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Durkheim e o vínculo aos grupos: uma teoria social inacabada

Durkheim and the bond to groups: an unfinished social theory

Resumo

Durkheim sustenta a tese da diversidade dos vínculos sociais, que constituem muitas fontes variadas da moral, ou, mais precisamente, muitas possibilidades diferenciadas para o indivíduo elevar-se à vida moral. O homem solidário de Durkheim é um indivíduo ao mesmo tempo autônomo e ligado a outros e à sociedade, um indivíduo consciente das regras morais que implicam a participação na vida social. Se ele as aceita, é pelo prazer que encontra na reciprocidade da associação e no sentimento de ser útil. Essa consciência permanece, todavia, frágil, ela corre até mesmo o risco de desaparecer em certas circunstâncias. Interessa-lhe, então, mantê-la: tal é a função do Estado. Durkheim conceituou, de certa forma, um modo particular de regulação social dos vínculos a partir de uma representação organicista da solidariedade. É preciso reconhecer a força dessa teoria, mesmo se o conhecimento das sociedades modernas nos conduz a ressaltar que podem existir outras configurações ou regimes de vínculos. A teoria social do vínculo, tal como podemos construir hoje, é ao mesmo tempo a herdeira do núcleo conceitual deixado pelo fundador da sociologia francesa e o resultado das aquisições da sociologia comparativa, que é fundada sobre uma abordagem não normativa das sociedades modernas e sensível à sua diversidade.1 1 A tradução do original em francês foi realizada por André Magnelli (FSB-RJ | SOCIOFILO-IESP-UERJ | GRECIN-IBMEC-RJ), com revisão de Lucas Page Pereira(PRINTEMPS-UVSQ-CNRS | ENS-Cachan).

Palavras-chave:
Laços sociais; Vínculo moral; Solidariedade; Teoria social.

Abstract

Durkheim supports the thesis of the diversity of social bonds, which constitute many varied sources of morality, or, more precisely, many different possibilities for the individual to rise to the moral life. Durkheim's supportive man is an individual at the same time autonomous and connected to others and to society, an individual conscious of the moral rules that imply participation in social life. If he accepts them, it is for the fulfilment he finds in reciprocity of association and in the feeling of being useful. This awareness, however, remains fragile, it even runs the risk of disappearing under certain circumstances. Thus, he is interested in maintaining it: this is the duty of the State. Durkheim has, in a sense, conceptualized a particular way of social regulation of the bonds, based on an organicist representation of solidarity. We must recognize the strength of this theory, even if the knowledge of modern societies leads us to emphasize that there may be other configurations or regimes of bonds. The social theory of bonding, as we can formulate today, is at once the heir of the conceptual core left by the founder of French sociology and the result of the acquisitions of comparative sociology, which is based on a non-normative approach to modern societies and sensitive to their diversity.

Keywords:
Social ties; Moral bonds; Solidarity; Social theory.

Durkheim consagrou sua vida à tentativa de responder à interrogação formulada do seguinte modo, desde 1893, em sua tese sobre a Divisão do Trabalho: "como pode ocorrer que, ao mesmo tempo em que se torna mais autônomo, o indivíduo dependa cada vez mais da sociedade?" (Durkheim, 2007 [1893], 1º Prefácio, p. XLIII). Em outras palavras, como indivíduos autônomos podem fazer sociedade, como eles chegam a se vincular à sociedade?2 2 N.T. É importante apresentar algumas razões sobre a tradução das palavras attachement e lien. Na esmagadora maioria das traduções dos textos de Durkheim, o termo liené traduzido por "vínculo" (devo essa observação ao revisor da tradução). Contudo, caso o fizéssemos, a sutileza conceitual e a interpretação de Paugam se perderiam, pois ele trabalha com diferenças semânticas entre lien e attachement. O problema durkheimiano do qual Paugam parte é a possibilidade de um indivíduo autônomo se vincular à (s'attacher à) sociedade. O termo liené utilizado, então, em um sentido amplo, próximo ao termo relation, como correlato ao emprego no português de "laço" (utilizado, por exemplo, em "laço social" ou "laço entre pessoas"). Paugam não se propõe, contudo, a fazer uma teoria dos laços sociais, mas sim uma "teoria social do vínculo" (théorie social de l'attachement), desenvolvendo uma tipologia das configurações ou regimes de vínculos (configurations ou regimes de l'attachement). O attachement é, para ele, uma forma específica de lien, a saber, um tipo de laço forte e obrigatório de um termo a outro - ou, ao menos, de (inter-)dependência -, normativamente regulado e/ou integrado. Ele pode formar um vínculo de um indivíduo/grupo a outro indivíduo/grupo (l'attachement aux groupes), ou de um indivíduo/grupo à sociedade como um todo (l'attachement à la société). Nota-se, dessa forma, que, embora seja comum traduzir o termo attachement como sendo um tipo específico de vínculo (emocional ou afetivo), Paugam o utiliza em um sentido mais amplo, que inclui os mais diversos tipos de vínculos. Por estas razões, optei por traduzir sempre os substantivos lien(s) e attachement(s) por "laço(s)" e "vínculo(s)", e as formas verbais rattacher/attachere lier, respectivamente, por vincular e ligar. Attachement poderia ser traduzido também sem perdas por "vinculação", mas o recusamos, seguindo indicação de R. Weiss e do próprio Paugam, a fim de evitar uma sobrecarga semântica e certa tendência substantivista atrelada ao termo. Elementos de resposta são encontrados nas conclusões desse livro, mas eles não poderiam constituir, por si próprios, um resultado definitivo. É assim que encontramos outras respostas nos textos posteriores. Como se sabe, ao longo da última década do século XIX, Durkheim publicou o essencial de sua obra, não apenas sua tese de doutorado, como também As Regras do Método Sociológico (1895), O Suicídio. Estudos de Sociologia (1897) e os cursos lecionados na Universidade de Bordeaux3 3 A física geral dos costumes e do direito aparece como título desde 1896-1897 e Durkheim o conservará durante quatro anos. Sublinhemos que o tema da moral cívica e profissional, que está em questão em Lições de Sociologia (2015 [1950]), aparece como uma subparte de seu curso do ano 1899-1900. Notemos, também, que ele já tinha utilizado um título muito próximo em 1890-1891: "Fisiologia do direito e dos costumes (a família)". Ver sobre este assunto: Fournier,2007, p. 125. e editados posteriormente na forma de livros. É o caso, notadamente, de A Educação Moral, que foram lições preparadas um ano após o aparecimento de O Suicídio e retomadas, posteriormente, quando dos primeiros cursos lecionados na Sorbonne em 1902-1903 (Durkheim, 2012 [1925]). É o caso também do livro intitulado Lições de Sociologia: Física dos Costumes e do Direito, escrito de modo definitivo de novembro de 1898 a junho de 1899 (Durkheim, 1950). Existe uma problemática comum entre esses diferentes textos, que uma leitura parcial não permite descobrir. Cada um dentre eles constitui uma peça do quebra-cabeça que podemos, hoje, nos esforçar em reconstituir. Esse último constitui as premissas de uma teoria social do vínculo, que Durkheim não teve tempo de acabar. Nós nos propomos, aqui, a determinar os elementos que nos parecem essenciais, mas também a discernir seus limites; o que nos conduzirá a formular algumas proposições para superá-los.

Moral e laços sociais

Comecemos por comentar a definição da moral, que é dada por Durkheim na conclusão de Da Divisão:

É moral, pode-se dizer, tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o homem a contar com outrem, a reger seus movimentos com base em outra coisa que não os impulsos do seu egoísmo, e a moralidade é tanto mais sólida quanto mais numerosos e mais fortes são esses laços (2007b, p.394).

Segundo ele, a sociedade é a condição necessária da moral:

Ela [a sociedade] não é uma simples justaposição de indivíduos que trazem, ao entrar nela, uma moralidade intrínseca; mas o homem somente é um ser moral, porque vive em sociedade, pois a moralidade consiste em ser solidário de um grupo e varia como esta solidariedade (2007b, p.394).

Em outras palavras, é o vínculo dos homens à sociedade que funda a moral4 4 Notemos aqui que o tema do vínculo aos grupos está igualmente muito presente em As Formas Elementares da Vida Religiosa (2008 [1912]), quando Durkheim analisa o fenômeno da efervescência coletiva nas sociedades australianas. Ele destaca que a excitação coletiva é produzida pelo vínculo recíproco dos indivíduos quando eles compartilham valores sociais e, portanto, uma mesma vida moral. . Não é a liberdade, mas sim o estado de dependência que contribui para fazer do indivíduo uma parte integrante do todo social e, portanto, um ser moral. Somente então, diz-nos Durkheim, "faça desaparecer toda vida social, e toda vida moral desaparece ao mesmo tempo, não tendo mais objeto a que se prender" (2007b, p.3). Uma vez que o indivíduo se define por uma pluralidade de vínculos à sociedade, é possível existir uma pluralidade de regras morais. As Lições de Sociologia terão por objetivo, dentre outros, o de demonstrar tal fato e refletir sobre a sua necessária articulação. Convém, no entanto, lembrar que Durkheim começa por definir, na primeira de suas Lições, as regras da moral universal. Elas se dividem, segundo ele, em dois grupos:

[...] aquelas que concernem às relações de cada um consigo mesmo, isto é, as que constituem a moral dita individual; e aquelas que concernem às relações que sustentamos com os outros homens, abstração feita de todo grupamento particular. Os deveres que nos prescrevem umas e outras se sustentam unicamente pela nossa qualidade de homem ou pela qualidade de homens daqueles com os quais nos encontramos em relação. Eles não poderiam, portanto, em relação a uma mesma consciência moral, variar de um sujeito ao outro (2015, p.81-82).

Podemos ver as regras da moral individual como tendo "por função fixar na consciência do indivíduo as bases fundamentais de toda a moral"; e as regras que determinam os deveres dos homens uns em relação aos outros como sendo "a parte culminante da ética". Durkheim retornará a isso, aliás, a partir de sua décima lição sobre os deveres gerais independentes de qualquer agrupamento social:

Eu devo respeitar a vida , a propriedade, a honra de meus semelhantes, mesmo que eles não sejam nem meus pais, nem meus compatriotas. É a esfera mais geral de toda a ética, já que ela é independente de toda condição local ou étnica. É também a mais elevada (2015, p.215).

É assim que Durkheim analisará particularmente os atos imorais que são o homicídio e os atentados contra a propriedade. Mas, uma vez definidas essas regras universais, existem outras regras morais que se sustentam sobre qualidades que nem todos os homens compartilham e que devem ser estudadas enquanto tais. Durkheim distingue três grandes tipos de moral que decorrem do pertencimento a grupos particulares: o vínculo à família e ao sistema de parentesco que funda a moral doméstica; o vínculo ao mundo do trabalho, especialmente às corporações, que funda a moral profissional; e o vínculo à pátria, que funda a moral cívica.

O que distingue as três formas de moral? Os deveres domésticos e os deveres cívicos dizem respeito a priori a todos os membros de uma sociedade, ao passo que os deveres profissionais variam, por definição, de um grupo profissional a outro. Durkheim sublinha que os órgãos da moral profissional são múltiplos. Há tantos órgãos quanto profissões:

Enquanto a opinião, que está na base da moral comum, é difundida por toda a sociedade sem que se possa dizer, propriamente falando, que ela reside aqui antes que ali, a moral de cada profissão está localizada em uma região restrita. Formam-se, assim, focos distintos, ainda que solidários, de vida moral; e a diferenciação funcional corresponde a uma espécie de polimorfismo moral.[...] De uma maneira geral, todas as coisas permanecendo iguais, quanto mais um grupo é fortemente constituído, quanto mais as regras morais próprias a ele serão numerosas e terão autoridade sobre as consciências. [...] Consequentemente, podemos dizer que a moral profissional será tanto mais desenvolvida e mais avançada em seu funcionamento quanto mais consistentes e mais bem organizados são os próprios grupos profissionais (2015., p.87-88).

Neste estágio, Durkheim faz uma distinção entre as profissões fortemente enquadradas por regras morais que estão diretamente vinculadas ao Estado (forças armadas, ensino, magistratura, administração, etc.), que possuem um corpo definido, uma unidade e uma regulamentação especiais; e as profissões econômicas, tanto na indústria quanto no comércio, cuja falta de organização reflete a ausência de moral profissional ou, ao menos, o caráter rudimentar desta última: "Assim, existe hoje toda uma esfera da atividade coletiva que está de fora da moral, que está quase que totalmente subtraída da ação moderadora do dever" (2015, p. 90). Para ele, a crise da qual sofrem as sociedades europeias provém precisamente da ausência de uma regulamentação moral da vida econômica e das profissões que a animam. Nada vem a regular os apetites individuais inevitavelmente infinitos e insaciáveis na medida em que a sociedade em seu conjunto se torna industrial.

Este tema já está bastante presente em Da Divisão do Trabalho, especialmente na terceira parte, consagrada às formas anormais. A primeira dentre elas remete ao que ele chama de "divisão do trabalho anômica", que se produz, particularmente, no momento das crises industriais ou comerciais. As falências são rupturas parciais da solidariedade orgânica. Certas funções não estão mais, dessa forma, ajustadas umas às outras. Quando a divisão do trabalho é levada demasiado longe, ela é fonte de desintegração. Para Durkheim, é na grande indústria, sobretudo, que estes dilaceramentos se produzem de modo agudo. Ele conclui, daí, que uma regulamentação é necessária: "O papel da solidariedade não é de suprimir a concorrência, mas sim de moderá-la" (2007b, p.357). Certamente, ele reconhece, com os economistas, que o mercado pode regular a si mesmo, mas sublinha que a harmonia não se reestabelece, senão após rupturas de equilíbrio e distúrbios mais ou menos prolongados. Já que tais rupturas e distúrbios são tanto mais frequentes quanto mais complexa é a organização e quanto mais diversificadas são suas funções, uma legislação industrial é indispensável para regulá-las, em especial no tocante às relações entre o capital e o trabalho. Este déficit de regulamentação é, consequentemente, fonte de anomia.5 5 Em uma nota de rodapé acrescentada após a primeira edição, Durkheim indica aliás que a legislação industrial desde 1893 assumiu um lugar importante: "É o que prova o quanto a lacuna era grande, e é errôneo pensar que tenha sido preenchida" (2007b., p. 359).

Ainda em Da Divisão do Trabalho, Durkheim abordava igualmente a questão, da qual tanto se fala hoje, da mundialização da economia. Mesmo se ele não utiliza esta expressão, ele se inquieta com a fusão dos mercados econômicos e vê nisso uma maior dificuldade de ajustamento às necessidades de consumidores e um risco de crise generalizada. Esse tema da falta de regulamentação moral das profissões econômicas aparece, igualmente, em O Suicídio. Como se sabe, Durkheim explica o que ele chama de "suicídio anômico" pelas crises políticas, econômicas e institucionais e pelos distúrbios que afetam a sociedade em seu conjunto. Ele constata um aumento da frequência do suicídio nos períodos de crises industriais ou financeiras, mas também nos períodos fastos, que ele qualifica de "crises de prosperidade".6 6 Para confirmar este segundo caso, mais inesperado, ele dá o exemplo das duas décadas que se seguiram à conquista da unidade da Itália em 1870. O comércio e a indústria se desenvolveram em um ritmo muito rápido; ora, a esse crescimento excepcional da atividade correspondeu um crescimento igualmente excepcional do número de suicídios. Durkheim conclui daí, então, que o fator explicativo do suicídio não é o declínio ou o desenvolvimento da atividade enquanto tais, mas sim o estado de crise e de perturbação da ordem coletiva que é provocado por tais fenômenos no corpo social.

Com estas análises, Durkheim afirma ainda mais nitidamente, nas suas Lições, que o caráter amoral da vida econômica constitui um real perigo público. Segundo ele, o desencadeamento dos interesses econômicos foi acompanhado de um abaixamento da moral pública:

Importa, portanto, no mais alto ponto, que a vida econômica seja regulada, que seja moralizada afim de que os conflitos que a perturbam possam ser encerrados, e, enfim, que os indivíduos cessem de viver no seio de um vazio moral em que sua moralidade individual se torna anômica [...] Consequentemente, o verdadeiro remédio para o mal, na ordem econômica, é dar aos grupos profissionais uma consistência que eles não têm. Enquanto que a corporação é hoje apenas uma reunião de indivíduos, sem laços duráveis entre si, é preciso que ela se torne ou volte a ser um corpo definido e organizado (2015, p. 93-94).

Essa é a razão pela qual, nas Lições de Sociologia, Durkheim se lança em uma análise social-histórica das corporações, da qual ele retomará, aliás, numerosas passagens no seu Prefácio de 1901 à segunda edição de Da Divisão do Trabalho. Se ele estava consciente da necessidade de uma regulamentação da vida econômica em sua primeira edição, seu pensamento se precisou pouco a pouco nos anos seguintes. Não é por razões econômicas que o regime corporativo lhe parece indispensável, mas por razões morais, porque apenas esse regime, segundo Durkheim, permitiria moralizar verdadeiramente a vida econômica. Ele nos convida a ver, na reforma das corporações, um processo tanto mais legítimo quanto está fundado sobre o conhecimento das disfunções econômicas de sua época e de seus efeitos sociais. Através desse projeto de reforma das corporações, Durkheim reconhece o papel fundamental de um tipo de laço social particular que sugerimos chamar, seguindo seu pensamento, de laço de participação orgânica (Paugam, 200815 PAUGAM, S. Le lien social. Que sais-je ? Paris: PUF, 2008.).

Reforçar o laço de participação orgânica

É inútil retomar em detalhes os desenvolvimentos de Durkheim, presentes nas segunda e terceira lições, consagrados à história das corporações desde a época romana e a Idade Média. Limitemo-nos apenas a um ponto: a especificidade francesa da supressão dessas últimas a partir da Revolução.

Durkheim evoca o período do final do século XVIII, reconhecendo que a regulamentação das corporações havia se tornado, sem dúvida, sob o Antigo Regime "algo que criava mais dificuldades do que era útil: onde ela teve por objetivo salvaguardar os privilégios dos mestres, antes que velar pelo bom renome da profissão e pela honestidade de seus membros" (2015, p.106). Mas, contrariamente aos economistas desta época, que justificaram a interdição dessas instâncias profissionais, Durkheim se dedica a demonstrar que teria sido mais sensato reformar do que as destruir. Não é porque certas corporações, em um determinado momento da sua história, tiveram a tendência de querer crescer seus privilégios e seus monopólios, que seria preciso considerar esta evolução como sendo um traço característico do regime corporativo. Ele recorreu, antes de tudo, a um argumento ao mesmo tempo histórico e sociológico:

Se, desde as origens da cidade-Estado até o apogeu do Império, desde a aurora das sociedades cristãs até a Revolução Francesa, elas foram necessárias, isso é provavelmente porque elas respondem a alguma necessidade durável e profunda. E o próprio fato de que, após ter desaparecido uma primeira vez, elas tenham se reconstituído por si mesmas e sob uma nova forma, não retiraria todo o valor do argumento que apresenta seu desaparecimento violento, no fim do último século, como sendo uma prova de que elas não estão mais em harmonia com as novas condições da existência coletiva? Ao contrário, a necessidade sentida por todas as grandes sociedades europeias de trazê-las novamente à vida não seria um sintoma de que esta supressão radical foi por si mesma um fenômeno mórbido, e que a reforma de Turgot clama por uma reforma em sentido contrário ou diferente? (2015., p.101-102).

Durkheim retoma, em seguida, o argumento segundo o qual "cada corporação deve se tornar o foco de uma vida moral sui generis":

A partir do momento em que, no seio de uma sociedade política, existe certo número de indivíduos que têm em comum ideias, interesses, sentimentos, ocupações que o resto da população não compartilha com eles, é inevitável que, sob o fluxo de suas similitudes, eles sejam como que impulsionados, como que atraídos uns em relação aos outros, procurando-se, entrando em relações e se associando; e que, assim, seja formado aos poucos um grupo restrito, com sua fisionomia geral, no seio da sociedade geral. Ora, uma vez formado o grupo, é impossível que uma vida moral, que lhe seja própria, não resulte dele, trazendo a marca das condições especiais que lhe deram nascimento. Porque é impossível que homens que vivem em conjunto e estejam em frequente comércio, façam-no sem adquirirem o sentimento do todo, sem se preocuparem com ele, sem levá-lo em conta em sua conduta. Ora, este vínculo a alguma coisa que ultrapassa o indivíduo, aos interesses do grupo ao qual ele pertence, é a própria fonte de toda atividade moral (2015., p. 107).

Mas, então, em direção a qual reforma é preciso se orientar para restaurar esta função moral das corporações, sem recair nas derivas que foram acusadas no passado? Quais são as influências de Durkheim? Como ele se põe a formular proposições concretas?

A respeito das reformas necessárias a vislumbrar, Durkheim é mais preciso nas Lições de Sociologia do que no Prefácio à segunda edição [de Da Divisão do Trabalho]. É nas últimas páginas da Terceira lição que ele explica qual forma as corporações devem assumir e qual papel elas devem jogar.

Ele se põe, então, a imaginar um sistema de reagrupamento nacional das indústrias por grandes categorias distintas segundo suas similitudes ou suas afinidades naturais, tendo na cabeça de cada qual um conselho de administração eleito que teria por função regular tudo o que concerne à profissão: relações entre empregados e empregadores, condições de trabalho, salário, etc. Ele define também as funções que poderiam ser confiadas em um futuro próximo às corporações: sobre o plano legislativo, os princípios gerais relativos ao contrato de trabalho, à retribuição dos assalariados, à salubridade industrial e ao trabalho das crianças e mulheres têm a necessidade de serem diversificados segundo as indústrias. O caso é o mesmo para as caixas de previdência e de aposentadoria... Este projeto de reforma não parece muito original hoje, porque a organização na qual Durkheim pensa no final do século XIX foi em grande parte construída no curso do século XX, ao menos na França e em outros países europeus. Os grandes setores da atividade econômica são hoje reagrupados em ramos nos quais negociações permanentes tiveram lugar entre os diferentes parceiros sociais. A maior parte dos corpos profissionais se refere igualmente a convenções coletivas. O sistema de aposentadoria é igualmente, muito especialmente na França, fragmentado em vários regimes distintos. Em outras palavras, o que Durkheim reivindica em seus próprios termos tem semelhança com o funcionamento ordinário do que chamamos hoje, de forma corrente, de "sociedade salarial". É preciso reconhecer o seu mérito de ter esboçado um projeto de reforma que foi em grande parte realizado após a sua morte. Mas Durkheim vai mais longe. Ele insiste sobre o caráter obrigatório da corporação:

Cada cidadão é obrigado hoje a pertencer a uma municipalidade; porque o mesmo princípio não se aplicaria à profissão? Isso tanto mais que a reforma da qual falamos teria, enfim, por resultado a substituição do distrito territorial pela corporação profissional como sendo a unidade política do país (2015., p. 127).

Esta proposição, sublinha ele, suscita frequentemente reservas. Ele não parece a priori sensível a essas últimas, na medida em que está persuadido no interesse de cada qual a se vincular a esta nova força coletiva constituída. Seria, segundo ele, uma verdadeira fraqueza para o indivíduo permanecer de fora das corporações. Mas ele não mantém esta ideia de obrigação no Prefácio da segunda edição de Da Divisão do Trabalho. Em compensação, ele argumenta mais sobre a tese de que é provável que a corporação se torne uma das bases essenciais de nossa organização política.

No lugar de permanecer o que ela é ainda hoje - um agregado de distritos territoriais justapostos-, a sociedade se tornaria um vasto sistema de corporações nacionais. Demanda-se, por todos os cantos, que os colégios eleitorais sejam formados por profissões e não por circunscrições territoriais. E é certo que, de certo modo, as assembleias políticas exprimiriam com mais exatidão a diversidade dos interesses sociais e de suas relações; elas seriam um resumo mais fiel da vida social em seu conjunto (2007b, p. xxxi).

O argumento da obrigação de estar vinculado a uma corporação se transformou, portanto, em uma análise prospectiva mais prudente. Durkheim passou, sobre este ponto, da prescrição normativa à tentativa de demonstração sociológica. Ele se deu conta, sem dúvidas, do caráter dificilmente receptivo no corpo social de sua primeira ideia. Sua argumentação permanece, todavia, frágil, sobretudo quando explica, com segurança, que os grupamentos territoriais se apagam pouco a pouco. Sigamo-lo no seu raciocínio:

Ver-se-á, com efeito, como, à medida que se avança na história, a organização que tem por base agrupamentos territoriais (vilarejo ou cidade, distrito, província, etc.) se apaga crescentemente. Sem dúvida, cada um de nós pertence a uma municipalidade, a um departamento, mas os laços que nos vinculam a eles se tornam diariamente mais frágeis e frouxos. Estas divisões são, na maior parte das vezes, artificiais e não despertam mais em nós sentimentos profundos. O espírito provinciano desaparece sem retorno; o paroquialismo se tornou um arcaísmo que não pode ser restaurado à vontade. Os negócios municipais ou departamentais não nos tocam ou não nos apaixonam mais, a não ser na medida em que eles coincidem com nossos negócios profissionais. Nossa atividade se estende bem além destes grupos demasiado restritos para ela, e, de outra parte, uma boa parte do que se passa aí nos deixa indiferentes. Produz-se assim uma espécie de enfraquecimento espontâneo da velha estrutura social (2007b, p. XXXII).7 7 Em suas Lições de Sociologia, ele vai sustentar, inclusive, que "a vida que nos rodeia imediatamente não é mesmo aquela que nos interessa mais vividamente. Professor, industrial, engenheiro, artista, não são os acontecimentos que se produzem em minha localidade ou em meu departamento que me interessam mais diretamente e que me apaixonam. Eu posso até mesmo viver minha vida, de modo regular, ignorando-os" (2015, p.207).

Para Durkheim, não há qualquer dúvida de que as corporações devem substituir esta velha estrutura social e se tornarem a instância intermediária privilegiada entre os indivíduos e o Estado. Se, como vimos, elas se tornaram, na sua maior parte, no século XX, o que ele pensava que se tornariam ao realizar as reformas necessárias, é preciso reconhecer, em compensação, que elas não substituíram de forma alguma os grupamentos territoriais. Ao contrário, estes últimos resistiram globalmente às mobilidades geográficas e à fluidez das sociedades modernas, tornando-se, mesmo para alguns, um ancoradouro identitário a ser reivindicado. Os pertencimentos locais e as reivindicações regionais foram, até mesmo, reforçados no curso das últimas décadas. A sociedade de hoje é, na realidade, mais complexa do que Durkheim havia previsto. São superpostas nela formas múltiplas e frequentemente complementares de vínculos. Mas, se ele insiste com tanto ardor sobre o papel dos grupamentos profissionais, e, consequentemente, sobre o laço de participação orgânica, isso não significa, todavia, que subestime os outros tipos de laços.

A hierarquia dos vínculos

Permanece, com efeito, uma questão essencial: a quais grupos os indivíduos são vinculados, a fim de satisfazer suas funções vitais e, assim, manifestar sua integração à sociedade? E a essa questão se junta imediatamente uma outra: se existem vários tipos de grupos, eles podem ser hierarquizados? As respostas de Durkheim se encontram claramente formuladas - de uma forma melhor, sem dúvida, do que no resto de sua obra - em seu curso sobre A Educação Moral. Assim como, para apreciar a natureza do laço social, é mais fácil falar dos diferentes tipos de laços sociais que vinculam o indivíduo ao sistema social, para compreender o que vem a ser a sociedade em seu conjunto, é mais conveniente tratar dos múltiplos grupos nos quais o indivíduo vive. Ora, se nos textos de Durkheim é frequente a questão da sociedade em geral como se fosse apenas uma, encontra-se justamente em A Educação Moral uma análise da multiplicidade de pertencimentos. Durkheim retém, principalmente, três tipos de pertencimento: a família, a pátria e a humanidade. Estes três grupos correspondem, diz-nos, a fases diferentes de nossa existência moral, mas podem, hoje, superpor-se sem se excluírem:

Da mesma forma que cada um deles tem seu papel na sequência do desenvolvimento histórico, eles se completam mutuamente no presente; cada um tem sua função. A família desenvolve o indivíduo de uma maneira completamente diferente do que a pátria, e responde a outras necessidades morais. Não se tem que fazer, portanto, uma escolha exclusiva entre elas. O homem somente é verdadeiramente completo caso se submeta a essa tripla ação (2012, p. 63).

Nesse estágio, pode-se apenas ficar surpreso pelo fato de que Durkheim não cita a corporação ou o grupamento profissional como grupo social fundamental, ao passo que fez dessa, especialmente no Prefácio à segunda edição de Da Divisão do Trabalho, uma das soluções às ameaças do mundo do trabalho. A bem dizer, ele não a descarta inteiramente. No início da Sexta lição, ele enumera, ordenando-as, as diversas sociedades nas quais nós estamos engajados; são encontrados, então, não três, mais cinco grupos: a família, a corporação, a associação política, a pátria e a humanidade. Na segunda parte do livro, Durkheim não conta mais que quatro, pois não menciona mais a associação política - sem que, aliás, seja dada uma razão para isso (2012, p. 181). Esta diferença pode ser explicada pelo seu cuidado de Durkheim em não se prender numa simples enumeração dos grupos sociais de integração.

Mas é provável, também, que este curso tenha sido redigido, como se viu, essencialmente em consonância com a publicação de O Suicídio, isto é, em um momento em que Durkheim não havia redigido ainda, de modo definitivo, suas Lições, nem a fortiori a segunda edição de Da Divisão do Trabalho. Além disso, se Durkheim não insiste sobre os grupamentos profissionais, ele constata - e mesmo deplora - que na França, diferentemente da Alemanha, nosso temperamento nacional sofre de um enfraquecimento do espírito de associação e que, enfim, não existem corpos intermediários consistentes entre o indivíduo e o Estado (cf. 2012, p. 198-199). Assim, para ele, a corporação é um grupo em devir, que teve uma grande importância no passado, mas que seria preciso reconstruir de algum modo:

Por mais que seja necessário remediar esta situação, não se trata de ressuscitar os grupamentos do passado, nem de lhes devolver a atividade de outrora; pois, se eles despareceram, é porque já não estavam em consonância com as novas condições da existência coletiva. O que é preciso fazer é buscar suscitar novos grupamentos, que estejam em harmonia com a ordem social atual e os princípios sobre os quais ela repousa. Mas, de outro lado, o único meio de chegar a isso é ressuscitar o espírito de associação (2012, p.199).

Segundo ele, a escola deve preencher esta missão, demonstrando ao aluno, no cotidiano, que ele faz parte, no seio de sua classe escolar, de um grupo diferente do de sua família.

A resposta de Durkheim sobre a hierarquia desses grupos sociais é interessante. Para ele, não há qualquer dúvida de que, se a família, a pátria e a humanidade - para nos atermos aos três principais - são todas elas vitais, "evidentemente, os fins domésticos são e devem ser subordinados aos fins nacionais, simplesmente porque a pátria é um grupo social de uma ordem mais elevada" (2012., p. 63). A família, pelo fato de constituir um fim menos impessoal que a pátria, confunde-se frequentemente com os interesses pessoais. Se a criança é socializada por sua família, ela o é também pela escola. Ela abandona, ao menos parcialmente, o lar, para receber uma educação pública. Para Durkheim, fiel nisso aos ideais emancipadores da Terceira República, o Estado deve ter um primado sobre a família. No que diz respeito à humanidade enquanto grupo de pertencimento, seria fácil conceber sua superioridade em relação à pátria, na medida em que os fins humanos parecem mais altos do que os fins nacionais. Mas essa supremacia permanece equívoca, já que não remete a uma sociedade constituída. Ela não possui organização própria. É um termo demasiado abstrato, pensa Durkheim, para que se possa lhe subordinar um grupo mais restrito que realmente existe. Assim, ele acaba por colocar no alto da hierarquia dos grupos de pertencimento a pátria e por fazer da cidadania um laço de natureza diferente dos outros.

Durkheim retorna ao tema da pátria em suas Lições, especialmente na Sexta. "O patriotismo", diz ele,

é precisamente o conjunto de ideias e sentimentos que vinculam o indivíduo a um Estado determinado. Suponhamo-lo enfraquecido, desaparecido, onde o homem encontraria esta autoridade moral cujo jugo lhe é a tal ponto salutar? Se não existe uma sociedade definida, tendo consciência de si mesma, que lhe lembre a cada instante de seus deveres, que lhe faça sentir a necessidade da regra, como ele teria o sentimento dela? (2012, p. 169).

A questão da hierarquia desses grupos é essencial. Cada sociedade, por seu sistema normativo, dá-lhe uma versão mais ou menos precisa. Nem todas as sociedades europeias, por exemplo, dão tanta importância ao papel da família, como testemunham numerosos trabalhos comparativos recentes. Da mesma forma, o papel jogado por esses corpos intermediários que são as associações é muito desigual de uma sociedade a outra. Em certas, esse laço é destinado a regular a maior parte dos problemas ou disfunções sociais, ao passo que, em outras, permanece quase inexistente ou subordinado à ação do Estado. Dito de outra forma, a resposta que Durkheim dá sobre este ponto é mais normativa do que sociológica. Mas a hierarquia que ele instaura entre os diferentes tipos de laços é perfeitamente coerente com sua representação do Estado e da pátria. O que hoje chamamos de "laço de cidadania" é próximo da definição dada por Durkheim à "moral cívica". Isso implica, segundo ele, uma concepção alta da potência reguladora do Estado, que é garantia da coesão social.

Os fundamentos da teoria social do vínculo

Na realidade, Durkheim elaborou o quadro conceitual da teoria social do vínculo a partir de seu conhecimento e de sua representação da sociedade francesa. Misturam-se, em sua abordagem, ao mesmo tempo, suas análises sociológicas e suas proposições de reformas, tanto mais porque ele está convencido de que a sociologia deve ser útil à sociedade. Mas esta ambição louvável e legítima o conduziu, apesar disso, a se encerrar em um quadro, em muitos aspectos, excessivamente normativo e demasiadamente marcado por sua ancoragem na realidade da França de sua época, ao passo que ele havia elaborado os conceitos fundamentais que poderiam ter-lhe permitido se desvencilhar dela. Durkheim não tira - ou o faz muito pouco - benefício da comparação das sociedades. Sem dúvida, é mais fácil trabalhar hoje em uma perspectiva comparativa, graças aos meios que são oferecidos pela multiplicidade de pesquisas e de fontes de informações; mas isso não desculpa inteiramente Durkheim de fazer julgamentos de valor sobre a hierarquia dos vínculos e de crer que tal hierarquia possa se impor de modo quase universal. O sociólogo de hoje em dia visa analisar como se efetua, a partir da produção de normas e da construção de uma coerência da ordem social, o vínculo dos indivíduos aos grupos e à sociedade, sublinhando a pluralidade das formas históricas e antropológicas deste processo. Nesse sentido, a teoria social do vínculo se nutre da ambição de poder integrar essa diversidade, sem qualquer pretensão de esgotá-la.

É preciso, para tanto, começar por definir de forma rigorosa os diferentes tipos de laços sociais. Na esteira de Durkheim, nós podemos distinguir quatro deles: o laço de filiação (no sentido das relações de parentesco), o laço de participação eletiva (no sentido das relações entre próximos escolhidos), o laço de participação orgânica (no sentido da solidariedade orgânica e da integração profissional) e o laço de cidadania (no sentido das relações de igualdade entre membros de uma mesma comunidade política) (Paugam, 200815 PAUGAM, S. Le lien social. Que sais-je ? Paris: PUF, 2008.; 2014). Cada laço pode ser definido a partir de duas dimensões de proteção e de reconhecimento. A proteção remete ao conjunto dos suportes que o indivíduo pode mobilizar face aos imprevistos da vida (recursos familiares, comunitários, profissionais, sociais, etc.); o reconhecimento remete à interação social que estimula o indivíduo ao lhe fornecer a prova de sua existência e de sua valorização defronte outro ou outros. A expressão "contar com" [compter sur] resume bem o que o indivíduo pode esperar de sua relação com os outros e as instituições em termos de proteção, ao passo que a expressão "contar para" [compter pour] exprime a expectativa tão vital de reconhecimento.

A força de um laço não é medida unicamente em uma relação interpessoal, mas sim em um vínculo ao sistema social que torna possível ou não um conjunto de relações interpessoais que se inscrevem em esferas normativas distintas. O laço, tal como nós o entendemos, é um laço no sentido durkheimiano de vínculo à sociedade; o que implica levar em conta o sistema normativo que o funda, defendendo-se a hipótese de que os indivíduos são mais ou menos coagidos a se conformarem a ele a fim de serem integrados. No laço de filiação, por exemplo, é estudada, certamente, a relação entre os pais e os filhos, mas isso é feito relacionando-a às normas que enquadram esse laço em uma dada sociedade, sabendo que a filiação pode tomar formas diferentes de uma sociedade a outra. No laço de participação eletiva, a intensidade da relação entre indivíduos no seio de comunidades organizadas sobre o modo do reagrupamento por afinidade será variável segundo as expectativas dessas comunidades, mas também segundo a amplitude do incitamento normativo que as sociedades exercem sobre seus membros para que eles se engajem neste tipo de estrutura, em nome de valores compartilhados e suscetíveis de garantir a coesão social. No laço de participação orgânica, é estudada a relação entre os agentes que participam da vida profissional, sabendo que essa relação é apreciada de modo diferente conforme nos situemos em uma sociedade salarial realizada ou em uma sociedade salarial incompleta, em uma sociedade salarial em crise ou em uma sociedade salarial em expansão. Enfim, no laço de cidadania, o que está em jogo é a proteção dos indivíduos pelos direitos civis, políticos, econômicos e sociais, bem como o reconhecimento de sua respectiva qualidade de indivíduo soberano. Se esta definição geral nos conduz a nos referirmos prioritariamente às sociedades democráticas8 8 Nas sociedades totalitárias, em que o direito de voto não existe e as liberdades fundamentais não são reconhecidas, é improvável, com efeito, chamar de "laço de cidadania". Falar-se-á, antes, de um laço que pode vincular os indivíduos a sua nação a despeito do regime político de restrições no qual eles vivem. , não há qualquer dúvida de que já existem em seu seio distintas concepções de cidadania, ainda que somente no sentido do reconhecimento dos direitos e deveres dos indivíduos que pertencem à mesma comunidade política e do grau de seu vínculo e de sua confiança nela.

Esta tipologia permite analisar, também, como os laços sociais são entrecruzados de modo normativo em cada sociedade e como, a partir deste entrecruzamento específico, elabora-se a regulação da vida social. Essa distinção intersecciona, ao menos parcialmente, com a distinção que Durkheim operava entre os dois conceitos de integração e de regulação. O primeiro remete à integração dos indivíduos à sociedade, o segundo, à integração da sociedade. Poder-se-ia continuar dizendo que a integração à sociedade é assegurada pelos laços sociais que os indivíduos se esforçam por construir, ao se conformarem às normas sociais em vigor, no curso de sua socialização; e que a regulação procede do entrecruzamento normativo desses laços sociais, o que permite a integração da sociedade em seu conjunto. É no sentido dessa regulação social global que nós falamos de "configuração de vínculo". Uma configuração de vínculo tem por função produzir uma coerência normativa global, a fim de permitir aos indivíduos e aos grupos fazerem sociedade, para além de suas diferenciações e de suas rivalidades. Para fazer sociedade, não é necessário, segundo Durkheim, que as representações coletivas estejam presentes em cada consciência individual, pois a pluralidade é considerada como uma das características fundamentais das sociedades modernas. Mas é importante que certas representações sejam compartilhadas pelo maior número possível, senão por todos. Essas últimas podem ser muito certamente limitadas, uma única dentre elas poderia até mesmo bastar, mas elas devem então exercer uma autoridade sobre os indivíduos, imporem-se a eles de modo automático, inspirar-lhes uma forma espontânea de respeito e de vínculo afetivo (2012). É, também, nesse sentido, que se pode falar de uma "economia moral dos laços sociais". Essa noção remete à regulação que se opera no nível da sociedade em seu conjunto quando se trata de se entender, não sobre tudo, evidentemente - porque os conflitos são inevitáveis -, mas sobre um segmento, ao menos, da moral coletiva, a fim de garantir a coerência da ordem normativa e permitir assim aos indivíduos tecerem laços sem terem de se opor uns aos outros, promovendo não apenas sua integração social, como também a integração da sociedade na qual eles vivem.9 9 Ao fazer isso, eu não reduzo a noção de economia moral às sociedades do passado, à ordem moral antiga e aos combates que trazem em seu nome as camadas dominadas para se defender dos desregramentos do capitalismo e da opressão que elas sofrem. Sobre esse ponto ver o livro clássico do historiador E. P. Thompson (1988): La formation de la classe ouvrière anglaise.

Definir o tipo de configuração de vínculo que convém para tal ou qual sociedade remete a investigar, nos diferentes estratos de sua história e das raízes antropológicas de seu desenvolvimento, o que constitui a sua tessitura específica.

Em outras palavras, o desafio consiste em passar de uma tipologia dos laços sociais (no sentido do vínculo dos indivíduos aos grupos) a uma tipologia das configurações de vínculo (no sentido da regulação normativa dos laços sociais nas sociedades modernas). Em cada regime de vínculo, os quatro tipos de laços podem ter uma função de integração e/ou uma função de regulação. Um laço integrador é um laço que vincula o indivíduo aos grupos, ao passo que um laço regulador tem uma função suplementar de tessitura, que consiste em produzir um conjunto de regras e de normas suscetíveis de serem traduzidas, pela extensão de sua influência, aos demais laços, até o momento em que inflete sua concepção normativa inicial. Tal concepção normativa gera valores e princípios de educação moral suscetíveis de se expandirem no conjunto da sociedade. Em outras palavras, um laço regulador é, de alguma forma, um laço preeminente.

A partir dessa definição preliminar, podem ser definidos quatro tipos de configurações - ou de regimes - de vínculos: a configurações de tipo familialista, a configuração de tipo voluntarista, a configuração de tipo organicista e a configuração de tipo universalista (ver tabela abaixo).


Tipologia das configurações de vínculo

A configuração de tipo famialista tem por característica principal a de ser regulada pelo laço de filiação, enquanto os outros laços -de participação eletiva, de participação orgânica e de cidadania - asseguram uma função de integração. Ela se funda prioritariamente sobre a moral doméstica. A configuração de tipo voluntarista é regulada pelo laço de participação eletiva, enquanto os outros laços - de filiação, de participação orgânica e de cidadania - são essencialmente integradores. Ela repousa sobre a moral associativa. A configuração de tipo organicista repousa sobre a regulação do laço de participação orgânica, o qual se entrecruza com os laços integradores de filiação, de participação eletiva e de cidadania. Enfim, a configuração de tipo universalista é regulada a partir do laço de cidadania e estende sua influência sobre os laços integradores de filiação, de participação eletiva e de participação orgânica.

Pesquisemos agora os fatores mais frequentemente associados a esses quatro tipos de configurações.10 10 Ao falar de fatores associados e não de fatores explicativos, pretendo ressaltar que a causalidade não repousa sobre esses fatores tomados separadamente. Em compensação, esses últimos podem atuar ao mesmo tempo. Eles são mais frequentemente interdependentes, e é essa interdependência que constitui, parece-me, a chave da explicação causal mais provável (Paugam, 2016a, pp. 23-46. Tomaremos aqui quatro deles: o nível de desenvolvimento econômico, a relação às desigualdades, o sistema de proteção social e o civismo.

O nível de desenvolvimento econômico é, por vezes, difícil de ser avaliado de modo satisfatório, pois os indicadores de referência são quase sempre discutíveis. Não entraremos nos debates infinitos de natureza filosófica que são por eles suscitados. Sugiro partirmos da definição da sociedade industrial. Uma sociedade moderna se define, antes de tudo, pela organização do trabalho, pelo uso das ciências e das técnicas e pelas consequências econômicas e sociais dessa racionalização da produção.11 11 Raymond Aron definia a sociedade industrial a partir de cinco dimensões: 1)a separação entre, de um lado, o lugar do trabalho e da empresa e, de outro, o da família, muito embora essa separação não tenha sido universal e tenha sempre existido uma parte nada negligenciável de empresas artesanais onde as duas funções econômicas e familiares se confundem e são frequentemente reagrupadas em um mesmo lugar; 2) a divisão do trabalho entre os setores da economia, mas também no interior das empresas em função das necessidades tecnológicas; 3) uma acumulação do capital; 4) o cálculo racional para obter o menor custo e, assim, renovar e aumentar o capital; 5) a concentração do trabalhador no lugar de trabalho (Aron, 1988). Existem, é claro, importantes diferenças entre os países e as regiões, inclusive no seio da União Europeia. Certos países apresentam mais que outros as características de uma sociedade industrial. Existe, também, no interior dos países, regiões que permanecem mais rurais do que outras e onde o artesanato e a pequena empresa constituem a base da atividade econômica.

A relação às desigualdades é um fator que pode ser associado também aos regimes de vínculo. A percepção das desigualdades varia fortemente de uma sociedade a outra. Em certas sociedades, esses dois fenômenos, fortemente ligados um ao outro, são considerados como inevitáveis e não suscitam uma indignação moral particular. Em outros, ao contrário, eles são a expressão de um disfuncionamento ou de um mal-estar social que convém combater com prioridade. A sensibilidade social a essa questão pode variar também segundo a conjuntura econômica (Paugam, 2016b11 PAUGAM, S. La perception de la pauvreté sous l'angle de la théorie de l'attachement. Naturalisation, culpabilisation et victimisation. Communications, n. 98, 2016b, pp. 125-146.).

O sistema de proteção social pode ser apreendido a partir do critério de "desmercantilização" (decommodification). Ele permite às sociedades oferecerem aos indivíduos uma maior segurança de subsistência [sécurité d'existence] face aos imprevistos da vida e ao risco de pobreza. Fazer dos indivíduos outra coisa que uma mercadoria intercambiável: tal foi o grande desafio do Estado Social, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas esse processo de "desmercantilização" não foi conduzido tão longe em todos os países do mundo ocidental, e existem, de fato, fortes variações que devem ser levadas em conta, tal como mostrou Gøsta Esping Andersen (1990).

Enfim, o civismo é uma noção fundamental para medir o grau de engajamento dos indivíduos a serviço da coletividade que eles constituem por sua associação. Robert Putnam (200016 PUTNAM, R.D. Bowling Alone. The collapse and Revival of American Community, New York: Simon and Schuster, 2000.) fez dele uma dimensão do capital social. O civismo é, claramente, uma noção importante dos regimes de vínculo, pois comanda certa concepção do laço social.

A configuração de tipo famialista é regulada pela ascendente [emprise]com a qual garante o laço de filiação sobre os outros tipos de laços. Ele é mais expandido nas regiões caracterizadas por um fraco desenvolvimento industrial, nas zonas rurais em que a economia ainda repousa, em grande parte, sobre pequenas unidades de produção relativamente fechadas sobre si mesmas ou sobre um setor geograficamente limitado. Mas ele pode se manter nas regiões mais desenvolvidas, oferecendo, assim, uma base famialista a um capitalismo de pequenos empreendedores solidários entre si. Ele pode caracterizar também o modo de desenvolvimento de um país emergente em que as estruturas modernas da economia se conjugam com a sobrevivência de tradições marcadas pelo solidarismo familial. Esse regime é acompanhado de fortes desigualdades sociais sem que essas sejam, todavia, fortemente combatidas. Elas são, de algum modo, "naturalizadas". A pobreza é integrada ao sistema social, em que os pobres aceitam a sua condição como sendo um destino, aquele de sua família, ao qual eles não podem escapar (Paugam, 201314 PAUGAM, S. Les formes élémentaires de la pauvreté. Le lien social, 3e édition mise à jour. Paris: PUF , 2013.). A sobrevivência é, desde então, buscada prioritariamente na rede familiar, que constitui a instância essencial da integração. O sistema de proteção social é não somente lacunar, como também, mais frequentemente, de natureza clientelista. A aplicação do princípio de "desmercantilização" é tão limitada que os indivíduos e os domicílios mais pobres não podem ter acesso a uma real segurança de subsistência [sécurité d'existence] face aos imprevistos da vida. Enfim, o civismo é aí igualmente muito fraco. O mercado de trabalho pode ser controlado pela máfia ou por redes locais organizadas. O corpo político é frequentemente corrompido e as instituições públicas em geral são por vezes desviadas de seus propósitos em benefício de interesses individuais ou categoriais. Na Itália do Sul, pode-se desenvolver a tese do "famialismo amoral" para dar conta da associação empiricamente verificada de um enraizamento da vida social em um sistema coercitivo de vínculo familial e de ausência de civismo (Banfield, 19582 BANFIELD, E.C. The Moral Basis of a Backward Society. New York: The Free Press, 1958.). Por outro lado, o regime famialista encoraja uma solidariedade familiar muito forte para fazer frente à pobreza, que permanece massiva, na medida em que o mercado de trabalho propicia poucas proteções generalizadas e deixa que se desenvolva uma economia informal nas franjas da condição salarial mínima (Paugam, 2016c).

A configuração de tipo voluntarista é regulada, como se viu, pelo laço de participação eletiva. Ele é fundamentalmente ligado ao princípio segundo o qual nada deve poder entravar a liberdade de associação guiada por escolhas por afinidade, sejam elas movidas ou não pela busca do interesse individual. Esse regime mantém, por isso, uma forte conivência com o princípio da liberdade de empresa, compartilhado pela grande maioria da população, que aceita tanto mais facilmente as regras do mercado quanto mais estão em conformidade com o desejo, julgado legítimo, de enriquecimento individual. É, portanto, lógico que esse regime ofereça todas as condições necessárias para o desenvolvimento capitalista. As desigualdades são, neste caso, fortes, e a pobreza é frequentemente percebida como um efeito social inevitável, já que ela é encarregada de sancionar os menos capazes e/ou os menos corajosos. A racionalização das desigualdades é buscada, então, no mérito. Os mais pobres não têm outra alternativa que a de contarem consigo mesmos, a fim de escaparem à suas condições, o que é acompanhado pelo mito do self made man. O sistema de proteção social é globalmente fraco. Deixado à apreciação livre da tomada de risco feita pelo intermédio das seguradoras privadas, ele se concentra, sobretudo, sobre os alvos mais pobres da população. Nesse regime, o civismo é, em compensação, particularmente forte, constituído à imagem da vida associativa florescente e do dinamismo das fundações privadas voltadas para a defesa dos interesses da sociedade civil12 12 Tocqueville insistiu no voluntarismo associativo visto por ele nos Estados Unidos em Da Democracia na América (Tocqueville, 1992 [1835-1840]). Ainda hoje, a sociedade americana pode ser considerada como próxima a uma configuração voluntarista. . O civismo é enraizado, prioritariamente, em um sistema de pertencimento comunitário esclarecido por aspirações coletivas de cidadania. O regime voluntarista associa, em definitivo, um fraco nível de proteção social e um incitamento ao engajamento solidário em grupamentos por afinidade.

A configuração de tipo organicista é dominada pelo laço de participação orgânica que governa, por sua força reguladora, todos os outros laços. Derivada da terminologia durkheimiana, seria possível ver na solidariedade orgânica a realização da sociedade industrial, sendo a expressão da sociedade moderna fundada sobre a diferenciação dos indivíduos e a complementaridade das funções. O regime organicista está, portanto, associado logicamente ao desenvolvimento econômico e à intensificação das trocas no mundo do trabalho e na sociedade mercantil. Mas esse regime não é apenas uma fase avançada do desenvolvimento histórico das sociedades modernas; ele é igualmente a expressão de uma relação específica dos indivíduos ao Estado. Nesse regime, a participação nas trocas passa pelo vínculo quase-obrigatório a um corpo intermediário (no sentido de uma corporação profissional), que não pode bastar a si mesmo. Cada grupo constituído dessa forma mantém, por isso, uma mediação com os outros grupos e com o Estado, permitindo assim relações de interdependências assentadas sobre o princípio de complementaridade. Esse regime implica um Estado centralizado, capaz não somente de criar e manter corporações em setores estratégicos - falar-se-á de "corporativismo de Estado" -, como também de regular os demais setores como distintos órgãos suscetíveis de assegurar o bom funcionamento da economia. Nesse regime, se os diferentes grupos são variados órgãos convocados a cooperar, eles podem também estar em rivalidade uns com os outros. Por isso, as desigualdades aparecem como constitutivas da vida social, não no sentido da naturalização dessas últimas, tal como no regime precedente, mas, antes, no sentido das lutas pela classificação na escala do prestígio e das vantagens materiais que a dominação proporciona. Na realidade, os grupos que compõem o corpo social são, de modo inevitável, ao mesmo tempo complementares e rivais, a tal ponto que se torna necessário um trabalho estatal de coordenação e de pacificação das lutas. Nesse regime, o sistema de proteção é mais avançado na via da "desmercantilização", mas ele permanece fragmentado em uma miríade de subsistemas distintos que exprimem, assim, uma lógica de distinção estatutária e de reivindicação categorial para a conquista de direitos específicos e a defesa de vantagens adquiridas. Nele, o Estado exerce uma função classificatória: hierarquiza tanto os estatutos dos agentes que lhe servem, quanto também o dos grupos socioprofissionais que emanam da sociedade civil. Sua ação procede, enfim, mirando sobre as categoriais suscetíveis de ser objeto de políticas específicas. O civismo é, em geral, menos desenvolvido que no regime voluntarista, porque o interesse geral fica, frequentemente, para trás em relação aos interesses particulares dos grupos rivais - que, aliás, esperam que o Estado faça uma arbitragem que eles são, no mais das vezes, incapazes de garantir sozinhos.

O regime universalista é regulado, antes de tudo, pelo laço de cidadania. Ele implica uma capacidade muito forte de tornar efetivo o princípio da igualdade dos indivíduos, não apenas face aos direitos, mas também, de modo mais geral, no funcionamento da vida econômica e social. Esse regime é perfeitamente compatível com um alto nível de desenvolvimento econômico. As regras do mercado são aceitas e parecem, em muitos aspectos, mais consensuais do que aquelas do caso do regime organicista. A questão não é de rejeitá-las, nem mesmo de contorná-las, mas sim de socializá-las. Para chegar a isso, numerosas concertações são organizadas entre os parceiros sociais que chegam a ultrapassar seus interesses categoriais para que prevaleçam o interesse geral e os valores do pertencimento a uma vasta comunidade de cidadãos. Em um regime universalista, o Estado é o negócio de todos. O Estado está tão encarregado de representar o conjunto dos indivíduos, que o fato de contestar a sua legitimidade levaria a condenar a si mesmo. Conjurar as desigualdades extremas e a pobreza é expressão também de um consentimento, quase geral, de cada um viver próximo ao outro sem manifestar, de modo ostensivo, uma eventual superioridade de tal ou qual estatuto. A ideia de uma subordinação coercitiva e sufocante é contrária aos princípios da vida social ordinária. Nada deve vir a entravar a vontade de emancipação individual sob a ressalva, evidentemente, do respeito às instituições que facilitam a sua expressão. O sistema de proteção social é, neste caso, avançado. Financiado tanto pelo imposto quanto pela seguridade social, ele permite chegar a uma "desmercantilização" de nível muito elevado. Enfim, o civismo é aí igualmente forte. O associacionismo não é mais desenvolvido do que o regime voluntarista, mas o engajamento cívico passa, sobretudo, pelo respeito indefectível das instituições públicas. Esse regime conjuga, afinal, uma condição salarial altamente protetora e uma concepção da cidadania e dos direitos individuais que torna possível a autonomia em relação às formas primárias de solidariedade.

A definição dessas diferentes configurações de vínculo, que uma análise comparativa das sociedades modernas leva a aprofundar sempre mais, permite sublinhar as necessárias extensão e avanço do quadro analítico de Durkheim.

Conclusão

O vínculo à sociedade é, para Durkheim, a fonte da moral. Esse vínculo superior passa por um conjunto de vínculos a grupos diversos. Durkheim entrevê, no fim do século XIX, o desenvolvimento acelerado da sociedade industrial. Nesse contexto, o laço de participação orgânica está, segundo ele, a se tornar dominante. Se ele entende reforçá-lo advogando em favor das corporações, isso ocorre para prevenir os riscos de desorganização e de anomia que ameaçam a coesão social. Mas não se deve concluir, daí, que esse tipo de laço é o único que permite a integração dos indivíduos à sociedade e a integração da sociedade. Durkheim insiste também na moral doméstica e no laço de filiação, na moral cívica e no laço de cidadania. Em O Suicídio, ele reconhece igualmente o papel da religião. Finalmente, na Educação Moral, ele lamenta a fraqueza do papel das associações na sociedade francesa. Dito de outro modo, Durkheim sustenta a tese da diversidade dos laços sociais que constituem muitas fontes variadas da moral ou, mais precisamente, muitas possibilidades diferenciadas para o indivíduo elevar-se à vida moral.

O homem solidário de Durkheim é um indivíduo ao mesmo tempo autônomo e ligado a outros e à sociedade, um indivíduo consciente das regras morais que implicam a participação na vida social. Se ele as aceita, é pelo prazer encontrado na reciprocidade da associação e no sentimento de ser útil. Esta consciência permanece, todavia, frágil; corre até mesmo o risco de desaparecer em certas circunstâncias. Interessa-lhe, então, mantê-la: tal é a função do Estado. Durkheim conceituou, de certa forma, um modo particular de regulação social dos vínculos, a partir de uma representação organicista da solidariedade. É preciso reconhecer a força dessa teoria, mesmo se o conhecimento das sociedades modernas nos conduz a ressaltar que podem existir outras configurações ou regimes de vínculos.

A teoria social do vínculo, tal como podemos construir hoje, é ao mesmo tempo a herdeira do núcleo conceitual deixado pelo fundador da sociologia francesa e o resultado das aquisições da sociologia comparativa, que é fundada sobre uma abordagem não normativa das sociedades modernas e sensível à sua diversidade. Eis a razão pela qual essa teoria está destinada, como qualquer teoria, a ser prolongada e enriquecida. Este é o papel que cabe aos sociólogos contemporâneos.

Referências

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  • 1
    A tradução do original em francês foi realizada por André Magnelli (FSB-RJ | SOCIOFILO-IESP-UERJ | GRECIN-IBMEC-RJ), com revisão de Lucas Page Pereira(PRINTEMPS-UVSQ-CNRS | ENS-Cachan).
  • 2
    N.T. É importante apresentar algumas razões sobre a tradução das palavras attachement e lien. Na esmagadora maioria das traduções dos textos de Durkheim, o termo liené traduzido por "vínculo" (devo essa observação ao revisor da tradução). Contudo, caso o fizéssemos, a sutileza conceitual e a interpretação de Paugam se perderiam, pois ele trabalha com diferenças semânticas entre lien e attachement. O problema durkheimiano do qual Paugam parte é a possibilidade de um indivíduo autônomo se vincular à (s'attacher à) sociedade. O termo liené utilizado, então, em um sentido amplo, próximo ao termo relation, como correlato ao emprego no português de "laço" (utilizado, por exemplo, em "laço social" ou "laço entre pessoas"). Paugam não se propõe, contudo, a fazer uma teoria dos laços sociais, mas sim uma "teoria social do vínculo" (théorie social de l'attachement), desenvolvendo uma tipologia das configurações ou regimes de vínculos (configurations ou regimes de l'attachement). O attachement é, para ele, uma forma específica de lien, a saber, um tipo de laço forte e obrigatório de um termo a outro - ou, ao menos, de (inter-)dependência -, normativamente regulado e/ou integrado. Ele pode formar um vínculo de um indivíduo/grupo a outro indivíduo/grupo (l'attachement aux groupes), ou de um indivíduo/grupo à sociedade como um todo (l'attachement à la société). Nota-se, dessa forma, que, embora seja comum traduzir o termo attachement como sendo um tipo específico de vínculo (emocional ou afetivo), Paugam o utiliza em um sentido mais amplo, que inclui os mais diversos tipos de vínculos. Por estas razões, optei por traduzir sempre os substantivos lien(s) e attachement(s) por "laço(s)" e "vínculo(s)", e as formas verbais rattacher/attachere lier, respectivamente, por vincular e ligar. Attachement poderia ser traduzido também sem perdas por "vinculação", mas o recusamos, seguindo indicação de R. Weiss e do próprio Paugam, a fim de evitar uma sobrecarga semântica e certa tendência substantivista atrelada ao termo.
  • 3
    A física geral dos costumes e do direito aparece como título desde 1896-1897 e Durkheim o conservará durante quatro anos. Sublinhemos que o tema da moral cívica e profissional, que está em questão em Lições de Sociologia (2015 [1950]), aparece como uma subparte de seu curso do ano 1899-1900. Notemos, também, que ele já tinha utilizado um título muito próximo em 1890-1891: "Fisiologia do direito e dos costumes (a família)". Ver sobre este assunto: Fournier,2007, p. 125.
  • 4
    Notemos aqui que o tema do vínculo aos grupos está igualmente muito presente em As Formas Elementares da Vida Religiosa (2008 [1912]), quando Durkheim analisa o fenômeno da efervescência coletiva nas sociedades australianas. Ele destaca que a excitação coletiva é produzida pelo vínculo recíproco dos indivíduos quando eles compartilham valores sociais e, portanto, uma mesma vida moral.
  • 5
    Em uma nota de rodapé acrescentada após a primeira edição, Durkheim indica aliás que a legislação industrial desde 1893 assumiu um lugar importante: "É o que prova o quanto a lacuna era grande, e é errôneo pensar que tenha sido preenchida" (2007b., p. 359).
  • 6
    Para confirmar este segundo caso, mais inesperado, ele dá o exemplo das duas décadas que se seguiram à conquista da unidade da Itália em 1870. O comércio e a indústria se desenvolveram em um ritmo muito rápido; ora, a esse crescimento excepcional da atividade correspondeu um crescimento igualmente excepcional do número de suicídios.
  • 7
    Em suas Lições de Sociologia, ele vai sustentar, inclusive, que "a vida que nos rodeia imediatamente não é mesmo aquela que nos interessa mais vividamente. Professor, industrial, engenheiro, artista, não são os acontecimentos que se produzem em minha localidade ou em meu departamento que me interessam mais diretamente e que me apaixonam. Eu posso até mesmo viver minha vida, de modo regular, ignorando-os" (2015, p.207).
  • 8
    Nas sociedades totalitárias, em que o direito de voto não existe e as liberdades fundamentais não são reconhecidas, é improvável, com efeito, chamar de "laço de cidadania". Falar-se-á, antes, de um laço que pode vincular os indivíduos a sua nação a despeito do regime político de restrições no qual eles vivem.
  • 9
    Ao fazer isso, eu não reduzo a noção de economia moral às sociedades do passado, à ordem moral antiga e aos combates que trazem em seu nome as camadas dominadas para se defender dos desregramentos do capitalismo e da opressão que elas sofrem. Sobre esse ponto ver o livro clássico do historiador E. P. Thompson (1988): La formation de la classe ouvrière anglaise.
  • 10
    Ao falar de fatores associados e não de fatores explicativos, pretendo ressaltar que a causalidade não repousa sobre esses fatores tomados separadamente. Em compensação, esses últimos podem atuar ao mesmo tempo. Eles são mais frequentemente interdependentes, e é essa interdependência que constitui, parece-me, a chave da explicação causal mais provável (Paugam, 2016a, pp. 23-46.
  • 11
    Raymond Aron definia a sociedade industrial a partir de cinco dimensões: 1)a separação entre, de um lado, o lugar do trabalho e da empresa e, de outro, o da família, muito embora essa separação não tenha sido universal e tenha sempre existido uma parte nada negligenciável de empresas artesanais onde as duas funções econômicas e familiares se confundem e são frequentemente reagrupadas em um mesmo lugar; 2) a divisão do trabalho entre os setores da economia, mas também no interior das empresas em função das necessidades tecnológicas; 3) uma acumulação do capital; 4) o cálculo racional para obter o menor custo e, assim, renovar e aumentar o capital; 5) a concentração do trabalhador no lugar de trabalho (Aron, 1988).
  • 12
    Tocqueville insistiu no voluntarismo associativo visto por ele nos Estados Unidos em Da Democracia na América (Tocqueville, 1992 [1835-1840]). Ainda hoje, a sociedade americana pode ser considerada como próxima a uma configuração voluntarista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2016
  • Aceito
    14 Dez 2016
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