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1968 e a teoria social contemporânea, 50 anos depois: rebelião social, fragmentação ou nova cultura política?

1968 and contemporary social theory 50 years later: social rebellion, fragmentation, or a new political culture?

Resumo

O artigo investiga as ressonâncias dos eventos de 1968 na Teoria Sociológica Contemporânea, considerando os 50 anos dos ocorridos. Nesse sentido, 1968 foi entendido como um evento de significativos efeitos pelo globo, protagonizado inicialmente pelo movimento estudantil e que engloba cisões no radicalismo, novas configurações político-ideológicas, a crítica ao socialismo soviético e a abertura de uma perspectiva terceiro-mundista nas lutas sociais. Por isso, o evento serviu de base de reflexão para várias formulações teóricas do marxismo, da teoria crítica, do estruturalismo, do pós-estruturalismo e de correntes pós-modernas, cada qual com uma interpretação específica. Agrupando tais interpretações, encontram-se três abordagens distintas na teoria sociológica sobre os eventos: rebelião, fragmentação social e nova cultura política dos movimentos sociais. Portanto, como hipótese de leitura, agrupamos as três perspectivas interpretativas, as quais cumprem de forma geral uma identificação preliminar das análises realizadas nos últimos 40 anos. Assim, objetiva-se a construção de um amplo balanço histórico e sociológico no que diz respeito à sua compreensão dos acontecimentos de 1968, com enfoque na ressonância desses na elaboração teórica das últimas décadas. Esse balanço almeja investigar também como as disputas recentes em torno dos sentidos dos conflitos de 1968 se apresentam nas “comemorações” de 50 anos, ensejando as disputas de afirmação e negação dos sentidos dos acontecimentos na teoria sociológica.

Palavras-chave
1968; movimento estudantil; cultura política; teoria social contemporânea; história do tempo presente

Abstract

This article investigates how the events of 1968 resonated in Contemporary Sociological Theory, considering the 50-year anniversary of these events. In this sense, 1968 has been understood as an event of significant effects throughout the world, led initially by the students’ movement, and which encompasses schisms in radicalism, new political-ideology configurations, criticism of Soviet socialism and the opening of a Third-World perspective in social struggles. Therefore, the event served as a basis for reflection for several theoretical formulations of Marxism, critical theory, structuralism, poststructuralism, and postmodern currents, each with its specific interpretation of the facts. By grouping these interpretations, three distinct approaches in sociological theory about these events emerge: rebellion, social fragmentation, and a new political culture of social movements. Therefore, as a reading hypothesis, we grouped the three interpretative perspectives, which fulfill a preliminary identification of the analyses performed in the last 40 years. Thus, we aim to construct a broad historical and sociological survey, in regard to the understanding of the events of 1968, focusing on how they resonate in the theoretical developments of the last decades. This survey also aims to investigate how the recent disputes around the meanings of the 1968 conflicts are presented in the “celebrations” of the 50-year anniversary, leading to disputes of affirmation and denial of the meanings of events in sociological theory.

Keywords
1968; students’ movements; political culture; contemporary social theory; history of the present time

Introdução

O ano de 1968 tem sido lembrado como um ano marcante, em especial pelas barricadas do Quartier Latin do Maio de 68 francês, pelos conflitos entre estudantes e o aparato repressivo no Brasil, pela Primavera de Praga na Tchecoeslováquia, pelo Massacre de Tlatelolco no México, entre outros eventos. Ao completar 50 anos de sua ocorrência, o balanço histórico – memorialístico, midiático e bibliográfico – tem proporcionado, assim como nas últimas décadas, novas perspectivas de interpretação desse fenômeno global. O presente artigo aborda os acontecimentos de 1968 em uma perspectiva alargada e global, buscando as interconexões do evento com hipóteses de leitura através da teoria sociológica.

Como um événement sem precedentes na história (Badiou, 2012BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2012.), demarcaram-se cisões no radicalismo, transposições de expectativas, novas configurações políticas e ideológicas (locais, nacionais e globais), crítica às mudanças técnico-produtivas e de mercado (presentes nas universidades), que se iniciam nos países centrais e se expandem aos países em condições semiperiférica e periférica, permitindo o surgimento de inúmeros protestos de resistência (Almada, 2016ALMADA, Pablo. A cultura política de 68: reflexões sobre a resistência estudantil em Brasil e Portugal. Mediações, v. 21, n. 2, p. 123-143, jul./dez. 2016.). Embora tais eventos sejam amplamente conhecidos, há uma ausência de estudos que contemplem de modo mais rigoroso as imbricações com a teoria social contemporânea, seja porque aqueles eventos ofereceram uma espécie de background para muitos autores e intelectuais ou porque impulsionaram desenvolvimentos no escopo teórico das décadas subsequentes.

Em uma apreciação preliminar das diversas reflexões posteriores sobre 1968, observa-se uma mescla de vários sentidos interpretativos: rebeliões sociais, juventude, repressão política, protagonismo estudantil e operário, contracultura, individualismo e resignação da modernidade, modernidade e pós-modernidade, a composição de relatos memorialísticos ou revisionistas, dentre outros aspectos, são comumente referenciados nas mais diferentes análises. No entanto, encontram-se também certas similitudes em temáticas definidoras de 1968, as quais a teoria sociológica, por seu turno, se encaminhou por definir de algum modo. Este artigo analisa três desses sentidos interpretativos: 1968 como rebelião, como fragmentação social e como surgimento de uma nova cultura política. Portanto, como hipótese de leitura, agrupamos os três momentos de interpretações sobre o Maio de 1968, os quais cumprem, de forma geral, uma identificação preliminar das interpretações realizadas nos últimos 40 anos, observando a predominância de visões que demarcam os referenciais do evento em consonância com os movimentos e escolas teóricas, abrindo um leque para interpretações posteriores. O esforço do artigo, dessa maneira, é analisar e desenvolver aqueles que foram os temas-chave utilizados pela teoria sociológica na compreensão dos eventos de 1968, de modo a oferecer um guia para elaboração de futuras pesquisas na área.

Um campo de estudos (ainda) em aberto

No Brasil, o campo de estudos sobre os anos 1960 e, mais precisamente, referente ao ano de 1968 ou acerca do maio de 1968, abarca, inicialmente, as pesquisas sobre a Ditadura Militar (1964-1985) a partir da História, Sociologia e Ciência Política. Os primeiros avanços sobre a temática são datados da década de 1980 e apresentaram o movimento estudantil como objeto de estudos.

As primeiras referências teóricas atentaram para o conteúdo de classe média das reivindicações, enfatizando a prática política individualista e pequeno-burguesa perante as desilusões do alcance de posições privilegiadas nos processos de mobilidade social (Foracchi, 1982FORACCHI, Marialice. A participação social dos excluídos. São Paulo: Hucitec, 1982.). Notava-se que tais práticas alcançavam os limites do aparelho burocrático e autoritário (militarizado) do Estado brasileiro, o qual procurava tanto neutralizar o movimento estudantil quanto tornar a universidade mais rentável para os interesses capitalistas (Saes, 1984SAES, Décio. Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.). Em uma perspectiva classista, pode-se entender que os anos 1960 vivenciaram um processo de integração política das classes médias, primeiramente junto ao sistema educacional, depois, junto ao processo político de dominação de classe (Martins Filho, 1987MARTINS FILHO, João R. Movimento estudantil e ditadura militar: 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987.).

Nas décadas posteriores, essas perspectivas foram renovadas, ultrapassando as dimensões da centralidade do movimento estudantil, com vistas a compreender as várias facetas da repressão institucionalizada do Regime Militar e sua relação com os grupos de esquerda (Ridenti, 2005RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2005.), ou lançando um olhar contemporâneo para as rupturas e permanências dos aspectos políticos e culturais daquele período e seu balanço contemporâneo (Teles; Safatle, 2010TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.; Reis; Ridenti; Motta, 2014REIS, Daniel A.; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo P. S. (orgs). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.). Destacam-se também os estudos que analisaram o papel da repressão nas universidades, da produção e do imaginário cultural e político que estavam sendo produzidos no Brasil naquele período (Valle, 2008VALLE, Maria R. 1968: o diálogo é a violência. Campinas: Unicamp, 2008.; Motta, 2014MOTTA, Rodrigo P. S. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.; Hagemeyer, 2016HAGEMEYER, Rafael. Caminhando e cantando: o imaginário do movimento estudantil brasileiro de 1968. São Paulo: EDUSP, 2016.; Muller, 2016MULLER, Angélica. O movimento estudantil na resistência à ditadura militar (1969-1979). Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2016.). Ainda, as recentes revisões da história oficial da política de Estado apontaram para as “graves violações de direitos humanos” cometidas pelos agentes do Estado contra a oposição à ditadura militar, como no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2014BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: Comissão Nacional da Verdade, 2014.).

Os estudos supracitados apresentam uma preocupação acerca das dimensões políticas autoritárias do regime militar brasileiro, com maior ou menor ênfase nas análises de caso do movimento estudantil e com destaque à repressão. Especificamente em relação aos movimentos estudantis, esses estudos praticamente se restringem às dimensões nacionais dos acontecimentos dos anos 1960 e 1970, revelando um certo déficit de perspectivas comparativas na seara brasileira ou que deem ênfase à construção de 1968 como um événement global. É importante ressaltar que estudos comparados ou com perspectiva global já encontravam um vasto campo de produção na literatura internacional desde os anos 1970 (Lipset, 1972LIPSET, Seymour. Rebellion in the university: a history of student activism in America. Londres: Routledge, 1972.; Katsiaficas, 1987KATSIAFICAS, Georgy. The imagination of the new left: a global analysis of 1968. Boston: South End, 1987.; Degroot, 1998DEGROOT, Gerard. Student protest: the sixties and after. Londres: Routledge, 1998.; Boren, 2001BOREN, Mark. Student resistance: a history of the unruly subject. Londres: Routledge, 2001.; Gilcher-Holtey, 2001GILCHER-HOLTEY, Ingrid. Die 68er Bewegung: Deutschland - Westeuropa - USA. Munique: C.H. Beck, 2001.; Caldwell, 2009CALDWELL, Wilbert. 1968: dreams of revolution. Nova York: Algora, 2009.). Destaca-se, nesse campo, a circunscrição de 1968 na inauguração dos chamados “movimentos antissistêmicos” (Arrighi; Hopkins; Wallerstein, 1989ARRIGHI, Giovanni; HOPKINS, Terence; WALLERSTEIN, Immanuel. Antisystemic movements. Londres: Verso, 1989.), cuja referência para as ações coletivas é o sistema-mundo do capitalismo histórico, que se relaciona em termos de classes sociais e grupos de status (juventude, gênero, etnicidade etc.), abrindo uma janela para novas disputas sociais de poder. Diferente da demarcação e da ruptura comumente atribuída entre “velhos” e “novos” movimentos sociais, a dimensão antissistêmica trouxe à tona um processo de elaboração de uma nova cultura política global, valorizando experiências alargadas e que não se restringem ao caso francês.

Mediante outras especificidades de 1968, abriu-se recentemente um novo campo analítico, destinado a suprir algumas das falhas presentes nas análises imediatamente posteriores, com ênfase na memória dos participantes. Os relatos dos atores mais proeminentes como Daniel Cohn-Bendit, Georges Seguy, Rudi Dutschke, Alan Geismar, Jacques Sauvageot e André Glucksmann, entre outros, conduziram às linhas gerais dos balanços históricos e memorialísticos divulgados na análise do Maio de 68 na França, quase sempre contidos na linha de uma recusa da pertinência daqueles ocorridos (Glucksmann; Glucksmann, 2008GLUCKSMANN, André; GLUCKSMANN, Raphael. Maio de 68 explicado a Nicolas Sarkozy. Rio de Janeiro: Record, 2008.; Reynolds, 2011REYNOLDS, Chris. Memories of May’ 68: France’s convenient consensus. Cardiff: University of Wales Press, 2011.). Ressalta-se que o evento de 1968 participa de um jogo de memória e de esquecimento na formação de uma identidade específica do período e de seus atores, o qual permite balanços afirmativos e negativos de cunho subjetivo (Ross, 2008ROSS, Kristin. May 68 and its afterlives. Chicago: University of Chicago Press, 2008.).

Por sua vez, estudos voltados à epistemologia da teoria social com background em 1968 e sua influência nas fontes teóricas das Ciências Sociais são ainda bastantes residuais, ainda que haja avanços na filosofia política do “pós-1968” (Ferry; Renaut, 1990FERRY, Luc; RENAUT, Alain. French philosophy of the sixties: essay on antihumanism. Amherst: University of Massachusetts Press, 1990.; Starr, 1995STARR, Peter. Logics of failed revolt: French theory after May 68. Stanford: Stanford University Press, 1995.; Stephens, 1998STEPHENS, Julie. Anti-disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.). Esse campo parece ser o mais proeminente, por conter os embates entre vertentes teóricas ainda em evidência em debates teóricos nas Ciências Sociais, como os marxismo, estruturalismo, pós-estruturalismo e pós-modernismo. As contribuições de pensadores como Louis Althusser, Herbert Marcuse, Alain Touraine, Jürgen Habermas, Michel Foucault, Gilles Deleuze foram imprescindíveis para a teoria sociológica, tanto por serem contemporâneas aos acontecimentos quanto por realizarem incursões fundamentais para novas concepções sobre os termos das revoltas sociais, da estrutura e da ação, da construção dos sujeitos sociais e suas distensões – em suma, por abrirem um campo de estudos dos chamados “novos movimentos sociais”.

Dessa forma, as imbricações entre 1968 e a Teoria Sociológica Contemporânea dizem respeito à exploração das dimensões políticas que essas teorias atribuíram tanto àqueles eventos como aos desdobramentos das possibilidades de mudanças e transformações sociais. A partir de estudos anteriores (Almada, 2015aALMADA, Pablo. A árvore de maio: a resistência estudantil e sua atualidade (Brasil e Portugal). 2015. 399 f. Tese (Doutoramento em Democracia no Século XXI) – Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2015a.), que buscaram introduzir as linhas de análise dominantes sobre 1968, encontraram-se dois escopos analíticos, os quais seguirão como duas hipóteses interpretativas. O primeiro foi denominado de “Teoria da Prática” e entende que as vertentes teóricas de inclinação marxista e suas respectivas renovações, a partir do estruturalismo e da teoria crítica, consideravam que as mobilizações estudantis de 1968 constituíram-se globalmente como um movimento de rebelião social; o segundo foi denominado de “Prática da Teoria” e demarcou as décadas de 1980 a 2000, construindo-se na ruptura com os preceitos do marxismo e entendendo 1968 sob a perspectiva da fragmentação social, com embasamento nas teorias pós-estruturalistas, pós-industriais e pós-modernas. Além das duas acepções, também se demarca um terceiro segmento de análise que se desenvolve nos anos 1990, e que entende as consequências do 1968 pelas lentes da utilização arbitrária da violência e do fracasso de sua crítica, mas também de sua predisposição a originar uma nova cultura política participativa.

1968: a rebelião social

A influência de 1968 nas reflexões filosóficas e sociológicas se deu em uma intrínseca relação com o marxismo. Considerando que, desde o início do século XX, o chamado “marxismo ocidental” ganhava força perante o marxismo-leninismo, a crise dissipada nos partidos comunistas e no autoritarismo do “socialismo real” tornava-se cada vez mais evidente na Europa Ocidental, em especial, na França. O levantamento de massas do Maio de 1968 ultrapassou os centralismos do Partido Comunista da União Soviética (PCURSS), conforme ficou evidente no evento da Primavera de Praga, na Tchecoslováquia, sendo que sua principal manifestação no caso francês estava diretamente relacionada ao questionamento da liderança, da legitimidade e do alinhamento do Partido Comunista Francês (PCF) às políticas do Kremlin. Alguns teóricos marxistas, como Louis Althusser e Herbert Marcuse, que procuraram revisitar o pensamento de Marx no sentido de reconstrução e refundação do materialismo histórico, abriram os horizontes para explicações nos campos das lutas sociais, da ciência, da cultura e do poder. Além disso, influenciaram as organizações estudantis no debate teórico-político e nas formulações das ações de classe, oferecendo contributos significativos à chamada New Left europeia e americana (Katsiaficas, 1987KATSIAFICAS, Georgy. The imagination of the new left: a global analysis of 1968. Boston: South End, 1987.; Eley, 2009ELEY, Geoff. Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.).

Por seu turno, a vertente althusseriana do marxismo reforçou as necessidades de uma nova leitura da obra de Marx, com base nos conceitos de “ruptura epistemológica” (entre o jovem Marx hegeliano e idealista e o Marx da maturidade científica), de “causalidade estrutural” (a determinação econômica em última instância) e de “processo sem objeto” (a autonomia das estruturas perante os sujeitos transformadores da realidade social) (Levine, 2003LEVINE, Andrew. A future for Marxism? Althusser, the analytical turn and the revival of socialist theory. Londres: Pluto Press, 2003.). A recepção de tais trabalhos no meio intelectual francês e a contribuição do próprio filósofo no debate do PCF enfatizavam as rupturas com o modelo do comunismo soviético e o marxismo antistalinista, em uma tentativa de revitalização das concepções e práticas sobre as lutas de classe (Dosse, 2007DOSSE, François. História do estruturalismo: o canto do cisne, de 1967 a nossos dias, v. II. Bauru: EDUSC, 2007.). As correntes políticas estudantis da França, ao se aproximarem do maoísmo e do marxismo-leninismo, tendem a romper com o marxismo oficial. Embora não se tenham filiado diretamente a uma vertente que inculpasse as mazelas do stalinismo, houve um crescente interesse no modelo do voluntarismo subjetivista e da ação guerrilheira.

Por outro lado, destaca-se também a teoria crítica de Herbert Marcuse e sua compreensão teórica sobre as impossibilidades da transição capitalista da sociedade de pensamento unidimensional, por conta da submissão à lógica totalitária (Marcuse, 1974MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.). Marcuse enfatizou que a tecnicidade havia sido imputada ideologicamente pelo capitalismo das sociedades avançadas e, por essa razão, teria conduzido ao fechamento das alternativas emancipatórias, outrora ensaiadas pelo marxismo e conduzidas pela classe trabalhadora. Restaria apenas uma pequena brecha, dada àqueles grupos que, marginalizados pelo processo produtivo, abandonariam a satisfação repressiva da racionalidade técnica em prol da busca de uma emancipação estética e pela arte. Ao constatar o fechamento das perspectivas emancipatórias, Marcuse também “antecipou a possibilidade de existência de novas forças sociais que poderiam ser incorporadas nas reflexões da teoria social” (Katsiaficas, 1987KATSIAFICAS, Georgy. The imagination of the new left: a global analysis of 1968. Boston: South End, 1987., p. 230)1 1 Todas as traduções são de responsabilidade do autor deste artigo. . O surgimento de “novos sujeitos revolucionários” em contraposição à hegemonia das lutas sociais organizadas pela classe trabalhadora, a qual era prescrita pelo marxismo ortodoxo, permitiria, pelo menos teoricamente, atribuir o papel de “catalizador” de novas lutas sociais ao movimento estudantil, gerando círculos inéditos de mobilização e de agregação pela New Left, como os imigrantes, o movimento negro, os movimentos feministas, as lutas por direitos políticos e civis, os movimentos de libertação nacional e anti-imperialistas. Dessa forma, novos sujeitos comporiam alternativas nas esferas extraparlamentares da política (Marcuse, 2005MARCUSE, Herbert. The new left and the 1960s. Abingdon: Routledge, 2005.; Almada, 2015bALMADA, Pablo. Dialética, utopia e alternativas: o movimento estudantil e os “novos sujeitos revolucionários” em Herbert Marcuse. Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 131-156, 2015b.).

Embora tenha sido um período em que as visões marxistas dogmáticas entraram em crise (Marwick, 1998MARWICK, Arthur. The sixties: cultural revolution in Britain, France, Italy, and the United States (1958-1974). Oxford: Oxford University, 1998.), houve um respiro significativo no marxismo ocidental. Parte desse alento esteve enunciado pelas teorias que avançaram junto às lutas sociais, ao tomar seus aspectos político-ideológicos como determinantes para a formação das lutas de classe e de seus conflitos culturais, desembocando nas formulações políticas da nova esquerda. Em referência a 1968, tais teorias se estabeleceram como a “Teoria da Prática” (Almada, 2015aALMADA, Pablo. A árvore de maio: a resistência estudantil e sua atualidade (Brasil e Portugal). 2015. 399 f. Tese (Doutoramento em Democracia no Século XXI) – Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2015a.), designando a centralidade da práxis na condução das rebeliões sociais e, portanto, avançando em um posicionamento militante junto aos estudantes. Consequentemente, novas práticas materiais e articulações de classes sociais possibilitaram a emergência de novos conflitos sociais, gestados nas reivindicações dos movimentos operário, estudantil, feminista e ambientalista, entre outros.

1968: nova subjetividade e fragmentação social

Deve-se observar, por conseguinte, que as influências de 1968 não estiveram restritas às formulações da teoria marxista. Filósofos e sociólogos das mais variadas correntes de pensamento, como Jürgen Habermas, Alain Touraine, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jacques Lacan e, ainda, os chamados nouveaux philosophes, como Bernard-Henri Lévi, André Glucksmann e Alain Finkielkraut, também fizeram parte dessa guinada, influenciando os paradigmas das teorias sociológicas durante as décadas de 1980 a 2000. Nesse segundo campo, encontra-se um outro posicionamento, referente à avaliação quase que exclusiva dos ocorridos do maio francês e delineando uma leitura parcialmente negativa das mobilizações estudantis. Colocou-se em evidência um posicionamento cético ao radicalismo e às suas práticas políticas, enfatizando o surgimento de um novo modo de produção capitalista que transcendia os limites da sociedade industrial. Por seu turno, tais teorias pressuporiam os limites historicistas para as ações coletivas, apostando no redirecionamento de ideais utópicos e na percepção de um mundo individualizado, tecnocrático e sem ideologias. Por isso, essas formulações podem ser consideradas como a “Prática da Teoria” (Almada, 2015aALMADA, Pablo. A árvore de maio: a resistência estudantil e sua atualidade (Brasil e Portugal). 2015. 399 f. Tese (Doutoramento em Democracia no Século XXI) – Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2015a.), pois observaram que os protestos de 1968 continham a crítica e a ruptura com diversos pressupostos marxistas, em especial, trabalho, ideologia e classes sociais. Essa viragem permitiu que fossem mobilizados conceitos de (micro)poderes, de desejo, ou ainda, da formação de conflitos por identidade ou de novas configurações provenientes de disputas culturais e técnicas, deslocando o cerne das lutas por demandas materiais para lutas por demandas identitárias e imateriais, as quais já não se enquadrariam em um esquema unívoco da totalidade capitalista senão por sua realidade social fragmentada.

Os nouveaux philosophes, também denominados como representantes da penseé 68, aproximavam-se, antes de tudo, de elementos da filosofia de Friedrich Nietzsche, como a desconstrução histórica do sujeito coletivo, a ênfase sobre a vontade de poder (Wille zur Macht) e a descentralização do sujeito, perspectivando que todo pensamento se assemelha muito mais a um ponto de vista do que a uma concepção de verdade (Ferry; Renaut, 1990FERRY, Luc; RENAUT, Alain. French philosophy of the sixties: essay on antihumanism. Amherst: University of Massachusetts Press, 1990.). Michel Foucault, por sua vez, ao questionar os acontecimentos de 1968, os entende como “antimarxistas”, pois observa que os estudantes postularam uma luta contra o socialismo soviético e seu modelo totalitário, denotando a presença de uma dimensão de luta antidisciplinar e anticapitalista, que se completaria com uma linguagem de protesto que transcenderia os limites da política e da estética (Foucault, 2003FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2003.; Stephens, 1998STEPHENS, Julie. Anti-disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.). Porém, Foucault observa 1968 de modo bastante restrito, como um evento específico ao contexto estudantil francês, sem levar em consideração as greves dos trabalhadores que também ocorreram na Europa daquele período, como no caso da Itália. De certo modo, Foucault redimensiona a ação do movimento estudantil francês de modo a representar uma consciência autonomizada, ciente de sua vontade de poder e independente de outros fatores contingentes da realidade global.

Essa questão refere-se à ruptura com o sentido totalizante da dialética histórica – presente de Hegel a Marx –, que encontra em Gilles Deleuze e Felix Guattari um aprofundamento dessa cisão. Ao afirmarem que a realidade do homem é dada através da machine désirant, ou seja, da “produção pela produção”, cujo conflito repulsivo é dado contra o corpo sem órgãos, Deleuze e Guattari projetam uma noção de devir – o desejar para além do próprio ser – centralizada na transcendência individual (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Edições 34, 2010.). Nesse sentido, aprofundam essa visão ao afirmarem que o mundo se torna esquizofrênico, assumindo uma posição de diluição da relação entre significante e significado, do espaço e do tempo, em uma sociedade cada vez menos dotada de causalidade, ou seja, rizomática, cuja perspectiva de fragmentação adquire característica de um corpo-sem-órgãos. Portanto, aqui reside a impossibilidade de se apreender a totalidade do capitalismo e da cultura, referenciando relações sociais existentes à máxima do poder e do desejo de seus corpos. Ambos os filósofos oferecem uma contribuição para a desontologização do ser político como consequência direta do Maio de 1968, seja por sua “intrusão do devir” ou pela ocorrência de um “acontecimento puro, livre de qualquer causalidade normal ou normativa” (Dosse, 2010DOSSE, François. Os engajamentos políticos de Gilles Deleuze. História: Questões & Debates, n. 53, p. 151-170, 2010., p. 155).

Além disso, é preciso considerar um segundo campo dentro desse debate, o qual contém as chamadas teorias pós-industriais. Primeiramente, nelas encontram-se argumentos para ruptura da centralidade do trabalho, assentada na passagem da racionalidade instrumental (trabalho) para a racionalidade comunicativa (interação) (Habermas, 1971HABERMAS, Jürgen. Toward a rational society: student protest, science and politics. Boston: Beacon, 1971.; 2001HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Editora 70, 2001.). Nesse sentido, as transformações sociais estariam operando uma substituição do trabalho – como força produtiva – pela técnica, e, por consequência, os movimentos estudantis deveriam abandonar a ideologização proveniente da sociedade industrial para assimilar uma postura participativa, o que resultaria na integração de suas demandas ao sistema social, “aprimorando a razão comunicativa” e permitindo uma “autorreflexão da ciência” (Habermas, 1971HABERMAS, Jürgen. Toward a rational society: student protest, science and politics. Boston: Beacon, 1971., p. 9). Em segundo lugar, destaca-se a passagem das reivindicações por demandas materiais para reivindicações por demandas pós-materiais e a emergência dos novos movimentos sociais (Touraine, 1971TOURAINE, Alain. A sociedade post-industrial. Lisboa: Moraes, 1971.). De acordo com a teoria da ação de Alain Touraine, as transformações sociais levariam em consideração as capacidades de inovação e de criação científica e tecnológica, colocando em disputa os bens simbólicos. Na visão do sociólogo francês, 1968 operaria essa passagem, conforme as lutas de classe dessem espaço a novos conflitos, exercidos não mais na esfera produtiva, mas sim na esfera do consumo, e protagonizados pelos novos movimentos sociais, em razão de sua busca por maior participação na distribuição desses bens. Verifica-se, portanto, que o diagnóstico partilhado pelas teorias pós-industriais postula que a sociedade industrial teria sofrido significativas transformações que resultariam na prerrogativa de um marco institucional normativo, consolidando os subsistemas sociais, as formas de programação e o controle sobre o trabalho em face da informação e da comunicação.

Os apontamentos anteriores identificam que as visões sociológicas sobre as consequências de 1968 enfatizam uma mudança paradigmática quanto aos mecanismos coercitivos e autoritários, quanto aos limites das ações coletivas e, em especial, quanto às mudanças no sentido institucional da Modernidade. Notadamente, colocou-se em questão uma possível falha nos aspectos revolucionários que nutriam especialmente muitas das considerações marxistas anteriores, conforme a narrativa heroica e hedonista dos anos 1960 se esvaziava, e se assumia, paulatinamente, tons de um discurso pós-moderno (Stephens, 1998STEPHENS, Julie. Anti-disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.). Ainda do ponto de vista teórico, há algumas especificidades que as teorias sociológicas adquiriram na elaboração de novas categorias sociológicas, as quais expõem cisões em torno da pertinência das classes sociais, do protagonismo da juventude e do tempo histórico e de suas expressões culturais.

O primeiro seccionamento está na relação classista desses protestos. Se, por um lado, as teorias de origem marxista postulam a pertinência econômica das classes sociais nos protestos de 1968, ainda que se lhes possa atribuir o caráter pequeno-burguês ou individualista, é notável que as classes médias emergiram como novos atores, provendo reivindicações culturais, identitárias e de acesso e distribuição de bens e privilégios, algo que poderia ser garantido ou não pelo Estado, dependendo das avaliações do mérito individual e das oportunidades de promoção dos sistemas educacionais (Chauvel, 2002CHAUVEL, Louis. Classes e gerações: a insuficiência das hipóteses da teoria do fim das classes sociais. Crítica Marxista, n. 15, p. 57-70, 2002.; Bourdieu, 2013BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Florianópolis: Ed. UFSC, 2013.). Mesmo assim, tal cisão classista não estaria apenas relacionada com os sistemas educacionais e seus atores, mas também com o mundo do trabalho. As greves ocorridas na França em 1968 e, no ano seguinte, na Itália, foram as maiores do período fordista e demonstraram que as centrais sindicais estavam passando por dificuldades na organização e na formação de quadros e para criar lutas sociais que realmente conseguissem lograr êxito em suas reivindicações. As mobilizações sociais, pelo menos na França e na Itália, aproximaram a velha (sindical) da nova esquerda (estudantes), junção que consolidou a construção do acontecimento histórico e de renovação da condição operária (Eley, 2009ELEY, Geoff. Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.).

O segundo seccionamento se apresenta na questão da juventude. Por um lado, destacam-se as análises norte-americanas que interpretaram as revoltas estudantis a partir da psicologia social, observando a presença de uma batalha entre gerações e definindo tais conflitos como uma revolta edipiana dos filhos contra seus pais (Boren, 2001BOREN, Mark. Student resistance: a history of the unruly subject. Londres: Routledge, 2001.). Essas abordagens afirmam o caráter a-histórico do conflito ao alargar seus limites temporais e por pouco questionarem o motivo de as manifestações terem ocorrido em 1968 e não outrora. A percepção da composição social da juventude como uma fração social ativa politicamente, e seu imaginário particular (Bourdieu; Mauger, 2001BOURDIEU, Pierre; MAUGER, Gerard. La jeunesse n’est qu’un mot. A propos d’un entretien avec Pierre Bourdieu. Agora Débats, v. 26, p. 137-142, 2001.; Bebiano, 2003BEBIANO, Rui. O poder da imaginação. Juventude, rebeldia e resistência nos anos 60. Lisboa: Bertrand, 2003.), fatores que postularam a ideia de um radicalismo juvenil, também alertaram para uma cisão em torno da coletividade dos sujeitos sociais, quanto às especificidades das questões etárias e do poder na composição dos discursos coletivos. Esse seccionamento indica a pertinência da pluralização dos atores sociais e não depende da noção unitária e homogeneizante das classes trabalhadoras como sujeitos históricos por excelência.

O terceiro seccionamento remete-se à questão dos tempos históricos e suas expressões culturais, fundamentada na periodização dos anos 1960 como o fim de um período marcado por transformações globais (Jameson, 1992JAMESON, Fredric. Periodizando os anos 60. In: HOLLANDA, Heloisa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.). Deve-se salientar o surgimento de uma relação tempo-espacial fragmentada, individualizada e acelerada – a pós-modernidade –, alterando as especificidades e as representações culturais. Uma de suas genealogias aponta para a noção de “morte da narrativa dos sixties”, ao considerar que o fracasso da radicalização dos sixties impulsionou um posterior desengajamento político (Stephens, 1998STEPHENS, Julie. Anti-disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.); ou ainda, para o surgimento da contracultura como uma expressão estética da desconstrução e da desconexão subjetivista (Marwick, 1998MARWICK, Arthur. The sixties: cultural revolution in Britain, France, Italy, and the United States (1958-1974). Oxford: Oxford University, 1998.). Do ponto de vista filosófico, essa cisão está diretamente relacionada com a teoria da história hegeliana e marxista, procurando compreender a história e as práticas culturais de modo mais fragmentário do que centralizado em uma “grande narrativa”. Esse último momento, por sua vez, aproxima-se da formulação de Herbert Marcuse acerca da “revolução cultural”, embora não seja embasado nas reivindicações dos movimentos sociais, do Terceiro Mundo ou dos novos “despossuídos” e suas reivindicações econômicas e políticas, mas sim no “desejo de libertação dos sentidos” (Marcuse, 2005MARCUSE, Herbert. The new left and the 1960s. Abingdon: Routledge, 2005., p. 18). Esse outro lado da apropriação de Marcuse quase sempre se remete à concepção de que o movimento estudantil reivindicava, de fato, o “poder para a imaginação” em torno de uma cultura própria que iria além das experiências de realidade reprimida. Além disso, as expressões culturais, em certa medida, teriam ganho alguma reverberação pelo surgimento de uma sociedade do espetáculo, contraposta pelas dimensões de sua crítica e da autogestão implementada no Maio francês, o que resultou em um empreendimento técnico contrarrevolucionário, as “democracias espetaculares difusas”, para as décadas seguintes (Debord, 1997DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.).

Deve-se atentar que as três cisões mencionadas estão de acordo com três das quatro dimensões dos protestos de 1968, às quais Alain Badiou (2012)BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2012. faz referência em seu balanço de 40 anos dos acontecimentos. Delas, a primeira considerava 68 como uma rebelião global das juventudes universitária e secundarista; a segunda tratava da maior greve de todos os tempos da França; a terceira articulava as mudanças de costumes e o caráter libertário e performático no discurso. Haveria ainda uma quarta dimensão, “que se manifestou ao longo do tempo, e não naquele instante”, a saber, “a convicção de que, a partir dos anos 1960, assistimos ao fim de uma velha concepção de política” e “a busca um tanto cega, durante toda a década de 1970-1980, de outra concepção da política” (Badiou, 2012BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 33). A chamada “velha concepção de política” pode-se aproximar daquilo que foi designado como “Prática da Teoria” (Almada, 2015aALMADA, Pablo. A árvore de maio: a resistência estudantil e sua atualidade (Brasil e Portugal). 2015. 399 f. Tese (Doutoramento em Democracia no Século XXI) – Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2015a.), pautada pelo esvanecimento de esperanças revolucionárias e pelo surgimento de dinâmicas culturais mais complexas e fragmentadas.

Essa formulação, em termos teóricos, pouco se relaciona com a chamada great marxisant fallacy, ou seja, uma visão de mundo dicotômica que articularia uma sociedade infeliz dominada pela burguesia em seu estado de crise, mas que poderia ser destruída caso houvesse uma mudança na linguagem, nos valores, na cultura e ideologia da sociedade burguesa (Marwick, 1998MARWICK, Arthur. The sixties: cultural revolution in Britain, France, Italy, and the United States (1958-1974). Oxford: Oxford University, 1998.). Os termos dessa dicotomia encontram paralelo na distinção entre modernidade e pós-modernidade. Assim, a face moderna se daria “por seu imaginário da Revolução”, e a outra, “pós-moderna, por seu imaginário do desejo e da comunicação, mas também por seu caráter imprevisível ou selvagem, modelo provável das violências sociais do futuro”, gestando um “individualismo narcisista”, que demarca o fim de manifestações de protesto cultural e o começo de uma lógica de hedonismo no funcionamento do capitalismo (Lipovetsky, 2000LIPOVETSKY, Gilles. La era del vacío: ensayos sobre el individualismo contemporáneo. Barcelona: Anágrama, 2000., p. 219).

No entanto, há uma oscilação e um reducionismo assegurado por essas visões, em que 1968 é dubiamente apresentado como “um episódio de modernização – ou pós-modernização – do capitalismo”, o qual “exclui a possibilidade de outros resultados e descarta de antemão o fato de que a expansão, que em efeito teve o sistema capitalista durante os anos de 1970-80 mesmo mediante crises, deveu-se à derrota do caminho político que representaram as lutas de fins da década de 1960” (Callinicos, 2011CALLINICOS, Alex. Contra el posmodernismo. Buenos Aires: RYR, 2011., p. 325). Essa concepção também não atentou para uma “tripla crise” no que diz respeito à hegemonia dos Estados Unidos no Vietnã, do autoritarismo do governo soviético exposto na reação contra a Primavera de Praga, e na derrota da renovação da condição da luta de classes pela crise econômica mundial de 1973 – iniciada pela ruptura com o lastro dólar-ouro, pelas deflações e recessões, pela crise do petróleo, pela estagnação da produção e a alta dos preços –, cujas políticas de controle desembocam no neoliberalismo (Harman, 1998HARMAN, Chris. The fire last time: 1968 and after. Londres: Bookmarks, 1998.).

A força dessa viragem político-ideológica apresenta-se nos próprios balanços de 1968 das décadas posteriores, os quais irão alterar as interpretações sobre o passado, bem como lançar luz acerca das interpretações do tempo presente. Nos anos 1970, o enfoque esteve presente na observação participante, através de estudos de relatos de viagens e com bibliografias pessoais, promovendo a contracultura como “um exótico e estranho outro”, valorizando o protesto da juventude enquanto categoria sociológica (Stephens, 1998STEPHENS, Julie. Anti-disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.. p. 16-17). Em consonância, muitos dos ex-maoístas avançaram na projeção da imagem de 1968 como “uma revolução espiritual ou cultural (...) ideologicamente muito distante da Revolução Cultural na China que outrora preenchia seus pensamentos” (Ross, 2008ROSS, Kristin. May 68 and its afterlives. Chicago: University of Chicago Press, 2008., p. 183). A construção do 68 na década de 1970 observou a cultura e a subjetividade como elementos de subversão, exotismo e individualismo, com a autoprodução dos novos sujeitos.

Nos anos 1980, novos trabalhos estabeleceram a compreensão da “quietude” e da “dissidência” que se passavam naquele momento, através de “antologias, ficções, representações fotográficas, exibições das lembranças dos sixties”, entre outros, marcando, por assim dizer, a “morte da narrativa dos sixties” (Stephens, 1998STEPHENS, Julie. Anti-disciplinary protest: sixties radicalism and postmodernism. Cambridge: Cambridge University Press, 1998., p. 17). Nesse sentido, 68 era definido pelo retorno do individual, triunfo das democracias de mercado e defesa dos direitos humanos e, por conseguinte, pela “ideia de descontinuidade e mudança histórica [que] foi abandonada, com a única exceção da descontinuidade que distingue este atual presente indefinido do individual do passado agora definitivamente arcaico”, o que “permitiu a possibilidade de descontinuidade e mudança histórica” (Ross, 2008ROSS, Kristin. May 68 and its afterlives. Chicago: University of Chicago Press, 2008., p. 183). Assim, “completamente desterritorializado, o Maio torna-se uma etapa do capitalismo que nega quaisquer fases históricas seguintes”, pois “ao dar à luz uma pós-modernidade suave e sem fraturas, a geração de 68 tinha, com efeito, se tornado a última geração” (Ross, 2008ROSS, Kristin. May 68 and its afterlives. Chicago: University of Chicago Press, 2008., p. 183). Em suma, por um lado, projetou-se uma visão de 1968 bastante incorporada às lógicas dominantes de poder e aos projetos do desenvolvimento de uma subjetividade capitalista. Por outro lado, há a evidência de que 1968 poderá passar por sucessivas interpretações e reinterpretações ao longo das décadas, algo que irá depender substancialmente da memória individual de antigos participantes, das perspectivas acadêmicas e suas crises ou soluções paradigmáticas e, ainda, por conta das relações entre as forças do campo político e seu domínio discursivo.

O balanço dessa segunda matriz interpretativa de 1968 acabou por conceber uma sociedade de política fluida, desterritorializada, resistente ao poder, fortalecida em uma relação particular e identitária, reinterpretando temas e relações sociais. Posteriormente, a noção de “novos movimentos sociais” passou a dominar parte da linguagem e do debate acadêmico, quando referidos os conflitos sociais, sendo que 1968 foi um momento crucial para esse entendimento da sociologia e da ciência política.

1968: violência e cultura política participativa

Se o balanço dessas duas décadas congrega elementos suficientes para a compreensão de muitos dos prognósticos analíticos da teoria social, foi na teoria produzida a partir da década de 1990 que surgiram novos desenvolvimentos. Parte disso diz respeito a um reforço vigoroso sobre os limites de 1968, às possibilidades de interpretação dos novos movimentos sociais e de novos efeitos percebidos pelas teorias que valorizaram a fragmentação social. Nesse momento, produziu-se a terceira acepção, a qual aponta para o sentido das inovações participativas, de uma nova cultura política e da incorporação dos movimentos dos anos 1960 pelo capitalismo das décadas seguintes, a partir do desarme da crítica política, social e artística dos estudantes, também refletida na teoria sociológica.

O fundamento político dessa viragem pode ser concebido a partir de 1989, por conta do colapso da União Soviética e do Partido Comunista da União Soviética, fato que colapsou os regimes socialistas do leste europeu, configurando-se como um “acontecimento ideológico de primeira magnitude” (Callinicos, 1992CALLINICOS, Alex. A vingança da História: o marxismo e as revoluções do leste europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992., p. 13). Os efeitos históricos mais proeminentes estiveram ao par de uma crise sem precedentes do marxismo e de seus intelectuais, os quais eram parte de um processo de renovação nos meios acadêmicos europeus e americanos desde 1968. Nota-se a diversidade de posicionamentos teóricos e políticos, como a aproximação dos intelectuais à socialdemocracia ou ao marxismo reformista, demarcando o progressivo afastamento do stalinismo enquanto vertente outrora dominante do marxismo. O debate intelectual do início dos anos 1990 opunha a derrocada do socialismo ao triunfo do liberalismo e das democracias liberais, embasado pela queda do Muro de Berlim e pela notoriedade das noções de “fim da história” e do liberalismo como última ideologia, como postulado por Francis Fukuyama. Esse argumento exprime a tese central do pós-modernismo, ou seja, “a de que as grandes narrativas da emancipação humana se esgotaram no mundo hiper-real do capitalismo do consumidor, onde as lutas para transformar a sociedade foram suplantadas pela simulação da experiência através dos meios de divulgação de massa” (Callinicos, 1992CALLINICOS, Alex. A vingança da História: o marxismo e as revoluções do leste europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992., p. 22).

A reavaliação dos sentidos das revoluções clássicas ganhava também uma tônica especial – não apenas em torno das consequências da Revolução Francesa e da redução da importância da Revolução Russa, mas também pelo ganho de importância da Revolução Americana. Assim, Hannah Arendt aparece como uma grande expoente desse debate, considerando, ao contrário da violência presente nos modelos clássicos de revolução, a “equidade de condições no novo mundo” (Halliday, 1999HALLIDAY, Fred. Revolution and world politics: the rise and fall of the Sixth Great Power. Londres: Macmillan Press, 1999., p. 181), materializada no símbolo e no sentido da Revolução Americana. A oposição entre o modelo francês e o modelo americano é um argumento que Arendt irá construir para embasar sua defesa da não violência revolucionária. Em seu entender, a Revolução Francesa teria um “desfecho na restauração, na tirania e na petrificação, pela tentativa frustrada de criar instituições que permitam a participação política das massas incultas”, enquanto que a Revolução Americana é tomada no sentido da “criação de um novo corpo político, a República, capaz de tornar as instituições estáveis” e incorrendo na “experiência de participação política direta” ao valorizar a liberdade em detrimento da necessidade (Valle, 2005VALLE, Maria R. A violência revolucionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse: raízes e polarizações. São Paulo: Editora Unesp, 2005., p. 127). O embasamento liberal de Arendt irá operar uma negação da violência revolucionária dos movimentos dos anos 1960, permitindo, a posteriori e mediante o contexto liberal dos anos 1990, uma leitura de caráter revisionista daqueles movimentos.

O conceito de desobediência civil elaborado por Arendt nos anos 1970 tornava-se fundamental para a compreensão dessa perspectiva, pois ele é visto portando as causas imediatas da “nova cultura de descontentamento que incluía a discriminação racial, o movimento de liberação feminino e a Guerra do Vietnã, bem como o crescimento da cultura do protesto estudantil” e cujo fundamento estava na “perda de autoridade governamental” que poderia causar “o fim dos governos existentes” (Swift, 2009SWIFT, Simon. Hannah Arendt. Londres: Routledge, 2009., p. 34). Por essa razão, tal perspectiva se edifica, conforme Arendt “justifica” a derrota americana no Vietnã, como um problema da “desintegração de poder nos EUA”, o que resultaria na oposição à guerra e em ações violentas dos movimentos de contestação e, desse modo, os opositores da guerra e revolucionários são vistos como criminosos, justamente por conduzirem uma ação violenta que ensejaria mais violência (Valle, 2005VALLE, Maria R. A violência revolucionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse: raízes e polarizações. São Paulo: Editora Unesp, 2005., p. 143-149). Em sua leitura sobre os movimentos dos anos 1960, Arendt opõe os conceitos de poder e violência, sendo o primeiro a essência de todo o poder pautado na legitimidade, e o segundo, instrumental, dependendo da “orientação e da justificação do fim para o qual é utilizada”. Dessa maneira, embora o movimento estudantil tivesse apresentado uma tendência à democracia participativa, ele estaria “defendendo ações violentas (...), não políticas”, justificando o uso da violência governamental contra tais movimentos (Valle, 2005VALLE, Maria R. A violência revolucionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse: raízes e polarizações. São Paulo: Editora Unesp, 2005., p. 157-158). Essa perspectiva identifica que a ação dos movimentos dos anos 1960, ao utilizar-se da violência, causaria deformações dos procedimentos da participação na esfera pública por “aqueles incapazes de utilizar o discurso político” (Cohen; Arato, 1992COHEN, Jean L.; ARATO, Andrew. Sociedad civil y teoría política. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1992., p. 187).

As teorias dos novos movimentos sociais que despontaram na década de 1990 no Brasil adotam esse referencial teórico arendtiano (Valle, 2005VALLE, Maria R. A violência revolucionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse: raízes e polarizações. São Paulo: Editora Unesp, 2005.), com categorias referentes às esferas pública e privada como “espaço de participação social para a construção da democracia”, onde o Estado passaria a ser um interlocutor privilegiado desses movimentos, sobretudo após a redemocratização (Gohn, 1997GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 1997., p. 287). As percepções sobre a cidadania, os direitos sociais, a participação (em especial de setores das classes populares) na esfera pública, entre outros, trouxeram consigo o ressurgimento da sociedade civil como esfera de disputa política e cultural em sua relação com o Estado. A aproximação dos contextos latino-americano e europeu tornou-se um fator de possibilidades comparativas nos estudos e investigações das Ciências Sociais e, em especial, da Ciência Política, sobretudo, pela criação de novas instâncias políticas de participação popular e na tomada de decisão, representação ou negociação de interesses (Cohen; Arato, 1992COHEN, Jean L.; ARATO, Andrew. Sociedad civil y teoría política. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1992.; Alvarez; Dagnino; Escobar, 2003ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. Cultura e política – movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.).

O ponto de inflexão localiza-se em uma filosofia política que combina a justiça procedimental e o individualismo igualitário, ao configurar o florescimento de uma democracia liberal, deliberativa e procedimental em uma esfera pública racional e comunicativa. Parte disso é proveniente das reivindicações dos movimentos estudantis americanos dos anos 1960, a partir da Declaração de Port Huron, centradas no aumento da participação estudantil nas universidades e nas tomadas de decisão (Cunningham, 2009CUNNINGHAM, Frank. Teorias da democracia: uma introdução crítica. Porto Alegre: Artmed, 2009.), em um momento em que as lutas por direito civil e igualdade ainda eram incipientes. Esse sentido participativo conduziria a um fundamento democrático das sociedades ocidentais assentado em “uma democracia mais pacífica, passando de um universo da paixão (...) a um mundo de discussão racional” (Rosanvallon, 1995ROSANVALLON, Pierre. La nouvelle question sociale: repenser l’État-Providence. Paris: Seuil, 1995., p. 62).

Se a discussão anterior aponta para uma valorização dos ocorridos em torno de um escopo político de participação reivindicada por estratos dos movimentos estudantis americanos, em detrimento de uma violência revolucionária presente nos movimentos estudantis europeus, há ainda outro debate fundamental em torno dos ocorridos na Europa. Conforme as questões referentes à imbricação entre cidadania e subjetividade, que se desenrolam nas análises da teoria social, a questão da emancipação social é colocada em evidência. Nesse sentido, outras teorias aproximam as transformações do capitalismo das décadas de 1980 e 1990 com as consequências do 1968 europeu.

O ponto de partida para essas questões pode ser interpretado pela crise da cidadania social, assim como foi apresentada no pós-guerra, identificada a partir da tensão entre subjetividade e cidadania (Santos, 1994SANTOS, Boaventura de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento, 1994.). Com o surgimento das democracias liberais, a cidadania social e a garantia de direitos civis, políticos e sociais passaram a funcionar como base jurídico-política de um sistema que tentaria equilibrar as relações entre Estado e Mercado. A pressão exercida pela sociedade para garantir os direitos sociais foi encabeçada, em um primeiro momento, pelas ações coletivas operárias, mas esse sucesso representou “integração política das classes trabalhadoras no Estado Capitalista e, portanto, o aprofundamento da regulação em detrimento da emancipação”, legitimando o poder do Estado (Santos, 1994SANTOS, Boaventura de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento, 1994., p. 211). Nessa acepção sociológica, o Estado Providência entrou em crise e passou a ser contestado, papel exercido não apenas pela classe operária, mas pelo movimento estudantil. Como “articulador da crise político-cultural do fordismo”, esse ator foi o responsável por três dimensões: opor ao “produtivismo e ao consumismo uma ideologia antiprodutivista e pós-materialista”; identificar as “múltiplas opressões do quotidiano”, na produção, na reprodução e na participação política; e, finalmente, colocar “o fim da hegemonia operária nas lutas pela emancipação social e legítima criação de novos sujeitos sociais de base transclassista” (Santos, 1994SANTOS, Boaventura de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto: Afrontamento, 1994., p. 215). Esse momento indicou um revés da cidadania liberal pela subjetividade, o que possibilitou tanto o desarme do movimento estudantil quanto sua contribuição para a cultura política dos novos movimentos sociais. O sentido do desarme se coaduna com uma oposição entre a subjetividade, proposta pelo movimento estudantil, e a aceitação dos ganhos de cidadania pelo movimento operário, ainda que haja uma fronteira não tão definida nesses termos, pois o movimento estudantil também cessou suas reinvindicações sem conquistas políticas expressivas, muito pelo contrário. Isso indicaria, além da incapacidade de conciliação entre ambos, a contribuição para uma cultura política de democracia participativa, a qual seria construída ao longo das próximas décadas e que se apresenta sobremaneira nos movimentos sociais contemporâneos.

Em outros desenvolvimentos similares, encontra-se uma interpretação acerca de duas críticas presentes em 1968, a crítica estética (artística) e a crítica social (Boltanski; Chiapello, 2008BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2008.). Na primeira, conduzida pelos estudantes, o capitalismo foi entendido como uma fonte de opressão à liberdade e à autonomia, por gerar desencantamento. A segunda, conduzida pelos trabalhadores e muito próxima aos setores da esquerda europeia, considera que o capitalismo é designado como uma fonte de misérias e desigualdades, oportunismo e egoísmo, resultando na destruição dos laços sociais da comunidade solidária. Embora juntas em 1968, tais críticas produzirão a experiência de destinos dissemelhantes.

A crítica social irá se esgotar na metade dos anos 1970, devido à “tentativa de melhorar as garantias dos trabalhadores e as fontes de motivação, sendo estas últimas reduzidas a questões de remuneração, cujo patronato cede com alguma facilidade”; ou seja, tratou-se de “obter de novo um nível aceitável de motivação para o trabalho, mas sem sair das soluções habitualmente utilizadas nem ceder às exigências de transformação do próprio trabalho” (Boltanski; Chiapello, 2008BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 211). Por outro lado, a crítica estética elaborada pelo movimento estudantil não se esgotou, mas sofreu um revés: foi incorporada pelas parcelas avançadas do patronato nas políticas das empresas nos anos 1990, logo que "a empresa viu-se reduzida à função de instituição opressiva (...), e o combate anti-burocrático pela autonomia no trabalho ganhou precedência em relação às preocupações com igualdade econômica" (Boltanski; Chiapello, 2008BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 210). A crítica estética/artística focalizou-se na produção da liberação dos costumes e no comportamento sexual, em busca de uma vida autêntica, assim como fora almejada pelos movimentos feminista, gay, antinuclear e ecologista, também possibilitando uma aproximação com as “novas forças dominantes da esquerda” (Boltanski; Chiapello, 2008BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 224). Portanto, a crítica artística assumiu tarefa de revalorizar o capitalismo, de dividir os assalariados e sindicatos, valendo-se da própria crise do sindicalismo e de sua crítica social.

Em suma, foi no desarme das críticas de 1968 que residiu parte da problemática dos anos 1990 e 2000, a qual embasa a novidade dos movimentos sociais em uma nova historicidade. Entretanto, uma possível interpretação para esse conjunto plural de considerações está inscrita na formulação de uma cultura política de oposição, que é menos sensível a uma negação “pacifista” da violência, justamente porque, enquanto coletividade, está contida em um processo de formação perante uma esfera pública razoavelmente fechada, necessitando, portanto, formular e legitimar suas práticas, suas ações e suas ideologias, em uma combinação classista e identitária.

Considerações finais

Em torno dos 50 anos de 1968, é possível indagar se as abordagens que resgatamos e discutimos ao longo deste artigo são caminhos válidos para o entendimento de uma problemática histórica e sociológica que ainda se encontra em aberto. Os enquadramentos de 1968 como rebelião, fragmentação ou crítica e cultura política não são unívocos, mas parecem oferecer elementos epistemologicamente plurais e pertinentes na confecção de um campo de estudos que, por mais que possa conter diversas análises e estudos já realizados, muitas vezes trabalha em torno de fricções, segmentações e oposições.

Procurando evitar, dessa maneira, a descaracterização da complexidade suscitada por 1968, as diferenças contextuais dos países e de seus respectivos movimentos podem ser realocadas em torno de uma análise comparativa de processos sociais fundantes ou resultantes das contestações sociais sessentaeoitistas. A demarcação da subjetividade, por sua vez, representa muito mais um conflito em torno da alteridade, do poder e dos sentidos da tecnicidade do que um individualismo exacerbado e despolitizado. Uma possível pacificação do sentido de 1968 se apresenta como algo incerto, dadas as diversas fragilidades políticas e democráticas do espaço público e as inseguranças de negociação e resolução de controvérsias geradas pelos mecanismos democráticos das esferas públicas, ou mesmo, pela constante crise do capitalismo, que implica a criação e recriação de atitudes imaginativas na composição da resistência de grupos sociais que se dispõem ao enfrentamento e à busca por reconhecimento.

É perceptível a existência de diversas linhas que se entrecruzam na tentativa de explicar um fenômeno sociológico cujas marcas no presente ainda são evidentes. Trata-se de perceber que 1968 foi, assim como outros momentos da história contemporânea, um momento fulcral para entender as genealogias das formulações da teoria sociológica contemporânea, suas aproximações e contraposições. Ademais, o limite dessas análises está diretamente relacionado com as linhas abissais que demarcam uma certa intocabilidade de 1968 enquanto acontecimento que participa das construções teóricas que a fundamentam.

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    Todas as traduções são de responsabilidade do autor deste artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2019
  • Aceito
    16 Abr 2020
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