica acompanhou essa trajetória, pela inserção de doutorandos nas linhas de pesquisa dos centros franceses". No final dos anos 1980, de acordo com a autora, os estudos se direcionaram para uma linha mais distinta de análise de políticas públicas, e que tem se fortalecido desde então. Já a escola funcionalista, para Fischer (1992), não trabalha com o poder local em suas particularidades, mas com o local e sua inserção no nacional e global. Tem como ideólogos Pierre Grenion e Michel Crozier. Nas últimas duas décadas, ressalta a autora, um fator importante é o da convergência de temas e métodos de análises entre ambas as escolas.
Na América Latina, também recentemente, a revalorização de espaços territorializados (regiões, áreas metropolitanas, municípios, distritos) tem ampliado os estudos sobre poder local. Assim, experiências de gestão mais democrática (como as observadas em alguns municípios do Brasil) e a ação de movimentos sociais passaram a ser observadas (FISCHER, 1992). A transição democrática dos países da América Latina levou a um crescimento desses estudos, com intercâmbios com França e Espanha. Considerando as diversas análises, Fischer (1992) confirma que as pesquisas sobre poder local têm uma movimentação espontânea na direção de novas problemáticas.
O Brasil não se exclui do processo exposto, com trabalhos em praticamente todas as linhas citadas. Mais recentemente, no entanto, os estudos do local reúnem trabalhos bastante diversos, também com grande ênfase nas políticas públicas ou na relação poder público e comunidade local. Vêm sendo agrupados em três dimensões principais: como espaços político e simbólico, como espaço de gestão e como espaço de consumo de serviços de bens e equipamentos urbanos (FISCHER, 1992).
Nas Ciências Sociais, em geral, destacam-se os estudos realizados pela Associação Nacional de Planejamento Urbano (ANPUR), pela Associação Nacional de Programas de Administração (ANPAD) e pelo Núcleo de Estudos sobre Poder e Organizações Locais (NEPOL), da Escola de Administração da UFBA, que trabalham com o planejamento e a gestão urbanas (análise de políticas públicas e a participação cidadã); pela Associação Nacional de Pesquisas em Ciências Sociais (ANPOCS), voltada aos estudos da interação entre movimentos sociais e políticas públicas; dentre outros grupos mais recentes e ainda em consolidação; além de publicações de periódicos na área. Na Geografia, os estudos dos cursos de pós-graduação e os DEGEOS da USP, da UNESP/PP e da UFPE, contribuem, além de outros, com uma análise espacializada dos fenômenos, fundamental nos estudos de poder local.
Como se observa, tomando-se por fundamento alguns critérios, o tema tem muito a contribuir também para os estudos das formas e possibilidades da espacialização de relações de poder.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem realizada neste texto fundamentou-se nos estudos relativos ao poder e as suas formas e teorias, em especial as do poder local. As relações de poder se sustentam e são passíveis de existência por meio de alguns atores, dentre eles o Estado e os grupos de interesses (elites, partidos políticos, empresas e outros) vinculados ou não ao mesmo. O poder local, com isso, requer tratamento mais aprofundado quanto aos aspectos investigativos da realidade, posto procurar a si próprio na encruzilhada de diversas disciplinas e, na Geografia, difundir-se pelos aspectos econômicos, políticos, sociais e ideológicos, demarcando territórios.
Nesta ciência, as discussões sobre poder ou poder local não se constituem tradição, apesar de serem realizadas há muito por estudiosos de outras áreas científicas. Afirma Raffestin (1993) que isso ocorre em função da Geografia ter sido quase sempre rebelde à introdução de noções que não são objeto de uma tradução espacial imediata, fato que, entende-se, tem se transformado nas últimas décadas. No texto apresentado, a hipótese é a de que as relações que ocorrem na sociedade supõem um sistema no qual circula o poder, que é inerente a toda relação (mas qualifica algumas mais que outras), e não uma categoria espacial ou uma categoria temporal.
Assim, as relações de poder perfazem diversos conflitos como os estabelecidos nos grupos político-econômicos, sociais e outros atores, mas são imanentes, não havendo, diretamente, uma oposição entre dominantes e dominados, mas sim "situações de poder" que ora favorecem a um, ora a outro sujeito/coletivo. As transformações nas formas de poder do Estado têm levado a difusão de outras posturas interpretativas (em maioria francesas, deixando-se em segundo plano as versões americana e inglesa) para as relações entre poder e espaço, especialmente as originárias de novos conceitos e categorias de análise, como as de regionalismo, identidade e adjetivações do território, como os territórios conservadores.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Artigo recebido para publicação em 13/01/08 e aceito para publicação em 18/06/08
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Abr 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2008
Histórico
-
Recebido
13 Jan 2008 -
Aceito
18 Jun 2008