Resumo
A pesquisa tem por objetivo estudar a formação de um regime neosoberano de poder na contemporaneidade influenciado pelas tecnologias digitais, as quais fortalecem novas configurações socioeconômicas em um processo geral de construção de relações virtuais de trabalho. Utilizando alguns aspectos do pensamento foucaultiano, busca analisar as atuais dinâmicas das relações de poder permeadas pela criação de novas subjetividades administradas por manobras necropolíticas de enfraquecimento psíquico, e, mesmo, eliminação física daqueles que não se encaixam na extração cotidiana de riquezas.◊ ◊ Agradeço aos revisores pelas sugestões e imprescindíveis correções.
Palavras-chave
neosoberania; capitalismo digital; vigilância; subjetivação; exclusão
Abstract
The theoretical research aims to study the formation of a contemporary neosovereign regime of power, influenced by digital technologies that strengthen new socioeconomic configurations in a general process of construction of virtual work relations. Using some aspects of Foucault’s thought, it seeks to analyze the production dynamics of current power relations permeated by the creation of new subjectivities managed by necropolitical schemes for psychic weakening, and even physical elimination of those who do not fit into the system’s daily extraction of wealth.
Keywords
neosovereignty; digital capitalism; surveillance; subjectivations; exclusion
Introdução
O trabalho busca traçar breves aspectos característicos das atuais relações de poder e suas formas de administração da “vida”1 1 Os limites do texto impedem a discussão do complexo conceito de “vida” ligado ao movimento da Lebensphilosphie caracterizado por interpretações inspiradas em Spinoza e Nietzsche, passando por Schopenhauer, Kierkegaard, Bergson e Deleuze, sem esquecer Simmel, Canguilhem e Foucault. e do corpo, sugerindo que vivemos em um momento de “neosoberania” nas relações sociopolíticas. Relações que são produzidas pelo aprimoramento da extração de riqueza via tecnologia informática no capitalismo financeiro, esboçando a possível sobreposição dos dispositivos de soberania, disciplina e controle no contexto das sociedades contemporâneas. Dispositivos, por sua vez que em seus processos de agenciamento, de gestão da existência visando a maximizá-la como força produtiva, também provocam o oposto, exclusão, sofrimento e eliminação de parte do contingente populacional, produzindo não apenas a morte em suas várias formas, mas novas subjetividades melancólicas e enfraquecidas.
Partimos, portanto, do pressuposto de que a nova configuração capitalista intensifica o sofrimento psíquico e físico, sendo as relações nas plataformas digitais e o amplo espectro das tecnologias informacionais, um dos elementos a contribuir para as condições atuais de existência. Utilizaremos algumas ferramentas conceituais elaboradas pelas pesquisas de Michel Foucault, além de outros autores, entendendo que, ao menos em parte dos seus escritos, a dimensão somática passa necessariamente pela preocupação em compreender os gerenciamentos da vida em seus desejos, regozijos e sofrimentos (Deleuze; Guattari, 201026 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.; Foucault, 201136 FOUCAULT, Michel. Régimes de pouvoir et régimes de verité. In: FOUCAULT, M. Philosophie - Anthologie. Paris: Folio Essais, 2011p. 381-648.; Bruno, 201313 BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: Vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013.; Burmester, 201514 BURMESTER, Ana Maria de O. A vida como obra de arte: o sujeito como autor? In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, A. (org.). Para uma vida não fascista. Estudos Foucautianos. São Paulo: Autêntica, 2015. p. 27-34.; Rolnik, 201879 ROLNIK, Sueli. Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 Editora, 2018.).
Crise e sofrimento
O corpo, em nossa sociedade, é um fato construído culturalmente, posto ser fruto da dimensão representacional radicada em crenças, valores, normas e regras concernidas aos comportamentos individuais e coletivos, diferenciados de grupo para grupo, variando no tempo e no espaço. De forma mais direta: o corpo, e tudo que a ele se relaciona, é um fato social ou um “fato social total”, elemento que não apenas articula as instâncias institucionais (Lévi-Strauss, 197457 LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU; EDUSP, 1974.)2 2 “O fato social total apresenta-se, pois, com um caráter tridimensional. Deve fazer coincidir a dimensão propriamente sociológica, com seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão histórica, ou diacrônica; e, finalmente, a dimensão fisiopsicológica. Ora, é só nos indivíduos que esta tríplice abordagem pode ser feita. [...] A noção de fato social total está em relação direta com a dupla preocupação, que para nós havia parecido única até agora, de ligar o social e o individual de um lado, o físico (ou o fisiológico) e o psíquico de outro.” (Lévi-Strauss, 1974, p. 14-15). , mas que também é “sociopsicobiológico, presente nas esferas organizacionais (Mauss, 197467 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva, forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU; EDUSP, 1974.), não havendo um “fora” ou uma dimensão externa desse mesmo corpo, o que equivale a dizer que todos os aparatos disciplinares e de controle que o compõem lhe são imanentes, arraigados ao contexto sociocultural, político, histórico e normativo no qual está inserido e coexistindo (Foucault, 199937 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.).
A concepção de corpo pode ser vista como diferindo daquela de organismo, entendido em nossas culturas como dimensão biológica3
3
É preciso, porém, ressaltar o surgimento de abordagens antropológicas que vão muito além dessa visão metodológica aqui apresentada e que, pode-se dizer, revolucionaram as ciências sociais contemporâneas. Trabalhos como os de Viveiros de Castro (2002, 2018), Latour (1996, 2009), Ingold (1990, 1994, 2003, 2004), Strathern (2014) e outros ressaltam a inexistência de dualidades como corpo/organismo, corpo/mente, humano/animal, cultura/sociedade, além de outras, em pensamentos nativos e mesmo em pensadores e filósofos da cultura ocidental como Baruch Espinoza e Gilles Deleuze.
. Por esse motivo, o sofrimento e a dor, em suas diversas dimensões, apresentam “sentidos” e “significados” variáveis de indivíduo para indivíduo, de sociedade para sociedade, de grupo para grupo, de época para época, sendo que o sofrimento psíquico ou psicossomático pode ter causas diversas, modulando-se, em sua percepção e intensidade, de acordo com o contexto econômico e sociocultural, do qual o agente social faz parte (Duarte, 199929 DUARTE, Luiz F. Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.; Das, 200622 DAS, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2006.; Zarias; Le Breton, 201994 ZARIAS, Alexandre; LE BRETON, David. Corpos, emoções e risco: vias de compreensão dos modos de ação individual e coletivo. Sociologias, v. 21, n. 52, p. 20-32, 2019. https://doi.org/10.1590/15174522-97680
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).
Com o evento da chamada quarta revolução tecnológica ou digital, parte significativa da humanidade passou a se relacionar e depender, em diversos aspectos, das tecnologias informáticas (Lévy, 199358 LÉVY, Pierre. Tecnologias da Inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Ed. 34, 1993.), que se apresentaram como soluções indiscutíveis para questões seculares, mas também produziram novas formas de dominação e sofrimentos psicossomáticos (Kushlev; Heintzelman, 201853 KUSHLEV, Konstantin; HEINTZELMAN, Samantha. Put the phone down: testing a complement-interfere model of computer-mediated communication context of face-to-face interactions. Social Psychological and Personality Science, v. 9, n. 6, p. 702-710, 2018. https://doi.org/10.1177/1948550617722199
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; Darnai et al., 201921 DARNAI, Gergeli, et al. Internet addiction and functional brain networks: task-related fMRI study. Scientific Reports, v. 9, n. 1, 15777, 2019. https://doi.org/10.1038/s41598-019-52296-1
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; Zhang et al., 202095 ZHANG, Gohua; YANG, Xue; TU, Xialian; DING, Nani; LAU, Joseph T. F. Prospective relationships between mobile phone dependence and mental health status among Chinese undergraduate students with college adjustment as a mediator. Journal of Affective Disorders, v. 260, 498 - 505. 2020. https://doi.org/10.1016/j.jad.2019.09.047
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). Sofrimentos, não raro, associados às frustrações cotidianas nas relações sociais de trabalho referidas ao desemprego estrutural e à crescente ausência de direitos, exploração material e simbólica, ausência de perspectiva profissional e de futuro para os mais jovens, e mesmo idosos, além da solidão a permear relações sociais em grande parte agora voltadas para plataformas digitais. Sintomas associados, também, às transformações institucionais e crises de valores e práticas propensas a encolher a condição de ser vivente (Castells, 199617 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Vol. I.; Bourdieu, 200111 BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001., 200810 BOURDIEU, Pierre. O fim de um mundo. In: BOURDIEU, P. (org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2008. p.365-370., 201409 BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.; Wacquant, 200188 WACQUANT, Loïc. Os condenados da cidade. Rio de Janeiro: Revan, 2001., 200287 WACQUANT, Loïc. Corpo e alma. Notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.; Antunes, 200904 ANTUNES, Ricardo. O trabalho, sua nova morfologia e a era da precarização estrutural. Revista Theomai, n. 19, p. 47-57, 2009.; Deleuze; Guattari, 201026 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.; Han, 201743 HAN, Byung Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.). Sofrimentos que a medicina ocidental, ou biomedicina, não consegue, por vezes, diagnosticar claramente e tratar, por não apresentar em seus métodos e abordagens, elementos que permitam a percepção - por parte do profissional - dos aspectos simbólicos e psicossociais originários do cotidiano, que levam a depressões e angústias referidas ao que especialistas vêm indicando como sendo um estado de crescente desarmonia social4
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Apesar de tudo, propostas e práticas de amenizar, ou mesmo subverter, resistir e superar essa dominação e descarte de subjetividades no capitalismo atual, têm sido investigadas em pesquisas surgidas nos últimos tempos. Trabalhos que descrevem a invenção de novas representações contracapitalísticas, a partir da busca de práticas de manifestações digitais múltiplas, também novas formas de interações corporais distintas dos modelos imagéticos dominantes produzindo novas subjetividades em indivíduos e grupos. Todo esse movimento, pode-se dizer, está pautado em criações micropolíticas ou formações de contrapoderes institucionais, como, por exemplo, as diversas maneiras de lidar com as tecnologias informáticas ao redor do planeta feitas por distintos grupos sociais (Lévy, 1993; Mattos; Luz, 2009; Mattos, 2012; Pelbart, 2011; Miller; Horst, 2012; Rolnik, 2018; Malvezzi, 2019; Hui, 2021; Beiguelman, 2021).
(Duarte, 199929 DUARTE, Luiz F. Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.; Durkheim, 200332 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2003., 201131 DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2011., 201330 DURKHEIM, Émile. Formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2013.; Mauss; Hubert, 201368 MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2013.; Henriques, 202145 HENRIQUES, Dolores. Suicídio e ideação suicida na pediatria. Houve aumento dos casos durante a pandemia? Pebmed, 4 abr. 2021. Disponível em: https://pebmed.com.br/suicidio-e-ideacao-suicida-na-pediatria-houve-aumento-dos-casos-durante-a-pandemia/
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; Santos Jr.; Vieira, 202181 SANTOS JR. Clodoaldo; VIEIRA, Ana Lúcia. A influência das redes sociais nos casos de suicídios entre jovens e adolescentes brasileiros e seu aumento durante a pandemia. OAB GOIÁS, 2021. https://www.oabgo.org.br/oab/publicacoes/opiniao/a-influencia-das-redes-sociais-nos-casos-de-suicidio-entre-jovens-e-adolescentes-brasileiros-e-o-seu-aumento-durante-a-pandemia/
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),
Sofrimento esse possivelmente relacionado também aos sentimentos de descartabilidade produzidos pela ausência de reconhecimento, solidariedade e reciprocidade, constitutiva daquilo que alguns autores compreendem como uma perda da segurança ontológica ou falta de sentido para a vida, e que está relacionada às transformações do mundo do trabalho e das representações no capitalismo financeiro (Antunes, 200904 ANTUNES, Ricardo. O trabalho, sua nova morfologia e a era da precarização estrutural. Revista Theomai, n. 19, p. 47-57, 2009.; Boltanski; Chiapello, 202008 BOLTANSKI, Luc.; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2020.; Caillé; Vandenberghe, 202115 CAILLÉ, Alain.; VANDENBERGHE, Frédéric. Por uma nova Sociologia Clássica. Re-unindo teoria social, filosofia moral e os studies. Petrópolis: Vozes, 2021.). Além disso, a fixação de modelos inalcançáveis de sucesso econômico e estético em plataformas de compartilhamento de conteúdo audiovisual, associadas a representações inatingíveis de felicidade, pode intensificar autopercepções de fracasso, exclusão e vazio nos usuários/consumidores dessa nova formação subjetiva atravessada por agenciamentos imagéticos. A gestão da morte e das condições mortíferas se realiza, assim, em vida, por intermédio da elaboração de subjetividades enfraquecidas, despotencializadas, deprimidas e autodestrutivas. A tecnologia tanatopolítica produz o gerenciamento dos corpos e mentes por intermédio da fragmentação mortuária imbricada no devir cotidiano, morte destilada em vida via tristeza crônica diária, falta de esperança e adoecimento mental, incentivado pelos processos interativos digitais, mas por condições de subsistência envoltas no constante perigo e temor de ser eliminado a qualquer momento, seja pelo terror, por forças criminosas ou estatais, sendo a existência e a própria circulação cotidiana marcadas pelo risco de morte. Um morrer a conta-gotas que contribui para a reprodução das estruturas de dominação associadas ao medo e a melancolia, afetos reativos e desmobilizantes (Bruno, 201313 BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: Vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013.; Mbembe, 201869 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.; Franco, 201941 FRANCO, Fábio Luís. Necropolítica, necrogovernamentalidade e melancolia. Aller Editora, 15 out. 2019.Disponível em: https://www.allereditora.com.br/artigo-necropolitica-necrogovernamentalidade-e-melancolia/
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; Safatle et al., 202180 SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson; DUNKER, Christian. (org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2021.; Beiguelman, 202106 BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem. Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021.).
Talvez não seja por acaso que o aumento do número de suicídios entre jovens e idosos, ao redor do planeta (Brum, 201812 BRUM, Eliane. O suicídio dos que não viram adultos nesse mundo corroído. El País, 19 jun. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/opinion/1529328111_109277.html
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; Waiselfisz, 201489 WAISELFISZ, Jacobo L. Os jovens do Brasil. Mapa da Violência 2014. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf
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; DATASUS, 201423 DATASUS. Saúde Pública em Alerta: No Brasil, mortes por depressão crescem mais de 700% em 16 anos mostram dados do DATASUS. DATASUS, 20 ago. 2021. http://datasus.saude.gov.br/noticias/atualizacoes/512-saude-publica-em-alerta-no-brasil-mortes-por-depressao-crescem-mais-de-700-em-16-anos-mostram-dados-do-datasus
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; Ministério da Saúde, 201772 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Suicídio: Ministério da Saúde divulga dados inédito sobre tentativas e mortes. Portal do Ministério da Saúde, 21 set. 2017. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/webradio/audios/29698-suicidio-ministerio-da-saude-divulga-dados-ineditos-sobre-tentativas-e-mortes
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), coincida justamente com a expansão das tecnologias digitais. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde (2017)72 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Suicídio: Ministério da Saúde divulga dados inédito sobre tentativas e mortes. Portal do Ministério da Saúde, 21 set. 2017. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/webradio/audios/29698-suicidio-ministerio-da-saude-divulga-dados-ineditos-sobre-tentativas-e-mortes
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, os suicídios aumentaram entre jovens na seguinte proporção: do período de 2000-2015 houve aumento, na faixa etária de 10 a 14 anos, de 65%; de 15 a 19 anos, de: 45%; de: 20 a 29 anos, de: 23%. No mundo, o suicídio já é a segunda causa de morte entre adolescentes, e a terceira entre a população em geral, conforme dados da Organização Mundial da Saúde WHOSIS (apud Waiselfisz, 201489 WAISELFISZ, Jacobo L. Os jovens do Brasil. Mapa da Violência 2014. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf
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). De acordo com os dados do Datasus, as mortes por depressão no Brasil, o período de 1996 a 2012 aumentaram 705% somando todas as faixas etárias, com destaque para adolescentes e para idosos acima de 70 anos. (DATASUS, 201423 DATASUS. Saúde Pública em Alerta: No Brasil, mortes por depressão crescem mais de 700% em 16 anos mostram dados do DATASUS. DATASUS, 20 ago. 2021. http://datasus.saude.gov.br/noticias/atualizacoes/512-saude-publica-em-alerta-no-brasil-mortes-por-depressao-crescem-mais-de-700-em-16-anos-mostram-dados-do-datasus
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; Ministério da Saúde 201772 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Suicídio: Ministério da Saúde divulga dados inédito sobre tentativas e mortes. Portal do Ministério da Saúde, 21 set. 2017. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/webradio/audios/29698-suicidio-ministerio-da-saude-divulga-dados-ineditos-sobre-tentativas-e-mortes
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). Podem-se somar a esse desfecho, as crises depressivas, distúrbios psíquicos e psicológicos que levam jovens, adultos e idosos não apenas ao adoecimento mental, mas também ao suicídio – condições agravadas ainda pelos efeitos da pandemia de Covid19 (Hartmann, 202044 HARTMANN, Paula B. Pandemia por Covid-19 e o Risco de Suicídio. Pebmed, 9 jun. 2020. Disponível em: https://pebmed.com.br/covid-19-e-o-risco-de-suicidio/
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; Santos Jr.; Vieira, 2021; Hill et al., 202146 HILL, Ryan; RUFINO, Katrina; KURIAN, Sherin; SAXENA, Johanna; SAXENA, Kirti; WILLIAMS, Laure. Suicide ideation and attempts in a pediatric emergency department before and during COVID-19. Pediatrics, v. 147, n. (3): e2020029280, 2021. https://doi.org/10.1542/peds.2020-029280
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). A análise de taxas de suicídios dos últimos vinte anos parece indicar sensível retorno à “anomia”5
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Destacamos três aspectos desse conceito que parece surgir primeiro nos escritos de Guyau (1884/2019), significando a capacidade criativa humana proporcionada pelo ocaso dos valores tradicionais e anti-vitais passando pela consagração em Durkheim (1897/ 2011), como sendo a perda da coesão social, ausência de regras e normas morais e enfraquecimento da consciência coletiva; e, por fim, surgindo no trabalho de Robert Merton (1938/ 1993), como formas paralelas (organizações criminosas) de poder opostas àquelas legais e oficiais, fato relacionado à ausência de oportunidades de ascensão social ou mesmo de possibilidades de sobrevivência em um sistema social complexo contemporâneo. Fora isso, Merton relaciona o conceito aos comportamentos evasivos – toxicodependentes – e políticos que visam a destruição do status quo – terrorismo, saques e invasões, etc.
(Hoffman; Bearman, 201547 HOFFMAN, Mark; BEARMAN, Peter. “Bringing anomie back in exceptional events and excess suicide.” Sociological Science, v. 2, p. 186-210, 2015. https://doi.org/10.15195/v2.a10
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).
Caixa de ferramentas Foucault
Diante do exposto, e, utilizando as ferramentas que parte da obra foucaultiana apresenta, buscaremos compreender algumas dimensões desse problema. É provável que os conceitos elaborados pelo autor aqui apareçam muito esquemáticos, talvez devido à carga sociológica que a eles será associada, a qual Foucault certamente recusaria. Não temos, portanto, preocupação em manter-nos exatamente fiéis a uma maneira de ler o autor, o que pode levar especialistas a repudiarem o uso que fazemos de alguns breves aspectos de sua obra. Pensamos que Foucault, (assim como Nietzsche), é um pensador para quem a “infidelidade”, ou instrumentalização de seu trabalho, é a melhor maneira de lhe render homenagens6 6 Conforme escreve o próprio Foucault (1993, p. 14) a respeito do seu método genealógico retirado das leituras de Nietzsche: “atrás das coisas há ‘algo inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência[...]” ou ainda: “o único sinal de reconhecimento que se pode ter em relação a um pensamento [...] é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.” (1993, p. 143). , posto que nem ele mesmo parecia fiel à sua obra (Machado, 201759 MACHADO, Roberto. Impressões de Michel Foucault. São Paulo: N-1 Edições, 2017.).
Nessa perspectiva, Antonio Negri, por exemplo, a partir de leitura peculiar, harmoniza o autor a Marx, interpretando trabalho como “fonte viva” de valor, possibilidade universal de existência do capital, e ressaltando a exploração da vida humana como a fonte fundamental do acúmulo de riqueza a partir do crescente esforço maximizante da exploração. Esforço traduzido, dentre outros aspectos, no crescente avanço tecnológico (Marx, 201163 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.; Negri, 201675 NEGRI, Antonio. Como e quando li Foucault. São Paulo: N-1 Edições, 2016.). Nessa abordagem, os conceitos de biopolítica e biopoder surgem como instrumentos auxiliares para a compreensão da realidade atual. Na leitura que realiza, a exploração do trabalho assume novas dimensões na era digital, deixando as circunscrições das fábricas7
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Boltanski e Chiapello (2020) destacam a “nova subjetividade” surgida no período atual, que prima pela autonomia relativa do trabalho, alta competitividade, ausência de direitos e garantias materiais, provocando danos psicológicos a grande parte da população que ainda consegue exercer atividades laborais (também Dowbor, 2018).
para atravessar todas as instâncias da existência - o que leva os inúmeros aspectos sociais e individuais a se subsumirem ao capital financeiro em uma nova economia política da vida. Negri (201675 NEGRI, Antonio. Como e quando li Foucault. São Paulo: N-1 Edições, 2016., p. 93, grifo nosso) escreve: “eis como surge o biopolítico: como vida posta a trabalhar e, portanto como política ativada para organizar as condições e o controle da exploração social na dimensão inteira da vida”.8
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A perspectiva de combinar a disciplina como inerente à exploração do trabalho, e, portanto, à vida, também é sugerida por Rabinow e Dreyfus (1995, p. 149, Grifos nossos): “o principal objetivo do poder disciplinar era produzir um ser humano que pudesse ser tratado como um ‘corpo dócil’. Este corpo dócil também deveria ser um corpo produtivo [...] o objetivo geral era ‘um aumento paralelo de utilidade e docilidade’ dos indivíduos e populações. As técnicas para os corpos disciplinados eram aplicadas, sobretudo, aos trabalhadores e ao subproletariado [...] o controle disciplinar e a criação dos corpos estão incontestavelmente associados ao surgimento do capitalismo”.
A interpretação, de forma esquemática, descreve “biopoder” e “biopolítica” como sendo, em determinados aspectos, diferentes no que concerne às suas práticas e potencialidades: biopoder, em seus desdobramentos, seria portador da nova figura da soberania, imanente à atual nova fase da exploração capitalista; biopolítica, por sua vez, representaria o terreno no qual a força de trabalho, ao se exercer enquanto elemento produtivo, também poderia (in)surgir como instância de transformação e “resistência”. Ou seja, a biopolítica, de forma paradoxal, carrega a possibilidade da transformação de realidades e subjetividades, ou a “biopotência”9
9
É preciso destacar que, em Foucault, como se sabe, onde há poder, há contrapoder, resistência, criação de novas formas de existência. Nesse aspecto, é preciso destacar a obra de Daniel Miller que, por anos, investiga ao redor do mundo as diversas, inventivas e distintas maneiras de sociedades e culturas se relacionarem e gerenciarem a internet, as redes sociais e o mundo digital, construindo linhas de fugas dessa dominação digital. Vasto material produzido pelo antropólogo e sua equipe encontra-se no link https://www.ucl.ac.uk/why-we-post.
(Pelbart, 201576 PELBART, Peter P. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo. Saúde e Sociedade, v. 24, supl. 1, p. 19-26, 2015. https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S01002
https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S0...
). Conjugados dessa forma, os conceitos descreveriam tanto a exploração e o agenciamento da vida pelo capital, sua organização enquanto produção, quanto a possibilidade de criação de linhas de fuga e novas possibilidades de existência (Negri, 201675 NEGRI, Antonio. Como e quando li Foucault. São Paulo: N-1 Edições, 2016..). Se a biopolítica, por meio de intervenções administrativas, na família, no trabalho, em hospitais, etc., proporciona ordenamento das condições de existência da população, aumentando sua expectativa de vida, organizando suas condições de moradia, combatendo doenças, epidemias e pandemias, por outro lado, também disciplina a vida por meio da extração de riqueza dos corpos e coletividades no capitalismo contemporâneo, via trabalho imaterial, indicando a dinâmica do biopoder transversal a todas as instâncias sociais.
Esse tipo de dubiedade também se expressa nos conceitos de sociedade de soberania, sociedades disciplinares, e, mesmo, de controle, posto que, na prática, os dispositivos podem ser simultâneos, não se sucedendo, porém convivendo lado-a-lado; ou seja, se os poderes fazem intensificar a vida, também podem destruí-la ou deixá-la definhar até a morte (Esposito, 201033 ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.; Castro, 201118 CASTRO, Edgardo. Lecturas foucaulteanas. Una historia conceptual de la biopolítica. La Plata: UNIPE Editorial Universitaria, 2011.; Ayub, 201405 AYUB, João Paulo. Introdução à analítica do poder de Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2014.). Foucault relaciona seus modelos ou diagramas, em alguns momentos, substituindo-os ou trocando-os, em complementaridade analítica. O dispositivo biopolítico, por exemplo, não deixa de ser atravessado pelo de soberania, e vice-versa, promovendo uma dinâmica entre elementos que se articulam. Em sintonia com a interpretação foucaultiana, Deleuze, (198825 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.; 1990)24 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1990. elabora o conceito de “sociedade de controle”, sugerindo que as formas de vigilância avançam, aprimorando o panóptico e a produção de subjetividades, via tecnologias digitais, para além dos muros institucionais, em um processo no qual dispositivos disciplinares e de soberania caminham lado a lado. Dependendo do dispositivo saber-poder, ocorre mesmo fusão entre os regimes, posto não haver sucessão histórica dos mesmos, mas simultaneidade, o que equivale a dizer que, em cada época, as diferentes formas de poder se relacionam entre si de maneira específica. (Agamben, 200203 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.; Castro, 201118 CASTRO, Edgardo. Lecturas foucaulteanas. Una historia conceptual de la biopolítica. La Plata: UNIPE Editorial Universitaria, 2011.; Ayub, 201405 AYUB, João Paulo. Introdução à analítica do poder de Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2014.; Wermuth, 201793 WERMUTH, Miguel A. D. O conceito de biopolítica em Michel Foucault: um canteiro arqueológico inacabado. São Paulo: Empório do Direito, 13mar. 2017. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-conceito-de-biopolitica-em-michel-foucault-notas-sobre-um-canteiro-arqueologico-inacabado
https://emporiododireito.com.br/leitura/...
; Pelbart, 201177 PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.1 2015; Mbembe, 201869 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.).
Ousando uma manobra metodológica, podemos aqui sobrepor Weber a Foucault (e Deleuze), considerando os três conceitos, sociedades de soberania, disciplinar e de controle, como tipos puros ou ideais, ou seja, construções modelares por parte do pesquisador. Tais construções servem para medir por aproximação momentos socioculturais ou períodos históricos, levando sempre em conta suas inexistências plenas ou puras nas realidades observadas, em que elas sempre se apresentariam, na prática, como combinações dos aspectos descritos pelos modelos. Em determinados momentos, um ou outro aspecto da mesma realidade descrita idealmente se apresenta de forma mais intensa ou não ao olhar do sociólogo (Weber, 199790 WEBER, Max. Economía y Sociedad. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.).
O conceito de sociedade disciplinar implica um processo histórico-sociológico de práticas micropolíticas10 10 “‘Micropolítica’ é o nome que Guattari deu, nos anos 60, àqueles âmbitos que, por serem considerados relativos à ‘vida privada’ no modo de subjetivação dominante, ficaram excluídos da ação reflexiva e militante nas políticas da esquerda tradicional: a sexualidade, a família, os afetos, o cuidado, o corpo, o íntimo.” (Preciado, 2018, p. 18). relacionadas ao controle das forças físicas corpóreas, sua potencialização e desenvolvimento, mensuração de suas intensidades, a administração de seus desejos e objetivos, visando a adestrar o comportamento e sua distribuição no espaço. Implica, dessa forma, a criação e a aplicação de um “conjunto de técnicas e estratégias” de gerenciamento das ações, realizadas primeiro no âmbito individual, depois na esfera coletiva (Foucault, 199937 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.). Formam-se pessoas que devem ser mais produtivas, eficientes e obedientes: propensas à expansão e ao fortalecimento capitalista, no qual o corpo e a vida se tornam elementos a terem sua força rentabilizada, regulada e extraída pelo trabalho.11 11 “A proliferação das tecnologias políticas [...] investir[á] sobre o corpo, saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência [...] se trata de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder como esse tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar [...].” (Foucault, 1999, p. 135. grifos nossos). Criam-se organizações que objetivam disciplinar as condutas “corrigindo-as”: prisões, conventos, oficinas, escolas, asilos, manicômios, e assim por diante – é preciso não desperdiçar essa força produtiva. A disciplina torna-se, então, fórmula geral de dominação, pautando as relações organizacionais e institucionais em uma “transversalidade” que perpassará prisões, usinas e fábricas, chegando aos orfanatos e manicômios (Foucault, 199738 FOUCAULT, Michel. Os anormais. In: FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. P. 59-68.). A partir dessa “invenção” ocidental, será preciso que os corpos não apenas gozem saúde e força, mas sofram para se adequarem à máquina produtiva, sendo ajustados, enquadrados nas ortopedias normativas exigidas institucionalmente. Corpos socioeconomicamente úteis em suas formas de relacionamento, os quais o poder disciplinador não apenas marcará carnes e feições com sofrimento e opressão, mas também com recompensas e gozos (Foucault, 199738 FOUCAULT, Michel. Os anormais. In: FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. P. 59-68.).
Contudo, no regime atual, no qual as formas de exploração do corpo e da vida atingiram a máxima potência histórica em acumulação de riquezas, parece não haver mais necessidade de articulação de tantos dispositivos disciplinares, não havendo espaço mesmo para as formas administrativas vigentes no capitalismo industrial taylorista, fordista ou toyotista. Com efeito, a era do capital financeiro implica nova economia, novas relações socioculturais e novas subjetividades (Castells, 199617 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Vol. I.). Essas mudanças atuais estão associadas a novos aspectos de gestão da morte se comparados aos modelos anteriores. Se até há pouco, os desempregados e excluídos do consumo, formavam ou um “exército de reserva”, que não apenas barateava o valor da força de trabalho à espera de sua oportunidade de ser reintegrada ao sistema, conforme o “desenvolvimento” da economia, ou um lumpemproletariado que servia como massa de manobra política (Marx, 201163 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.), no atual capitalismo financeiro, essa população perde sua utilidade para a produção e o consumo, não sendo integrada, nem reintegrada. Não há mais lugar para ela na estrutura social, o que demandaria a gestão de sua morte.
Por conseguinte, uma das características das sociedades atuais seria a neosoberania, o controle e a vigilância, por meio de tecnologias virtuais, ou a reincidência dos poderes estatais ou paralelos ao Estado, sobre “corpos” e “vidas” que não mais se adaptam ou submetem à dinâmica produtiva, podendo mesmo serem descartados de forma paralela aos preceitos legais. Em outras palavras: embora legalmente o Estado não possa eliminar indivíduos que a princípio seriam considerados perigosos ou inúteis, ele o faz por meio de subterfúgios tais como autos de resistência ou pela articulação oficiosa de componentes organizacionais paralelos (subestatais) à sua máquina administrativa, ou pelo simples fato de deixar morrer nos serviços de saúde ou deixar que se matem na (in)segurança pública.12
12
Há que se pensar, no caso brasileiro, o exemplo dos esquadrões da morte, das milícias e as manobras policiais visando a eliminar supostos opositores por autos de resistência (Feldkicher, 2015). Sabe-se que, ao menos no Rio de Janeiro, é costume, em operações policiais, agentes portarem armas não registradas ou ilegais eximindo-se de utilizar as oficiais, com o propósito de exterminarem opositores sem deixar provas. Para Franco (2019), o Brasil sob o governo Bolsonaro tornou-se o exemplo mais bem acabado das tendências de necrogoverno ou tanatopolítica sob a égide do neoliberalismo atual. Dinâmica que visa não apenas privatizar a res publica, mas exterminar corpos e subjetividades tidas como marginais e improdutivas, pela ação da violência direta armada ou pela via indireta do crescente abandono institucional nas áreas de saúde, educação e segurança.
(Misse, 201273 MISSE, Michel. Violência, crime e corrupção. In: SANTOS, J. V.T.; TEIXEIRA, A. N. (org.). Conflitos sociais e perspectivas da paz. Porto Alegre, Tomo Editorial, 2012. p. 25-42.; Feldkicher, 2015; Mbembe, 201869 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.; Franco, 201941 FRANCO, Fábio Luís. Necropolítica, necrogovernamentalidade e melancolia. Aller Editora, 15 out. 2019.Disponível em: https://www.allereditora.com.br/artigo-necropolitica-necrogovernamentalidade-e-melancolia/
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). Da nossa perspectiva, esse fato caracteriza um período no qual aspectos que constituíam os dispositivos de soberania são rearticulados em novos termos e intensidades, sugerindo que vivemos, ao menos em algumas circunstâncias, regimes neoautoritários de poder que articulam em seu auxílio elementos das tecnologias digitais.
Controle, transparência e exploração digital
Após a Segunda Grande Guerra, gradativamente surgiram novas tecnologias sociais com a função de ajustar e modular relações disciplinares e seus mecanismos de vigilância, que se aprimoram de acordo com a dinâmica capitalista. Dessa forma, às relações disciplinares, comuns às instituições e organizações até então, somaram-se vigilância e controle cotidiano expressos pelas crescentes instalações de câmeras de filmagem em vastos espaços sociais, não apenas internos, como escolas, casas, prédios, condomínios, etc., mas também externos: vias, rodovias, ruas, praças, e assim por diante. Esse tipo de controle, ao longo de décadas, se aprimora produzindo dispositivos eletrônicos, como smartphones, internet, transponders, drones, satélites, plataformas digitais, e implementando mudanças nas relações sociais em geral e suas novas subjetividades consonantes ao novo regime econômico e simbólico do capitalismo em mutação.
Nesse movimento, a rede digital torna-se o novo panóptico, concentrando crescente massa de informações relativas aos indivíduos e grupos, no que se convencionou chamar de big data. O gosto, as ações, as opções sexuais, as relações pessoais, a fisionomia, as fotos, a família, a localização constante, enfim, tudo se arquiva na instância virtual que se tornou elemento rizomático mundial. Informações que permitem às autoridades, via ciências dos dados, rastrear e mesmo prever comportamentos. Qualquer autoridade competente ou grande organização, pública ou privada, pode, a princípio, acessar informações particulares de qualquer um a qualquer momento. Se, em uma democracia saudável, os eleitores ou o povo devem constantemente fiscalizar políticos e suas ações, o oposto vem ocorrendo: governos e grandes corporações (Google, Facebook, Tik Tok, etc.) vigiam, por intermédio de algoritmos sempre aprimorados, o cotidiano, a intimidade e a vida de seus cidadãos-consumidores. Conforme escreveu Bobbio (1986, p. 46)07 BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986., ainda na década de 80 do século 20:
Nenhum déspota da Antiguidade, nenhum monarca absoluto da Idade Moderna, apesar de cercados por mil espiões, jamais conseguiu ter sobre seus súditos todas as informações que o mais democrático dos governos atuais pode obter com o uso dos cérebros eletrônicos.
Vigilância intermitente, diretamente associada ao capital financeiro digital, o qual apropriou-se da maioria dos aspectos da vida, e, assim, do desejo, extraindo dele e dos corpos o máximo de lucro possível (Deleuze 199224 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1990.; Pelbart, 201177 PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.; Dowbor, 201727 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.). Colonizando subjetividades, o capital explora todas as instâncias da vida, buscando delas extrair lucro.13 13 A denominada, por Max Weber (1971), jaula de ferro da burocracia, característica da modernidade, parece tornar-se agora virtual e mais eficaz em seu controle de cada elemento da vida cotidiana. Por outro lado, se no panóptico o mote era ver sem ser visto no interior de instituições, na sociedade de controle todos são vistos e monitorados, e também monitoram e vêem, a qualquer momento, sem necessidade de paredes – pois paredes perdem a função de esconder. A vida não apenas está nua em sua ausência de cidadania, como escreve Agamben, mas em sua instância sociocorporal, em suas subjetividades, manifestações, intenções e desejos (Deleuze, 1988, 1992, 1990; Machado, 1990; Agamben, 2002; Rolnik, 2018). Assim o faz, colocando-as para trabalhar sem que percebam, pois age sobre as instâncias do prazer, fazendo o consumidor das imagens e produtos das plataformas digitais e sites em geral tornar-se fornecedor dos mesmos tipos de dados colocados para seu consumo. Forma-se um feedback no qual o consumidor-usuário produz a mercadoria (seus dados e imagens), consumindo as mesmas mercadorias de outros fornecedores, e, comprando, (via dedicação temporal intermitente nas telas e “curtidas”), o funcionamento da máquina que nesse processo interfere em sua subjetividade e em suas práticas.14 14 Beiguelman (2021, p. 32) escreve sobre esse processo constituído por “aqueles que, no campo das imagens, são a um só tempo produtores e usuários do que consomem [...] retroalimentando [...] um espaço de vigilância neopanótica, resultante de um desejo quase compulsivo – que se poderia chamar de fetichista – de fazer com que virtualmente tudo seja acessível na forma de uma imagem”. Nesse aspecto, estamos diante de produsers, um neologismo inglês que ela retira de Axel Bruns, significando a junção de produtores e usuários. Há que se pensar também na atual categoria de pós-verdade que consiste, de forma muito esquemática, em notícias falsas propagadas nas redes sociais, invenções de acontecimentos ou distorções de fatos os quais articulam sentimentos, crenças e certezas de determinados grupos, formando “bolhas” virtuais de fanáticos que insistem em se apegar as suas ideologias negando mesmo a realidade em uma manifestação de radicalismo político e religioso.
Esse potencial cliente transparente das redes sociais é o novo “presidiário” do megapanóptico digital, segundo Morozov (2018)74 MOROZOV, Evgeny. Big Tech. Ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018., quem ressalta a tecnologia atual como manifestação de um novo modo de exercício de poder, cada vez menos democrático, posto que, além de controlar o cotidiano dos cidadãos por análises dos big data, dentre outras ações, manipula por intermédio de fake news, de forma eficiente, as democracias globais. Desse modo abre oportunidade também crescente para o surgimento e fortalecimento de regimes neofascistas, para nós associados a uma modulação do modelo de soberania.
A vigilância descentrada (rizomática) perene, enfraquece a esfera privada, mingua a solidariedade, estabelecendo-se sobre a suspeita, a fragilidade das senhas, e a criação de perfis falsos. A fragilização dos valores, das normas de honestidade, da sinceridade produz relações de sociabilidade e atividades hostis, desconfiadas e descrentes das posturas do outro (Caillé; et al., 201416 CAILLÉ, Alain; VANDENBERGHE, Frédéric; VÉRAN, Jean-François. (org.). O manifesto convivialista. Seguido de Comentários sobre a sociedade convivial. São Paulo: AnnaBlume, 2014.). Fora isso, o capitalismo articula novas formas de exploração do trabalho com a uberização e a perda de direitos sociais, extraindo até mesmo do sono seu lucro concentrador (Cunha, 202120 CUNHA, Fábio. A uberização da política e o poder digital. Rio de Janeiro: Clube dos Autores, 2021.; Abílio; et al., 202101 ABÍLIO, Ludmila C.; AMORIM, Henrique.; GROHMANN, Rafael. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processo e formas. Sociologias, v. 23, n. 57, p. 26-56, 2021.). Para Jonathan Crary (2016)19 CRARY, Jonathan. 24/7. Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016., o sono de oito horas atualmente é um empecilho para a exploração neoliberal que busca colonizar e extorquir valor dessas horas “improdutivas” dos corpos e organismos. O sono seria a última fronteira a ser ultrapassada pelos mecanismos de exploração. A difusão da internet tornou comum pessoas perderem noites inteiras de sono para checar mensagens ou entrar em sites variados ou mesmo trabalharem. Crary também aponta para as pesquisas do Departamento de Defesa dos Estados Unidos que buscam criar o soldado sem sono, capaz de atuar ininterruptamente por dias e noites em missões pelo planeta. Nesse movimento tecnológico tudo está sendo colonizado pelo paradigma da mercadoria desde o código genético de espécies vivas e mortas até a nossa necessidade de contato e afeto entre pessoas. Podemos dizer mesmo que o neoliberalismo deixou de ser uma teoria econômica apenas para tornar-se um modus vivendi ou um ethos (McKinnon, 202061 MCKINNON, Susan. Genética neoliberal. Uma crítica antropológica da psicologia evolucionista. São Paulo: Ubu Editora, 2020.).
Na transparência atual, o acesso às particularidades de cada um por intermédio das estruturas sistêmicas permite às autoridades identificar, a qualquer instante, aqueles que se mostram funcionais (consomem e vendem suas imagens, portanto, servem) e aqueles que podem ser excluídos, esquecidos, eliminados e executados, as vidas descartáveis que não apresentam utilidade para a extração do lucro em uma política que escolhe corpos matáveis, em geral aqueles dentre os mais pobres, afrodescendentes, mulheres, imigrantes e indígenas (Mbembe, 201869 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018.). Todos que além de sua condição miserável, não raro, são também marcados pela impossibilidade de contato com as tecnologias aqui destacadas, por já terem sido excluídos do acesso aos direitos básicos de cidadania como educação de qualidade e saúde, além de oportunidades em geral. Como dissemos, esses corpos e vidas apresentam-se como elementos liminares desencaixados das estruturas sociais, sem importância, direitos, valor, e, portanto, passíveis de serem eliminados ou serem mantidos em sobrevida.
Neosoberania e execução
Weber, quando ressalta o aspecto crescente da racionalização e do controle ou agenciamento da vida cotidiana no capitalismo moderno denomina esse movimento de Entzauberung der Welt, ou desencantamento do mundo, relacionado ao crescente desenvolvimento das ciências, tecnologias e técnica. Essas não apresentariam apenas o aspecto positivo e resolutivo intrínseco às suas práticas, porém diminuiriam o poder das explicações mágico-religiosas, sagradas e metafísicas, criando mecanismos de dominação e controle cotidiano da vida do trabalhador e da população em geral via aprimoramento burocrático, tornando a vida, por vezes, sem sentido ou significado (Weber, 197192 WEBER, Max. Burocracia. In: WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1971., 199691 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Perspectiva, 1996., 199790 WEBER, Max. Economía y Sociedad. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.).
Mbembe, em seus estudos sobre necropolítica, confere ênfase às relações macropolíticas, enfatizando o terrorismo, a nova exclusão social de povos inteiros, as guerras tecnológicas, destacando, portanto, o significado político da morte. Porém é necessário ressaltar que a necropolítica se faz sentir no cotidiano das sociedades atuais, nas quais correntes autoritárias de conduta e governo vêm se consolidando nas mais ínfimas relações, destituindo gradativamente o sentido e o significado da vida de atores e grupos. Ao menos em alguns aspectos desse novo modelo de soberania, destaca-se a capacidade das relações de poder e dos Estados “definir[em] quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é” (Mbembe, 201869 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 41. grifo nosso). Acrescentaríamos: quais vidas ainda servem para explorar e quais não servem, podendo ser deixadas para morrer como ocorreu na pandemia de Covid19 no Brasil.
Inspirando-se em parte na obra de Foucault, e em parte na de Agamben, dentre outros, o filósofo camaronês sugere que vivemos uma época na qual aumentam os elementos e ações políticas que representam aquilo que se convencionou chamar Estado de exceção (Schmitt, 199682 SCHMITT, Carl. Sobre el parlamentarismo. Madri: Tecnos, 1996.). Para Agamben (2002)03 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., o Estado de exceção seria uma instância jurídico-política paradoxal, que se situa entre democracia e absolutismo, debruçando-se sobre a vida dos cidadãos com o direito pleno de eliminá-la quando o governante achar necessário. O Estado de exceção possibilita ou permite a eliminação de adversários, e de todos aqueles que não se enquadram no seu sistema político-econômico. Sob nosso ponto de vista, esse Estado e sua macropolítica, não pode ser pensado fora das relações cotidianas, micropolíticas, vigiadas pela tecnologia digital.
Na Grécia antiga, destaca Agamben (2004)02 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004., havia separação entre, de um lado, a vida construída cultural, política e socialmente, que conferia estatuto de cidadão a seu possuidor (bíos), o que significava a assertiva ética, decisão; e, de outro lado, aquela vida totalmente despida dessas características, a vida nua, unicamente natural (zoé), similar à vida do animal de abate, sem estatuto definido, sem linguagem, sendo suas decisões assentadas na dor ou prazer apenas. Em consonância com essa antropologia filosófica, Agamben destaca a figura do Homo Sacer que, no antigo direito romano era aquele que, por ofender os deuses e de alguma forma colocar a coletividade em risco, era expulso, excluído do convívio social, perdendo todo e qualquer direito civil, sendo deixado à própria sorte, à vida nua. Por representar um óbice ou estorvo à coletividade, era um risco à vida da polis, ou à ordem da civitas, podendo assim ser morto por qualquer um a qualquer momento, posto que seu fim seria o de alguém insignificante, o que não fazia incorrer em homicídio aquele que porventura o eliminasse.
Parece, atualmente, que a política de governo da vida – e dos corpos em particular – descarta parte de contingente humano, individual ou coletivo, tanto de forma concreta, pela exclusão social e extermínio direto, assim como de maneira simbólica, produção de adoecimento psíquico, baixa autoestima, ausência de solidariedade e depressão (Duarte, 199929 DUARTE, Luiz F. Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.; Das, 200622 DAS, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2006.). Para tanto basta que essa mesma vida seja (des)classificada como estorvo para a administração baseada no avanço tecnológico e na extração de mais-valia o trabalho imaterial pelas novas dinâmicas algorítmicas. Era da necropolítica biopsicossocial, ou neosoberania de exceção, na qual o Estado não apenas se coloca como praticante de exceção, por meio de políticas neoliberais, mas também expande sua violência ultrapassando os limites da estatalidade, na medida em que o direito de matar dele se aliena, migrando para um conjunto heteróclito de grupos armados locais, milícias, formações paramilitares, empresas privadas de segurança, transformando assim a coerção e a violência em uma commodity (Franco, 201941 FRANCO, Fábio Luís. Necropolítica, necrogovernamentalidade e melancolia. Aller Editora, 15 out. 2019.Disponível em: https://www.allereditora.com.br/artigo-necropolitica-necrogovernamentalidade-e-melancolia/
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).
Considerações finais
Nossa hipótese é que vivemos um momento de intensificação de alguns aspectos do modelo de soberania (neosoberania) relacionado à revolução digital, a qual produz não apenas um novo tipo de exploração do trabalho imaterial, e, portanto, da vida mental, reformulando relações sociais de produção, mas também produz crescente exclusão social por intermédio do adoecimento psicofísico referido a essas relações.
Os agenciamentos coletivos de ordem virtual auxiliam o controle do cotidiano e das subjetividades, provocando, muitas vezes, melancolia, inação, dispersão, e, mesmo paralisia, por intermédio do uso de tecnologias que extraem constantemente vida de consumidores-usuários-trabalhadores, em uma neosoberania totalitária, não raro, eivada de micro-fascismos e, propensa a instaurar uma crise geral da democracia. Processo transversal que vai das subjetividades às instituições e vice-versa, no qual não apenas se estabelece a produção constante de sofrimento biopsicossocial uma necropoiética, mas também exclusão e extermínio daqueles corpos que não têm mais lugar ou utilidade nas estruturas sociais do capitalismo hodierno – tanatopolítica gestora de vidas descartáveis. Vidas voláteis que, no compasso do que escreve Lapoujade (2017, p. 104 -106)54 LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: N-1 Edições, 2017., constituem esse ser humano sem mundo, sem lugar, despossuído de direitos, por não servir, do ponto de vista dos governos, para nada, “perde[ndo] toda continuidade e se reduz[indo] a uma sucessão de instantes”. É tão pouco real esse ser, que nem é mais certo que tenha um corpo, tornando-se para as autoridades um ente sem tempo, espaço, pensamento ou linguagem. Epifania do fetichismo da mercadoria.
Essa vida pós-institucional, na qual se estabelece a ausência de solidariedade, produzida pela superficialidade e superfície lisa e escorregadia das interações virtuais, direciona-se frequentemente para a solidão crônica, intensificada pela exposição desencantada da intimidade possível, a revestir não apenas a mesma existência (por exemplo, na pan-pornografia transversal da web), mas também a morte, presente nos vídeos de suicídios, e crueldades de todo tipo, com seres de todas as espécies expostos em páginas gore e mesmo nas PGMs15 15 PGMs são “páginas de gente morta”, assim são denominadas no Facebook atualmente, e funcionam a partir das postagens dos detalhes mínimos de todos os tipos de tragédias, necrofilia, assassinatos, acidentes graves, suicídios gravados, estupros, torturas e crimes diversos, bizarrices, dissecações, morbidades, decapitações, esquartejamentos de pessoas vivas, corpos em putrefação, etc., postagens retiradas de câmeras de vigilância ou de smartphones daqueles que presenciam e gravam as tragédias ou seus resultados. Expandem-se assim as imagens do que era considerado, e, está deixando de ser, mais deletério e escondido na nossa cultura atual, fazendo transbordar dos muros institucionais e organizacionais o que antes era oculto. Essas páginas apresentam suas postagens de forma dissimulada entre os comentários dos frequentadores e são acessadas por intermédio de links que direcionam o usuário para os sites. Assim sendo, o algoritmo do Facebook não consegue rastrear e identificar o material e não o elimina do sistema. Essas manifestações públicas do que em nossa cultura vem sendo considerada a mais pura crueldade nos remetem à consolidação neoliberal de uma economia política da violência ligada à formação de uma rede de serviços, e, portanto, a um mercado voltado para produção da morte nas diversas esferas sociais. Aspectos que podem remeter, em outra intensidade, aos rituais de sofrimento presentes nos reality shows destacados por Silvia Viana (2013) e que expressam um espírito competitivo e deletério de uma sociedade que se compraz na dor e na eliminação justificando o sofrimento da maioria pelo suposto merecido sucesso de um indivíduo. do Facebook. Procedimentos que parecem esgarçar a percepção e o sentimento de coesão social, produzindo um estado de desintegração institucional e danos psíquicos como a perda do sentido da vida ocasionada pela transformação do outro e do mundo em coisa (Marx, 198364 MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.; Weber, 199790 WEBER, Max. Economía y Sociedad. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1997.; Durkheim, 201131 DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2011.).
Diante de tal cenário, cabe a resistência, e, por certo, a insurgência:
É preciso que os homens inventem aquilo contra o que eles podem se insurgir e, ao mesmo tempo, aquilo em que transformaram sua revolta. Ou para onde vão dirigir sua insurreição. Essa direção tendo de ser reinventada indefinidamente. Não vejo ponto final em uma história dessas. Quero dizer, não vejo o momento em que os homens não terão mais de se insurgir
(Foucault, 201835 FOUCAULT, Michel. O enigma da revolta. Entrevistas inéditas sobre a revolução iraniana. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 90. grifos nossos).
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Os limites do texto impedem a discussão do complexo conceito de “vida” ligado ao movimento da Lebensphilosphie caracterizado por interpretações inspiradas em Spinoza e Nietzsche, passando por Schopenhauer, Kierkegaard, Bergson e Deleuze, sem esquecer Simmel, Canguilhem e Foucault.
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“O fato social total apresenta-se, pois, com um caráter tridimensional. Deve fazer coincidir a dimensão propriamente sociológica, com seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão histórica, ou diacrônica; e, finalmente, a dimensão fisiopsicológica. Ora, é só nos indivíduos que esta tríplice abordagem pode ser feita. [...] A noção de fato social total está em relação direta com a dupla preocupação, que para nós havia parecido única até agora, de ligar o social e o individual de um lado, o físico (ou o fisiológico) e o psíquico de outro.” (Lévi-Strauss, 197457 LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU; EDUSP, 1974., p. 14-15).
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É preciso, porém, ressaltar o surgimento de abordagens antropológicas que vão muito além dessa visão metodológica aqui apresentada e que, pode-se dizer, revolucionaram as ciências sociais contemporâneas. Trabalhos como os de Viveiros de Castro (200286 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2002., 2018)85 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. Elementos para uma Antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu; N-1 Edições, 2018., Latour (199656 LATOUR, Bruno. On Interobjectivity. Mind, Culture and Activity, v. 3 n. 4, p. 228-245. 1996. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304... , 2009)55 LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 2009., Ingold (199052 INGOLD, Tim. An anthropologist looks at biology. Man: New Series, v. 25, n. 2, p. 208-229, 1990. https://doi.org/10.2307/2804561
https://doi.org/10.2307/2804561... , 199451 INGOLD, Tim. Humanity and animality. In: INGOLD, T. (ed.). Companion encyclopedia of anthropology. Londres: Routledge, 1994. p. 14-32., 200350 INGOLD, Tim. A evolução da sociedade. In: FABIAN, A. C. (org.). Evolução, sociedade, ciência e universo. Baurú: EDUSC, 2003., 2004)49 INGOLD, Tim. Beyond biology and culture. The meaning of evolution in a relational world. Social Anthropology, v. 12, n. 2, p. 209-221, 2004. https://doi.org/10.1017/S0964028204000291
https://doi.org/10.1017/S096402820400029... , Strathern (2014)83 STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico. São Paulo: Cosac Naify, 2014. e outros ressaltam a inexistência de dualidades como corpo/organismo, corpo/mente, humano/animal, cultura/sociedade, além de outras, em pensamentos nativos e mesmo em pensadores e filósofos da cultura ocidental como Baruch Espinoza e Gilles Deleuze. -
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Apesar de tudo, propostas e práticas de amenizar, ou mesmo subverter, resistir e superar essa dominação e descarte de subjetividades no capitalismo atual, têm sido investigadas em pesquisas surgidas nos últimos tempos. Trabalhos que descrevem a invenção de novas representações contracapitalísticas, a partir da busca de práticas de manifestações digitais múltiplas, também novas formas de interações corporais distintas dos modelos imagéticos dominantes produzindo novas subjetividades em indivíduos e grupos. Todo esse movimento, pode-se dizer, está pautado em criações micropolíticas ou formações de contrapoderes institucionais, como, por exemplo, as diversas maneiras de lidar com as tecnologias informáticas ao redor do planeta feitas por distintos grupos sociais (Lévy, 199358 LÉVY, Pierre. Tecnologias da Inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Ed. 34, 1993.; Mattos; Luz, 200966 MATTOS, Rafael da S.; LUZ, Madel T. Sobrevivendo ao estigma da gordura. Physis Revista de Saúde Coletiva, v. 19, n. 2, p. 489-507, 2009.; Mattos, 201265 MATTOS, Rafael da S. Sobrevivendo ao estigma da gordura. São Paulo: Vetor, 2012.; Pelbart, 201177 PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.; Miller; Horst, 201271 MILLER, Daniel; HORST, Heather (eds.). Digital Anthropology. Abingdon: Routledge Berg Publishers, 2012.; Rolnik, 201879 ROLNIK, Sueli. Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 Editora, 2018.; Malvezzi, 201962 MALVEZZI, Amarildo. Estética, liberdade e reflexividade: repensando Bourdieu. Sociologias, Porto Alegre, ano 21, n. 52, set-dez 2019, p. 192-219.; Hui, 202148 HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.; Beiguelman, 202106 BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem. Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021.).
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Destacamos três aspectos desse conceito que parece surgir primeiro nos escritos de Guyau (1884/2019)42 GUYAU, Jean-Marie. Esboço de uma moral sem obrigação nem sanção. São Paulo: Publicação independente, 2019., significando a capacidade criativa humana proporcionada pelo ocaso dos valores tradicionais e anti-vitais passando pela consagração em Durkheim (1897/ 2011), como sendo a perda da coesão social, ausência de regras e normas morais e enfraquecimento da consciência coletiva; e, por fim, surgindo no trabalho de Robert Merton (1938/ 1993)70 MERTON, Robert. Social structure and anomie. Nova York: Irvington Pub, 1993., como formas paralelas (organizações criminosas) de poder opostas àquelas legais e oficiais, fato relacionado à ausência de oportunidades de ascensão social ou mesmo de possibilidades de sobrevivência em um sistema social complexo contemporâneo. Fora isso, Merton relaciona o conceito aos comportamentos evasivos – toxicodependentes – e políticos que visam a destruição do status quo – terrorismo, saques e invasões, etc.
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Conforme escreve o próprio Foucault (1993, p. 14)39 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993. a respeito do seu método genealógico retirado das leituras de Nietzsche: “atrás das coisas há ‘algo inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência[...]” ou ainda: “o único sinal de reconhecimento que se pode ter em relação a um pensamento [...] é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.” (1993, p. 143).
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Boltanski e Chiapello (2020)08 BOLTANSKI, Luc.; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2020. destacam a “nova subjetividade” surgida no período atual, que prima pela autonomia relativa do trabalho, alta competitividade, ausência de direitos e garantias materiais, provocando danos psicológicos a grande parte da população que ainda consegue exercer atividades laborais (também Dowbor, 201827 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.).
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A perspectiva de combinar a disciplina como inerente à exploração do trabalho, e, portanto, à vida, também é sugerida por Rabinow e Dreyfus (1995, p. 149, Grifos nossos)28 DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.: “o principal objetivo do poder disciplinar era produzir um ser humano que pudesse ser tratado como um ‘corpo dócil’. Este corpo dócil também deveria ser um corpo produtivo [...] o objetivo geral era ‘um aumento paralelo de utilidade e docilidade’ dos indivíduos e populações. As técnicas para os corpos disciplinados eram aplicadas, sobretudo, aos trabalhadores e ao subproletariado [...] o controle disciplinar e a criação dos corpos estão incontestavelmente associados ao surgimento do capitalismo”.
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É preciso destacar que, em Foucault, como se sabe, onde há poder, há contrapoder, resistência, criação de novas formas de existência. Nesse aspecto, é preciso destacar a obra de Daniel Miller que, por anos, investiga ao redor do mundo as diversas, inventivas e distintas maneiras de sociedades e culturas se relacionarem e gerenciarem a internet, as redes sociais e o mundo digital, construindo linhas de fugas dessa dominação digital. Vasto material produzido pelo antropólogo e sua equipe encontra-se no link https://www.ucl.ac.uk/why-we-post.
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“‘Micropolítica’ é o nome que Guattari deu, nos anos 60, àqueles âmbitos que, por serem considerados relativos à ‘vida privada’ no modo de subjetivação dominante, ficaram excluídos da ação reflexiva e militante nas políticas da esquerda tradicional: a sexualidade, a família, os afetos, o cuidado, o corpo, o íntimo.” (Preciado, 201878 PRECIADO, Paul B. La izquierda bajo la piel. Um prólogo para Suely Rolnik. In: ROLNIK, S. Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 11-21., p. 18).
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“A proliferação das tecnologias políticas [...] investir[á] sobre o corpo, saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência [...] se trata de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder como esse tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar [...].” (Foucault, 199937 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999., p. 135. grifos nossos).
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Há que se pensar, no caso brasileiro, o exemplo dos esquadrões da morte, das milícias e as manobras policiais visando a eliminar supostos opositores por autos de resistência (Feldkicher, 201534 FELDKIRCHER, Gabriela F. Autos de resistência: o extermínio dos invisíveis. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. https://doi.org/10.17771/PUCRio.acad.25461
https://doi.org/10.17771/PUCRio.acad.254... ). Sabe-se que, ao menos no Rio de Janeiro, é costume, em operações policiais, agentes portarem armas não registradas ou ilegais eximindo-se de utilizar as oficiais, com o propósito de exterminarem opositores sem deixar provas. Para Franco (2019)41 FRANCO, Fábio Luís. Necropolítica, necrogovernamentalidade e melancolia. Aller Editora, 15 out. 2019.Disponível em: https://www.allereditora.com.br/artigo-necropolitica-necrogovernamentalidade-e-melancolia/
https://www.allereditora.com.br/artigo-n... , o Brasil sob o governo Bolsonaro tornou-se o exemplo mais bem acabado das tendências de necrogoverno ou tanatopolítica sob a égide do neoliberalismo atual. Dinâmica que visa não apenas privatizar a res publica, mas exterminar corpos e subjetividades tidas como marginais e improdutivas, pela ação da violência direta armada ou pela via indireta do crescente abandono institucional nas áreas de saúde, educação e segurança. -
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A denominada, por Max Weber (1971)92 WEBER, Max. Burocracia. In: WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1971., jaula de ferro da burocracia, característica da modernidade, parece tornar-se agora virtual e mais eficaz em seu controle de cada elemento da vida cotidiana. Por outro lado, se no panóptico o mote era ver sem ser visto no interior de instituições, na sociedade de controle todos são vistos e monitorados, e também monitoram e vêem, a qualquer momento, sem necessidade de paredes – pois paredes perdem a função de esconder. A vida não apenas está nua em sua ausência de cidadania, como escreve Agamben, mas em sua instância sociocorporal, em suas subjetividades, manifestações, intenções e desejos (Deleuze, 198825 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., 1992, 1990; Machado, 199060 MACHADO, Roberto. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990.; Agamben, 200203 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.; Rolnik, 201879 ROLNIK, Sueli. Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 Editora, 2018.).
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Beiguelman (2021, p. 32)06 BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem. Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021. escreve sobre esse processo constituído por “aqueles que, no campo das imagens, são a um só tempo produtores e usuários do que consomem [...] retroalimentando [...] um espaço de vigilância neopanótica, resultante de um desejo quase compulsivo – que se poderia chamar de fetichista – de fazer com que virtualmente tudo seja acessível na forma de uma imagem”. Nesse aspecto, estamos diante de produsers, um neologismo inglês que ela retira de Axel Bruns, significando a junção de produtores e usuários. Há que se pensar também na atual categoria de pós-verdade que consiste, de forma muito esquemática, em notícias falsas propagadas nas redes sociais, invenções de acontecimentos ou distorções de fatos os quais articulam sentimentos, crenças e certezas de determinados grupos, formando “bolhas” virtuais de fanáticos que insistem em se apegar as suas ideologias negando mesmo a realidade em uma manifestação de radicalismo político e religioso.
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PGMs são “páginas de gente morta”, assim são denominadas no Facebook atualmente, e funcionam a partir das postagens dos detalhes mínimos de todos os tipos de tragédias, necrofilia, assassinatos, acidentes graves, suicídios gravados, estupros, torturas e crimes diversos, bizarrices, dissecações, morbidades, decapitações, esquartejamentos de pessoas vivas, corpos em putrefação, etc., postagens retiradas de câmeras de vigilância ou de smartphones daqueles que presenciam e gravam as tragédias ou seus resultados. Expandem-se assim as imagens do que era considerado, e, está deixando de ser, mais deletério e escondido na nossa cultura atual, fazendo transbordar dos muros institucionais e organizacionais o que antes era oculto. Essas páginas apresentam suas postagens de forma dissimulada entre os comentários dos frequentadores e são acessadas por intermédio de links que direcionam o usuário para os sites. Assim sendo, o algoritmo do Facebook não consegue rastrear e identificar o material e não o elimina do sistema. Essas manifestações públicas do que em nossa cultura vem sendo considerada a mais pura crueldade nos remetem à consolidação neoliberal de uma economia política da violência ligada à formação de uma rede de serviços, e, portanto, a um mercado voltado para produção da morte nas diversas esferas sociais. Aspectos que podem remeter, em outra intensidade, aos rituais de sofrimento presentes nos reality shows destacados por Silvia Viana (2013)84 VIANA, Silvia. Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013. e que expressam um espírito competitivo e deletério de uma sociedade que se compraz na dor e na eliminação justificando o sofrimento da maioria pelo suposto merecido sucesso de um indivíduo.
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Agradeço aos revisores pelas sugestões e imprescindíveis correções.
Referências
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02AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção São Paulo: Boitempo, 2004.
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03AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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04ANTUNES, Ricardo. O trabalho, sua nova morfologia e a era da precarização estrutural. Revista Theomai, n. 19, p. 47-57, 2009.
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05AYUB, João Paulo. Introdução à analítica do poder de Michel Foucault São Paulo: Intermeios, 2014.
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06BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
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07BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
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08BOLTANSKI, Luc.; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo São Paulo: Martins Fontes, 2020.
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09BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
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10BOURDIEU, Pierre. O fim de um mundo. In: BOURDIEU, P. (org.). A miséria do mundo Petrópolis: Vozes, 2008. p.365-370.
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11BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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12BRUM, Eliane. O suicídio dos que não viram adultos nesse mundo corroído. El País, 19 jun. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/opinion/1529328111_109277.html
» https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/opinion/1529328111_109277.html -
13BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: Vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013.
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14BURMESTER, Ana Maria de O. A vida como obra de arte: o sujeito como autor? In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, A. (org.). Para uma vida não fascista Estudos Foucautianos. São Paulo: Autêntica, 2015. p. 27-34.
-
15CAILLÉ, Alain.; VANDENBERGHE, Frédéric. Por uma nova Sociologia Clássica Re-unindo teoria social, filosofia moral e os studies Petrópolis: Vozes, 2021.
-
16CAILLÉ, Alain; VANDENBERGHE, Frédéric; VÉRAN, Jean-François. (org.). O manifesto convivialista Seguido de Comentários sobre a sociedade convivial. São Paulo: AnnaBlume, 2014.
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17CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede A era da informação: economia, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Vol. I.
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18CASTRO, Edgardo. Lecturas foucaulteanas Una historia conceptual de la biopolítica. La Plata: UNIPE Editorial Universitaria, 2011.
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22DAS, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2006.
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23DATASUS. Saúde Pública em Alerta: No Brasil, mortes por depressão crescem mais de 700% em 16 anos mostram dados do DATASUS. DATASUS, 20 ago. 2021. http://datasus.saude.gov.br/noticias/atualizacoes/512-saude-publica-em-alerta-no-brasil-mortes-por-depressao-crescem-mais-de-700-em-16-anos-mostram-dados-do-datasus
» http://datasus.saude.gov.br/noticias/atualizacoes/512-saude-publica-em-alerta-no-brasil-mortes-por-depressao-crescem-mais-de-700-em-16-anos-mostram-dados-do-datasus -
24DELEUZE, Gilles. Conversações Rio de Janeiro: Editora 34, 1990.
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25DELEUZE, Gilles. Foucault São Paulo: Brasiliense, 1988.
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26DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo Capitalismo e esquizofrenia 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.
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27DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
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28DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault Uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
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29DUARTE, Luiz F. Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
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30DURKHEIM, Émile. Formas elementares da vida religiosa São Paulo: Martins Fontes, 2013.
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31DURKHEIM, Émile. O Suicídio São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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32DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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33ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.
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34FELDKIRCHER, Gabriela F. Autos de resistência: o extermínio dos invisíveis. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. https://doi.org/10.17771/PUCRio.acad.25461
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35FOUCAULT, Michel. O enigma da revolta Entrevistas inéditas sobre a revolução iraniana. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
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36FOUCAULT, Michel. Régimes de pouvoir et régimes de verité. In: FOUCAULT, M. Philosophie - Anthologie. Paris: Folio Essais, 2011p. 381-648.
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37FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
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38FOUCAULT, Michel. Os anormais. In: FOUCAULT, M. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. P. 59-68.
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39FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder Rio de Janeiro: Graal, 1993.
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40FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir Petrópolis: Vozes, 1987.
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41FRANCO, Fábio Luís. Necropolítica, necrogovernamentalidade e melancolia. Aller Editora, 15 out. 2019.Disponível em: https://www.allereditora.com.br/artigo-necropolitica-necrogovernamentalidade-e-melancolia/
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42GUYAU, Jean-Marie. Esboço de uma moral sem obrigação nem sanção São Paulo: Publicação independente, 2019.
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43HAN, Byung Chul. Sociedade da transparência Petrópolis: Vozes, 2017.
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47HOFFMAN, Mark; BEARMAN, Peter. “Bringing anomie back in exceptional events and excess suicide.” Sociological Science, v. 2, p. 186-210, 2015. https://doi.org/10.15195/v2.a10
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48HUI, Yuk. Tecnodiversidade São Paulo: Ubu Editora, 2020.
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49INGOLD, Tim. Beyond biology and culture. The meaning of evolution in a relational world. Social Anthropology, v. 12, n. 2, p. 209-221, 2004. https://doi.org/10.1017/S0964028204000291
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50INGOLD, Tim. A evolução da sociedade. In: FABIAN, A. C. (org.). Evolução, sociedade, ciência e universo Baurú: EDUSC, 2003.
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51INGOLD, Tim. Humanity and animality. In: INGOLD, T. (ed.). Companion encyclopedia of anthropology Londres: Routledge, 1994. p. 14-32.
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52INGOLD, Tim. An anthropologist looks at biology. Man: New Series, v. 25, n. 2, p. 208-229, 1990. https://doi.org/10.2307/2804561
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53KUSHLEV, Konstantin; HEINTZELMAN, Samantha. Put the phone down: testing a complement-interfere model of computer-mediated communication context of face-to-face interactions. Social Psychological and Personality Science, v. 9, n. 6, p. 702-710, 2018. https://doi.org/10.1177/1948550617722199
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54LAPOUJADE, David. As existências mínimas São Paulo: N-1 Edições, 2017.
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55LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 2009.
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56LATOUR, Bruno. On Interobjectivity. Mind, Culture and Activity, v. 3 n. 4, p. 228-245. 1996. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
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57LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia São Paulo: EPU; EDUSP, 1974.
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58LÉVY, Pierre. Tecnologias da Inteligência O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Ed. 34, 1993.
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59MACHADO, Roberto. Impressões de Michel Foucault São Paulo: N-1 Edições, 2017.
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60MACHADO, Roberto. Deleuze e a Filosofia Rio de Janeiro: Graal, 1990.
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61MCKINNON, Susan. Genética neoliberal Uma crítica antropológica da psicologia evolucionista. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
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62MALVEZZI, Amarildo. Estética, liberdade e reflexividade: repensando Bourdieu. Sociologias, Porto Alegre, ano 21, n. 52, set-dez 2019, p. 192-219.
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63MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte São Paulo: Boitempo, 2011.
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64MARX, Karl. O Capital São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Jul 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
-
Recebido
25 Fev 2021 -
Aceito
04 Fev 2022