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Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam

To become Beauvoir: beyond ad feminam arguments

Resumo

Nessa inteligente biografia, a filósofa inglesa Kate Kirkpatrick rastreia, em perspectiva histórica, a trajetória existencial pela qual Beauvoir “tornou-se” Beauvoir. O livro acompanha como a pensadora francesa fez de sua própria personalidade-no-mundo um projeto deliberado, o qual teve de enfrentar uma série de resistências “ad feminam” oriundas de seu cenário sociocultural. Com base na leitura atenta dos diários que Beauvoir manteve durante seus tempos de estudante, publicados somente em 2008, Kirkpatrick lança nova luz sobre a evolução intelectual da pensadora francesa. Quando passa da sua juventude à sua maturidade e velhice, a biografia nunca perde de vista o complexo engajamento de Beauvoir com suas circunstâncias socio-históricas. Tal combinação de análise biográfica com um exercício em história cultural se mostra especialmente fecunda no trato da conturbada recepção de O segundo sexo e das respostas criativas da autora a essa recepção. Ademais, o livro de Kirkpatrick explora a densidade filosófica, literária e ético-política da obra beauvoiriana, densidade frequentemente deixada de lado por outras biografias em favor de uma concentração sobre a vida afetiva da filósofa. O respeito à complexidade e às nuances do pensamento de Beauvoir evidencia, finalmente, o erro de uma lógica reputacional sexista que, tomando seu trabalho como parasitário e derivativo em relação àquele de Jean-Paul Sartre, insiste em negar sua originalidade e independência intelectual.

Palavras-chave
Simone de Beauvoir; biografia; feminismo; O segundo sexo ; Jean-Paul Sartre

Abstract

In this intelligent biography, the English philosopher Kate Kirkpatrick retraces in historical perspective the existential trajectory through which Beauvoir “became” Beauvoir. The book follows how the French thinker turned her own “personality-in-the-world” into a deliberate project, which had to face a series of “ad feminam” resistances stemming from her sociocultural setting. Based on a keen reading of the diaries Beauvoir kept during her times as a student, which were published only in 2008, Kirkpatrick throws new light on the intellectual evolution of the French thinker. When transitioning from her youth into her mature and old ages, the biography never loses sight of Beauvoir’s complex engagement with her social-historical circumstances. This combination of biographical analysis with an exercise in cultural history proves especially fruitful in dealing with the troubled reception of The second sex and Beauvoir’s creative responses to such reception. Furthermore, Kirkpatrick’s book explores the philosophical, literary and ethico-political density of Beauvoir’s oeuvre, a density which other biographies often eschew in favor of a focus on the philosopher’s affective life. Finally, the respect Kirkpatrick affords to the complexity and nuance of Beauvoir’s thought evinces the error of a sexist reputational logic that portrays her work as derivative and parasitic upon Jean-Paul Sartre’s, and thus insists in denying her intellectual independence and originality.

Keywords
Simone de Beauvoir; biography; feminism; The second sex ; Jean-Paul Sartre

Não se nasce Beauvoir, torna-se – escreveu Djamila Ribeiro (2020)2 RIBEIRO, Djamila. Iconoclasta de si mesma. Quatro cinco um, 1 abr. 2010. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/biografia/iconoclasta-de-si-mesma.
https://www.quatrocincoum.com.br/br/rese...
em uma resenha dessa biografia assinada pela filósofa inglesa Kate Kirkpatrick. O intertexto se revela tanto mais inteligente e apropriado quando se nota que o título anglófono do livro de Kirkpatrick é Becoming Beauvoir: “Tornando-se Beauvoir”. Para além da alusão à frase mais famosa de O segundo sexo, a expressão captura a questão-cerne desse esforço biográfico, a saber, o grau em que Beauvoir fez da sua própria “personalidade-no-mundo” um projeto deliberado e autoconsciente, o qual teve de se bater contra uma série de resistências “ad feminam” do seu ambiente sociocultural. Talvez a eliminação do gerúndio “tornando-se”, com a escolha da expressão mais anódina Simone de Beauvoir: uma vida, responda a algum cálculo de marketing editorial, mas é certo que a cadeia alusiva do título original foi perdida de saída na tradução brasileira. Felizmente, o próprio livro continua com muito a oferecer na tradução.

Por que mais uma biografia sobre Beauvoir? Ela escreveu prodigamente sobre sua própria vida em publicações de variados gêneros discursivos, os quais incluíram desde o memoir intimista até os diários de viagem, sem contar o que houve de autobiográfico em ficções literárias como A convidada ou nos exercícios fenomenológicos de O segundo sexo. Se é quimérico tentar produzir algo que ultrapasse em densidade intelectual e sofisticação estilística as narrativas autobiográficas da própria autora, biografias escritas por outrem se justificam, ainda assim, como potenciais contrapesos aos conhecidos vieses inerentes ao gênero “autobiografia” – por exemplo, o interesse consciente ou inconsciente na projeção de certa imagem de si para a posteridade, interesse que comumente leva à seletividade, à estilização e mesmo à distorção na narrativa da própria vida. A desconfiança é válida, aliás, ainda que a mera não identidade entre biógrafo e biografado não garanta, por óbvio, que uma biografia escape aos riscos mencionados, caminhem eles no sentido da idealização hagiográfica ou, ao contrário, dos chamados “hatchet jobs” e “assassinatos de caráter”.

Distante desses extremos, a atitude de Kirkpatrick em relação a Beauvoir comporta um imenso respeito ao seu legado intelectual e ético-político, mas também uma disposição honesta a confrontar seus erros – como, por exemplo, os sofrimentos infligidos aos “outros contingentes” que orbitaram ao redor do seu “amor necessário” com Sartre. Ao contrastar seu livro com esforços anteriores dirigidos à vida e à obra de Simone, Kirkpatrick não chega a afirmar que a enorme biografia publicada por Deirdre Bair em 1990 é uma hagiografia, mas adverte: por estar firmemente ancorada em diversas conversas com a própria Beauvoir, de onde derivam sua riqueza de detalhes e sua compreensão multidimensional da trajetória da autora de O segundo sexo, a obra de Bair terminou por recontar, em larga medida, “a história que Beauvoir já havia tornado pública” (p. 31). Becoming Beauvoir se volta, então, à apreensão de aspectos da história beauvoiriana insuficientemente publicizados, valendo-se de material documental que ainda não havia sido utilizado em quaisquer outras biografias, como as cartas que Beauvoir escreveu para Claude Lanzmann (“o único amante com quem morou” [p. 20]) e, principalmente, os diários que Beauvoir manteve durante seus tempos de estudante, publicados em 2008 com o título Cahiers de jeunesse: 1926–1930.

Ao lado da descoberta de elementos biográfico-intelectuais menos conhecidos sobre a autora, como o fato de que o abandono de suas convicções religiosas de infância e adolescência foi mais sinuoso e dolorido do que Beauvoir sugerira em suas memórias, o estudo daqueles diários por Kirkpatrick também serve a outras duas tarefas entrelaçadas de seu livro: acompanhar a evolução das ideias filosóficas da pensadora francesa, ideias cuja densidade foi frequentemente deixada de lado, mesmo por observadores simpáticos, em prol de sua vida afetiva e, especialmente, das peripécias do “casal” inconvencional e anticonvencional que ela formou com Jean-Paul Sartre; combater a também frequente opinião de que a filosofia dela seria parasitária e derivativa em relação à filosofia dele, mediante demonstrações da independência relativa do percurso intelectual de Beauvoir, da influência profunda que o pensamento de Sartre deveu às reflexões dela e, finalmente, dos aspectos em que as teses filosóficas beauvoirianas discrepavam conscientemente daquelas esposadas por ele.

Assim, a par da concentração sobre dimensões faltantes na “biografia autorizada” de Bair, Kirkpatrick busca se diferenciar de empreitadas biográficas anteriores pela recuperação da profundidade da Beauvoir pensadora, contra a ilusão “de que sua vida amorosa era o que havia de mais interessante nela” (p. 14). Embora essa última ideia não chegue a ser premissa expressa de livros como Tête-à-Tête, a biografia que Hazel Rowley dedicou a Beauvoir, Sartre e seus “amores tumultuosos” (2006), não resta dúvida de que os insights biográficos desse último livro foram conquistados ao preço de uma discussão um tanto rala do conteúdo filosófico das obras de uma e outro. O propósito de Kirkpatrick é, pois, muitíssimo bem-vindo, sobretudo na medida em que ela também rejeita sensatamente a tentação antípoda de postular um divórcio radical entre a vida (inclusive amorosa) e a obra. Tal divórcio seria especialmente inapropriado no caso de uma autora como Beauvoir, que não apenas tentou “viver” suas concepções filosóficas na prática, mas também sublinhou, de modo bem existencialista, que as decisões pelas quais os indivíduos procuram moldar suas biografias são “escolhas filosóficas” (p. 14, 66), independentemente de serem ou não vivenciadas como tais. Kirkpatrick respeita a complexidade que esse enlace adquiriu na trajetória da escritora francesa, evitando tanto as reduções brutais do pensamento à biografia, de um lado, quanto a idealização da biografia como realização perfeita de um projeto filosófico de vida, de outro. Não havendo espaço aqui para uma revisão de ponta a ponta dos eventos narrados no livro, tratarei seletivamente do que me parecem as suas principais contribuições: complexificar e matizar imagens herdadas sobre Beauvoir mediante o exame dos diários que ela manteve enquanto estudante; rastrear os caminhos reflexivos de Beauvoir como “ser-em-situação”, i.e., em termos da sua complexa relação com o cenário histórico-cultural em que ela estava imersa, com particular ênfase sobre a conturbada recepção de O segundo sexo e os efeitos dessa recepção nos rumos tomados pelo pensamento engajado da autora.

Diários de uma estudante bem-comportada

Beauvoir nasceu em 1908, o ano mesmo em que escolas francesas foram autorizadas pelo estado a preparar mulheres para o baccaulauréat, a prova que facultava acesso a universidades. Ao tratar do ambiente familiar da “moça bem-comportada”, Kirkpatrick nota que a paixão dela pela leitura foi intensamente encorajada tanto por sua mãe quanto por seu pai. O contraste entre a devoção católica da primeira e o ateísmo decidido do segundo, contraste refletido nas suas respectivas recomendações de leitura, a instigou desde cedo a tomar questões metafísicas como objeto de interrogação. Transbordando para um respeito inflexível aos ditames da convenção social, o compromisso de Françoise de Beauvoir com o decoro moral e religioso se expressava também na recusa de ser transparente com suas filhas, Simone e sua irmã Hèléne, quanto à corporeidade e à sexualidade femininas (p. 41).

De posse dos diários da jovem Beauvoir, Kirkpatrick sublinha que a perda de suas convicções religiosas cultivadas pelo convívio com a mãe foi mais hesitante, prolongada e angustiosa do que a filósofa havia indicado em suas memórias, nas quais escreveu que, uma vez instalada em sua mente, sua “incredulidade nunca vacilou” (p. 73). Nos diários, por outro lado, “em linguagem que lembra...Agostinho...e Pascal”, ela narrara...

a experiência de perder Deus como acompanhada pela descoberta abrupta de que tudo havia “caído em silêncio”. Pela primeira vez, ela sentiu o “terrível significado’ da palavra ‘sozinha’”

(p. 73).

Algum tempo de vai e vem entre dúvidas céticas e a vontade de acreditar ainda seria necessário para que ela concluísse, enfim, que “era mais fácil pensar em um mundo sem um criador que com um criador sobrecarregado com todas as contradições do mundo” (p. 75). Obviamente, o papel do catolicismo e de outras religiões na legitimação das desigualdades entre homens e mulheres seria insistentemente sublinhado por Beauvoir ao longo de boa parte da sua obra, no mínimo desde a referência de abertura, em O segundo sexo (2014, p. 10), ao mito de Adão e Eva no Gênesis como ilustração da condição da mulher qua “outro” do homem, identificado ao humano genérico.1 1 Aliás, lembra Kirkpatrick, não demorou para que “o Vaticano colocasse o livro em sua lista de obras proibidas” (p. 239) – o que não deixa de ser uma honra tão significativa para uma escritora como o Prêmio Nobel rejeitado por Sartre. Por outro lado, tal qual convém a um intelecto tão atinado com ambiguidades, Beauvoir também sublinhou que a ideia religiosa de “alma” como um “domínio completamente assexuado” (p. 46) operou positivamente, em sua infância e adolescência, como um impulso às suas crenças igualitárias quanto aos sexos nas esferas moral e espiritual.

Sem abandonar sua admiração pela coragem e pela energia graças às quais Beauvoir trilhou sua existência como intelectual contra barreiras socio-históricas diversas, Kirkpatrick revela o quanto a personalidade autoassertiva dela se construiu também pela influência de mulheres menos conhecidas. É o caso de Léontine Zanta, primeira francesa a se tornar docteur d’etat: ao ler uma matéria de revista sobre essa intelectual independente, a adolescente Beauvoir sonhou “em um dia ver essas coisas escritas sobre ela” (p. 57). Considerando-se que, se tivessem nascido apenas alguns anos antes, nem Zanta nem Beauvoir sequer poderiam prestar os exames de qualificação necessários a uma carreira docente, resta o lembrete de quantas potenciais pensadoras geniais foram privadas daquela oportunidade.2 2 Cf. as reflexões de Virginia Woolf (2014) sobre Judith, a hipotética irmã de Shakespeare em Um teto todo seu. Outras figuras decisivas para Beauvoir incluíram, por exemplo, Stépha Awdykovicz, cuja fala livre sobre a sexualidade chacoalhou o puritanismo da jovem Simone, e Geraldine Pardo, com quem Beauvoir aprendeu que o pertencimento a uma classe social repleta de restrições e desvantagens não impedia o cultivo de uma individualidade genuína (p. 68).3 3 Obviamente, também presentes estão os encontros com personagens mais conhecidos, como a breve conversa de Beauvoir, na juventude, com Simone Weil. Colocando em contato duas inteligências geniais, porém marcadamente discrepantes em temperamento, “o encontro teve uma reviravolta decepcionante”: “Weil concluiu a conversa com as palavras: ‘É fácil ver que você nunca passou fome’. Segundo Beauvoir, Weil a olhou de cima a baixo e a julgou ‘uma pequena-burguesa pretensiosa’. Na época, Beauvoir achou isso irritante; afinal, Weil não conhecia suas circunstâncias e estava fazendo suposições equivocadas. Mas, em sua maturidade, ela passou a concordar com esse julgamento acerca de seu jovem eu” (p. 71).

Os diários documentam a origem de preocupações e ideias filosóficas que, embora florescendo antes e independentemente do diálogo de Beauvoir com Sartre, foram comumente atribuídas à originalidade dele, não dela. Kirkpatrick mostra que várias anotações naqueles diários possuem uma espécie de conteúdo existencialista avant la lettre, ainda mais se traduzidos na linguagem que ambos popularizariam posteriormente. Para dar apenas um exemplo: sem falar explicitamente em angústia ou contingência, Beauvoir descrevia seu futuro como impregnado de diversas vidas possíveis que seriam todas, com exceção de uma, eventualmente mortas por ela (p. 66). Os diários também se dedicavam à complexidade das relações intersubjetivas, em particular ao problema ético concernente ao equilíbrio entre o que se deve dar para si e para os outros. Ainda que romances como A convidada tenham sido frequentemente interpretados como “aplicações” da perspectiva agonística de Sartre sobre a relação entre o “para-si” e o “para-outro”, os diários de Beauvoir, escritos antes que ela conhecesse Jean-Paul, indicam, ao contrário, que ela chegou a diversas de suas ideias sobre a intersubjetividade “de forma independente” (p. 69). De modo similar, ela já se dedicava a reflexões sistemáticas sobre as ambivalências morais das relações humanas bem antes de Sartre “descobrir”, ao final de O ser e o nada (1997, p. 765), que precisava complementar seu retrato fenomenológico-existencial da condição humana com uma ética.

O segundo intelecto

Como dito acima, Kirkpatrick tenta resgatar o pensamento de Beauvoir de um sem-número de distorções frequentes de que sua oeuvre foi e é objeto. A mais corrente dessas distorções é provavelmente a concepção previamente mencionada de que Beauvoir não seria uma pensadora original e independente, mas mera “discípula” e “aplicadora” das concepções de Sartre. Como a biógrafa demonstra com um elenco deprimentemente vasto de exemplos, o laço das ideias de Beauvoir com as Sartre tem sido frequentemente tido por óbvio, enquanto o reconhecimento da dependência crucial que ele deve a ela é, por seu turno, muito mais raro. A assimetria de reconhecimento continuou seguindo a autora, por assim dizer, até o túmulo: enquanto os obituários de Sartre em 1980 mal mencionavam Beauvoir, os obituários de Beauvoir em 1986 não só citavam Sartre fartamente como chegavam, por diversas vezes, a reduzir a carreira intelectual dela ao seu elo com ele (p. 359).

Kirkpatrick evidencia, com fartura de ilustrações, que o papel de “catalisador conversacional” ou “amigo incomparável do pensamento” (p. 98) que Sartre desempenhou na vida de Beauvoir era, sem dúvida, um papel igualmente desempenhado por ela na existência dele. Mergulhados em contínua conversação, lendo e editando os textos um do outro, Beauvoir e Sartre entreteceram suas cogitações a tal ponto que é difícil elucidar a obra de uma sem a referência ao outro e vice-versa. Para além das ilustrações mais pitorescas desse entrelace, como o fato de que Beauvoir chegou a escrever artigos encomendados a Sartre e por ele assinados, as orientações intelectuais fornecidas por ela se mostraram decisivas em diversas encruzilhadas na trajetória do pensador existencialista. Por exemplo, quando Sartre se encontrava deprimido por já haver chegado à casa dos trinta sem ser celebrado mundo afora como um gênio, foi Beauvoir quem sugeriu a ele que experimentasse exprimir suas ideias filosóficas em forma romanesca (p. 125) – o resultado foi A náusea, romance filosófico de 1938 que tornou seu autor famoso, e que não foi somente sugerido na sua concepção, mas também, como outros tantos manuscritos de Sartre, minuciosamente editado pela leitura rigorosa de Beauvoir (p. 21).

Considerado o peso do sexismo ambiente nas avaliações injustas do legado de Beauvoir, sobretudo frente à reputação de Sartre, será que a própria pensadora francesa, consciente ou inconscientemente, também contribuiu para aquela injustiça? Kirkpatrick não ignora que um obstáculo a uma apreensão mais justa da originalidade de Beauvoir foi produzido por depoimentos nos quais ela afirmava não se conceber como filósofa, no mesmo passo em que concedia o título, entretanto, ao autor de O ser e o nada (p. 91): “Não sou filósofa... [Sou] uma escritora literária...Sartre é o filósofo” (p. 18). Evitando a tentação crítica de atribuir ou, pelo menos, de reduzir essa “modéstia” filosófica a algum sexismo interiorizado pela heroína da segunda onda do feminismo, Kirkpatrick defende uma leitura alternativa dessa asserção e de suas congêneres. Em vez de uma posição autoderrogatória, o contraste entre a escrita literária e a reflexão filosófica traçado por Beauvoir abrigava uma desconfiança crítica em relação aos limites da filosofia como construção de sistemas à maneira de um Hegel, um Schopenhauer ou do próprio Sartre. A contraparte dessa desconfiança crítica consistia precisamente no recurso à literatura como ferramenta de captação da experiência concreta em suas nuances e ambiguidades, frequentemente sacrificadas pela propensão filosófica a encaixá-las forçosamente em molde sistemático. Devido ao seu interesse nas complexidades da experiência vivida, assim como ao seu compromisso com uma escrita capaz de interpelar as subjetividades inteiras de suas leitoras e leitores (intelecto, afetividade, imaginação etc.), Beauvoir estaria deliberadamente mais próxima de literatos de inclinação filosófica como um Dostoiévski, um Kierkegaard ou (rivalidade tardia à parte) um Camus do que da filosofia “tratadística” que o próprio Sartre encarnou em livros como Crítica da razão dialética (p. 193).

De resto, Beauvoir e Sartre também engendraram um intercâmbio conversacional em que, no mais das vezes, ele privilegiava a ousadia imaginativa e a radicalidade de posições em detrimento do compromisso cognitivo com rigor e precisão, os quais acabavam frequentemente “ficando a cargo” das intervenções dela. Kirkpatrick escreve que Beauvoir, conquanto considerasse Sartre “filosoficamente...descuidado e impreciso”, “achava que sua bravata tornava suas ideias mais proveitosas que os pensamentos precisos e escrupulosos dela” (p. 109). Dotada de uma sensibilidade sociológica (lato sensu) bem mais apurada do que a de Sartre, Beauvoir também interpretou perspicazmente a diferença de ambições intelectuais entre ela e ele a partir dos constrangimentos sociais de gênero que pesaram na formação de suas expectativas acadêmicas e profissionais. A autora notou essa discrepância desde os anos de 1930, quando ambos, aprovados no exame de “agrégation”, começaram a lecionar. Enquanto Sartre, para quem “passar na agrégation e ter uma profissão era algo garantido”, preocupava-se com a diminuição de sua liberdade intelectual acarretada por seus compromissos profissionais, Beauvoir, que tivera de enfrentar um sem-número de resistências sociais (a começar pela do seu pai) para chegar àquela condição, se viu “tonta de puro deleite: eu senti que, longe de ter que suportar meu destino, eu o havia escolhido deliberadamente. A carreira em que Sartre via sua liberdade decair ainda significava libertação para mim” (p. 126-127). Finalmente, se a propensão de Sartre à “bravata” talvez tenha contribuído, de par com uma dinâmica reputacional sexista, para sua fama de pensador supostamente mais original, as visões mais nuançadas de Beauvoir provavelmente concorreram para dar às ideias dela, creio eu, maior atualidade do que as dele. No fim das contas, por exemplo, a concepção do relacionamento entre liberdade individual e condicionamentos sociais em O Segundo Sexo é, precisamente devido às suas nuances e tensões, certamente mais adequada do que “libertarismo” subjetivista advogado quase sem peias por Sartre em O ser e o nada.

O ativismo do adeus

Como é sabido, no mesmo livro que seria um dos documentos mais influentes da segunda onda do feminismo, Beauvoir ainda não reclamara para si própria o rótulo de “feminista”. Paradoxalmente, a extraordinária virulência da reação conservadora às visões defendidas por Beauvoir foi um estímulo decisivo para que ela abraçasse expressamente, afinal, a causa feminista. À decisão se seguiu seu envolvimento em múltiplas atividades militantes nas décadas subsequentes, como as campanhas pela expansão do acesso a métodos contraceptivos e pela descriminalização do aborto. Ao tratar daquela conturbada recepção do “escandaloso O segundo sexo” (p. 226-244), Kirkpatrick, em um dos melhores momentos do livro, vai além de uma biografia stricto sensu e oferece um elucidativo exercício de história cultural.

As diversas críticas ao livro mapeadas nessa biografia ilustram um princípio identificado pelo sociólogo estadunidense Robert Merton em sua análise do preconceito: “damned-if-you-do, damned-if-you-don’t”. Por exemplo, Beauvoir foi atacada como “insatisfeita”, “frígida” e “frustrada”, mas também como “ninfomaníaca” (p. 231, 235). Filósofos acadêmicos como Mauriac consideraram “abjeto” que ela falasse sobre sexo em um ensaio que pretendia ser “crítica filosófica e literária séria” (p. 231), ao passo que leitores não acadêmicos a censuraram, por seu turno, por escrever um livro supostamente inteligível apenas “para um pequeno clube literário...de pessoas iniciadas no jargão esotérico da metafísica e sua categoria existencialista” (p. 243). Felizmente, essas ambiguidades na recepção de O segundo sexo tiveram suas contrapartes positivas. Por um lado, reações como a de Mauriac tornaram-se elas próprias documentos culturais de sexismo disponíveis à posteridade: em um de tantos exemplos do padrão duplo de moralismo pornográfico que marca certo pensamento de direita até hoje, o mesmo “respeitável pilar do establishment conservador” (p. 231) que se escandalizara com as referências de Beauvoir à genitalidade feminina “escreveu a um dos colaboradores de Les Temps Modernes que ‘a vagina de minha patroa não tem segredos para mim’” (p. 231). Ademais, o fato de que alguns homens se contavam entre os que rejeitavam suas considerações sobre a maternidade, argumentando que ela nunca havia tido a experiência em primeira mão, também serviu a ela para lembrar a tais homens que eles próprios nunca se sentiram impedidos a opinar sobre o assunto devido à sua falta de vivência direta (p. 235). Por outro lado, e felizmente, Beauvoir encontraria, com o passar do tempo, uma geração subsequente de leitores, sobretudo mulheres, que se revelariam imensamente mais acolhedores em relação a um livro que, pela primeira vez em décadas ou séculos, “falava francamente sobre experiências que haviam sido tabu” (p. 239). De lá para cá, como é sabido, “O segundo sexo seria reconhecido como um clássico e inspiraria movimentos políticos” (p. 243).

O livro também inspiraria um conjunto amplo e multifacetado de reflexões no campo interdisciplinar da teoria feminista. Infelizmente, Kirkpatrick não explora em qualquer detalhe questões centrais à fortuna crítica da obra de Beauvoir no interior desses debates teóricos, como a insuficiente atenção de seu livro seja a fatores interseccionais de raça e classe na experiência das mulheres (ponto lembrado por feministas negras), seja ao caráter culturalmente “construído” do próprio sexo como marcador biológico (ponto lembrado por feministas pós-estruturalistas). Na verdade, frente à advertência inicial que a biografia não incluiria “todos os amigos nem todos os amantes” de Beauvoir, mas incluiria “sua filosofia” (p. 30), a ratio final do livro de Kirkpatrick ainda sacrifica um tanto de potencial discussão filosófica para dedicar-se ao terreno já amplamente mapeado das relações de Simone com Olga Kosakiewicz, Wanda Kosawiecz, Bianca Bienenfeld, Jacques-Laurent Bost e Nelson Algren, inter alios.4 4 Por exemplo, os ricos diálogos de Beauvoir e Sartre com seus críticos estruturalistas ganham somente uma superficial menção en passant: “na década de 1960, [Sartre] fora criticado por Claude Lévi-Strauss e por outros por focar demais no tema do consciente mas não o suficiente no inconsciente” (p. 293).

A própria audácia e originalidade demonstradas por Beauvoir em sua discussão da ética das relações interpessoais íntimas convidaram intérpretes, com muita frequência, a interrogar sua conduta nesse domínio, em particular no tocante ao arranjo que ela estabelecera com Sartre, em que o “amor necessário” dos dois conviveria com a liberdade de um e outro para travarem “amores contingentes”. Em Tête-à-tête, Hazel Rowley (2006)3 ROWLEY, Hazel. Tête-à-tête: the tumultuous lives and loves of Simone de Beauvoir and Jean-Paul Sartre. Nova York: HarperCollins, 2006. não se furtou a confrontar aspectos desagradáveis da realidade desse “amor livre” por tantas vezes idealizado, como o fato de que a comunicação transparente entre Beauvoir e Sartre sobre seus relacionamentos coexistia com um cinturão protetor de mentiras dirigidas às várias pessoas que entravam nessa órbita erótico-afetiva. Isso dito, a própria Rowley já demonstrara amplamente, embora a mensagem tenha escapado a alguns de seus leitores, a inverdade da suposição comum de que o arranjo não monogâmico entre Beauvoir e Sartre teria sido algo que ela aceitara a contragosto, resignada à circunstância de não poder, como disseram alguns, “tê-lo inteiramente” (sic) para ela. Kirkpatrick mostra que tal arranjo foi entusiasticamente desejado e abraçado por ela, mas também recolhe depoimentos diversos em que Beauvoir reconheceu, nas suas palavras, que seu “entendimento com Sartre” acarretou uma série de “perdas e transtornos pelos quais os ‘outros’ sofreram” (p. 300).

Ao mapear as relações com o amor que a cultura ocidental moderna estimulava entre homens e mulheres, a filósofa notou o injusto contraste entre a “soberania” daqueles e o “autossacrifício” destas:

Beauvoir acreditava que os homens permanecem ‘sujeitos soberanos’ no amor – que valorizavam suas amadas mulheres ao lado de outras atividades, como parte integrante – mas só parte – de toda a sua vida. Por outro lado, para as mulheres, [...] os ideais de amor as incentivavam a viver a uma vida de autossacrifício ou até de completo esquecimento de si mesmas pelo bem de seus amados

(p. 235).

É desconcertante pensar que tanto escândalo pôde brotar da reivindicação de que as mulheres pudessem reclamar uma relação igualmente soberana com o amor. Se, pelo menos para uma vasta (mesmo que insuficientemente vasta) porção de pessoas, tal reivindicação, longe de espantosa, é uma espécie de um mínimo civilizatório, tão autoevidente que não precisaria ser dito, essa própria evidência indica o quanto devemos não somente aos escritos de Beauvoir como também às outras modalidades de ativismo que ela continuou praticando até o seu leito de morte. (A referência é literal: na cama do hospital onde veio a falecer em 1986, ela tentou convencer sua massagista a não votar no nacionalista de extrema direita Jean-Marie Le Pen [p. 358].) O livro aqui resenhado é somente uma prova, entre diversas outras, de que sua mensagem continua viva.

  • 1
    Aliás, lembra Kirkpatrick, não demorou para que “o Vaticano colocasse o livro em sua lista de obras proibidas” (p. 239) – o que não deixa de ser uma honra tão significativa para uma escritora como o Prêmio Nobel rejeitado por Sartre.
  • 2
    Cf. as reflexões de Virginia Woolf (2014)5 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. sobre Judith, a hipotética irmã de Shakespeare em Um teto todo seu.
  • 3
    Obviamente, também presentes estão os encontros com personagens mais conhecidos, como a breve conversa de Beauvoir, na juventude, com Simone Weil. Colocando em contato duas inteligências geniais, porém marcadamente discrepantes em temperamento, “o encontro teve uma reviravolta decepcionante”: “Weil concluiu a conversa com as palavras: ‘É fácil ver que você nunca passou fome’. Segundo Beauvoir, Weil a olhou de cima a baixo e a julgou ‘uma pequena-burguesa pretensiosa’. Na época, Beauvoir achou isso irritante; afinal, Weil não conhecia suas circunstâncias e estava fazendo suposições equivocadas. Mas, em sua maturidade, ela passou a concordar com esse julgamento acerca de seu jovem eu” (p. 71).
  • 4
    Por exemplo, os ricos diálogos de Beauvoir e Sartre com seus críticos estruturalistas ganham somente uma superficial menção en passant: “na década de 1960, [Sartre] fora criticado por Claude Lévi-Strauss e por outros por focar demais no tema do consciente mas não o suficiente no inconsciente” (p. 293).

Referências

  • 1
    BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
  • 2
    RIBEIRO, Djamila. Iconoclasta de si mesma. Quatro cinco um, 1 abr. 2010. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/biografia/iconoclasta-de-si-mesma
    » https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/biografia/iconoclasta-de-si-mesma
  • 3
    ROWLEY, Hazel. Tête-à-tête: the tumultuous lives and loves of Simone de Beauvoir and Jean-Paul Sartre. Nova York: HarperCollins, 2006.
  • 4
    SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada Petrópolis: Vozes, 1997.
  • 5
    WOOLF, Virginia. Um teto todo seu São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2020
  • Aceito
    15 Fev 2021
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