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O estabelecimento da moratória da soja na Amazônia Brasileira: ação ambiental estratégica para explorar oportunidades em múltiplos campos

Resumo

O artigo aborda como organizações do movimento ambientalista conseguiram estabelecer a moratória da soja na Amazônia brasileira. Articula a perspectiva dos Campos de Ação Estratégica (CAEs) com ideias da teoria dos movimentos sociais, abordando os mercados como construções culturais, políticas e históricas. Uma pesquisa qualitativa foi realizada usando dados de múltiplas fontes. Debatendo com autores que conceituaram as estruturas de oportunidades políticas (EOPs) dos mercados, demonstramos que estas podem ser mais bem compreendidas como um conjunto de CAEs interconectados. Para lidar com EOPs fechadas na Amazônia brasileira, as organizações ambientalistas tiveram que mudar estrategicamente a escala de sua atuação e internacionalizar seus protestos, identificando e aproveitando as aberturas em setores e empresas na Europa e pressionando-as a usarem sua força para transformar as práticas das principais tradings de soja.

Palavras-chave
moratória da soja; Floresta Amazônica; campos de ação estratégica; movimentos sociais; oportunidades políticas

Abstract

The paper addresses how environmental movement organizations were able to establish the soy moratorium in the Brazilian Amazon. It combines the Strategic Action Field (SAFs) perspective with ideas of social movements theory, addressing markets as cultural, political and historical constructions. Qualitative research was conducted using data from multiple sources. Debating with authors who conceptualized the political opportunity structures (POS) of markets, we demonstrate that these may be better understood as an ensemble of interconnected SAFs. In order to deal with closed POS in the Amazon, environmental organizations had to strategically shift the scale and internationalize their protests, identifying and taking advantage of openings in European sectors and companies and pressuring them into using their force to transform the practices of major soy traders.

Keywords
soy moratorium; Amazon Rainforest; strategic action fields; social movements; political opportunities

Resumen

El artículo aborda cómo las organizaciones del movimiento ambientalista lograron establecer una moratoria de la soja en la Amazonía brasileña. El estudio articuló la perspectiva de los Campos de Acción Estratégicos con los conceptos de la teoría de los movimientos sociales, abordando los mercados como construcciones culturales, políticas e históricas. Se llevó a cabo una investigación cualitativa utilizando datos de múltiples fuentes. Al debatir con autores que han conceptualizado las estructuras de oportunidades políticas de los mercados, demostramos que estas pueden comprenderse mejor como un conjunto de campos interconectados. Para hacer frente a la estructura de oportunidades cerradas en la Amazonía, los ambientalistas tuvieron que cambiar estratégicamente su escala de acción e internacionalizar sus protestas, identificando y aprovechando las aperturas en sectores y empresas en Europa y presionándolos para que usaran su peso para transformar las prácticas de los grandes traders de soja.

Palabras clave
moratoria de la soja; Amazonia; campos de acción estratégica; movimientos sociales; oportunidades políticas

Introdução

Em 2020, o Brasil se tornou o maior produtor e exportador de soja do mundo. Desde a década de 1970, a produção desse grão expandiu-se pelas áreas de cerrado e em direção à floresta amazônica, impulsionada por políticas públicas que promoveram a integração das regiões Centro-Oeste e Norte no território nacional (Becker, 20015 BECKER, Bertha K. Revisão das políticas de ocupação da Amazônia: é possível identificar modelos para projetar cenários? Parcerias estratégicas, v. 6, n. 12, p. 135-159, 2001.). Na década de 1990, a abertura e estabilização da economia e a convergência dos interesses nacionais com a produção de commodities intensificaram esse processo. A soja passou a ser produzida principalmente em grandes fazendas altamente capitalizadas e mecanizadas e comercializada e processada nacionalmente ou no exterior por multinacionais estrangeiras, como Cargill, Bunge e Archer Daniels Midland (ADM). A Amaggi, empresa familiar brasileira que tem como herdeiro Blairo Maggi, ex-governador de Mato Grosso e ex-ministro da Agricultura, também se destacou no cultivo, processamento e comercialização de soja.

Ao mesmo tempo que a produção de soja se espalhava pelo Norte do Brasil, movimentos engajados na conservação da floresta amazônica brasileira ganhavam força (Hochstetler; Keck, 200716 HOCHSTETLER, Kathryn; KECK, Margaret E. Greening Brazil: Environmental activism in state and society. Durham: Duke University Press, 2007.). Esses atores são heterogêneos, compreendendo um campo dividido em dois grandes grupos. O primeiro é composto por organizações de base, que representam comunidades diretamente dependentes dos recursos florestais e impactadas pelo desmatamento, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos. O segundo envolve organizações não governamentais (ONGs) integradas por profissionais que desenvolvem projetos financiados na Amazônia, incluindo grandes organizações nacionais e internacionais, que podem ser subdivididas de acordo com o grau em que apoiam as comunidades florestais (Andrade; Sacomano Neto; Candido, 20222 ANDRADE, Roberta A.; SACOMANO NETO, Mário; CANDIDO, Silvio E. A. Implementing community-based forest management in the Brazilian Amazon Rainforest: a strategic action fields perspective. Environmental Politics, v. 31, n. 3, p. 519-541, 2002.; Alonso; Costa; Maciel, 20071ALONSO, Angela; COSTA, Valeriano; MACIEL, Débora. Identidade e estratégia na formação do movimento ambientalista brasileiro. Novos estudos CEBRAP, n. 79, p. 151-167, 2007.).

Em meados da década de 1990, esses desenvolvimentos relativamente independentes na produção de soja e nos movimentos ambientalistas se contrapuseram devido aos planos dos governos federais de investir na infraestrutura da região amazônica. Depois de quase duas décadas de instabilidade política e econômica, a economia brasileira começou a se recuperar. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002) foram anunciados planos estratégicos para a retomada dos investimentos em infraestrutura. A ideia era enfrentar os altos custos logísticos de exportar commodities agrícolas cada vez mais produzidas no Centro-Oeste do país pelos portos do sul e sudeste. Para isso, seriam construídas ou reformadas estradas e portos na região amazônica, estabelecendo o que foi chamado de “Arco Norte”. Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência comprometido com a continuidade desses planos de desenvolvimento da infraestrutura nacional.

As expectativas relativas às melhorias na infraestrutura de transporte foram recebidas com entusiasmo pelo setor da soja. Além de reduzir custos logísticos, o Arco Norte impulsionaria a expansão da soja para a região Norte. Os ambientalistas, por outro lado, criticaram duramente essas iniciativas, considerando as ações de mitigação dos impactos ambientais desses empreendimentos insuficientes para conciliar o desenvolvimento com a conservação da Floresta Amazônica. A ocorrência dos maiores picos de todos os tempos nas taxas anuais oficiais de desmatamento em 1995 e 2004 reforçaram essas críticas ambientais.

Considerando as assimetrias de poder envolvidas nessa controvérsia, poderíamos dizer que as chances de os movimentos ambientalistas terem êxito em sua oposição aos planos de um dos maiores setores da economia brasileira e dos governos nacionais eram ínfimas. No entanto, em 2006, esses movimentos conseguiram estabelecer o primeiro acordo voluntário de desmatamento zero dos trópicos, conhecido como a Moratória da soja (Gibbs et al., 201513 GIBBS, Holly et al. Brazil’s soy moratorium. Science, v. 347, n. 6220, p. 377-378, 2015.). Nesse, tradings que concentravam cerca de 90% do mercado concordaram em não comprar soja cultivada em propriedades que foram desmatadas após julho de 2006 e envolvidas em denúncias de trabalho análogo à escravidão e em invasões a terras indígenas. Enquanto alguns analistas consideram que o acordo foi eficaz no combate ao desmatamento (Gibbs et al., 201513 GIBBS, Holly et al. Brazil’s soy moratorium. Science, v. 347, n. 6220, p. 377-378, 2015., Lambin et al., 201822 LAMBIN, Eric et al. The role of supply-chain initiatives in reducing deforestation. Nature Climate Change, v. 8, n. 2, p. 109-116, 2018.), outros apontam que o acordo só trouxe resultados por conta da sua convergência com a implementação de políticas públicas efetivas de combate ao desmatamento pelo governo brasileiro, que acabaram ofuscadas pela grande repercussão das iniciativas privadas (Nepstad et al., 201429 NEPSTAD, Daniel et al. Slowing Amazon deforestation through public policy and interventions in beef and soy supply chains. Science, v. 344, n. 6188, p. 1118-1123, 2014.; Torres; Branford, 201737 TORRES, Maurício; BRANFORD, Sue. Após mais de uma década, pacto voluntário entre empresas e ONGs deixa dúvidas sobre eficácia em proteger a Amazônia. The Intercept, 16 mar. 2017. Disponível em: https://theintercept.com/2017/03/16/moratoria-da-soja-solucao-contra-o-desmatamento-ou-marketing-corporativo/
https://theintercept.com/2017/03/16/mora...
). O que está claro, porém, é que os movimentos envolvidos na disputa que originou a moratória alcançaram o seu objetivo.

Este artigo aborda como as organizações do movimento ambientalista conseguiram estabelecer a moratória da soja. Para tanto, articulamos a perspectiva do Campo de Ação Estratégica (CAEs) (Fligstein; McAdam, 201212 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012.) com conceitos dos estudos dos movimentos sociais, abordando os mercados como construções históricas, culturais e políticas.

A análise envolve contribuições conceituais e empíricas. Conceitualmente, contribui para discutir ideias dos estudos dos movimentos sociais em relação à perspectiva CAEs. Ao fazê-lo, atendemos aos apelos de McAdam, Tarrow e Tilly (2003)26 MCADAM, Doug; TARROW, Sidney; TILLY, Charles. Dynamics of contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. e de Fligstein e McAdam (2012)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012. para traduzir ideias de estudos sobre movimentos sociais para outras áreas de investigação em ciências sociais, tornando-as menos “movimento-centradas”. Utilizando ideias desenvolvidas por Fligstein e McAdam (2012), revisamos o conceito de estruturas de oportunidades políticas (EOP) de mercados desenvolvida por Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004., abordando-as como um conjunto de CAEs interconectados. Articulando ideias apresentadas por Soule (2009)33 SOULE, Sarah. Contention and corporate social responsibility. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. e Tarrow (2005)35 TARROW, Sidney. The new transnational activism. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. com a noção de ação socialmente hábil da perspectiva dos CAEs, também abordamos como os movimentos podem transformar os mercados mudando suas escalas de atuação e internacionalizando protestos para explorar oportunidades das cadeias de produção globais.

Embora numerosos estudos empíricos tenham avaliado os resultados da moratória da soja, poucos enfocaram o processo político que levou ao seu estabelecimento. As duas análises identificadas foram as desenvolvidas por Barbosa (2015)3 BARBOSA, Luiz C. Guardians of the brazilian amazon rainforest: environmental organizations and development. Londres: Routledge, 2015. e Cardoso (2008)7 CARDOSO, Fátima C. (2008). Do confronto à governança ambiental: uma perspectiva institucional para a Moratória da Soja na Amazônia. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.. Apesar da importância dessas pesquisas, consideramos que elas têm limitações e pontos cegos importantes. Baseando-se na teoria do sistema mundo e na literatura sobre redes de resistência em cadeias de commodities globais, Barbosa (2015)3 BARBOSA, Luiz C. Guardians of the brazilian amazon rainforest: environmental organizations and development. Londres: Routledge, 2015. enfatiza excessivamente os aspectos objetivos do caso, sejam questões materiais das cadeias ou conexões de rede concretas. Cardoso (2008)7 CARDOSO, Fátima C. (2008). Do confronto à governança ambiental: uma perspectiva institucional para a Moratória da Soja na Amazônia. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. baseia-se principalmente na teoria institucional da sociologia das organizações, negligenciando relações de poder e enfatizando excessivamente a cooperação.

CAEs e EOPs de mercados internacionais

A perspectiva dos CAEs foi desenvolvida por Fligstein e McAdam (2012)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012., autores destacados das sociologias econômica e organizacional e dos estudos dos movimentos sociais, respectivamente. Embora tenha sido particularmente aplicada nessas áreas, a proposta é constituir uma abordagem geral da dinâmica da estabilidade e da mudança social. Para tanto, assume-se que as sociedades modernas são diferenciadas em decorrência da divisão social do trabalho e organizadas em arenas relativamente autônomas, denominadas CAEs.

Como outras teorias de campo, a perspectiva explica regularidades e transformações nas ações considerando as posições relativas dos atores sociais (Martin, 200325 MARTIN, John-Levi. What is field theory? American journal of sociology, v. 109, n. 1, p. 1-49, 2003.). Os CAEs são ordens sociais de nível meso nas quais os atores se relacionam, cooperando e competindo rotineiramente (Fligstein; McAdam, 201212 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012.). Campos implicam entendimentos compartilhados sobre (i) os propósitos da arena; (ii) o que está em jogo; (iii) as posições que cada ator ocupa, que são definidas com base nas suas dotações de recursos; (iv) e as regras que regem a ação legítima. Os atores interpretam o campo com base em estruturas cognitivas e em suas habilidades sociais, utilizando-as para induzir a cooperação. As estratégias também são condicionadas pelas posições de campo, com os incumbentes tendendo a reproduzir a ordem dos CAEs e os desafiantes tendendo a transformá-la. Elas dependem também dos estados dos campos, que podem ser de emergência, estabilidade ou crise (Fligstein, 201310 FLIGSTEIN, Neil. Understanding stability and change in fields. Research in Organizational Behavior, v. 33, 39-51, 2013.).

Fligstein e McAdam (2012)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012. propõem que a atenção às interconexões dos CAEs é particularmente importante. As relações entre esferas envolvem relações de poder materiais e simbólicas, que estão relacionadas com o grau de autonomia dos campos. Como a dinâmica interna dos campos envolve disputas, as relações entre as arenas implicam relações entre atores que ocupam diferentes posições em cada arena. Os CAEs podem estar direta ou indiretamente conectados. As conexões diretas dependem de interações sociais rotineiras. As indiretas ocorrem quando os campos estão ligados via uma arena intermediária. As conexões diretas podem ser verticais, com campos de ordem superior abrangendo esferas de ordem inferior, ou horizontais, envolvendo delimitações separadas.

A análise dos mercados e das organizações econômicas com base nessa abordagem é consistente com os preceitos do trabalho de Polanyi (2013)30 POLANYI, Karl. A grande transformação. Lisboa: Leya, 2013., considerando os mercados como construções culturais, políticas e históricas inseparáveis dos Estados (Fligstein, 200111 FLIGSTEIN, Neil. The architecture of markets. Princeton: Princeton University Press, 2001.). Pesquisas empíricas variadas demonstraram que, além dos Estados, outros campos não econômicos interferem nessa construção. Na esteira da ideia de duplo movimento (Polanyi, 201330 POLANYI, Karl. A grande transformação. Lisboa: Leya, 2013.), uma rica literatura demonstrou que os movimentos sociais podem desempenhar um papel importante na emergência e transformação dos mercados (Carneiro, 20078 CARNEIRO, Marcelo S. A construção social do mercado de madeiras certificadas na Amazônia brasileira: a atuação das ONGs ambientalistas e das empresas pioneiras. Sociedade e Estado, v. 22, p. 681-713, 2007.; Kungl; Hess, 202121 KUNGL, Gregor; HESS, David J. Sustainability transitions and strategic action fields: A literature review and discussion. Environmental Innovation and Societal Transitions, v. 38, p. 22-33, 2021.; Husu, 202217 HUSU, Hanna-Mari. Rethinking incumbency: Utilising Bourdieu’s field, capital, and habitus to explain energy transitions. Energy Research and Social Science, v. 93, e102825, 2022.; Candido; Sacomano Neto; Côrtes, 20226 CANDIDO, Silvio Eduardo A.; SACOMANO NETO, Mario; CÔRTES, Mauro R. How social inequalities shape markets: lessons from the configuration of PET recycling practices in Brazil. Business & Society, v. 61, n. 3, p. 539-571, 2022.). Confrontados com ataques de movimentos à legitimidade dos meios utilizados para gerar lucros, os atores do mercado podem incorporar suas críticas, moralizando seus negócios (King; Pearce, 201019 KING, Brayden G.; PEARCE, Nicolas A. The contentiousness of markets: Politics, social movements, and institutional change in markets. Annual review of sociology, v. 36, p. 249-267, 2010.).

A interferência dos movimentos nos mercados e nas organizações é geralmente improvável devido às assimetrias de poder. Para explicar como os ativistas podem ter sucesso, o conceito de estruturas de oportunidades políticas (EOP) tem sido utilizado. EOPs referem-se às dimensões contextuais e temporais que influenciam os movimentos para desafiar uma ordem estabelecida e suas chances de atingir seus objetivos (Meyer, 200428 MEYER, David. Protest and political opportunities. Annual review of sociology, v. 30, p. 125-145, 2004.). O conceito foi desenvolvido para abordar contenciosos envolvendo Estados nacionais, mas foi adaptado para lidar com a multiplicação de cenários em que os movimentos operam, incluindo disputas internacionais e nos mercados (Schurman, 200432 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004.; Soule, 200933 SOULE, Sarah. Contention and corporate social responsibility. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.; Tarrow, 200535 TARROW, Sidney. The new transnational activism. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.).

Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. desenvolveu a teorização mais influente das EOPs dos mercados e uma comparação de suas ideias com a abordagem CAEs é pertinente. Baseando-se no institucionalismo sociológico, nos estudos organizacionais e na literatura sobre movimentos sociais, a autora propôs que, ao entrarem em conflitos com atores econômicos, os movimentos se deparam com relações materiais e institucionais específicas e com formas convencionais de conduzir os negócios. Quatro instâncias inter-relacionadas de oportunidades podem estar envolvidas: a cultura corporativa; a indústria; a natureza dos bens e/ou serviços; e o campo organizacional.

As culturas corporativas são vistas como sistemas de significados ligados a normas e práticas (Schurman, 200432 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004.). Os movimentos podem considerar as culturas das empresas ao tomar decisões estratégicas sobre qual empresa atacar. Elas também moldam as formas como as empresas percebem, interpretam e respondem às demandas de um movimento. Ao verificar que uma empresa se identifica com determinados valores, os movimentos podem contestar sua legitimidade, denunciando a dissociação entre suas práticas e discursos.

Essa definição de cultura corporativa é incompatível com a abordagem dos CAEs, uma vez que adere a uma visão funcionalista das organizações, tratando-as como unitárias. De acordo com Fligstein e McAdam (2012, p. 64)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012., as organizações burocráticas são tipos específicos de CAEs, com divisões de trabalho, estruturas de autoridade e limites formalizados. Organizações são compostas por subcampos e por indivíduos com interesses e crenças próprias em disputa. Essas disputas envolvem relações de poder e pode-se falar em “uma” cultura organizacional dominante ao invés de “a” cultura organizacional.

A segunda instância refere-se ao setor econômico. Com base em Fligstein (2001)11 FLIGSTEIN, Neil. The architecture of markets. Princeton: Princeton University Press, 2001. e consistentemente com a abordagem dos CAEs, Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. afirma que nesse nível as empresas competem de acordo com certas concepções de controle e dotações de recursos que moldam posições de poder e estabilizam os mercados, definindo os incumbentes e os desafiantes. As oportunidades para os movimentos surgem no contexto de disputas entre atores. A atuação dos contestadores pode convergir com as estratégias dos desafiantes que tentam alterar as convenções. Os movimentos também podem atacar condutas imorais ou desviantes, reafirmando convenções contra atores específicos. Quanto mais importantes as marcas das empresas forem para o negócio na indústria, mais vulneráveis serão as empresas a ataques de movimentos.

A natureza dos bens e serviços também é relacionada por Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. às oportunidades. O grau em que os produtos e serviços ofendem as sensibilidades morais das pessoas está diretamente relacionado com as probabilidades de mobilização e de sucesso nas disputas. Na abordagem dos CAEs, essa definição sobrepõe-se a da instância anterior, a do setor. Isso porque o tratamento de um setor ou de uma indústria como um campo geralmente requer que os produtos ou serviços sejam relativamente homogêneos, apesar das possibilidades de diferenciação (Fligstein; McAdam, 201212 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012., p. 167-168).

Uma última instância teorizada por Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. está associada à ideia de campo organizacional (DiMaggio; Powell, 19839 DIMAGGIO, Paul. J.; POWELL, Walter. W. The iron cage revisited: Institutional isomorphism and collective rationality in organizational fields. American sociological review, v. 48, n. 2, p. 147-160, 1983.). Esses campos envolvem “aquelas organizações que, no agregado, constituem uma área reconhecida da vida institucional: fornecedores-chave, consumidores de recursos e produtos, agências reguladoras e outras organizações que produzem serviços ou produtos semelhantes” (DiMaggio; Powell 19839 DIMAGGIO, Paul. J.; POWELL, Walter. W. The iron cage revisited: Institutional isomorphism and collective rationality in organizational fields. American sociological review, v. 48, n. 2, p. 147-160, 1983., p. 148, tradução nossa). Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. associa essa instância às redes de produção de commodities e suas conexões com o Estado, indicando que essas interações acarretam diferentes oportunidades. A autora enfatiza que podem existir relações de poder baseadas em dependências entre fornecedores e clientes, alegando que “na medida em que uma empresa ou indústria tem muitos laços econômicos com outra empresa ou indústria, ela deveria estar menos disposta a sacrificar essa relação comercial face de um desafio de movimento social” (p. 249, tradução nossa). A autora indica ainda que um campo organizacional pode ter mais ou menos apoio dos Estados, dependendo da sua importância política.

Essa visão diverge da abordagem do CAEs em aspectos importantes. Conforme colocado por Fligstein e McAdam (2012, p. 167-168)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012., o conceito de campo desenvolvido por DiMaggio e Powell (1983)9 DIMAGGIO, Paul. J.; POWELL, Walter. W. The iron cage revisited: Institutional isomorphism and collective rationality in organizational fields. American sociological review, v. 48, n. 2, p. 147-160, 1983. é mais amplo, abrangendo atores de diversos setores e enfatizando redes concretas. Os CAEs são mais estreitos, tendendo a convergir com setores econômicos, e compreendem não apenas redes, mas também as formas como os atores se comportam em relação aos outros, baseando-se em percepções intersubjetivas sobre suas posições relativas nos campos e entre os campos. Em vez de uma rede de produção de commodities, composta por empresas que efetivamente transacionam entre si, a abordagem dos CAEs aborda a forma como os laços se situam e transpõem campos em que as empresas ocupam posições específicas, conforme representado na Figura 1. As oportunidades dependem, então, das relações em cada campo e das relações entre os campos.

Figura 1
Representação das estruturas de oportunidades dos mercados internacionais como um conjunto de campos

Abordando os Estados como um conjunto de campos em vez de entidades unitárias, a abordagem dos CAEs sugere que o apoio das autoridades públicas a um setor é mediado por disputas no próprio Estado. Subcampos do Estado podem ter vínculos políticos com diferentes setores e atribuir-lhes importâncias diversas, dificultando a identificação de oportunidades pelos movimentos. Nos mercados internacionais, os campos econômicos estarão relacionados com diferentes campos estatais (e seus subcampos) que mantêm as relações internacionais.

Todos esses domínios interconectados da EOP dos mercados configuram os ambientes complexos em que os movimentos sociais operam. Para terem sucesso, os movimentos devem reconhecer vulnerabilidades e desenvolver táticas para interferir oportunamente em certos pontos focais (Soule, 200933 SOULE, Sarah. Contention and corporate social responsibility. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.). Isso é consistente com o conceito de habilidades sociais, que micro fundamenta a abordagem dos CAEs (Fligstein; McAdam, 201212 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012.).

A literatura dos movimentos sociais sugere mecanismos relevantes no que diz respeito à identificação de pontos focais nos mercados internacionais (Figura 2). As ideias de externalização e mudança de escala são de particular interesse (Tarrow, 200535 TARROW, Sidney. The new transnational activism. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.). A externalização está associada ao “padrão bumerangue” descrito por Keck e Sikkink (1999)18 KECK, Margaret E.; SIKKINK, Kathryn. Transnational advocacy networks in international and regional politics. International social science journal, v. 51, n. 159, p. 89-101, 1999.. Bartley e Egels-Zandén (2016)4 BARTLEY, Tim; EGELS-ZANDÉN, Niklas. Beyond decoupling: Unions and the leveraging of corporate social responsibility in Indonesia. Socio-Economic Review, v. 14, n. 2, p. 231-255, 2016. e McAteer e Pulver (2009)27 MCATEER, Emily; PULVER, Simone. The corporate boomerang: Shareholder transnational advocacy networks targeting oil companies in the Ecuadorian Amazon. Global Environmental Politics, v. 9, n. 1, p. 1-30, 2009. adaptaram esse modelo à contenção nos mercados. Nesses, os movimentos contornaram empresas/subsidiárias de países em desenvolvimento com EOP fechadas, protestando contra as suas sedes, seus investidores ou seus clientes nos países desenvolvidos.

Figura 2
Externalização e mudança de escala nos CAEs

As mudanças de escala referem-se a mudanças no número e no nível de ações coordenadas, envolvendo novos atores, objetos e reivindicações ampliadas (Tarrow, 200535 TARROW, Sidney. The new transnational activism. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.). A colaboração entre organizações de movimentos sociais que operam em vários níveis é fundamental nesses casos. A colaboração de ONG que operam em escalas mais amplas e de grupos locais também é importante, pois as primeiras tendem a concentrar recursos e os segundos têm informações mais precisas, experiências sobre o contexto local e legitimidade (Temper, 201936 TEMPER, Leah. From boomerangs to minefields and catapults: dynamics of trans-local resistance to land-grabs. The Journal of Peasant Studies, v. 46, n. 1, p. 188-216, 2019.).

Método

Uma pesquisa qualitativa foi desenvolvida para abordar os processos políticos fluidos e ambíguos envolvidos no estabelecimento da moratória. O estudo cobriu o período durante o qual a produção de soja e o ambientalismo emergiram de forma independente, entre meados da década de 1960 e 2010. O foco da análise foi o período de 1999 a 2006, quando esses campos entraram em conflito, devido às suas visões e interesses em relação à floresta amazônica, e os principais eventos que levaram ao estabelecimento da moratória da soja ocorreram. Um estudo de caso construído teoricamente foi desenvolvido por meio da implantação e integração reflexiva dos conceitos da abordagem dos CAEs e da teoria dos movimentos sociais em múltiplos níveis de análise.

Fontes e coleta de dados

Os dados coletados referem-se a três grandes arenas: a produção de soja, os movimentos ambientalistas e a dinâmica da disputa entre os dois. Para compreender a dinâmica dos diferentes campos e subcampos, foi necessário recolher dados de diversas fontes. Baseamo-nos principalmente em fontes secundárias, especificadas na Tabela 1. Também foram realizadas três entrevistas com informantes-chave.

Tabela 1
Fontes de dados secundárias

Análise de dados

Os dados coletados foram gradativamente codificados e organizados em planilhas eletrônicas. Os códigos referiam-se a aspectos temporais, aos campos e às relações e interações sociais. Isso permitiu uma reflexão contínua e sistemática com base nas abordagens teóricas adotadas. Esse procedimento foi acompanhado do desenvolvimento de uma narrativa articulando os acontecimentos. A estratégia permitiu conectar elementos dos dados de forma dinâmica e coerente, abordando a complexidade da história e, ao mesmo tempo, contribuindo para fins explicativos (Polkinghorne, 199531 POLKINGHORNE, Donald E. Narrative configuration in qualitative analysis. International journal of qualitative studies in education, v. 8, n. 1, p. 5-23, 1995.). A produção da narrativa envolveu dois momentos. Primeiro, foi produzida uma narrativa mais longa e detalhada. Essa foi, em seguida, transformada em uma história mais concisa.

Resultados

Contenciosos regionais

Os investimentos em infraestrutura previstos pelo governo federal para estabelecer o Arco Norte originaram os conflitos que levaram ao desenvolvimento da moratória da soja. De particular interesse foram os anúncios da pavimentação da BR-163 (Cuiabá, MT – Santarém, PA) e de novos investimentos no porto de Santarém. Em 1999, as autoridades portuárias lançaram o leilão de concessão de um terminal de grãos que despertou o interesse das grandes tradings de soja.

O Ministério Público Federal do Estado do Pará (MPF-PA), liderado por um procurador historicamente engajado com questões ambientais e com a defesa dos direitos das comunidades florestais, chamado Felício Pontes Júnior, contestou a autorização da construção do terminal. Ele alegou que o leilão não poderia ocorrer sem uma avaliação de impacto ambiental e que a construção do terminal afetaria um sítio arqueológico. O julgamento emitiu liminar em favor do Ministério Público e o leilão foi cancelado. As autoridades portuárias, entretanto, contestaram a liminar alegando que o terminal não afetaria o sítio arqueológico e que a licença do porto era válida para o terminal.

A decisão provisória acabou anulada pelas instâncias superiores do Poder Judiciário do Pará e o leilão ocorreu no mesmo ano. A Cargill foi a única empresa a participar e ganhou a concessão. O MPF-PA contestou os resultados, mas as autoridades portuárias e a Cargill prosseguiram com a construção do porto, que foi concluída em abril de 2003. Quando o porto estava em operação, o MPF-PA processou novamente a Cargill e as autoridades portuárias, exigindo também uma avaliação dos impactos da demolição do terminal. Em janeiro de 2004 o porto foi fechado, mas logo reativado devido a uma nova revisão da decisão pelo judiciário federal do Pará.

Enquanto em 2003 o porto estava em operação, apesar das paralisações e dos conflitos jurídicos em curso, a construção da estrada que liga Cuiabá a Santarém não havia sido iniciada. Nesse ano, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência do Brasil prometendo que entregaria as obras que o seu antecessor não realizou. Lula nomeou Marina Silva, uma ativista socioambiental da região amazônica, como Ministra do Meio Ambiente. Marina prometeu derrotar o desmatamento e anunciou iniciativas para proteger a floresta na região da BR-163. No Mato Grosso, Blairo Maggi, um dos herdeiros da família Maggi e proprietário da Amaggi, foi eleito governador. No Pará, Simão Jatene, do PSDB, foi reeleito, favorecendo a reprodução do contexto político regional existente.

A Cargill precisava de alternativas para tornar o porto operacional enquanto a estrada não fosse pavimentada. O crescente interesse pela produção de soja em Santarém e Belterra (Steward, 200734 STEWARD, Corrina. From colonization to “environmental soy”: a case study of environmental and socio-economic valuation in the Amazon soy frontier. Agriculture and Human Values, v. 24, n. 1, p. 107-122, 2007.) foi conveniente para a empresa, que passou a originar o grão localmente. Como resultado, verifica-se um forte aumento na área plantada de soja nessas cidades no período (Figura 3).

Figura 3
Áreas plantadas de soja em cidades do eixo da BR-163 no Estado do Pará

Esse aumento no cultivo da soja gerou conflitos com as comunidades locais, que tinham comumente a posse de áreas florestais sem regularização fundiária, possibilitando a grilagem de terras. Algumas das comunidades afetadas compunham movimentos sociais de base. Destacam-se o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR), que contribuiu para a formação do Partido dos Trabalhadores em Santarém (Leroy, 199124 LEROY, Jean-Pierre. Uma chama na Amazônia. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.), e outras associações comunitárias da Federação das Associações de Moradores e Organizações Comunitárias de Santarém (Famcos). Ameaçadas pela expansão da soja e incentivadas pelo apoio do MPF-PA e pela ascensão de aliados ao poder no governo federal, em 2003, essas organizações lançaram uma campanha contra a soja. Orientaram ainda que os moradores das comunidades se recusassem a vender suas terras aos sojicultores, resistindo às tentativas de desintegração (Steward, 200734 STEWARD, Corrina. From colonization to “environmental soy”: a case study of environmental and socio-economic valuation in the Amazon soy frontier. Agriculture and Human Values, v. 24, n. 1, p. 107-122, 2007.).

No dia 1º de maio de 2004, Dia do Trabalhador, essas organizações realizaram um seminário sobre a situação em Santarém, convidando parceiros, incluindo ONGs ambientalistas e religiosos de vertentes progressistas da Igreja Católica. A Cargill tornou-se o principal alvo do movimento, uma vez que confrontar diretamente os produtores de soja era perigoso demais e que os governos locais apoiavam a chegada da soja à região. O evento foi encerrado com uma marcha até o porto da Cargill. Os participantes estimaram a presença de cerca de 800 pessoas, algumas das quais seguravam pequenos martelos de madeira que simbolizavam a demolição do porto. O Greenpeace participou do protesto e cinco dos seus ativistas escalaram o porto para fixar uma placa que dizia “Cargill, porta da destruição” e pintar no telhado a palavra “Fora”. A ação foi violentamente reprimida pela segurança privada da empresa e os ativistas da ONG internacional acabaram presos. Após a prisão, o restante dos ativistas marchou até a frente da delegacia para protestar.

As ações judiciais subsequentes implementadas pelo MPF-PA e os protestos locais também acabaram frustrados, apesar de uma repercussão razoável. A Cargill recorreu insistentemente para contestar decisões judiciais desfavoráveis e continuou a operar. Após fortes repressões, os movimentos recuaram nas manifestações locais.

Escalando e externalizando o conflito

A ineficácia das ações locais levou os ambientalistas a desenvolverem novas estratégias. O Greenpeace decidiu lançar uma campanha sobre a soja na Amazônia. Conforme indicado na Figura 4, a iniciativa foi favorecida por um acordo da filial brasileira com o Greenpeace Internacional, estabelecido em 1999, para tornar a porção brasileira da Amazônia uma prioridade global da organização, possibilitando ações articuladas e a aquisição de recursos internacionais.

Figura 4
Composição do orçamento do Greenpeace Brasil – 1999-2009.

Em 2005, a ONG desenvolveu diversas ações contra a soja na Amazônia brasileira. Lançou o documentário “Soja: em nome do progre$$o”, denunciando como a corrida da soja estava gerando aumento do desmatamento e da violência contra as comunidades florestais. Também premiou Blairo Maggi com a “Motosserra de Ouro”, concedida às personalidades mais engajadas na destruição da floresta. Em março de 2006, ativistas protestaram em uma fazenda desmatada ilegalmente com uma enorme bandeira escrita “100% Crime”, que foi destruída pelo proprietário da fazenda com sua caminhonete.

Essas ações compunham uma estratégia mais ampla que envolvia uma investigação sobre a cadeia produtiva da soja. No dia 6 de abril de 2006, a organização divulgou um relatório chamado “Comendo a Amazônia” em inglês e em português (Greenpeace, 200614 GREENPEACE. Comendo a Amazônia. Brasil: Greenpeace, 2006.). O documento de 64 páginas continha uma apresentação dos “fatos-chave” em quatro colunas intituladas: A Cena, o Crime, Os Criminosos, Parceiros no Crime. Os dois primeiros referem-se ao desmatamento ilegal da Amazônia e aos crimes relacionados, como trabalho escravo e a violência contra comunidades locais, cometidos por produtores de soja durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Os criminosos eram as tradings estadunidenses ADM, Bunge e Cargill, que controlavam “mais de três quartos da capacidade de processamento de soja na Europa, destinada principalmente para a produção de óleo e ração animal” (Greenpeace, 200614 GREENPEACE. Comendo a Amazônia. Brasil: Greenpeace, 2006., p. 5). O documento afirmava que a Cargill liderava o processo, enquanto a Bunge e a ADM “seguiam a líder”. Finalmente, empresas europeias, que exigiam quantidades crescentes de soja brasileira principalmente para produzir ração, e os seus clientes, incluindo empresas de fast-food e supermercados na Europa, eram os “parceiros no crime”.

O relatório foi particularmente crítico em relação ao McDonald’s. O documento denunciou a contradição entre a política da empresa de não comprar carne bovina de áreas desmatadas e a compra de frango alimentado com soja proveniente do desmatamento da Amazônia na produção do McNuggets. O relatório apontou que a soja usada era produzida nos estados de Rondônia, Mato Grosso e Pará e transportada do porto de Santarém até o terminal da Cargill em Liverpool, depois para uma instalação de propriedade de uma subsidiária da Cargill chamada Sun Valley, perto de Hereford, na Inglaterra. Ironizou ainda o fato de o McDonald’s ter nomeado a Cargill como fornecedor do ano em 2005.

O lançamento do relatório foi seguido por manifestações do Greenpeace na Europa e no Brasil. No dia seguinte à divulgação do documento, o Greenpeace bloqueou navios carregados de soja proveniente da Amazônia nos portos de Amsterdã e Ghent. Na Inglaterra, restaurantes McDonald’s foram adesivados com imagens do Ronald McDonald empunhando uma motosserra e ativistas fantasiados de frango protestaram em diversas lojas. Nas semanas seguintes, manifestações ocorreram em outros países. No dia 9 de abril, por exemplo, a relação da soja com o desmatamento da Amazônia foi abordada em protestos simultâneos em 70 países contra organismos geneticamente modificados. No dia 19 de maio, o Greenpeace utilizou um dos seus navios para bloquear o porto da Cargill em Santarém e ativistas escalaram o telhado do porto novamente. Eles foram atacados pela segurança com jatos d’água e doze ativistas acabaram presos.

A Cargill é uma das maiores empresas privadas e familiares do mundo e foi chamada de “gigante invisível” devido ao seu estilo discreto (Kneen, 200220 KNEEN, Brewster. Invisible giant: Cargill and its transnational strategies. Londres: Pluto Press, 2002.). Diante dos protestos, a empresa alegou que não poderia ser responsabilizada pela resolução do complexo problema do desmatamento da Amazônia no Brasil. Alegou que a sua chegada a Santarém tinha impulsionado a economia local de uma região muito subdesenvolvida. Seus representantes também se referiram a um projeto desenvolvido com a ONG The Nature Conservancy para estimular a produção sustentável de soja na região.

As repercussões dos protestos do Greenpeace no McDonald’s

O McDonald’s tem uma das marcas mais famosas do mundo e tem uma longa experiência com ataques de movimentos sociais. Em 2006, a empresa sofria com movimentos que associavam sua marca a alimentos não saudáveis e à obesidade epidêmica nos Estados Unidos.

Um capítulo do livro de Langert (2019)23 LANGERT, Bob. The battle to do good: Inside McDonald’s sustainability journey. Bingley: Emerald, 2019. sobre sua experiência no comando da área de sustentabilidade da empresa dá uma boa ideia de como as ações do Greenpeace repercutiram no McDonald’s. Antes de realizar os protestos, o Greenpeace havia entrado em contato com a área de assuntos corporativos do McDonald’s da Europa, mas a pessoa responsável pela área, que tinha acabado de assumir o cargo, decidiu não dialogar com a ONG. Quando os protestos se espalharam, a presidência da empresa na Europa se envolveu diretamente na questão. Karen van Bergen, uma cientista política, chefe de gabinete da presidência e ex-chefe de assuntos corporativos, ficou responsável por lidar com o assunto. Nos Estados Unidos, Robert Langert, que acabara de se tornar chefe de responsabilidade corporativa e sustentabilidade da empresa, assumiu a questão.

Como a soja na Amazônia brasileira não estava no radar da equipe de antecipação de questões de responsabilidade social da corporação, van Bergen e Langert tiveram que pesquisar sobre o assunto para decidir o que fazer. Para confirmar se as críticas do Greenpeace condiziam com a realidade, Langert fez contato com parceiros das ONGs Conservação Internacional e WWF. Apesar de a demanda do McDonald’s representar uma percentagem ínfima da soja comprada pela Europa do Brasil, tanto van Bergen quanto Langert concluíram que era necessário fazer algo a respeito da questão.

Mas, para negociar com o Greenpeace, precisavam de autorização dos seus superiores. Na filial europeia, van Bergen foi prontamente apoiada por Denis Hennequin, um presidente da McDonald’s Europa conhecido por seu sucesso na adaptação dos produtos e serviços da empresa ao contexto europeu. Nos Estados Unidos, a situação era mais complicada. Langert (2019)23 LANGERT, Bob. The battle to do good: Inside McDonald’s sustainability journey. Bingley: Emerald, 2019. afirma que o Greenpeace “não tinha credibilidade entre os executivos médios dos Estados Unidos” e que ele “sabia que ninguém da matriz da empresa acreditaria nas últimas afirmações” da organização (Langert, 201923 LANGERT, Bob. The battle to do good: Inside McDonald’s sustainability journey. Bingley: Emerald, 2019., p. 173, tradução nossa). O superior de Langert era Jack Daily, vice-presidente de assuntos corporativos e um veterano da empresa, considerado como um “obstáculo a superar” (Langert, 201923 LANGERT, Bob. The battle to do good: Inside McDonald’s sustainability journey. Bingley: Emerald, 2019., p. 177). Langert (2019)23 LANGERT, Bob. The battle to do good: Inside McDonald’s sustainability journey. Bingley: Emerald, 2019. afirma que Van Bergen foi ousada para convencê-lo a negociar. Ela usou o apoio de Hennequin na Europa para alavancar sua posição, sinalizando que envolveria seu superior na disputa para pressionar Daily.

A negociação envolveu diversas reuniões nas semanas seguintes. O Greenpeace foi representado por Thomas Henningsen, chefe da Campanha da Amazônia na Europa, e Paulo Adario, um ativista sênior do Greenpeace Brasil. Eles demonstraram claramente que sua intenção era envolver a Cargill por meio do McDonald’s, pois a Cargill era invisível para os consumidores, não tinha acionistas e o McDonald’s tinha um “histórico de bons passos” (Langert, 201923 LANGERT, Bob. The battle to do good: Inside McDonald’s sustainability journey. Bingley: Emerald, 2019., p. 175). O Greenpeace queria que o McDonald’s se comprometesse com três coisas: desmatamento zero, respeito pelos direitos dos povos indígenas e combate a condições de trabalho análogas à escravidão. Eles também apresentaram propostas sobre como os dados públicos existentes e tecnologias de sensoriamento remoto poderiam ser usados para monitorar esses compromissos.

A resposta às demandas do Greenpeace dependia de articulações com diversas áreas da empresa. Conforme colocado por Langert (2019)23 LANGERT, Bob. The battle to do good: Inside McDonald’s sustainability journey. Bingley: Emerald, 2019.,

As linhas de autoridade e de tomada de decisão dentro do McDonald’s são confusas, com muitas mãos mexendo a panela. Muitas vezes pensei que algumas dezenas de pessoas poderiam dizer “sim”, mas se alguém dissesse “não”, a tomada de decisões ficava cada vez mais lenta. […] Para mim, tomar decisões era a parte mais frustrante do meu trabalho

(p. 175, tradução nossa).

Particularmente importante foi o apoio das áreas de cadeia de suprimentos da Europa e global. Van Bergen conseguiu mobilizar com sucesso Francesca Debiase, chief supply chain officer Europe, uma entusiasta da sustentabilidade, que teve um papel fundamental no acordo. Keith Kenny, chefe da cadeia de suprimentos de aves, também foi envolvido. Mais tarde, Frank Muscheto, diretor global da área, teve que ser convencido. Langert afirma que os argumentos eficazes nesse processo de convencimento foram a existência de um compromisso prévio da corporação de não comprar carne bovina proveniente de áreas de floresta tropical desmatadas e o apoio de Debiase à expansão desse compromisso para a soja. Sua aprovação veio com a condição de que o McDonald’s não assumisse diretamente os custos da mudança, trabalhando para engajar seus fornecedores.

Foi preciso, então, definir exatamente como pressionar a Cargill a mudar suas práticas. Van Bergen foi ousada novamente, defendendo, em negociação com o Greenpeace, que mais empresas além do McDonald’s e da Cargill deveriam ser envolvidas. A posição do McDonald’s deveria ser alavancada por meio da mobilização de outras grandes empresas europeias que compravam indiretamente a soja brasileira. Carrefour, Nestlé, Tesco, Ahold, Marks and Spencer, Waitrose, Sainsbury e Asda foram mobilizadas usando a rede de contatos do McDonald’s Europa, compondo um grupo de trabalho e negociação ampliado sobre a soja. As empresas desse grupo compravam soja não só da Cargill, mas também de outras grandes tradings. Depois que esses atores decidiram pressionar as tradings em conjunto, Mike Roberts, então chief operating officer, o segundo cargo mais alto na hierarquia do McDonald’s, encontrou-se com Gregory Page, diretor de operações da Cargill, e pediu providências da empresa. Langert destacou que a existência de um relacionamento de longo prazo entre o McDonald’s e a Cargill foi fundamental para que a trading colaborasse.

Em julho de 2006, menos de três meses após o lançamento de Comendo a Amazônia, o “boicote” estava em todos os noticiários e uma nova fase de negociação envolvendo ONGs e tradings começou no Brasil. As empresas da soja foram representadas pela Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove) e pela Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec). Do lado das ONGs, a WWF, a Conservation International e a The Nature Conservancy, importantes ONGs internacionais no Brasil, também se sentaram à mesa. Além dessas, Amigos da Terra, Imazon, Imaflora e STTR acompanharam os primeiros encontros (GTS, 200715 GTS – GRUPO DE TRABALHO DA SOJA. Relatório da moratória da soja no bioma Amazônia. Brasil: GTS, 2007.). Após algumas declarações conflitantes, foi estabelecido o Grupo de Trabalho da Soja, coliderado pelo Greenpeace, representado por Paulo Adário, e pela Abiove, representada por Carlo Lovatelli. Nesse, os representantes detalharam as formas de implementação e acompanhamento do acordo. Foi decidido que seriam utilizados dados oficiais de desmatamento do governo federal brasileiro e que seria contratada uma empresa especializada para verificar se as áreas desmatadas estavam ou não associadas às plantações de soja. Inicialmente, foram utilizadas imagens aéreas nessa detecção, mas posteriormente as tecnologias de sensoriamento remoto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais passaram a ser usadas no monitoramento. O governo federal também apoiou a iniciativa de outras formas, já que ela convergia com seus esforços de combate ao desmatamento.

Discussões

A integração de ideias da teoria dos movimentos sociais e da abordagem dos CAEs nos permite compreender melhor como os movimentos conseguiram estabelecer a moratória da soja no Brasil. Abordamos a EOP dos mercados como um conjunto de campos interligados, confrontando ideias desenvolvidas por Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. com outras desenvolvidas de Fligstein e McAdam (2012)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012.. Argumentamos ainda que os movimentos sociais foram capazes de alterar os pontos focais de sua atuação, mudando as escalas e externalizando contenciosos para explorar as EOP mais abertas da Europa, utilizando os seus recursos e habilidades sociais.

As instâncias de oportunidades políticas dos mercados teorizadas por Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. podem ser todas tratadas como múltiplos CAEs. Para tanto, o conceito de campo organizacional desenvolvido por DiMaggio e Powell (1983)9 DIMAGGIO, Paul. J.; POWELL, Walter. W. The iron cage revisited: Institutional isomorphism and collective rationality in organizational fields. American sociological review, v. 48, n. 2, p. 147-160, 1983. deve ser abandonado em favor da visão mais restrita de Fligstein e McAdam (2012, p. 167-168)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012., que engloba as instâncias que Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. chamou de setor e natureza dos bens e serviços. Mais atenção deve ser dada à interligação dos campos, incluindo a interação dos setores. Além disso, com base na abordagem dos CAEs, a instância da cultura corporativa dá lugar a uma visão das organizações como campos que condicionam as respostas aos movimentos sociais.

As EOPs enfrentadas pelos movimentos no nível subnacional estão representadas na Figura 5. Os contenciosos foram desencadeados por ações judiciais acerca do licenciamento ambiental do terminal envolvendo MPF-PA, Cargill e autoridades portuárias federais. Diante das ameaças decorrentes da expansão da soja na região e incentivados pela aliança com o MPF-PA e com atores do governo federal, movimentos populares da região se mobilizaram. A Cargill, trading de soja dominante e operadora do polêmico terminal – e não as fazendas de soja – foi definida como o alvo principal dos ativistas. Essa escolha reflete assimetrias de poder existentes entre os campos da produção e comercialização de soja e o fechamento do campo da soja no Brasil às questões socioambientais. Nesse nível, os movimentos enfrentavam uma EOP fechada e não conseguiam influenciar os mercados. Com o apoio das autoridades locais, a Cargill manobrou juridicamente para continuar operando e reprimiu violentamente os protestos.

Figura 5
Múltiplos CAEs da EOP regional

Embora a contenção local não tenha tido sucesso, ela impulsionou movimentos que poderiam operar em outros níveis, como sugere Temper (2019)36 TEMPER, Leah. From boomerangs to minefields and catapults: dynamics of trans-local resistance to land-grabs. The Journal of Peasant Studies, v. 46, n. 1, p. 188-216, 2019.. O Greenpeace aproveitou a ação e se beneficiou da aliança com os movimentos locais, obtendo informações e legitimando sua posição. Os conflitos locais também materializaram as ameaças gerais da soja à Amazônia.

O Greenpeace tinha recursos disponíveis e estrategistas socialmente hábeis, que decidiram escalar e externalizar a disputa. As EOPs exploradas pelo Greenpeace nesse momento estão representadas na Figura 6. Ao invés de considerar apenas redes, as dependências de recursos entre empresas diretamente conectadas e seus vínculos políticos com o Estado, como sugere a ideia de campo organizacional utilizada por Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004., contextualizamos essas redes em um conjunto de CAEs interligados.

Figura 6
Múltiplos CAEs da EOP do mercado internacional

Conforme sugerido por Tarrow (2005)35 TARROW, Sidney. The new transnational activism. Cambridge: Cambridge University Press, 2005., a intensificação do conflito exigiu que atores sociais hábeis do Greenpeace adotassem framings ampliados, abordando a produção de soja na Amazônia brasileira como um todo. Uma forma de escalar o conflito seria enfocar o governo federal brasileiro, mas essa não foi a escolha do Greenpeace. Apesar de terem aliados importantes no Ministério do Meio Ambiente, os ativistas consideraram que não tinham força para superar as alianças dos produtores e comerciantes de soja com ministérios mais poderosos do governo, como os da Agricultura e Pecuária e o dos Transportes.

A externalização com foco nos mercados foi considerada uma melhor opção estratégica. A escolha da Europa levou em conta a maior abertura das EOPs comparativamente à de outras nações compradoras de soja brasileira, como China, Tailândia, Coreia, Indonésia e Irã. O Greenpeace Brasil aliou-se ao Greenpeace Europa, utilizando sua rede internacional para investigar a cadeia e compreender os múltiplos pontos de intervenção possíveis, conforme sugerido por Tarrow (2005)35 TARROW, Sidney. The new transnational activism. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. e Soule (2009)33 SOULE, Sarah. Contention and corporate social responsibility. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.. A soja é utilizada em diversos setores, incluindo as indústrias de cosméticos, plásticos e tintas. Mas os estrategistas do Greenpeace enfatizaram os CAEs associados aos alimentos, como indica o nome do relatório divulgado. O Greenpeace desenvolveu ações visando setores e organizações que identificou nos vários campos que ligam a produção de soja às cadeias de fast-food e supermercados na Europa. Esses campos foram considerados mais influenciáveis do que outros dominados por produtores de commodities, como a Cargill, a Bunge e a ADM. Presumiu-se, ainda, a ocorrência de certas estruturas de poder nos campos e entre os campos. Os atores incumbentes dos setores de fast-food e supermercados foram focados, assumindo-se que eles poderiam transformar as práticas das tradings de soja dominantes que forneciam a eles, em um “bumerangue corporativo” (McAteer; Pulver, 200927 MCATEER, Emily; PULVER, Simone. The corporate boomerang: Shareholder transnational advocacy networks targeting oil companies in the Ecuadorian Amazon. Global Environmental Politics, v. 9, n. 1, p. 1-30, 2009.; Bartley; Egels-Zandén, 20164 BARTLEY, Tim; EGELS-ZANDÉN, Niklas. Beyond decoupling: Unions and the leveraging of corporate social responsibility in Indonesia. Socio-Economic Review, v. 14, n. 2, p. 231-255, 2016.). Supunha-se também que, se as tradings mudassem suas práticas, poderiam transformar o seu campo bem como o campo do cultivo de soja.

O McDonald’s foi um alvo especial nos relatórios e protestos do Greenpeace, o que indica uma percepção dos estrategistas quanto à abertura de sua EOP. Schurman (2004)32 SCHURMAN, Rachel. Fighting “Frankenfoods”: Industry opportunity structures and the efficacy of the anti-biotech movement in Western Europe. Social problems, v. 51, n. 2, p. 243-268, 2004. teorizou a EOP organizacional com base na ideia de cultura corporativa, tratando a organização como um todo unitário. A abordagem dos CAEs sugere, em vez disso, que as organizações sejam tratadas como campos. Conforme discutido por Fligstein e McAdam (2012, p. 64)12 FLIGSTEIN, Neil.; MCADAM, Doug. A theory of fields. Oxford: Oxford University Press, 2012., as organizações formais são tipos particulares de CAEs, com estruturas e limites formalizados. Essas estruturas são contestadas, envolvendo lutas pelo poder, mas tendem a rotinizar o conflito e a torná-lo suscetível a soluções orientadas por regras. Diferentes unidades da organização podem ser avaliadas como CAEs, que se relacionam com base nas “relações de autoridade prescritas que unem o sistema” (p. 65, tradução nossa). Isso não exclui a existência de dinamismo político. “Os participantes de ordem inferior podem agir tanto individual quanto coletivamente para alterar o funcionamento da unidade e desafiar a autoridade nominal dos superiores” (p. 65, tradução nossa).

Figura 7
Múltiplos CAEs da EOP do McDonald’s

A Figura 7 representa os CAEs envolvidos na construção da resposta do McDonald’s aos seus detratores. Na Europa, havia uma clara inclinação a “levar a sério” as reivindicações do Greenpeace e tentar resolvê-las, enquanto na matriz havia uma forte tendência de se refutar o diálogo com a ONG. A matriz é, obviamente, mais poderosa na hierarquia formal do que a subsidiária europeia. Contudo, os participantes de ordem inferior conseguiram impor sua visão, transformando a política corporativa como um todo. Para fazer isso, atores desafiantes com habilidades sociais tiveram de formar uma coalizão, que envolveu a presidência, sua assessoria e a área de cadeia de suprimentos. Eles aliaram-se também à área de sustentabilidade da matriz, uma desafiante do campo dominante. Van Bergen foi uma atora especialmente habilidosa e teve um papel importante na mobilização a favor da negociação com o Greenpeace. Agindo em conjunto, os desafiantes realizaram dois movimentos estratégicos fundamentais. Primeiro, tiveram a “audácia” de confrontar Jack Daily, o vice-presidente de assuntos corporativos, forçando-o a aceitar a negociação. Em segundo lugar, tiveram que convencer a área global de cadeia de suprimentos, liderada por Muschetto. Dois fatores favoreceram o envolvimento do subcampo da cadeia da cadeia de suprimentos global. O primeira foi uma contradição entre a política estabelecida para compra de carne bovina proveniente de áreas de floresta tropical desmatadas ilegalmente e as suas práticas de compra de soja para essas áreas. A segunda foi a simplicidade, a viabilidade e os baixos custos da solução apresentada pelo Greenpeace ao McDonald’s, que convenceu os gestores de operações.

Van Bergen também explorou convergências de interesses entre o McDonald’s e o Greenpeace quando propôs que o acordo mobilizasse outras empresas. Ao mobilizar outros compradores na Europa, foi possível ampliar a pressão sobre as tradings de soja e reduzir a exposição do McDonald’s. Expandir o “boicote” para outras grandes tradings foi relevante para evitar que a Cargill, parceira estratégica do McDonald’s, absorvesse sozinha as consequências do acordo, o que poderia gerar desvantagens competitivas para a empresa. Ao mesmo tempo, isso permitiu ampliar seus impactos socioambientais.

Considerações finais

Nossa avaliação elucida como os movimentos ambientalistas conseguiram restringir práticas de grandes tradings de soja, estabelecendo a moratória. Diferentemente da maioria dos estudos existentes sobre esse acordo de desmatamento zero, que avaliam seus resultados, estudamos o processo que levou ao seu estabelecimento de forma significativamente mais detalhada do que outros estudos existentes.

Ao fazê-lo, contribuímos para a integração de conceitos da teoria dos movimentos sociais e da abordagem CAEs. Demonstramos que as EOPs dos mercados podem ser mais bem entendidas como um conjunto de campos interligados envolvidos na produção de bens e serviços relativamente homogêneos, em vez de um único campo organizacional. Isso permitiu levar em conta não só as convenções gerais da cadeia de suprimentos e as relações de poder entre as empresas que interagiam concretamente, mas também as relações político-culturais dentro e entre os setores em que essas empresas estão inseridas. Além disso, ao invés de considerar as organizações como entidades unificadas, com uma única cultura organizacional, demonstramos as vantagens de abordar as organizações como CAEs compostos por diferentes subcampos e atores com visões e interesses específicos, que não apenas cooperam, mas também competem para definir as práticas e a cultura dominante. A avaliação também demonstra que os microfundamentos da perspectiva dos CAE e o conceito de habilidades sociais são fundamentais para abordar adequadamente a forma como os atores podem optar por externalizar estrategicamente e mudar as escalas dos contenciosos para explorar oportunidades políticas.

Agradecimentos

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo apoio para a realização deste trabalho (Projetos 18/00292-5 e 20/16236-7). Também sou grato à Mark Granovetter e ao Center for Latin American Studies da Universidade de Stanford pelo apoio na realização da pesquisa e por me receberem como visitante durante o ano acadêmico de 2018-2019.

Referências

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    » https://theintercept.com/2017/03/16/moratoria-da-soja-solucao-contra-o-desmatamento-ou-marketing-corporativo/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2022
  • Aceito
    10 Jul 2023
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