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Cultura e Sociedade e o trânsito entre a "alta" e "baixa" cultura

"Cultura e Sociedade" and the transition between 'high' and 'low' culture

MICELI, Sergio; PONTES, Heloisa. Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina. 2014. EDUSP, São Paulo

Resumos

Percorrendo os artigos que compõe a organização do livro Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina, essa resenha busca refletir sobre a maneira através da qual os produtos culturais, sobretudo, da chamada indústria cultural vêm sido abordados pela sociologia da cultura no Brasil, do mesmo modo em que procura identificar também novas possibilidades e abordagens para essa problemática.

Sociologia da cultura; Indústria cultural; Produção cultural; Sergio Miceli; Heloisa Pontes


Looking through the articles that comprise the book Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina, this review aims to reflect on how cultural products, especially the so-called cultural industry, have been addressed by sociology of culture in Brazil, and, at the same time, it seeks to identify new possibilities and approaches to this issues.

Sociology of culture; Cultural industry; Cultural production; Sergio Miceli; Heloisa Pontes


Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina (2014) organizado por Sergio Miceli e Heloisa Pontes é composto por doze ensaios sociológicos que procuram explorar as relações entre cultura e sociedade fazendo uso de um universo empírico bastante variado. Reunindo trabalhos sobre literatura, teatro, televisão, jornalismo, além da própria sociologia, essa coletânea busca esmiuçar de maneira criativa as conexões entre a vida cultural instituída em cada um dos contextos nacionais e as trajetórias e práticas sociais de seus participantes.

Um dos primeiros aspectos que chama a atenção do leitor diz respeito à dessemelhança dos nichos de atividades culturais explorados. Afinal de contas, Lima Barreto, Paulo Coelho e a série televisiva Malu Mulher não parecem guardar qualquer proximidade entre si. No entanto - e essa parece constituir a maior riqueza dessa iniciativa -, a convergência entre esses trabalhos ganha forma desde o ponto de vista analítico e metodológico, pois privilegiando ora a trajetória e o trabalho intelectual, ora as instituições culturais e ora as próprias demandas sociais presentes na raiz das manifestações culturais, todos os ensaios visam, antes de tudo, "desvelar e esclarecer as condições materiais e simbólicas que permeiam a gênese e a consolidação de um campo de produção cultural", contribuindo para a "elaboração de uma história social e intelectual da cultura engendrada pela sociedade" (Miceli; Pontes, 20142. MICELI, S.; PONTES, H. (Org). Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo: EDUSP, 2014., p. 11). Desse modo, apesar de abordar formas expressivas distintas (a literatura, o teatro, a telenovela), todos os escritos visam colaborar, cada qual à sua maneira, para a reflexão sociológica acerca do desenvolvimento da cultura dentro de determinado contexto nacional.

Subjacente a esse objetivo mais amplo, coloca-se também o questionamento em torno do usual abismo estabelecido entre a cultura erudita e a popular e a sequente desvalorização da segunda diante da primeira. Trata-se aqui de explorar essas fronteiras, contornando as suas barreiras analíticas e interpretativas "ao esquadrinhar os pontos de inflexão, as linhas de continuidade (...), os fluxos de linguagens, de ideias, de paradigmas expressivos, entre os altos e baixos desse comércio de teores, de repertório, de vozes" (ibidem). Através do afrouxamento desses limites, foi possível, então, lidar com dois processos: por um lado, a experiência social que os produtores traduzem nas obras culturais conforme suas preferências estilísticas ou doutrinárias, sem deixar, por outro lado, de abordar o processo reverso, por meio do qual as injunções da indústria cultural reverberam na modelagem dos bens e mensagens endereçados a públicos específicos (p.10).

Tendo como horizonte essa via de mão dupla, que articula os condicionantes sociais e os produtos culturais, o trabalho de Marcelo Ridenti, que abre o livro, busca fazer um balanço sobre a cultura brasileira no pós-1964, identificando um aumento expressivo de novos meios de comunicação de massa (rádio, televisão e, posteriormente, a internet), profundamente amparados pelo declínio na taxa de analfabetismo e o crescente acesso da população a níveis melhores de ensino na sua formação educacional. Nesse mercado aquecido, a vida cultural e artística do país ganhou um novo fôlego com a consolidação da televisão, além dos movimentos inovadores na música, no cinema e no teatro, campos de atividade que foram paulatinamente se tornando cada vez mais autonomizados.

É nesse contexto de inovação e intensificação da atividade cultural que Esther Hamburger se volta para o estudo da televisão, tendo como objetivo, por sua vez, as telenovelas de um modo mais amplo e a representação do feminino. Construindo um panorama abrangente, a autora discorre sobre o processo de difusão das novelas no Brasil, assim como as diversas imagens construídas da mulher e do feminino no meio televisivo.

Já Heloísa Buarque de Almeida centra sua análise na série Malu Mulher produzida pela Rede Globo em 1979. Considerado, conforme Almeida, um marco na história da televisão brasileira, o programa é esquadrinhado pela autora, que volta a sua atenção ao papel pedagógico do seriado por introduzir temáticas como o divórcio, o trabalho e a independência financeira feminina, o aborto e a própria sexualidade. Renovando a imagem da mulher e incorporando vários temas alinhados ao movimento feminista, Malu Mulher é analisado por Almeida com propriedade, articulando o processo de idealização, realização e recepção do programa, atenta sempre ao dinâmico processo de negociação entre os preceitos e práticas televisivos e a agenda feminista brasileira.

A discussão de gênero reaparece também no artigo elaborado por Heloísa Pontes voltado para a recuperação da trajetória de duas dramaturgas - Leilah Assumpção e Consuelo de Castro. Dispondo de uma formação privilegiada na Universidade de São Paulo, as jovens se lançaram na cena cultural paulista ainda bastante masculinizada com as peças Fala Baixo Senão Eu Grito e À Flor da Pele, centradas em protagonistas femininas (Mariazinha e Verônica). Encenando as relações de gênero, materializadas nos objetos, pares amorosos e estilos de feminilidade e masculinidade, as dramaturgas inovaram dentro e fora dos palcos ao contestar a tradicional divisão de trabalho que sustentava o universo teatral, no qual as mulheres eram presença constante no pólo da representação, mas praticamente inexistiam enquanto autoras e diretoras, função hegemonicamente exercida pelos homens.

Ainda no domínio do teatro, Heloisa Pontes e Sergio Miceli analisam a obra de Jorge de Andrade e Gianfrancesco Guarnieri, na década de cinquenta, agora atentos aos conflitos de classe oriundos de uma sociedade em franco processo de urbanização e industrialização. Com um tom memorialístico, os dramaturgos retomam figuras sociológicas importantes do desenvolvimento histórico de São Paulo como o imigrante, o fazendeiro de café e o trabalhador industrial.

Voltando-se agora para a reconstrução de contextos mais amplos que ajudem o leitor a entender os rumos institucionais e as preferências estilísticas de maior voga, Sergio Miceli traça, no artigo Vanguardas em Retrocesso, um panorama comparativo entre o Brasil e Argentina, buscando desvelar alguns dos aspectos estruturais mais importantes do processo de consolidação do campo intelectual e artístico em cada um dos países, ainda profundamente marcados pela experiência colonial. Buscando identificar as singularidades e proximidades de cada um desses processos, o autor reconstrói esses cenários e, em seguida, desenvolve uma análise comparativa entre dois personagens centrais e canonizados das literaturas nacionais: Mario de Andrade, no Brasil, e Jorge Luis Borges, na Argentina.

Nessa mesma direção, o artigo de Luiz Carlos Jackson e Alejandro Blanco elabora um estudo comparativo entre o desenvolvimento da sociologia no Brasil e na Argentina, atentos aos aspectos morfológicos característicos de cada uma dessas sociedades, o processo singular do desenvolvimento educacional, assim como a relação estabelecida entre a sociologia e outras tradições de investigação social, sobretudo, com o ensaísmo. Assim como no caso anterior, os autores retomaram a trajetória de dois grandes e renomados agentes da sociologia, Gino Germani e Florestan Fernandes, articulando as diversas variáveis explicativas que influíram na consolidação dessas lideranças acadêmicas.

Ainda que o estudo de nomes de grande referência em ambos os cenários nacionais perpasse todo o livro - pois além desses trabalhos, a coletânea ainda conta com um instigante artigo sobre a infância de Lima Barreto e uma bela explanação acerca da trajetória de Lúcio Cardoso -, é interessante notar o espaço aberto também para figuras mais marginalizadas na literatura, como é o caso de Alfonsina Storni e Horacio Quiroga na Argentina, além do best-seller internacionalmente conhecido, Paulo Coelho, no Brasil. No trabalho de Sergio Miceli sobre os autores argentinos, o autor busca reconstruir as suas trajetórias, explorando a própria dinâmica do campo literário argentino em um contexto marcado pelo conflito entre os modelos de excelência da arte/literatura erudita e o crescimento expansivo da indústria cultural e da imprensa argentina.

Assim como Sergio Miceli, o trabalho de Fernando Pinheiro volta-se para uma das figuras mais bem-sucedidas e também mais rechaçadas dentro da literatura brasileira: Paulo Coelho. Reconhecido pelo recorde de vendas em todo o mundo e conquistando diversos prêmios renomados no exterior, Paulo Coelho, no entanto, amarga uma posição de desprezo dentro do círculo da "alta cultura". Explorando esse descompasso, Pinheiro busca analisar não somente o perfil dos leitores brasileiros, como também os próprios recursos narrativos mobilizados por Paulo Coelho, de modo a entender o imenso apelo desse autor pelo grande público. Combinado a isso, Pinheiro examina também o desconcerto provocado por Coelho na crítica brasileira, que o relega como um escritor "menor" e "comercial". Personificando o conflito entre a chamada "cultura erudita" e a indústria cultural, o literato constitui um caso modelar da complexidade que envolve a relação entre essas instâncias da cultura.

Por fim, o artigo de Alexandre Bergamo debruça-se sobre a mesma problemática, ainda que no âmbito do jornalismo. Analisando as mudanças pelas quais vem passando essa atividade no Brasil, o autor contrasta os diferentes modelos de exercício profissional que foram surgindo, fortemente impactados pela formação de toda uma nova geração de jornalistas nas universidades brasileiras. Com uma exigência maior de profissionalismo e estabelecendo uma clara fronteira entre a escrita literária e a escrita jornalística, esses novos profissionais definem novos padrões, modelos e rotinas de trabalho dentro desse campo de atividade.

Desse modo é que, mobilizando diversos campos de atividade cultural (da literatura ao jornalismo), a coletânea Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina inova pela variedade de objetos de estudo abordados, mas, sobretudo, pelo olhar sociológico auferido a cada um deles. Isso, porque, organizados com o objetivo de desnudar as ligações entre as linguagens e significados mobilizados por esses agentes, as instituições vinculadas à produção e recepção desses produtos, além do próprio contexto histórico e político, os ensaios publicados procuram afrouxar a clivagem tradicional entre a cultura chamada "erudita" e a indústria cultural.

Essa constitui uma iniciativa importante, pois, relegada a um segundo plano, a produção cultural desse último grupo sempre foi vista com um profundo desdém pela academia que - profundamente impactada pelos trabalhos de Theodor Adorno - focalizou muito mais em asseverar o aspecto mercadológico e "empobrecido" desse material. Adquirindo visibilidade na sociologia brasileira durante a década de setenta, os trabalhos de Adorno e da Escola de Frankfurt balizaram diversos estudos no campo da culturai i Como afirma Maria Eduarda Mota Rocha, foi a partir da introdução da Teoria Crítica na Universidade de São Paulo, por Gabriel Cohn, com sua tese de doutorado, que se seguiu a produção de uma safra de estudos inspirada nessa corrente de investigação (Rocha, 2011, p.455). . Tratava-se, aqui, de um momento histórico no qual "[a]nalisar a cultura e tratar dela tornou-se lugar privilegiado para se refletir sobre a sociedade (...). Isto é, com a modernização instaurada com o regime militar, a indústria cultural era um componente fundamental (...) para legitimar o processo de modernização e de dominação" (Arruda, 20071. ARRUDA, M. A. Entrevista concedia à Elide Bastos et alli. In: BASTOS, E.R. et al. (Orgs.). Conversas com Sociólogos Brasileiros. São Paulo: Editora 34, p. 353-374., p. 358-359).

De fato, esse foi um momento de intensas transformações na atividade cultural, pois, como apontado por Marcelo Ridenti em seu artigo que integra Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina, o período da ditadura militar foi marcado por um forte investimento estatal nas áreas de comunicação e cultura, o que contribuiu para o estabelecimento no Brasil de "uma indústria cultural televisiva, fonográfica, editorial, publicitária propriamente dita" (p. 29). Com um tom bastante crítico a esse tipo de iniciativa, os trabalhos produzidos conquistaram um espaço proeminente dentro dos estudos sociológicos sobre a cultura.

Na contramão dessa corrente, os ensaios que compõe a obra Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina buscam estabelecer certo afastamento do seu objeto, visando, antes de tudo, perscrutar as conexões entre os condicionantes sociais, os espaços de produção e difusão culturais e as trajetórias desses escritores, dramaturgos, jornalistas e sociólogos. Através dessa perspectiva, o leitor se vê diante de uma instigante iniciativa que busca investigar as conexões entre os surtos renovadores da produção cultural erudita no domínio da literatura e das ciências sociais, as transformações vivenciadas no teatro profissional e a expansão fenomenal de diversos setores dinâmicos da indústria cultural no Brasil.

Referências:

  • 1
    ARRUDA, M. A. Entrevista concedia à Elide Bastos et alli. In: BASTOS, E.R. et al. (Orgs.). Conversas com Sociólogos Brasileiros. São Paulo: Editora 34, p. 353-374.
  • 2
    MICELI, S.; PONTES, H. (Org). Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo: EDUSP, 2014.
  • 3
    ROCHA, M.E. Em busca de um ponto cego: notas sobre a sociologia da cultura no Brasil e a diluição da mídia como objeto sociológico. Revista Sociedade e Estado. Brasília: UNB, 2011, vol. 26, n. 3, pp. 453-469.
  • i
    Como afirma Maria Eduarda Mota Rocha, foi a partir da introdução da Teoria Crítica na Universidade de São Paulo, por Gabriel Cohn, com sua tese de doutorado, que se seguiu a produção de uma safra de estudos inspirada nessa corrente de investigação (Rocha, 2011, p.455).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2015
  • Aceito
    12 Maio 2015
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