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Desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social

Racial inequality in intergenerational transmission of social class inheritance

Resumo

O estudo aborda as discrepâncias raciais que se manifestam na transmissão intergeracional de vantagens e desvantagem de origem de classe social. O foco é a desigualdade racial condicional à origem de classe. A origem de classe foi mensurada por uma tipologia de classes neomarxista. O destino social foi concebido como chances de vida e mensurado pela renda dos filhos. Foram estimadas médias preditas e diferenças proporcionais na renda com base em um Modelo Linear Generalizado e nos dados de mobilidade social da PNAD de 2014. A desigualdade racial na transmissão da herança de classe é marcante no Brasil ao nível agregado das coortes. Regra geral, as discrepâncias raciais no efeito total e no efeito direto da origem de classe se mantiveram na maioria das circunstâncias. Nas origens de classe de maior peso demográfico, no agregado das coortes, não é certo que exista uma associação empírica entre educação superior e menor discrepância racial na transmissão da herança de classe. Entretanto, na coorte mais recente, particularmente nas origens privilegiada e destituída, a distância racial fica incerta, o que pode refletir processos de seletividade e não de equalização.

Palavras-chave
mobilidade social; origem e destino; classe e raça; desigualdade racial

Abstract

The study addresses racial discrepancies manifested in intergenerational transmission of advantages and disadvantages of social class origin. It focuses on racial inequality conditional on class origin. Class origin was measured using a neo-Marxist class typology. Social destination was conceived as life chances and measured by children’s income. Predicted averages and proportional differences were estimated through a Generalized Linear Model and social mobility data retrieved from PNAD 2014. Racial inequality in transmission of class inheritance is striking in Brazil at the aggregate level of cohorts. Generally, racial discrepancies in both total effect and direct effect of class origin have remained in most circumstances. In class origins of greater demographic weight, in the cohorts aggregate, an empirical association between higher education and less racial discrepancy in the transmission of class inheritance is not certain. However, in the most recent cohort, particularly in the privileged and destitute origins, racial distance is uncertain, which may reflect processes of selectivity rather than equalization.

Keywords
social mobility; origin and destination; class and race; racial inequality

Fundamentos, abordagem e questões de pesquisa

Os estudos de mobilidade social mensuram o grau de associação que existe entre a condição socioeconômica dos pais e dos filhos. Quanto mais forte for o grau de associação, menor será o nível de mobilidade social entre as gerações. Uma associação mais baixa quer dizer que a trajetória dos indivíduos é menos influenciada pelas condições de origem social. Estudos com orientações convergentes investigaram, no Brasil, a associação entre origem de classe e destino social, focalizando o acesso ao topo social e a renda dos filhos. Trabalho posterior analisou os padrões de associação por origem de classe, considerando as suas variações por gênero e níveis da distribuição da renda (Figueiredo Santos, 201911 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Origem de classe e destino ao topo social no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, v. 7, n. 16, p. 82-104, 2019. https://doi.org/10.20336/rbs.492
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, 202010 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Origem de classe e chances de vida no Brasil. Revista de Ciências Sociais, v. 51, n.1, p. 249-290, 2020. http://dx.doi.org/10.36517/rcs.51.1.a02
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, 20219 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Origem de classe, gênero e transmissão das desigualdades no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 31, n.107, p. 1-28, 2021. http://dx.doi.org/10.1590/3610711/2021
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). Este artigo analisa a desigualdade racial na transmissão intergeracional das vantagens e desvantagens de origem de classe social no Brasil. No estudo, a origem social corresponde, então, às circunstâncias de classe de criação dos indivíduos. O destino social foi concebido como chances de vida e mensurado pela renda dos filhos. Classe social se apresenta como fator fundamental na associação entre origem e destino social. Na trajetória da origem ao destino social, as divisões de raça representam fatores importantes capazes, em certo grau, de modificar o efeito primário de classe. A transmissão intergeracional da herança de classe social pode ser maior ou menor em um contexto, a depender das interações entre origem de classe e raça. Nesse sentido, o trabalho realiza um estudo de mobilidade social no Brasil, em que a renda dos filhos foi tomada como realização de destino social, o que não deve ser confundido com o propósito de abarcar os determinantes fundamentais das desigualdades de renda entre os indivíduos.

As desigualdades de status, como raça, são baseadas em crenças culturais acerca da capacidade e do valor social dos membros de certas categorias em comparação com outras, sendo que essas distinções essenciais são usadas para organizar as relações com os outros e criar fronteiras entre as categorias sociais. As demarcações de status tornam-se mais efetivas e salientes na geração de desigualdades de oportunidades e recompensas entre os grupos, na medida em que estão ligadas às hierarquias de poder e às assimetrias de recursos valiosos na sociedade (Ridgeway, 201327 RIDGEWAY, Cecilia L. Why status matters for inequality. American Sociological Review, v. 79, n. 1, p. 1-16, 2014. https://doi.org/10.1177/0003122413515997
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; Tilly, 199931 TILLY, Charles. Durable inequality. Berkeley: University of California Press, 1999.). As divisões de raça representam grupos sociais tipicamente criados pelo modo de definir os “outros” como distintos em virtude de características físicas supostamente inerentes e consideradas comuns aos seus membros. Essas demarcações entre categorias tornam-se socialmente relevantes ao serem ativadas para interpretar experiências, estabelecer relações sociais, orientar atitudes e organizar comportamentos. Os grupos sociais brancos têm exercido, no curso da trajetória da sociedade moderna, maior poder de fazer designações raciais, organizar a vida social em termos raciais e associar um valor “inferior” às categorias racialmente assinaladas (Cornell; Hartmann, 19986 CORNELL, Stephen; HARTMANN, Douglas. Ethnicity and race: making identities in a changing world. Thousand Oaks: Pine Forge Press, 1998.).

As interações entre origem de classe e divisões raciais estão no centro desta investigação. Representa um conhecimento bem estabelecido sobre interações entre variáveis, que elas envolvem relações simétricas (Kam; Franzese, 200721 KAM, Cindy; FRANZESE JR., Robert J. Modeling and interpreting interactive hypotheses in regression analysis: a refresher and some practical advice. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2007.). Parafraseando a literatura sobre interações, isso significa que, quando o efeito de origem de classe é condicional à raça, o efeito de raça deve ser condicional à origem de classe. Uma hipótese sobre o sinal (positivo ou negativo) da relação entre a origem de classe, como variável condicional (Z), e o efeito marginal de raça (X) prediz que a relação entre raça, como fator condicional (Z), e o efeito marginal de origem de classe (X) tem o mesmo sinal. Entretanto, qualquer relação observada entre a origem de classe (Z) e o efeito marginal de raça (X) é sempre consistente com uma ampla variedade de maneiras pelas quais o efeito marginal da condição de classe (Z) varia com a raça (X) e vice-versa (Berry et al., 20123 BERRY, William D.; GOLDER, Matt; MILTON, Daniel. Improving tests of theories positing interaction. The Journal of Politics, v. 74, n. 3, p. 653-671, 2012. https://doi.org/10.1017/S0022381612000199
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). As escolhas relativas à forma de abordagem e à modalidade de comparação nas interações possuem implicações que devem ser consideradas.

Na análise de mobilidade social, quando se destaca um fator atribuído ou de status social, como raça ou gênero, regra geral, as relações entre origem e destino são apresentadas em separado por grupo. Este tem sido o modo padrão de tratar as diferenças de status em mobilidade social. Quando se aborda a desigualdade de origem de classe entre os pares de raça, a comparação está sendo feita dentro de cada grupo racial. O foco é a desigualdade de origem de classe condicional ao grupo racial. Estão sendo observadas as diferenças de trajetórias da origem ao destino em cada grupo. Este estudo desenvolveu um enfoque alternativo, ao estimar a desigualdade racial entre os pares de origem de classe. A comparação racial está sendo feita diretamente dentro de cada origem de classe. O foco é a desigualdade racial condicional à origem de classe. Procura-se caracterizar o processo de interação estrutural entre origem de classe e raça, assim como a sua evolução temporal, que pode acentuar ou atenuar a desigualdade racial na transmissão intergeracional da herança de classe social.

Os estudos de mobilidade social organizam-se no espaço analítico que envolve as conexões entre origem social, mediação educacional e destino social. O presente estudo vai focalizar o que se passa com as discrepâncias raciais na associação total e na associação direta entre origem social e realização socioeconômica dos filhos. A associação total ou o efeito total capta a influência de todos os fatores que estão associados direta ou indiretamente à origem de classe. Representa um indicador geral da transposição ou persistência do condicionamento de origem. O indicador serve também como uma base de comparação para situar o papel e a dimensão assumida pelos fatores mediadores ou intervenientes, notadamente a educação, na realização socioeconômica dos filhos.

A associação direta (ou efeito direto) expressa o que ocorre com a associação entre origem e destino não mediada pela educação ou, colocado de outro modo, a associação socioeconômica intergeracional entre pessoas do mesmo nível educacional. A associação direta retrata o efeito líquido da origem não alterado no curso do processo de mediação educacional. De um lado, representa outro modo de aferir a força primordial da origem social que abre ou limita caminhos na trajetória dos filhos. De outro lado, presta-se a avaliar a tese do papel equalizador da educação, ou seja, a capacidade da educação adquirida, notadamente a educação superior, em autonomizar a trajetória dos filhos do condicionamento de origem. O estudo elegeu a relação direta entre origem e destino como um elo analítico especialmente esclarecedor. Focalizar a influência direta da origem social em meio às mudanças estruturais pode ser um modo de recolocar, ou ver de um ângulo revelador, a transmissão intergeracional das desigualdades (Bernardi; Ballarino, 2016a1 BERNARDI, Fabrizio; BALLARINO, Gabriele. Education, occupation and social origin: a comparative analysis of the transmission of socio-economic inequalities. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2016a.). A proposição do papel da educação como grande equalizador social requer, como corolário, que a associação direta entre origem e destino, após controlar a realização educacional, equipare-se ou tenda a zero no curso do tempo ou da sucessão de coortes (Bernardi; Ballarino, 2016b2 BERNARDI, Fabrizio; BALLARINO, Gabriele. Introduction: education as the great equalizer: a theoretical framework. In: BERNARDI, F.; BALLARINO, G. (ed.). Education, occupation and social origin: a comparative analysis of the transmission of socio-economic inequalities. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2016b. p. 1-19.). Pretende-se investigar, neste artigo, a provável discrepância racial e sua evolução temporal na realização ou frustação desse suposto papel equalizador da educação.

Mobilidade social diz respeito à transmissão intergeracional das desigualdades socioeconômicas. O entendimento do regime de mobilidade social não pode ser conduzido somente ao nível agregado de todas as coortes de nascimento. Os padrões de associação podem não ser os mesmos em diferentes coortes. Uma questão crítica diz respeito à caracterização do que ocorre com a associação entre origem e destino no curso dos processos de mudanças sociais. O condicionamento de origem pode variar em cada coorte de modo a indicar ou não uma tendência histórica. Uma flutuação sem tendência ou direção certa pode se formar, ensejando, em certo sentido, um tipo de reprodução ou continuidade do padrão histórico do passado. Os padrões de associação vão ser analisados no curso da sucessão de coortes para divisar uma tendência temporal na sociedade brasileira.

As desigualdades de origem na aquisição da educação vão ser tomadas como dadas, embora a passagem do efeito total ao efeito direto permita perceber a interferência da desigualdade educacional. A parte final do estudo vai ser organizada, como antes, em torno da proposição do papel equalizador em especial da educação superior. Analisa-se, entre as pessoas do mesmo nível educacional, a associação direta entre origem de classe e renda dos filhos adultos. A ideia equalizadora supõe que a associação entre origem e destino seria menor em níveis maiores de escolaridade. A transposição dessa proposição para a problemática racial seria a expectativa das discrepâncias raciais serem menores ao nível da educação superior.

Os problemas relativos à desigualdade racial no processo de mobilidade social foram traduzidos e agregados em três questões de pesquisa orientadoras: (i) existe uma ponderável desigualdade racial na associação total e na associação direta (não mediada pela educação) entre a origem de classe e a renda dos filhos, ou seja, na transmissão da herança de classe social? (ii) Existe uma tendência temporal na sucessão das coortes de declínio da desigualdade racial no efeito total e no efeito direto da origem de classe, após o controle da educação adquirida? (iii) A discrepância racial do efeito direto de origem na renda dos filhos varia por níveis de escolaridade ou, de modo mais específico, a discrepância racial é menor entre os indivíduos mais educados?

Revisão da literatura nacional recente

Visando situar o artigo no campo de estudos, realiza-se uma síntese das evidências de trabalhos mais recentes na área de sociologia, que destacam o papel de raça nas tendências de mobilidade social no Brasil. Estudo de Ribeiro (2006)25 RIBEIRO, Carlos Antônio. Classe, raça e mobilidade social no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 49, n. 4, p. 833-870, 2006. https://doi.org/10.1590/S0011-52582006000400006
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, usando dados da PNAD de 1996, não constatou a existência de desigualdade racial nas chances de mobilidade ascendente entre as classes mais baixas. Entretanto, nas classes mais altas os brancos têm mais chances de se manterem no topo da hierarquia de classes, enquanto os pardos e pretos têm mais chances de mobilidade descendente. Em estudo posterior, usando uma escala contínua de cor com dados de 2008, Ribeiro (2017)24 RIBEIRO, Carlos Antônio. Contínuo racial, mobilidade social e “embranquecimento”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 95, p. 1-24, 2017. https://doi.org/10.17666/329503/2017
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constatou que, à medida que se sobe na estrutura social, embora aumente a ambiguidade e o “embranquecimento” na definição de cor, há bastante desigualdade racial nas chances de mobilidade social.

Estudo de Souza, Ribeiro e Carvalhaes (2010)30 SOUZA, Pedro H. G. F. de; RIBEIRO, Carlos Antônio; CARVALHAES, Flávio. Desigualdade de oportunidades no Brasil: considerações sobre classe, educação e raça. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 73, p. 77-100, 2010. https://doi.org/10.1590/S0102-69092010000200005
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sobre a desigualdade de oportunidades no Brasil pondera que não existiriam diferenças significativas no padrão de mobilidade de brancos, pardos e pretos, em duas dimensões importantes, considerando que nem os retornos à educação nem a associação entre origem e destino variam por cor ou raça. O efeito direto da origem, controlado pela educação, é mais decisivo do que a cor para as chances de mobilidade de longa distância. No entanto, para as chances de mobilidade de curta e média distância pesa mais ser branco – e não preto.

Estudo mais recente analisa, de forma desagregada por raça, tipo de família (baseado na inserção no trabalho) e gênero, a persistência intergeracional de status socioeconômico no Brasil. O estudo funde as bases de dados da PPV de 1996 e PNAD de 2014, usa o índice internacional de status socioeconômico (ISEI), estima o grau de persistência por regressão mediana e diferencia famílias em que ambos os pais tinham ocupação, somente o pai e somente a mãe. O estudo constata que a desigualdade racial na persistência intergeracional diminuiu ou não dependendo das características da família. Destaca-se, nesse registro, o que ocorre com os arranjos que são demograficamente mais importantes. A desigualdade racial diminuiu, ao ponto de desaparecer, para homens e quando ambos os pais tinham ocupação, mas não se altera quando somente um deles era ocupado. Não existiria desigualdade racial, nem mudança na persistência, ao longo das coortes, para as mulheres, quando ambos os pais ou apenas o pai tinha ocupação (Ribeiro, 202023 RIBEIRO, Carlos Antônio. Mudanças nas famílias dos jovens e tendências da mobilidade social de brancos e negros no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, v. 39, v. 2, p. 257-279, 2020. https://doi.org/10.25091/s01013300202000020002
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). Embora o artigo não explicite de forma clara este ponto, os resultados indicam que, demograficamente, considerando o peso relativo dos grupos, predominaria uma situação de supressão da desigualdade racial na persistência intergeracional em coortes mais jovens.

Uma análise de trajetória social da desigualdade racial de renda se aproxima da temática de mobilidade social ao focalizar as associações entre origem social, raça e renda dos filhos. O estudo usa a PNAD de 2014, modelos de equações estruturais e compara os efeitos diretos, indiretos e totais da raça e origem social sobre a renda do trabalho. O estudo conclui, embora com certa cautela, ao considerar tanto os efeitos diretos quanto indiretos, que a distância racial de renda deve ser atribuída mais à hierarquia racial do que à origem social. A maior parte das desvantagens de renda dos negros (pardos e pretos), quando se olha para a trajetória dos grupos, ocorre principalmente de modo indireto, sendo mediada pela educação e ocupação dos filhos (Salata, 202028 SALATA, André. Race, class and income inequality in Brazil: a social trajectory analysis. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 63, n. 3, p. 1-40, 2020. https://doi.org/10.1590/dados.2020.63.3.213
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).

Distribuição de classe e educação entre coortes por raça

Em sintonia com o desenho da investigação, são apresentados, na Tabela 1, dados descritivos das mudanças estruturais na distribuição de classe e da educação que impactam os padrões de associação entre origem, educação e destino entre as coortes investigadas. Na parte à esquerda da Tabela, mostram-se a distribuição de classe e a renda média atual do filho. No total de cada coorte, registra-se a respectiva distribuição de classe dos pais. A diferença mais marcante se dá no contraste dos polos da estrutura social. No grupo branco, 11,2% dos pais estavam no topo social na primeira coorte, sendo que, na atualidade, 21,5% dos filhos ocupam esta posição. No grupo pardo e preto o topo social passou de 4,0% dos pais na primeira coorte para 8,4% dos filhos em 2014. Na origem de destituído, o grupo branco evoluiu de 30,5% dos pais para 22,7% dos filhos na mesma comparação. Já o grupo pardo e preto ficou quase estacionado nessa condição desvantajosa, pois representava 39,7% dos pais e corresponde a 38% dos filhos em 2014. Nesta data, o grupo branco equivale a 2,6 vezes a cada pardo e preto no topo social. Já o grupo pardo e preto está fortemente concentrado no agrupamento destituído. Representa 70% da base social formada pela agregação de trabalhador e destituído, contra 54,4% do grupo branco.

Tabela 1
Distribuição percentual entre origem de classe e nível educacional do filho/a, por coorte e raça, com totais por origem e educação, mais classe e renda atual do filho/a, Brasil

A renda média do grupo branco se distancia daquela do grupo pardo e preto, especialmente nos grupos com vantagens de classe, ou sem desvantagens, em maior ou menor grau, nas dimensões de propriedade, autoridade e qualificação escassa no mercado, como pode ser visto nos agrupamentos do topo social, qualificado/supervisor e pequenos ativos. No grupo pardo e preto o agrupamento de pequenos ativos tem renda quase igual à do trabalhador típico, ao contrário do grupo branco, sinalizando que, no grupo pardo e preto, os ativos econômicos dessa categoria são de valor menor ou geradores de menor ganho. Como desdobramento de conjunto dessa situação, a renda média agregada do grupo branco é bem maior.

O nível denominado “Fundamental” agrupa médio incompleto, fundamental ou menos. “Médio” corresponde a médio completo ou superior incompleto. A última categoria é o nível “Superior” completo. Na linha que computa o Total, na margem inferior esquerda de cada grupo racial, está a distribuição educacional geral dos filhos em cada coorte. Na primeira coorte, ela era bem desfavorável ao grupo pardo e preto, devido aos desequilíbrios nos níveis “Fundamental” e “Superior”. Na última coorte, o desequilíbrio se mantém, porém aumentou a desproporção ao nível da categoria “Fundamental”, em que o progresso do grupo pardo e preto foi bem menor no curso da expansão educacional. Ao nível do “Superior”, não foi reduzida a desproporção de 2,6 brancos para cada 1,0 pardos e pretos que existia na primeira coorte.

Na parte da linha interna está a distribuição educacional, por origem de classe, respectivamente, dentro da primeira e da coorte mais recente. Quando originário do topo social, o filho pardo e preto avançou muito no acesso ao nível “Superior” (de 26,7 para 41,7%), no entanto, ainda assim, 20,5% das pessoas vindas dessa origem ficam somente ao nível “Fundamental”. Como, dessa origem privilegiada, já na primeira coorte, uma grande proporção (48,5%) de filhos brancos já atingia o nível “Superior”, o avanço educacional na última coorte foi menos marcante (58,1%). Por outro lado, o fracasso na aquisição educacional, vindo dessa origem privilegiada, reduziu-se bastante, pois na última coorte somente 6,8% dos filhos ficam ao nível “Fundamental”. Com isso, para a origem no topo social, na última coorte, 93,2% do grupo branco possui de médio completo para mais, contra 79,5% do grupo pardo e preto. Na origem de destituído, o grupo branco com educação média ou mais passou de 25,9% para 60,1%, sendo que, entre estes, obter o superior completo passou de 10% para 13,9%. Na mesma origem e no critério de educação média ou mais, o grupo pardo e preto evoluiu de 12,9% para 44,0%, porém a obtenção de superior completo teve uma alteração mínima de 4,1% para 4,9%. Nas duas comparações, a trajetória do grupo pardo e preto foi pior.

Métodos

As divisões de classe social, na abordagem neomarxista do estudo, são constituídas por desigualdades de direitos e poderes sobre recursos produtivos que geram vantagens e desvantagens entre categorias (Wright, 199734 WRIGHT, Erik O. Class counts: comparative studies in class analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.). A variável independente classe social foi mensurada por uma tipologia ajustada às especificidades da estrutura social do país (Figueiredo Santos, 2005a13 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Uma classificação socioeconômica para o Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 58, p. 27-45, 2005a. https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000200002
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, 201012 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Comprehending the class structure specificity in Brazil. South African Review of Sociology, v. 41, n. 3, p. 24-44, 2010. http://dx.doi.org/10.1080/21528586.2010.516119
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). Utiliza-se aqui uma versão compacta dessa classificação, que diferencia cinco grandes agrupamentos de classe. O topo social envolve as categorias de empregadores, especialista autônomo, empregado especialista e gerente. Os empregados qualificados e os supervisores formam um segmento diferenciado no trabalho assalariado. A categoria de detentores de ativos de menor valor é composta pelo autônomo com ativos e o autônomo agrícola. O trabalhador típico representa o assalariado submetido estruturalmente aos processos conjugados de controle e apropriação dos resultados do trabalho. Por fim, diferencia-se um agrupamento destituído, composto por trabalhador elementar, autônomo precário, empregado doméstico, trabalhador de subsistência e trabalhador excedente (desempregado). Na mensuração da classe de origem foi usado o critério de dominância, considerando o emprego mais elevado entre os pais. A variável independente raça foi usada de forma binária, diferenciando o branco e o conjunto pardo e preto. As categorias de indígena e amarelo foram excluídas da análise, visando focalizar o divisor racial fundamental no Brasil (Figueiredo Santos, 2005b14 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Efeitos de classe na desigualdade racial no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 1, p. 21-65, 2005b. https://doi.org/10.1590/S0011-52582005000100003
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).

A investigação utiliza os dados do suplemento de mobilidade social da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, respondido pelo morador de 16 anos ou mais de idade selecionado aleatoriamente. A amostra analítica, que foi usada em todas as estimativas, possui 30328 casos com idade de 27 a 66 anos e informações válidas nas variáveis usadas nos modelos. A variável dependente do estudo é a renda de todas as fontes dos filhos. A desigualdade de recompensas por classe social de origem mostra-se maior com o uso de medidas de renda mais inclusivas (Hansen, 200118 HANSEN, Marianne. Education and economic rewards: variations by social class origin and income measures. European Sociological Review, v. 17, n. 3, p. 209-231, 2001. https://doi.org/10.1111/1468-4446.12040
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). Todos os modelos controlam por gênero, coorte, tipo de família por inserção econômica dos pais, área urbana/rural e Unidade da Federação (UF) onde o filho morava aos 15 anos. Como a maioria dos controles potenciais pode estar associada à origem social, os controles justificáveis seriam aqueles determinados antes de se entrar no mercado de trabalho (Hällsten, 201317 HÄLLSTEN, Martin. The class-origin wage gap: heterogeneity in education and variations across market segments. The British Journal of Sociology, v. 64, n.4, p. 662-690, 2013. https://doi.org/10.1111/1468-4446.12040
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). As quatro coortes usam intervalos de dez anos, que diferenciam os indivíduos nascidos nos anos de 1948-1957, 1958-1967, 1968-1977 e 1978-1987. A educação distingue as principais transições educacionais: sem instrução, fundamental incompleto, fundamental completo, médio incompleto, médio completo, superior incompleto e superior completo. Na análise da associação intergeracional por níveis educacionais, estes foram agregados em três categorias (médio incompleto, fundamental ou menos; médio completo ou superior incompleto; superior completo), visando captar efeitos interativos mais precisos. A variável área diferencia se o filho morava em zona urbana ou rural quando tinha quinze anos. Os tipos de família distinguem as circunstâncias em que ambos os pais trabalhavam, somente o pai, somente a mãe ou nenhum dos pais trabalhava. A Tabela 1 apresenta estatísticas descritivas da distribuição combinada das variáveis mais informativas para a análise; por questão de espaço, estatísticas de outras variáveis estão somente no arquivo digital referido na nota da Tabela 2.

Tabela 2
Renda predita de todas as fontes em Reais, por origem de classe e raça, efeito total e direto, mais diferença racial (branco vs. pardo e preto) e de origem (topo vs. outro). Brasil, PNAD 2014

No tratamento da mobilidade social, o estudo adota uma “abordagem de coorte” em que a comparação dos padrões temporais é realizada dependendo de quando as pessoas nasceram. Essa abordagem tem a virtude, como realçado na literatura internacional, de fazer comparações que captam os efeitos das mudanças estruturais em estágios críticos do curso de vida das pessoas (Breen; Müller, 20204 BREEN, Richard; MÜLLER, Walter. Education and intergenerational social mobility in Europe and the United States. Stanford: Stanford University Press, 2020.). Os efeitos estão sendo estimados no agregado e em cada coorte distinta, compondo uma sucessão de coortes, visando captar alterações ou persistências temporais nos padrões de associação entre origem e destino ou, de modo mais específico, na desigualdade racial na transmissão da herança de classe social. Tendo em vista a abordagem definida, os efeitos das variáveis independentes no destino social foram estimados com um Modelo Linear Generalizado (Generalized Linear Model, GLM). O modelo GLM é formado por três componentes. A distribuição condicional da variável dependente (Y), ou do seu valor esperado E(Y), representa o componente aleatório. O componente sistemático corresponde às variáveis independentes e ao modo como estas são combinadas. Existe, por fim, uma função de ligação suave, que é aplicada ao valor esperado para que este possa ser modelado de uma maneira linear usando o componente sistemático. Essa família de modelos separa a distribuição do erro da função de ligação e permite estender o modelo de regressão padrão de dois modos diferentes: escolhendo uma distribuição do erro não-normal e usando uma função de ligação não-linear. O modelo GLM com a distribuição Gamma (flexível) do componente aleatório e a função de ligação logarítmica (internalizada, linearizante e invertível), além de gerar valores preditos e resíduos na métrica original da variável dependente antes da aplicação da função, evitando qualquer viés de transformação, mostra-se apropriado para lidar com uma variável assimétrica como a renda (Hardin; Hilbe, 201819 HARDIN, James; HILBE, Joseph. Generalized linear models and extensions. 4. ed. College Station: Stata Press, 2018.; Fox, 201615 FOX, John. Applied regression analysis and generalized linear models. 3. ed. Thousand Oaks: Sage, 2016.; Deb et al., 20177 DEB, Partha; NORTON, Edward C.; MANNING, Willard G. Health econometrics using Stata. College Station: Stata Press, 2017.). As estatísticas AIC e BIC confirmaram que o modelo GLM com essas especificações oferece melhor ajuste.

Os efeitos foram expressos em termos de rendas médias preditas e diferenças proporcionais de renda, que representam grandezas derivadas dos coeficientes de regressão, o que torna supérfluaa apresentação dos próprios coeficientes. As escolhas realizadas decorrem do uso de interações entre as variáveis, pois a equivalência entre coeficiente e efeito deixa de ser válida nesta situação (Kam; Franzese Jr., 200721 KAM, Cindy; FRANZESE JR., Robert J. Modeling and interpreting interactive hypotheses in regression analysis: a refresher and some practical advice. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2007.), do propósito de gerar resultados mais claros e interpretáveis (Williams, 201233 WILLIAMS, Richard. Using the margins command to estimate and interpret adjusted predictions and marginal effects. The Stata Journal, v. 12, n. 2, p. 308-331, 2012. https://doi.org/10.1177/1536867X1201200209
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) e do objetivo de garantir a comparabilidade entre os efeitos na renda em diferentes coortes (Torche, 201532 TORCHE, Florencia. Analyses of intergenerational mobility: an interdisciplinary review. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 657, n. 1, p. 37-62, 2015. https://doi.org/10.1177/0002716214547476
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). Nos gráficos são colocados os intervalos de confiança que mostram o grau de precisão das estimativas. Resultados completos dos modelos (sintaxes e estimativas do Stata) são disponibilizados em arquivo digital referido na nota da Tabela 2.

As diferenças proporcionais são baseadas em semielasticidade, que é um híbrido de efeitos marginais (ou parciais) e elasticidade e mede a mudança no logaritmo do resultado (Y) associada à mudança de uma unidade em X (Cameron; Trivedi, 20095 CAMERON, A. Colin; TRIVEDI, Pravin K. Microeconometrics using Stata. College Station: Stata Press, 2009.). Efeitos marginais (ou parciais) representam uma forma de resumir o efeito da variável independente em termos das predições do modelo estatístico (Mize, 201922 MIZE, Trenton D. Best practices for estimating, interpreting, and presenting nonlinear interaction effects. Sociological Science, v. 6, p. 81-117, 2019. https://doi.org/10.15195/v6.a4
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). As estimativas de semielasticidade ou mudança proporcional foram realizadas pelo comando margins do Stata, com a opção eydx, e depois transformadas em gráficos pelo marginsplot. Nas variáveis independentes categóricas, o efeito é computado como uma mudança discreta em relação à categoria de referência. As medidas baseadas em métrica logarítmica, ao contrário das medidas de diferenças absolutas, oferecem a vantagem de não serem influenciadas pelas diferenças de rendas médias associadas aos perfis heterogêneos de idade-ganhos das coortes (Torche, 201532 TORCHE, Florencia. Analyses of intergenerational mobility: an interdisciplinary review. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 657, n. 1, p. 37-62, 2015. https://doi.org/10.1177/0002716214547476
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). A conversão da métrica logarítmica em diferença percentual implica calcular o exponencial do valor aplicando a fórmula: [exp(Y) – 1] * 100. As duas escalas divergem crescentemente, à medida que o resultado em logaritmo aumenta. Como os valores dos gráficos estão em escala logarítmica, esta métrica vai ser usada no texto.

O comando de pós-estimação mlincom, criado para o ambiente do Stata, foi usado adicionalmente para testar as diferenças ou mudanças de efeitos no tempo e entre situações. As diferenças entre coortes ou entre situações específicas nas diferenças raciais representam diferenças de segunda ordem. Um teste de diferenças de segunda ordem (second differences) avalia se as diferenças de primeira ordem são iguais (Mize, 201922 MIZE, Trenton D. Best practices for estimating, interpreting, and presenting nonlinear interaction effects. Sociological Science, v. 6, p. 81-117, 2019. https://doi.org/10.15195/v6.a4
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). Levou-se em conta na avaliação a extensa literatura crítica sobre o uso de p-values, em particular, como critério supremo ou exclusivo de validação estatística das estimativas. Eles representariam a “ficção popular” da inferência estatística, “rasa, mas não completamente sem mérito”; a forma “mais popular e menos respeitável” de olhar para dados e modelos (Senn, 201829 SENN, Stephen. P-values. In: CHOW, S.-C. (ed.). Encyclopedia of biopharmaceutical statistics. 4. ed. Boca Raton: CRC Press, 2018. p. 1845-1854. Vol. 4., p. 1853). Foram feitas, em situações mais complexas, interpretações abrangentes dos resultados, que consideram, conjuntamente, a força das diferenças, os p-values (p) e os intervalos de confiança (IC).1 1 “Interpretação correta e cuidadosa dos testes estatísticos exige o exame dos tamanhos das estimativas de efeito e limites de confiança, bem como valores P precisos” (Greenland et al., 2016, p. 347). Vide o epidemiologista Clyde Schechter na Statalist: “Significativo versus não significativo é uma maneira enganosa de pensar sobre os efeitos. Uma maneira melhor de pensar sobre eles é considerar quão grandes eles parecem ser e quanta incerteza atribuímos à nossa estimativa de quão grandes eles são”. Fonte: https://www.statalist.org/forums/forum/general-stata-discussion/general/1408697.

Resultados e análises das questões de pesquisa

Questão (i): existe uma ponderável desigualdade racial na associação total e na associação direta (não mediada pela educação) entre a origem de classe e a renda dos filhos, ou seja, na transmissão da herança de classe social?

A Tabela 2 apresenta as estimativas necessárias à análise da questão de pesquisa. As estimativas se baseiam em interações entre origem de classe e raça. A renda predita total, ajustada por controles, como esperado, confirma as discrepâncias raciais em todos os contextos de origem de classe. As diferenças observadas são estatisticamente significativas, exceto em um caso. As diferenças são maiores em termos absolutos e relativos quando existem vantagens de origem social. Na origem de trabalhador típico e destituído, ainda assim, existem discrepâncias apreciáveis.

A diferença entre efeito total e efeito direto tem uma importância teórica e empírica especial. Mostra o montante do efeito da origem que não é mediado pela educação dos filhos. Representa um primeiro teste, ao nível agregado, da capacidade ou não da educação de reduzir a força autônoma do condicionamento de origem. Na origem no topo social, no grupo pardo e preto, o efeito direto corresponde a 77,3% do efeito total e em empregado qualificado a 90,5%. No grupo branco o efeito é também claramente majoritário, respectivamente, de 62,3% e 70,6%. Existe uma força da origem de classe que se impõe em ambos os grupos raciais. O fato de o efeito ser menos forte no grupo branco indica que nele a mediação educacional, embora não seja majoritária, é mais importante. A menor vantagem educacional do grupo negro nessas duas origens talvez explique o padrão encontrado. Tendo vantagem de origem, ainda assim, ele pode contar menos com a mediação educacional, pois os filhos convertem menos a vantagem de origem em realização educacional. Tal processo, ao mesmo tempo, contribui para que a renda predita total seja menor. Esse padrão está sendo observado ao nível agregado de todas as coortes. Mudanças temporais na sucessão das coortes vão ser tratadas mais adiante.

Nas demais origens de classe, o efeito total é suplantado pelo efeito direto ou fica bem próximo dele. O resultado observado representa o desdobramento de um processo de “mediação negativa” ou “mediação às avessas” da educação, como foi chamado em trabalhos anteriores (Figueiredo Santos, 201911 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Origem de classe e destino ao topo social no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, v. 7, n. 16, p. 82-104, 2019. https://doi.org/10.20336/rbs.492
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, 202010 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Origem de classe e chances de vida no Brasil. Revista de Ciências Sociais, v. 51, n.1, p. 249-290, 2020. http://dx.doi.org/10.36517/rcs.51.1.a02
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). A renda predita direta, com o controle da educação, representa a renda esperada quando se remove do efeito total a distribuição desigual da educação e a mudança da renda sob o efeito da educação. O resultado observado reflete, então, em particular, a desvantagem na aquisição da educação, vinda dessas origens, além de alguma desvantagem adicional na conversão de educação em melhor renda para os filhos. Parece revelador o fato de esta “mediação negativa” ser mais acentuada no grupo pardo e preto.

A Tabela 2 registra também a diferença racial a favor do grupo branco no efeito total e no efeito direto. Como os patamares de renda de brancos e de pardos e pretos são desiguais, em vez de olhar para as diferenças absolutas, regra geral, seria melhor destacar as diferenças relativas. A diferença no efeito total é maior nas categorias com vantagens de origem de classe já que este efeito integral inclui múltiplas consequências decorrentes ou associadas à origem. Por sua vez, as vantagens apreciáveis no trabalhador típico e no destituído mostram que o divisor racial opera mesmo quando não há vantagens especiais de origem a preservar ou transmitir. O fato de a desigualdade racial, condicional à origem social, ser menor no efeito direto, seria algo esperado, tendo em vista a extensão do efeito total, como foi exposto, e o papel da educação na desigualdade racial, como já realçado em vários estudos (Figueiredo Santos, 2005b14 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Efeitos de classe na desigualdade racial no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 1, p. 21-65, 2005b. https://doi.org/10.1590/S0011-52582005000100003
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; Ribeiro; Carvalhaes, 202026 RIBEIRO, Carlos Antônio; CARVALHAES, Flávio. Estratificação e mobilidade social no Brasil: uma revisão da literatura na sociologia de 2000 a 2018. BIB, v. 92, p. 1-46, 2020. http://dx.doi.org/10.17666/bib9207/2020
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). O controle da educação, além da implicação específica, pode estar removendo indiretamente os efeitos na renda de outros fatores associados à educação, no que ela tem de marcador de posição social, mesmo se alguns destes fatores não tiverem uma conexão causal com a educação. O fato de a diferença relativa no efeito direto, em quatro origens de classe, ser mais favorável ao grupo branco revela que ele suplanta o grupo pardo e preto na vantagem líquida da origem, ou seja, no efeito independente da desigualdade de trajetória educacional dos filhos. Mesmo o fato de os efeitos da mediação educacional atuarem em direções opostas, quando esta é controlada, não se mostra capaz de neutralizar esse padrão. Parte disso reflete o fato de a renda predita do branco ser tão maior, que a mediação educacional não dá conta de suprimir esse padrão. Na origem de trabalhador típico, a desigualdade racial deixa de ser estatisticamente significativa quando se remove a mediação educacional. Na verdade, essa alteração está vinculada à associação entre raça, educação e região. Sem o controle da Unidade da Federação, existe uma diferença de 0,126 a favor do grupo branco. Devem ser destacadas, além disso, as diferenças expressivas no efeito direto, que persistem em origens vinculadas às dimensões de capital, autoridade e qualificação escassa (em torno de 20%), mas também o montante ponderável da diferença de efeito no agrupamento destituído, em que convergem várias desvantagens de origem (10%).

A parte inferior da Tabela 2, por fim, registra a vantagem percentual da origem no topo social, na comparação com outra origem, no efeito total e no efeito direto, nos dois grupos raciais. O ordenamento de classe é muito semelhante em ambos os grupos, exceto em relação aos controladores de pequenos ativos, que têm certa peculiaridade. No tocante ao efeito total, que sintetiza múltiplas circunstâncias associadas à origem, a vantagem da origem no topo seria maior no grupo branco quando faltam vantagens a transmitir. Isso significa que, no grupo pardo e preto, no agregado das coortes, na comparação com o grupo branco, a origem no topo não beneficia tanto e/ou as demais origens limitam mais a trajetória dos descendentes. Por outro lado, no efeito direto, as vantagens de origem de classe do grupo pardo e preto são menores em relação às origens na base social (trabalhador típico e destituído). Isso sinalizada que as distâncias entre essas origens são mais mediadas pela educação no grupo. Em um modelo, quando se controla uma vantagem, a renda predita da categoria diminui, e quando se controla uma desvantagem, a renda predita cresce. A origem no topo pode não dar tantas vantagens educacionais, ou as demais na base social podem dar ainda mais desvantagens educacionais no âmbito do grupo racial, pois, com o controle da educação, as diferenças se aproximam, de modo que a vantagem de origem no topo fica menor, na comparação com o grupo branco.

Além das revelações sobre as hierarquias de classe e raça, os resultados servem também para situar os patamares de renda que estão subjacentes às discrepâncias raciais por origem de classe. Em todos os Gráficos a seguir vão ser estimadas discrepâncias proporcionais. Na análise dos resultados não se deve esquecer que elas envolvem naturalmente padrões absolutos de renda, diferentes por origem de classe.

Questão (ii): existe uma tendência temporal, na sucessão das coortes, de declínio da desigualdade racial no efeito total e no efeito direto da origem de classe, após o controle da educação adquirida?

Gráfico 1
Diferença proporcional de renda (efeito total) na vantagem do grupo branco, por origem de classe, na sucessão das coortes, com intervalo de confiança de 95%

Nas estimativas de mudanças do efeito total foram introduzidas interações entre origem de classe, coorte e raça. O Gráfico 1 mostra que o grupo branco mantém uma vantagem de renda expressiva em quase todos os contextos formados pelos cruzamentos entre origem e coorte. Entretanto, na origem no topo social ocorreu uma retração forte e inequívoca na desigualdade racial (-0,441), entre a primeira e a última coorte, associada à passagem para a coorte mais recente. A ausência de controle da Unidade da Federação afeta muito pouco o patamar de redução da vantagem do grupo branco. As vantagens do grupo branco são extremamente elevadas em todas as coortes anteriores. Na penúltima coorte, de 1968-1977, antes da queda, ela atinge 89,6% na conversão da métrica em logaritmo do gráfico, para percentual. Essa vantagem extraordinária está associada à educação, pois a vantagem direta, após o controle da educação, equivale a 29,4% na mesma coorte, aplicada à conversão, como pode ser percebido na comparação entre os Gráficos 1 e 2. Esse padrão das três primeiras coortes explica o fato de a discrepância racial na origem no topo social ser elevada (50,1%) no agregado das coortes (Tabela 2). Nas demais origens de classe, segundo o teste mlincom do Stata, não é certo que o padrão do passado tenha se alterado, pois as mudanças entre a primeira e última coorte não são estatisticamente significativas.

Na coorte mais recente, de 1978-1987, a vantagem do grupo branco não atinge significância estatística na origem no topo social (0,140; p=0,176; IC de -0,063 a 0,344), mas obteria no trabalhador típico em uma avaliação ampla (0,156; p=0,058; IC de -0,005 a 0,317). Sem o controle da Unidade da Federação, as discrepâncias raciais são apreciáveis e estatisticamente significativas, da ordem de 0,252 no primeiro caso e de 0,231 no segundo caso. As alterações nas estimativas revelam a existência de uma associação ou continuidade temporal entre a localização territorial passada e posterior ao ingresso na atividade de trabalho. Os dados mostram, de fato, que 86% dos filhos da amostra analítica moram na Unidade da Federação em que moravam aos 15 anos de idade. Existe um padrão histórico de distribuição geográfica desigual dos grupos raciais no Brasil, que contribui de forma significativa para a desigualdade racial, vinculada à geografia pregressa da escravidão, à migração europeia e à história reprodutiva da população (Hasenbalg et al., 199920 HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do V.; LIMA, Marcia. Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999.). Região representa um importante fator interveniente na desigualdade racial no Brasil, devido, em particular, à concentração dos pardos, de enorme importância demográfica, nos estados menos desenvolvidos e nas regiões rurais, o que afeta a renda média geral do agregado de pardo e preto. No Brasil, grande parte da distância racial de renda se mostra intermediada pela condição de classe, educação e região geográfica (Figueiredo Santos, 2005b14 FIGUEIREDO SANTOS, José A. Efeitos de classe na desigualdade racial no Brasil. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 1, p. 21-65, 2005b. https://doi.org/10.1590/S0011-52582005000100003
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). Embora a estimativa do efeito independente e intrínseco de raça na trajetória social, como algo distinto da situação pregressa, anterior ao ingresso no mercado de trabalho, coloque a pertinência do controle em termos de orientação geral, como advogado na literatura (Hällsten, 201317 HÄLLSTEN, Martin. The class-origin wage gap: heterogeneity in education and variations across market segments. The British Journal of Sociology, v. 64, n.4, p. 662-690, 2013. https://doi.org/10.1111/1468-4446.12040
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), existe no Brasil uma conexão histórica entre raça, distribuição da população e desigualdade territorial que deve ser ponderada.

Nas estimativas de mudanças do efeito direto foram introduzidas interações de quatro níveis entre origem de classe, coorte, educação e raça. O Gráfico 2 revela a discrepância racial no efeito direto da origem após controlar a realização educacional dos filhos. Como visto antes, a mediação educacional não tem o mesmo sentido e implicação nas diversas origens. Nas origens no topo social e em empregado qualificado, a educação representa um transmissor de vantagens de origem e esse processo é mais forte no grupo branco. Por outro lado, no grupo pardo e preto se acentua a mediação educacional negativa típica das categorias de pequenos ativos, trabalhador e destituído, o que faz com que o efeito direto suplante o efeito total. Nas origens em que as estimativas removem a influência da desvantagem educacional, amplifica-se automaticamente o efeito direto de origem. Isso afeta mais o grupo pardo e preto, com maior desvantagem educacional. Essa divergência na direção dos efeitos torna mais complexa ou mesmo distorcida a manifestação dos resultados.

Gráfico 2
Diferença proporcional de renda (efeito direto) na vantagem do grupo branco, por origem de classe, na sucessão das coortes, com intervalo de confiança de 95%

A discrepância racial se mantém na grande maioria das circunstâncias. Em quase todas as origens, com exceção, talvez, de pequenos ativos, as mudanças entre a primeira e a última coorte não são estatisticamente significativas. Embora o uso de interações entre quatro variáveis demande mais casos, o problema não pode ser atribuído à insuficiência de casos. Seria apropriado conjugar na avaliação, como solução alternativa, a tendência temporal e o padrão existente na coorte mais recente, já que este incorpora o resultado final das mudanças ou continuidades. Ele mostra uma vantagem do grupo branco no topo social, de 0,155, no empregado qualificado, de 0,216, em pequenos ativos, de 0,194, e no destituído, de 0,104. Na origem de trabalhador típico, de grande peso demográfico, a diferença fica bem pequena (0,042) e perde claramente significância estatística. No caso da origem no topo social, a conclusão se baseia em uma interpretação abrangente, que leva em conta o ponderável valor positivo do efeito (0,155), o p-value de 0,075 e a inclinação fortemente positiva do intervalo de confiança (-0,015 a 0,325). Sem o controle da Unidade da Federação, a diferença no topo seria 0,244, com significância estatística, e no trabalhador típico, seria de 0,102 (p=0,087; IC de -0,015 a 0,218). Nas demais origens, as vantagens do branco aumentariam ainda mais sem esse controle; atinge 0,307, em empregado qualificado; 0,299, em pequenos ativos; e 0,174, em destituído.

Na origem no topo social, ocorre que a vantagem do grupo branco na coorte mais recente tem um padrão equivalente no efeito total e no efeito direto, respectivamente, nas estimativas sem controle e com controle da Unidade da Federação. O resultado parece sinalizar que, nessa coorte, a discrepância racial estaria pouco associada à distribuição educacional e/ou ao efeito da educação na renda. Os dados mostram, no entanto, que persiste uma desigualdade educacional, pois, na coorte mais recente, 58,1% do grupo branco e 41,7% do grupo pardo e preto possuem educação superior completa (Tabela 1). Entretanto, na coorte logo anterior, a educação superior completa representava somente 24,5% do grupo pardo e preto oriundo do topo social, contra 60,9% do grupo branco (dados adicionais). Por outro lado, estimativa especial à parte mostra que, para a origem no topo, na coorte mais recente, os retornos proporcionais da educação superior completa do grupo pardo e preto suplantam os do grupo branco (+0,403). As alterações parecem estar associadas, então, aos retornos mais elevados da educação em um quadro ainda de desigualdade educacional, porém bem menor do que na coorte anterior. As duas mudanças contribuíram para que a vantagem do branco nessa origem privilegiada tenha ficado menor e menos associada à educação na coorte mais recente.

Não é certo que a associação direta entre origem e destino entre os grupos raciais tenha se equiparado ou a discrepância racial esteja tendendo a zero na sucessão das coortes. A equiparação racial do efeito direto para a origem em trabalhador típico na coorte mais recente, caso seja dada como certa, ainda assim não seria algo extraordinário, pois o efeito direto desconsidera as desigualdades educacionais e suas implicações para a renda. No longo prazo temporal, assim como na última coorte, tudo indica que o prêmio ou a proteção racial líquida na transmissão da herança de classe, na maioria dos casos, trabalha mais a favor do grupo branco.

Questão (iii): a discrepância racial do efeito direto de origem na renda dos filhos varia por níveis de escolaridade ou, de modo mais específico, a discrepância racial é menor entre os indivíduos mais educados?

Foram usadas interações entre origem de classe, educação e raça. O Gráfico 3 mostra que, regra geral, com três exceções, existem discrepâncias raciais nos diferentes níveis educacionais. Como sinalizam os intervalos de confiança que cruzam o valor zero, de ausência de discrepância, essas exceções são a origem no topo social para Superior Completo, a origem em qualificado para Fundamental Completo e a origem em trabalhador típico para Médio Completo. Entretanto, para a origem no topo social, deve ser observada, não somente a significância estatística (p=0,130), mas também o efeito ponderável a favor do branco (0,136) e a inclinação fortemente positiva do intervalo de confiança (-0,040 a +0,332). A ausência de significância estatística para a discrepância no topo social decorre do controle da Unidade da Federação, pois, sem este controle, a vantagem do branco seria de 0,238.

Gráfico 3
Diferença proporcional de renda na vantagem do grupo branco, por origem de classe, em diferentes níveis educacionais, com intervalo de confiança de 95%

As vantagens diferenciadas do grupo branco entre níveis educacionais — as diferenças de segunda ordem — são avaliadas com o comando de pós-estimação mlincom do Stata. As vantagens do branco são maiores no ensino superior completo, em comparação ao fundamental completo, nas origens de classe de empregado qualificado, trabalhador típico e destituído, porém somente adquirem mais peso (0,243) e significância estatística no empregado qualificado. Na origem no topo social é registrada uma diferença negativa pequena (-0,062) e sem significância estatística. Na origem de pequenos ativos, a discrepância racial se torna menor no superior completo (-0,133), desde que se considere a inclinação negativa do intervalo de confiança (-0,284 a +0,17) e se aceite o p-value de 0,083. Não é certo, então, exceto talvez na origem de pequenos ativos, que a educação superior reduza a discrepância racial na transposição intergeracional da herança de classe. No contraste entre superior completo e médio completo, nenhuma diferença atinge significância estatística, embora na origem de empregado qualificado ela seja bem maior na educação superior (0,155; p=0,149; IC de -0,056 a +0,367). Levando em conta o peso demográfico das categorias de origem e os dois contrastes, pode-se dizer que, na ampla maioria dos casos, no agregado das coortes, a educação superior não reduz e muito menos neutraliza a desigualdade racial no efeito direto da origem de classe.

O que foi observado ao nível do curso superior completo, no agregado das coortes, pode ter sido alterado na última coorte. Estimativa especial à parte para a coorte mais recente mostra que a vantagem do grupo branco ostenta significância estatística somente na origem de empregado qualificado (0,225; p=0,049). Isso quer dizer que, para a maioria dos casos, não é certa a existência, na coorte mais recente, de discrepância racial no efeito direto de origem entre quem atingiu curso superior completo. Entretanto, no grupo pardo e preto, somente uma estreita minoria, como mostra a Tabela 1, atinge a educação superior na coorte mais recente vindo da origem de pequenos ativos (6,3%), trabalhador típico (12,5%) e destituído (4,9%). Essas origens abarcam 89% dos casos do grupo pardo e preto na coorte mais recente. Os resultados podem refletir, então, processos de “seletividade” nessa reduzida minoria do grupo pardo e preto, baseados em atributos favoráveis à mobilidade, sem decorrer propriamente de uma função equalizadora da educação superior sobre a distância racial.

Sem o controle da Unidade da Federação, por outro lado, a vantagem do grupo branco emerge em pequenos ativos (0,276; p=0,033) e fica maior e menos incerta no trabalhador típico (0,148; p=0,097; IC de -0,027 a +0,324). Por razões opostas, vinculadas às condensações de vantagens e desvantagens de origem, que podem produzir tipos distintos de seletividade, as diferenças raciais continuam incertas na origem no topo social e em destituído. Existe, de um lado, a seletividade social ou propensão endógena ao grupo (Zhou, 201935 ZHOU, Xiang. Equalization or selection: reassessing the “meritocratic power” of a college degree in intergenerational income mobility. American Sociological Review, v. 84, n. 3, p. 459-485, 2019. https://doi.org/10.1177/0003122419844992
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), associada à condição de minoria da origem de classe privilegiada, que concede um prêmio mais amplo entre os pares. Existe, de outro lado, a seletividade em atributos pessoais diferenciados, factível no âmbito da maioria sem privilégios de origem, que corresponde a um trunfo tipicamente mais restrito entre os pares.

Conclusão

A desigualdade racial na transmissão da herança de classe é marcante no Brasil ao nível agregado das coortes. Condições de origem de classe mais vantajosas geram discrepâncias raciais elevadas no efeito total e apreciáveis no efeito direto da origem. Quando não há vantagens a transmitir, como na origem destituída, ainda assim se formam discrepâncias raciais nas duas modalidades de efeitos. No agregado das coortes, a mediação educacional, embora responda por parte minoritária do efeito de origem em cada grupo racial, reduz a maior parte da diferença racial no efeito total. Entretanto, persiste uma apreciável diferença racial, da ordem de 20% a favor do grupo branco, no efeito direto da origem, nas dimensões de capital, autoridade e qualificação escassa, assim como de 10,3% no grupo destituído. Esse nível de discrepância racial remanescente, nos grupos em questão, mostra-se marcante no seu significado, pois o controle da mediação educacional equivale à desconsideração de vantagens e desvantagens educacionais associadas à origem de classe.

Regra geral, as discrepâncias raciais no efeito total se mantiveram nos cruzamentos entre origem de classe e coorte. Na origem no topo social, no entanto, ocorreu forte declínio com a entrada em cena da coorte mais recente, processo que independe da localização territorial. A alteração seria bem marcante quando se leva em conta as discrepâncias raciais extremamente elevadas que existiam em todas as coortes anteriores. As discrepâncias raciais se mantêm apreciáveis, tanto na origem no topo quanto em trabalhador típico, na medida em que se desconsiderem as alterações condensadas no território. Na origem privilegiada, o componente territorial de raça (raça sem controle estatístico de território) estaria impedindo um nivelamento racial (revelado ao se introduzir o controle estatístico) na transposição intergeracional da herança de classe social.

No plano do efeito direto, as discrepâncias raciais se mantiveram na maioria das circunstâncias de origem e coorte. Quase todas as mudanças temporais entre a primeira e última coorte, no entanto, revelaram-se sem significância estatística. Conjugando informações da tendência temporal e da coorte mais recente, como solução alternativa, observa-se uma persistência, na maioria dos casos, da proteção ou do prêmio de renda líquido a favor do grupo branco. Isso significa que as grandes alterações educacionais nesse longo período podem ter afetado as distâncias entre os grupos na transmissão intergeracional da herança de classe, porém sem neutralizar a prevalência populacional da discrepância racial no efeito direto da origem.

O estudo mostrou que existem discrepâncias raciais nos diferentes níveis educacionais completos. Nas origens de classe de maior peso demográfico, no agregado das coortes, não é certo que exista uma associação empírica entre educação superior e menor discrepância racial na transmissão da herança de classe. O padrão de conjunto nas condições em vigor, de inegável maior impacto populacional, não oferece evidência de que a educação superior nivela a discrepância racial. Entretanto, na coorte mais recente (1978-1987), ao nível da educação superior completa, a distância racial fica incerta especialmente nos polos de origem de classe (topo social e destituído).

Os resultados deste estudo são contrastados com as evidências apresentadas na literatura nacional mais recente. No tocante às tendências populacionais de conjunto, a literatura nacional tende a apontar a existência de desigualdade racial na transmissão intergeracional no alto da hierarquia social e descaracterizar sua importância na base da estrutura social. Nas coortes mais jovens, estaria predominando o enfraquecimento do papel específico de raça na persistência intergeracional. Menos desigualdades de oportunidades não implicam necessariamente, deve ser lembrado, redução em igual medida das desigualdades de resultados como estas se manifestam nas discrepâncias de renda entre os grupos. Uma análise de trajetória social dessa desigualdade de resultados destaca o papel condutor da hierarquia racial conjugada à predominância subjacente da mediação socioeconômica no desfecho final.

No que diz respeito à origem no topo privilegiado, o presente estudo constata uma vantagem apreciável do grupo branco no efeito direto, porém conjugada a um enfraquecimento temporal marcante da distância racial no efeito total, concentrado na coorte mais recente. Na maioria dos contextos de origem social, não é certo que a discrepância racial tenha se enfraquecido claramente no efeito total e no efeito direto. Uma mudança relevante na distribuição de oportunidades teria sido o fato de a posse de educação superior tornar incerta a distância racial na coorte mais recente. A nova situação descortinada, no entanto, representa uma oportunidade condicional em que a dimensão relativa e absoluta dos beneficiados varia a depender da combinação de origem de classe e posse de educação superior. Dois contrastes podem ser destacados no âmbito da literatura sociológica nacional. A desigualdade racial na transmissão da herança socioeconômica seria socialmente mais abrangente do que tem sido constatada. Por sua vez, na coorte mais recente, o enfraquecimento do papel de raça na reprodução intergeracional estaria mais circunscrito por tipos e graus de condicionalidades e seletividades do que foi considerado.

Os padrões sociais que emergem, especialmente nos polos de origens de classe, na coorte mais recente, ao nível da educação superior, decorrem de processos seletivos ou refletem tendências equalizadoras? A associação empírica representa uma condição necessária, embora não seja uma prova suficiente, à ideia de um efeito causal equalizador da educação superior, que pode se dever a processos de seletividade (Zhou, 201935 ZHOU, Xiang. Equalization or selection: reassessing the “meritocratic power” of a college degree in intergenerational income mobility. American Sociological Review, v. 84, n. 3, p. 459-485, 2019. https://doi.org/10.1177/0003122419844992
https://doi.org/10.1177/0003122419844992...
; Fiel, 20208 FIEL, Jeremy E. Great equalizer or great selector? Reconsidering education as a moderator of intergenerational transmissions. Sociology of Education, v. 93, n. 4, p. 353-371, 2020. https://doi.org/10.1177/0038040720927886
https://doi.org/10.1177/0038040720927886...
). As diferenças raciais incertas na coorte mais recente com educação superior podem refletir mecanismos seletivos de natureza endógena (propensão dada pela origem de classe) ou exógena (atributos individuais diferenciados), sem decorrer de uma função equalizadora da educação superior sobre a distância racial. De um lado, a seletividade representaria um prêmio ou ônus endógeno da origem de classe, mais amplo entre os pares, a depender do tipo de origem social; de outro lado, corresponderia a um expediente mais restrito entre os pares por estar ancorado em atributos individuais diferenciados, em particular em um contexto geral desvantajoso de origem. A elucidação conclusiva das tendências divisadas na coorte mais recente demandaria investigação adicional com métodos que permitam diferenciar os processos de seletividade das tendências de equalização.2 2 A tarefa não seria simples, mesmo com os novos métodos em desenvolvimento, em particular quando se avalia o viés de seleção somente com variáveis observáveis, pois quaisquer fatores não controlados que influenciem a educação e estejam associados à origem socioeconômica poderiam gerar fontes espúrias de interação entre origem e educação (Fiel, 2020). A complexidade aumentaria em se tratando de interações entre origem de classe, raça e educação.

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    https://doi.org/10.1007/s10654-016-0149-...
    , p. 347). Vide o epidemiologista Clyde Schechter na Statalist: “Significativo versus não significativo é uma maneira enganosa de pensar sobre os efeitos. Uma maneira melhor de pensar sobre eles é considerar quão grandes eles parecem ser e quanta incerteza atribuímos à nossa estimativa de quão grandes eles são”. Fonte: https://www.statalist.org/forums/forum/general-stata-discussion/general/1408697.
  • 2
    A tarefa não seria simples, mesmo com os novos métodos em desenvolvimento, em particular quando se avalia o viés de seleção somente com variáveis observáveis, pois quaisquer fatores não controlados que influenciem a educação e estejam associados à origem socioeconômica poderiam gerar fontes espúrias de interação entre origem e educação (Fiel, 20208 FIEL, Jeremy E. Great equalizer or great selector? Reconsidering education as a moderator of intergenerational transmissions. Sociology of Education, v. 93, n. 4, p. 353-371, 2020. https://doi.org/10.1177/0038040720927886
    https://doi.org/10.1177/0038040720927886...
    ). A complexidade aumentaria em se tratando de interações entre origem de classe, raça e educação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2021
  • Aceito
    29 Nov 2021
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