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Desigualdades socioeconômicas: conceitos e problemas de pesquisa

Socioeconomic inequalities: concepts and research problems

Resumos

O tema das desigualdades socioeconômicas é abordado, via de regra, considerando-se o "pólo pobreza" desvinculado das dimensões relacionais com o "pólo riqueza". A desmedida que caracteriza este último é decorrente de processos multifacetados levando ao surgimento de complexas formas de apropriação e de fruição privada da riqueza produzida socialmente. A retomada do debate em termos de classes sociais e a elaboração de novos conceitos tornam-se necessárias para que a Sociologia possa apreender as conseqüências do processo em curso sobre o conjunto da sociedade, entre eles, riqueza substantiva, personificação da riqueza e classes de fruição. Ao mesmo tempo, é mister reconhecer a existência de impedimentos materiais objetivos e de preconceitos que precisam ser superados para se possa avançar na produção de conhecimento crítico acerca da divisão da sociedade em classes sociais e das formas de poder e das modalidades de subordinação.

Teoria Social; Desigualdades socioeconômicas; Riqueza substantiva; Concentração da riqueza; Personificação da riqueza


The issue of socioeconomic inequalities is generally addressed considering the "pole of poverty" detached from its relationship to the "pole of wealth". The imbalance that characterises the latter results from multifaceted processes leading to the emergence of complex forms of appropriation and private fruition of socially produced wealth. It is necessary to return to the debate in terms of social class and formulate new concepts if Sociology is to learn the consequences of the current process on society as a whole, including substantial wealth, the personification of wealth, affluent classes. At the same time, the existence of objective, material hindrances and prejudices should be recognized, since they need to be overcome to enable movement towards the production of critical knowledge about society's division into social classes and the forms of power and modalities of subordination.

social theory; socioeconomic inequalities; substantial wealth; concentration of wealth; personification of wealth


DOSSIÊ RIQUEZA E DESIGUALDADES

Desigualdades socioeconômicas: conceitos e problemas de pesquisa

Socioeconomic inequalities: concepts and research problems

Antonio David Cattani

Professor Titular de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFRGS e pesquisador CNPq. Brasil

RESUMO

O tema das desigualdades socioeconômicas é abordado, via de regra, considerando-se o "pólo pobreza" desvinculado das dimensões relacionais com o "pólo riqueza". A desmedida que caracteriza este último é decorrente de processos multifacetados levando ao surgimento de complexas formas de apropriação e de fruição privada da riqueza produzida socialmente. A retomada do debate em termos de classes sociais e a elaboração de novos conceitos tornam-se necessárias para que a Sociologia possa apreender as conseqüências do processo em curso sobre o conjunto da sociedade, entre eles, riqueza substantiva, personificação da riqueza e classes de fruição. Ao mesmo tempo, é mister reconhecer a existência de impedimentos materiais objetivos e de preconceitos que precisam ser superados para se possa avançar na produção de conhecimento crítico acerca da divisão da sociedade em classes sociais e das formas de poder e das modalidades de subordinação.

Palavras-chave: Teoria Social, Desigualdades socioeconômicas, Riqueza substantiva,Concentração da riqueza, Personificação da riqueza.

ABSTRACT

The issue of socioeconomic inequalities is generally addressed considering the "pole of poverty" detached from its relationship to the "pole of wealth". The imbalance that characterises the latter results from multifaceted processes leading to the emergence of complex forms of appropriation and private fruition of socially produced wealth. It is necessary to return to the debate in terms of social class and formulate new concepts if Sociology is to learn the consequences of the current process on society as a whole, including substantial wealth, the personification of wealth, affluent classes. At the same time, the existence of objective, material hindrances and prejudices should be recognized, since they need to be overcome to enable movement towards the production of critical knowledge about society's division into social classes and the forms of power and modalities of subordination.

Key words: social theory, socioeconomic inequalities, substantial wealth, concentration of wealth, personification of wealth.

Introdução

Apesar de o Brasil bater recordes nos diferentes registros relativos às desigualdades socioeconômicas, a produção científica ainda é insipiente para explicar dimensões específicas dos processos em curso. Neste artigo, insistimos na gravidade do fenômeno e apresentamos algumas evidências empíricas que caracterizam a desmedida entre o "pólo pobreza" e o "pólo riqueza". O fato de que o primeiro é bem mais conhecido que o segundo leva-nos a ressaltar ainda mais dimensões peculiares do que chamamos "a riqueza substantiva", conceito que indica a natureza dos recursos econômicos que estão acumulados e concentrados em poucas mãos e cujo volume possibilita o exercício do poder em termos renovados no que tange ao controle da sociedade e à concorrência intercapitalista.

Volumes expressivos da riqueza social são apropriados e fruídos em termos que se imaginavam superados pela modernização capitalista. Para uma avaliação mais precisa das velhas práticas reeditadas ou dos novos comportamentos permitidos pela extrema concentração de renda são necessários novos conceitos cuja função heurística deve contribuir para esclarecer os processos em curso reduzindo, assim, o déficit explicativo existente.

Insuficiências teóricas e a existência de preconceitos e de dificuldades materiais bloqueiam o avanço do conhecimento sobre as questões candentes da sociabilidade brasileira, sobre os elementos estruturantes que definem as percepções sobre a desigualdade, sobre a legitimidade das situações de poder e sobre as correlações de força que configuram as lutas sociais.

A desmedida

O emprego de adjetivos fortes e superlativos é freqüente em textos que abordam a situação socioeconômica brasileira. Desigualdade econômica em níveis abissais, diferenças estratosféricas na distribuição de renda, contrastes assombrosos entre riqueza e pobreza e outras formulações igualmente expressivas são habitualmente empregadas para dar conta de desigualdades que, além de estarem sendo reproduzidas há séculos, se multiplicam em dimensões inusitadas.

Por vezes, as desigualdades são percebidas num primeiro nível, superficial, localizado e factual: carências alimentares de um lado, expressivos desperdícios por parte de privilegiados de outro; mansões de altíssimo luxo a poucos metros de favelas miseráveis; milionários e seus animais de estimação dispondo de atendimento e recursos médicos avançados enquanto milhões de indivíduos carecem de remédios e de cuidados básicos de saúde. O quadro de diferenças é, por vezes, grotesco, patético ou surreal. Na mídia, a estrema riqueza é acintosamente estetizada ou apresentada em reportagens jornalísticas que destacam a "Belíndia", o Brasil país de contrastes, os dois Brasis, etc. Em ambos os casos, cabe questionar o impacto dessas informações sobre a percepção e a compreensão objetiva das desigualdades. Mas, no que tange à grande mídia, os temas relacionados à pobreza e à desigualdade são ignorados, os 44 principais jornais do país que correspondem a mais de 90% da mídia impressa dedicam menos de 2% do conteúdo a esses temas e nas principais revistas o percentual fica em torno de 0,7% (ANDI, 2003).

Num segundo nível, com base em informações, em dados e estatísticas cientificamente obtidos, a estrutura social revela-se com toda a sua complexidade e crueza. Em meio a outras dimensões problemáticas da situação contemporânea, os estudos demonstram a associação entre a extrema desigualdade econômica e patologias, criminalidade e múltiplas formas de violência.

A realidade latino-americana indica aumentos absoluto e relativo no número de pobres e miseráveis. Segundo o Panorama Social da América Latina (CEPAL, 2003), o total de pobres latino-americanos que era de 136 milhões em 1980 (40,5% da população), passou, 22 anos depois, para 220 milhões (44%). No mesmo período, os indigentes passaram de 18,6% para 19,4%, alcançando quase 100 milhões de pessoas. No Brasil, divergências na conceituação de pobreza e miséria fazem com que haja um bizantino desentendimento na avaliação do número total de indivíduos que podem ser classificados em tais situações. Ora fala-se de 30 ou 40 milhões de miseráveis, ora reclama-se da imprecisão desses dados e assegura-se que os indivíduos que estão na base da pirâmide social seriam apenas 23 milhões e que os pobres chegariam a pouco mais de 50 milhões. "Apenas" 23 milhões e "pouco mais" de 50 milhões somados corresponde a quase a metade da população do País. Apesar de milagrosas formas de medição retirar da faixa da pobreza 12 milhões de pobres no curto prazo de um ano (Rocha, 2003, p. 83), ou mesmo que refinamentos estatísticos permitam a interpretação que a situação não é tão grave assim e que, a cada ano, milhões de pessoas ultrapassam a linha de pobreza, outras fontes comprovam a frase de efeito que ensejou na seqüência apenas manifestações retóricas; o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres. A análise aprofundada das situações revela um quadro multifacetado que não se limita a carências ou privações materiais. A sobrevivência de mais da metade da população economicamente ativa depende do setor informal (DIEESE, 20001), 24 milhões são considerados portadores de deficiências graves (Néri, 2003), e situações de vulnerabilidade, de instabilidade e deriva social e econômica são constantemente recriadas pela reestruturação produtiva (Cattani, 2000, p.37/83).

A distribuição de renda manteve-se inalterada nos últimos 30 anos. Há três décadas, os 40% mais pobres recebem entre 11 e 12% da renda nacional, os 50% mais pobres entre 49% e 51%; 10% mais ricos acumulam 49% e 51% e o 1% mais rico entre 10 e 13%. Regime militar, Nova República, três períodos de governos liberais e um governo mais afinado com demandas populares, estagnação e retomada do desenvolvimento, hiperinflação e estabilidade de preços: nada disso alterou substancialmente o regime distributivo que coloca o Brasil entre os quatro países com as piores colocações segundo o Índice de Gini, numa péssima posição no ranking estabelecido pelo Índice de Desenvolvimento Humano e em outras classificações negativas que medem esperança de vida, analfabetismo, violência, baixa educação e saúde, etc. (Neri, 2003; IBGE, 2003; Mir, 2004; Pochmann, 2004). Nos últimos anos observa-se a redução do número de famílias situadas abaixo da linha de pobreza. Entretanto, a desigualdade socioeconômica não é medida por uma arbitrária linha de rendimentos abaixo da qual estão situam-se os pobres e sim pelas distâncias entre as posições relativas ocupadas pelos diversos segmentos da sociedade.

A desmedida é comprovada também por outros indicadores. Por exemplo, 7% dos declarantes do imposto de renda possuem mais de 35% do patrimônio (Medeiros, 2005, Tabela 1); do montante das aposentadorias e pensões, a soma dos benefícios recebidos por 60% dos mais pobres alcança 20% dos recursos totais, e os 2% mais ricos recebem um valor equivalente a esses mesmos 60% (Medeiros, 2005, p. 181). Essa é a proporção, ou melhor dizendo, a desproporção que existe nos valores de aposentadorias e pensões pagas pelo sistema previdenciário público.

A execução orçamentária do executivo federal também serve para demonstrar imensos desequilíbrios. Enquanto gastos efetivos dos ministérios "sociais" excluindo a previdência (Educação, Saúde, Trabalho e Emprego, Desenvolvimento Agrário, Assistência Social, Direitos Humanos, Segurança Alimentar e Combate à Fome, Política para as Mulheres) chegaram em 2003 a R$ 74 bilhões, o serviço da dívida (essencialmente pagamento de juros) alcançou R$149 bilhões (Cintra, 2004). Reinaldo Gonçalves (2003) indica que o 1% mais rico da população brasileira possui 72% dos títulos públicos federais, o que permite supor que, anualmente, bilhões de dólares são transferidos para suas contas.

Segundo dados da Receita Federal (2004), 48% dos tributos arrecadados no Brasil correspondem aos impostos sobre o consumo, enquanto 21% é tributação sobre a renda e apenas 4% sobre a propriedade, estes dois últimos percentuais sendo os mais baixos de todos os países incluídos no rol das 20 maiores potências econômicas do planeta. Nos Estados Unidos, por exemplo, 6% dos tributos provêm de impostos sobre o consumo, 49% sobre a renda e 11% sobre a propriedade. No Brasil, devido à tributação sobre o consumo, quem paga mais impostos, proporcionalmente, são os mais pobres; a tributação sobre a renda é pouco importante e sobre a transmissão da propriedade e heranças é insignificante. A taxação sobre altas fortunas é assunto tabu e qualquer iniciativa nesse sentido provoca mobilizações empresariais e reações virulentas dos setores privilegiados; cronistas econômicos e formadores de opinião são arregimentados para alardearem o espectro da fuga de capitais e do desestímulo aos investimentos produtivos.

Inúmeros outros indicadores podem ser evocados para quantificar as situações extremas, para qualificar a desmedida entre o "pólo pobreza" e o "pólo riqueza". Por exemplo, 1% mais rico controla percentuais superiores a 50% no que tange à posse de ativos fixos e financeiros, à propriedade de terras produtivas e plantas industriais ou, ainda, ao patrimônio líquido de empresas (Gonçalves, 2003). Os símbolos exteriores da riqueza (número de jatos particulares, quantidade de mansões, número de serviçais), o con-sumo conspícuo e a ostentação do alto luxo são indicadores que caracterizam ilhas de riqueza e de privilégios rodeadas de mares da pobreza.

Além disso, como demonstram vários pesquisadores (Medeiros, 2004, Pochmann, 2004), "os ricos se escondem". Medo de seqüestros, relações escusas com a "economia bandida", privilégios e grandes fortunas adquiridos de maneira ilegítima e, sobretudo, o temor de controles fiscais que poderiam se traduzir em maior tributação impedem o conhecimento da dimensão real das fortunas. Tudo leva a crer que os volumes da riqueza substantiva sejam ainda maiores do que apontam os dados disponíveis. Consequentemente, o "pólo riqueza" está mais distante do "pólo pobreza" do que o senso comum consegue captar. Além disso, a distância é ampliada por volumes de riqueza apropriados e administrados graças a estratagemas ilegais que, por definição, escapam a qualquer registro preciso e são inacessíveis para pesquisas científicas.

Assim, o conhecimento sobre o efetivo abismo social entre as classes, sobre a real distância entre ricos e pobres e sobre as origens de parte do patrimônio dos mais ricos revela-se como um dos maiores desafios para as Ciências Sociais brasileiras.

Márcio Pochmann (2004), a partir do estoque de riqueza e do acúmulo de fluxo de renda anual considera que os verdadeiramente ricos perfazem pouco mais de cinco mil famílias, o que equivale a 0,01% do total de famílias, em grande parte concentradas no eixo Rio de Janeiro – São Paulo. Mesmo que esse autor tenha exagerado nos seus critérios e que esse número deva ser multiplicado por quatro ou cinco ou mesmo, por dez, o estrato social mais rico seria composto por apenas 0,1% das famílias brasileiras.

Apesar do altíssimo grau de arbitrariedade e imprecisão dos indicadores adotados, a desmedida poderia ser considerada a partir desse dado: pouco mais ou pouco menos de 0,1% corresponde aos que verdadeiramente possuem a riqueza substantiva, aquela que é decisiva nas questões estratégicas relacionadas à economia capitalista, às investidas especulativas e aos planos de desenvolvimento; 0,1% que controla a grande mídia e por meio dela, pode forjar a opinião pública, lançar modas, promover ou denegrir lideranças; 0,1% que exerce influência decisiva sobre a vida política, sobre as iniciativas do executivo e do legislativo nas suas diferentes esferas, podendo condicionar, inclusive, importantes decisões do judiciário.

Utilizando o também arbitrário percentual de 1% utilizado por Reinaldo Gonçalves (2003.), e referido em estudos do IPEA, da FGV e do IBGE, chegaríamos a um total de um milhão e oitocentos mil brasileiros situados no topo da pirâmide social. A característica essencial desse segmento absolutamente minoritário é a acumulação do capital econômico com múltiplos privilégios assegurando não apenas poder mas, também, reconhecimento e legitimidade sociais. Dele, obviamente, faze parte o 0,1% anterior e mais um conjunto heterogêneo de empresários dos mais diversos setores, rentistas, grandes proprietários, profissionais liberais e altos funcionários públicos que podem ser designados como a classe A, os setores dominantes, a alta burguesia, a elite econômica ou, simplesmente, os muito ricos. De qualquer forma, um milhão e oitocentas mil pessoas representam um contingente humano considerável, capaz de movimentar um mercado distinto de bens e serviços (no caso, de alto luxo), de estabelecer relações de subordinação direta com coortes de serviçais de diferentes níveis (administradores, advogados, assessores diversos, esteticistas, médicos, seguranças, personnal trainers, motoristas, jardineiros, etc.), e capaz de condicionar dimensões específicas da vida em sociedade.

Para captar o significado sociológico, esse recorte deveria estar fundamentado numa teoria da estratificação social que permitisse definir a unidade das situações de interesse de classe, os fundamentos do seu poder e a natureza das relações sociais estabelecidas com o restante da sociedade. Porém, para destacar a polarização extrema que existe no caso brasileiro, isso pode ser dispensado, interessando para destacar a desmedida na desigualdade socioeconômica apenas a existência, em termos relativos e absolutos, de um segmento infimamente minoritário detentor de riqueza, poder e prestigio articulados de maneira cumulativa (Medeiros, 2004a). Desigualdades profundas e patamares diferenciados de recursos e de riqueza marcam a totalidade da população, mas, o que interessa aqui destacar é o fosso existente entre 1% e 99% da população brasileira.

Tal situação vem se mantendo praticamente inalterada há mais de três décadas. Aos condicionamentos estruturais somam-se dimensões inusitadas e cuja conceituação novedia é formulada a seguir.

A riqueza substantiva

A expressão riqueza substantiva é um recurso conceitual utilizado para reforçar a evidência da desmedida. Por riqueza substantiva entendemos os recursos concretos, os bens essenciais e as propriedades consistentes em volume considerável que possibilita o exercício do poder e garantem a impunidade ou mesmo a utilização da força. Não se trata de dimensões abstratas tais como capitais simbólicos ou culturais, prestígio ou status, e sim, elementos objetivos (meios de produção, ativos, dinheiro, propriedades, patrimônio) em grande quantidade assegurando o domínio nas múltiplas correlações de força existentes nas esferas econômica, política e social.

Os extraordinariamente ricos possuem riquezas substantivas, o que os distingue das "elites econômicas", ou, simplesmente, das "elites", conceitos imprecisos ou ambivalentes que remetem a personagens influentes e prestigiados, mas não necessariamente ricos e cujo reconhecimento social possa ter sido conquistado por talento, mérito ou operosidade. A riqueza substantiva expressa-se em termos de volume de capital concentrado. Na essência, detentores dos meios de produção que contratam força de trabalho com vistas à extração de mais-valia são capitalistas independentemente do volume do capital empregado. Porém, existe uma diferença importante entre um determinado volume de capital dividido entre dezenas ou centenas de capitalistas e esse mesmo volume controlado por um só indivíduo ou uma única família. Trata-se de uma complexa questão de escala e de proporção na posse da riqueza. Magnatas e bilionários constituem a hiperburguesia (Duclos, 2002), os super-ricos (Haseler, 2000), segmento específico dos setores dominantes com práticas e estratégias de reprodução que os distinguem dos demais capitalistas.

A existência de capitães de indústria, de empresários todo-poderosos não é novidade alguma na história do capitalismo. Dados recentes indicam, entretanto, haver uma mudança na escala de força e poder desses personagens. O patrimônio das 200 pessoas mais ricas do planeta passou de Us$440 bilhões em 1994 para Us$1.300 bilhões dez anos depois, valor equivalente à renda de 40% da população do planeta. Num prato da balança 200 indivíduos, no outro, 2.400.000.000 A fortuna das cinco pessoas mais ricas supera o Produto Nacional Bruto de dezenas de nações (www.inequality.org). Diferentemente dos magnatas de antigamente que atuavam de maneira isolada levando a concorrência ao paroxismo, o segmento dos super-ricos articula-se em escala planetária, constituindo o Global Establishmentism, na expressão de Kowalewski (1997). Eles estabelecem alianças que reduzem a autofagia própria do turbo-capitalismo, unem-se para implementar macroiniciativas econômicas potencializando a dominação ideológica por meio de eventos midiáticos. Como exemplo dessas iniciativas pode-se citar o boicote ao protocolo de Kyoto, a imposição de política de patentes prejudicial aos países mais pobres e a desregulamentação financeira e trabalhista. A ofensiva ideológica revela-se, entre tantas outras iniciativas, na mitificação de eminências neoliberais por meio do inexistente "Prêmio Nobel de Economia" (de fato, prêmio do Banco Central Sueco de orientação conservadora), na espetacularização das diretivas formuladas por lideranças empresariais que participam do Fórum Econômico de Davos.

A riqueza substantiva no Brasil revela-se sem idêntico grau de articulação mas não com menos poder efetivo. Figuras como Antonio Ermírio de Moraes, Andrade Faria, Abílio Diniz e Rubens Ometto, à testa de impérios econômicos influenciam decisões sobre questões econômicas estratégicas para o País, sobre investimentos que podem causar impactos ecológicos e sociais de maior magnitude do que políticas públicas implementadas por dezenas de secretários estaduais ou por centenas de prefeitos. Por exemplo, para impor a viabilização de fábricas de celulose numa determinada região – o que poderá provocar sérios problemas ambientais devido à monocultura do eucalipto - as companhias valem-se de todos os expedientes: compra de espaço publicitário na mídia local de maneira a inibir reportagens desfavoráveis, contratação de cientistas e acadêmicos para neutralizar as críticas, pressão direta sobre prefeitos e vereadores.

A teoria marxista utiliza o termo genérico e impessoal "empresa" para designar o espaço institucional, organizativo e operacional das ações do capital. É necessário lembrar que por trás de qualquer iniciativa existem pessoas de carne e osso que, quando for preciso, intervêm de maneira direta e pessoal para viabilizar os projetos de expansão ou para desbloquear restrições legais. Não é uma entidade abstrata que trata diretamente com o governador, que pressiona o dono do jornal e que faz o contato com o reitor. É um senhor com nome e sobrenome, figura empresarialmente respeitável, benemérito apoiador de campanhas filantrópicas (e políticas), ilustre patrono das artes, que se vale de todos os expedientes para obter concessões ou isenções e para, caso for necessário, garantir impunidade, ou seja, para obter vantagens não acessíveis aos demais capitalistas com menor volume de recursos.

A natureza do capital, a lógica da acumulação e outros princípios que ordenam a reprodução capitalista são os mesmos independentemente do tamanho do capital. Porém, a riqueza substantiva é um diferencial cada vez mais importante, modificando as regras da concorrência, impondo a aceleração de processos, consagrando personagens e legitimando suas ações.

O conceito de "perpetradores" formulado por Else Oyen e aplicado por Ramon Fogel na obra "Trabajo y producción de la pobreza em Latinoamérica y el Caribe" (Alvarez, 2005) traduz práticas que lembram as ações dos Robber Barrons norte-americanos no início e no fim do século XX (Guilhot, 2006). Multiplicam-se as ações levadas por grupos sociais poderosos, movimentando grandes volumes de recursos que escapam às regras convencionais do mercado capitalista. Suas ações não são inespecíficas e sim, acarretam conseqüências diretas sobre as relações sociais e as políticas públicas implicando, também, formas anti-sociais de apropriação da riqueza.

A personificação da riqueza e classes de fruição

Por personificação entende-se o processo de representação e de realização da riqueza numa pessoa. A identificação do capital à forma institucional "empresa" correspondeu à realidade histórica. Segundo Marx, os capitalistas são trägers, simples portadores de relações de produção predeterminadas, executando as funções necessárias e inevitáveis para a reprodução do capital, pouco importando suas características pessoais ou humanas. Eles são figuras transitórias, agentes condicionados imperativamente a obedecer às leis do capital aparecendo diluídos na formas institucionais designadas pelos substantivos manufatura, grande indústria, capitalismo industrial, etc., ou compondo as designações genéricas (proprietários, burguesia, classe capitalista).

Efetivamente, na evolução geral do capitalismo pouco importou a existência física ou o comportamento específico de capitalistas isolados. A exceção deu-se por conta de mitologias criadas em torno de personagens sui generis tais como Henry Ford, John Rockefeller ou J.P. Morgan ou mais recentemente, Bill Gates e, no Brasil, o Barão de Mauá, Roberto Simonsen ou Antonio Ermírio de Moraes. Muito mais importantes foram a história e o desempenho das grandes empresas cuja existência é quase secular (BOING, GENERAL MOTOS, IBM, NESTLÉ e tantas outras) e mesmo nesse caso, apenas como exemplos de instituições que se destacam no movimento geral da expansão capitalista. Vistos a partir de um alto grau de abstração, mesmo os casos referidos estão diluídos na forma geral da riqueza e das determinações estruturais do modo de produção. A lei férrea da acumulação imposta pela luta de classes (capital x trabalho e luta entre os "irmãos inimigos") força o reinvestimento constante pouco importando veleidades pessoais. Avareza e perdularismo são vícios severamente punidos no processo de reprodução do capital.

Nos últimos 20 anos tem-se observado uma rápida modificação nesses princípios gerais. Comportamentos que antes eram isolados e penalizados pelas leis da concorrência tornaram-se freqüentes e legitimados. Tratase da apropriação privada dos lucros corporativos em volume raramente registrado ao longo do século XX. Parte desses lucros não é reinvestida no processo produtivo "normal" e sim, fruídos na esfera privada.

Dois processos articulados garantiram lucros recordes no período recente: de um lado, a reestruturação produtiva e a automação crescente, a financeirização especulativa e a existência de facilidades de transferência das rendas por meio dos paraísos fiscais; de outro, a redução dos salários e dos direitos coletivos propiciada pelo enfraquecimento dos sindicatos, pela precarização dos contratos e pela perda da capacidade de transferência pelo Estado. O empobrecimento geral dos trabalhadores teve como contrapartida o aumento dos lucros corporativos em tal volume que uma parte não encontra espaço de reaplicação a não ser em mais processos especulativos que acabam resultando em maiores ganhos que podem ser, então, transferidos para pessoas físicas.

Entre 1990 e 2005, o salário mínimo federal nos Estados Unidos teve redução de quase 10% enquanto os salários no setor industrial aumentaram 4,3%. Nos mesmos 15 anos os lucros corporativos aumentaram 106,7% configurando uma impressionante transferência de renda. Mais importante ainda é que nesse período o pagamento para os executivos (proprietários e contratados) dessas mesmas empresas aumentou 298,2% (Domhoff, 2006, Gráfico 7). Considerando o mesmo fenômeno num espaço de tempo mais largo, observa-se que os grandes executivos recebiam 50 a 60 vezes mais do que a média dos trabalhadores entre 1960 e 1980. No final da década de 1990, a diferença chegou a ser 500 vezes maior (Domhoff, 2006, Gráfico 6).

Não existem dados precisos para o Brasil, mas é possível presumir que o fenômeno não só se repete aqui como pode ser mais acentuado ainda. Os salários dos executivos brasileiros estão logo abaixo daqueles pagos nos Estados Unidos e na França e são superiores às remunerações percebidas em países como a Holanda, Espanha e Alemanha. O diferencial entre pagamentos feitos para diretores e para a massa trabalhadora é um dos maiores do mundo. Além disso, existe uma série de subterfúgios que assegura remunerações indiretas como é o caso das bonificações em ações e do lançamento de despesas pessoais tais como moradia, viagens e lazer, como custos industriais. A recente mobilização empresarial contra a criação da chamada Super Receita e contra dispositivos legais que ampliam o poder da fiscalização federal é um indicador do incivismo fiscal. As múltiplas formas de sonegação convertem-se em apropriações pessoais e não em recursos que voltam como investimentos nas empresas.

Outro indicador do volume expressivo de renda apropriada pelos indivíduos que compõem os extratos mais altos do pólo riqueza é a existência de um mercado de produtos de altíssimo luxo. Revistas nacionais de circulação restrita ou dirigida sobre náutica, mercado imobiliário, jóias e aviões (Touch of Class, Platinum, "A", Cavallino, Lifestyle e outras), apresentam um rol de mercadorias e serviços que parecem corresponder ao padrão de vida e de consumo de xeiques do Bahrain. Os produtos elencados estão orçados na faixa de centenas ou milhões de dólares e são comercializados em circuitos especializados. Publicidade, produtos e ambientes de comercialização especializados para atender essa categoria de consumidores não se confundem com similares destinados a uma classe média ávida de status mas cujo poder aquisitivo lhe permite aceder apenas a fragmentos do autêntico luxo.

De qualquer forma, casos rumorosos indicam que os ambientes exclusivos possuem uma fronteira fluida. O exemplo mais conhecido é o da loja Daslú, magazine de luxo na cidade de São Paulo cujos clientes são os muito ricos e os "alpinistas sociais" que buscam consumir produtos e freqüentar ambientes que indicariam prestígio e posses. Daslú também é exemplar das práticas empresariais nessa esfera de negócios e das reações das classes dominantes às tentativas do poder público realizar justiça fiscal. A loja mais luxuosa do país, praticava o contrabando e sonegava impostos federais e estaduais e parte dos seus clientes adquiriam os produtos com recursos do caixa dois. Quando a fiscalização tributária interditou-a e prendeu seus proprietários, personalidades da "alta sociedade" criticaram o Governo federal por estar atingindo "o coração da elite brasileira".

A personificação da riqueza indica que recursos substantivos estão saindo da esfera produtiva sendo destinados a um mercado restrito de alto luxo materializado em residências faraônicas (é o caso das chamadas mansões verticais na cidade de São Paulo, orçadas em dezenas de milhões de reais), em residências secundárias em Aspen, Palm Beach, nas Bahamas ou em outros paraísos montanhosos ou tropicais; materializado em bens de prestígio ou utilizado para a fruição de serviços específicos (viagens principescas, temporadas de jogos em cassinos, etc.). Apesar de não possuírem o mínimo rigor científico, os relatos jornalísticos de Richard Conniff (2004) sobre os ricos norte-americanos, não são fantasiosos e revelam dimensões despropositadas no consumo conspícuo, tudo levando a crer que se repitam no Brasil. Um exemplo entre tantos: em 2003, foram comercializados duas dezenas de sandálias Havaianas cravejadas de diamantes ao preço unitário de R$ 58 mil, o equivalente ao salário mínimo pago a um trabalhador ao longo de 20 anos! Se houvesse possibilidade de quantificar os gastos de alguns milionários brasileiros em apenas um fim de semana em Punta del Este ou em Mônaco, seria interessante compará-los aos gastos de secretárias de saúde ou de inclusão social de municípios de porte médio.

A apropriação estritamente privada, pessoal, de somas em volumes extraordinariamente altos, sempre ocorreu na história do capitalismo e corresponde à lógica intrínseca do sistema, à motivação absoluta da ação instrumental específica com relação a meios e fins (Wright Mills, 1968; Domhoff, 2005; Lundberg, 1968, Haseler, 2000). O que se destaca como uma novidade relativa é a multiplicação de segmentos cujo comportamento lembra as situações analisadas por Thorstein Veblen (1983) no final do século XIX para os Estados Unidos e indica a existência de uma nova forma de parasitismo social. Para Veblen, a "classe ociosa" era composta por antigos aristocratas, latifundiários e rentistas que usufruíam rendas não originadas na operosidade industrial. Os segmentos aos quais nos referimos provêm, ao contrário, dos setores mais rentáveis e... modernos da atividade econômica contemporânea. Esses setores extraem volumes expressivos de mais-valia a ponto de não necessitar reinvesti-los integralmente, podendo esterilizar uma parte significativa em consumo ostentatório ou simplesmente em consumo pessoal. O volume da riqueza substantiva e, consequentemente, do poder, é tão grande que eles podem se dispensar de algumas tarefas políticas de defesa dos seus interesses de classe. Nesses casos, seria possível falar de segmentos de "classes de fruição", classificação que necessita ser teorizada e fundamentada empiricamente com maior rigor e precisão.

Personificação da riqueza e classes de fruição são, habitualmente, processos articulados e que se desdobram num fenômeno que assume importância crescente: a mobilidade da riqueza. As grandes fortunas de países do Terceiro Mundo não carecem de uma sólida ancoragem no território de origem. Elas circulam pelos paraísos fiscais e se deslocam ao menor anúncio de dificuldades políticas ou de controles tributários ou fiscais; regressam quando vantagens especulativas ou mesmo produtivas são concedidas. Segundo estimativas da Receita Federal, existiam, no início de 2001, aproximadamente 100 bilhões de dólares pertencentes a pessoas físicas brasileiras que entravam e saíam do país ao sabor das possibilidades de obtenção de altos rendimentos.

Problemas da pesquisa sobre a riqueza

Sob múltiplos aspectos, o "pólo riqueza" e, em particular, a riqueza substantiva são objetos de pesquisa altamente problemáticos. É possível esquematizar em três blocos de questões os múltiplos obstáculos à apreensão do objeto e à sua análise: o primeiro relaciona-se à teoria geral do ordenamento social em classes; o segundo, compõe o déficit explicativo, isto é, a existência de preconceitos, insuficiências e lacunas nas Ciências Sociais que dificultam a abordagem do tema; o terceiro que remete às restrições materiais que impedem o acesso às informações confiáveis.

Na Sociologia contemporânea perduram os embates teóricos que marcaram a formação do pensamento social em torno das questões essenciais do poder, da estratificação social e das relações hierárquicas. Múltiplas diferenças configuram a sociedade e os indivíduos: a ausência de homogeneidade traduze-se em vantagens e desvantagens, material e simbolicamente objetivadas segundo dinâmicas que configuram as relações de poder. Diferenças – hierarquias – desigualdades – ordens e desordens – conflitos e consensos: a conjugação desses termos constitui a motivação, a base fundante da forma de se pensar a sociedade. A abordagem dessas questões elementares delineará duas rotas teóricas divergentes; rotas essas cujo traçado permitirá poucos pontos de encontro.

Os temas da desigualdade e da diferenciação são primários, no sentido de que eles constituem o primeiro estágio da construção do pensamento sociológico e eles são básicos na medida em que constituem a base de referência para elaborações teóricas complexas.

Poder-se-ia supor que eles constituiriam temas simples, sobre os quais haveria uma literatura consolidada, reflexões teóricas estáveis, comprovações empíricas consistentes. Porém, nada disso ocorre. Os temas permanecem controversos e boa parte das questões elementares e dos debates primevos, permanece inconclusa. A observação, a interpretação e a representação dessa temática cindem o pensamento social em duas correntes relativamente antinômicas. De um lado, encontram-se os quadros teóricos da Teoria Crítica que têm como ponto de partida a desigualdade polarizada entre os grupos sociais em função da propriedade ou não dos meios de produção; as desigualdades configuram-se como socialmente relevantes a partir das relações e conflitos entre as classes. Essa perspectiva teórica dá destaque aos temas das bases materiais da dominação (propriedade, organização específica do processo de trabalho), do poder e da exploração; o tema da desigualdade tem uma dimensão ética e política explicita: condenação moral das injustiças associada à reflexão e à ação levando à superação da base material dos antagonismos de classe.

De outro lado, existem os quadros teóricos que se referem à existência de diferenças hierárquicas multidimensionais, originadas de situações não determinísticas e sem condicionantes absolutos para os indivíduos (Bouffartigue, 2004) A preocupação volta-se, assim, à constatação/classificação/compreensão das estruturas e situações, apontando os significados e as possibilidades de mobilidade, por vezes, individual, da "sociedade sem destino e sem projeto" (Weber). Os temas que emergem são: divisão socioprofissional, estratificação funcional, integração, identidade, cultura (peso da tradição, valores), subjetividade, entre outros.

Nos últimos anos, houve uma tentativa de se diluírem as elaborações críticas clássicas alegando-se que as classes perderam qualquer alcance explicativo. O domínio do neoliberalismo e do realismo da "verdade de mercado" parecia indicar o fim dos "inimigos da sociedade aberta" e com isso, dos conflitos e as desigualdades. Se isso fosse verdade, predominariam diferenciações apenas merecedoras de um esforço taxinomônico por parte do pensamento social.

Essa percepção empobrecida da realidade social não se sustentou por muito tempo. As práticas predatórias do "capitalismo turbinado" sob orientação neoliberal provocaram regressões sociais mesmo nos países capitalistas avançados (Bourdieu, 1999). A precarização do trabalho, o desemprego estrutural, a concentração de renda e outros processos (re) produtores da desigualdade trouxeram de volta as questões clássicas das Ciências Sociais em termos de classes sociais, hierarquias, dominação, etc. (Bouffartigue, 2004).

Porém, perduram os problemas da adequada articulação dos quadros teóricos mais amplos com o concreto, da aplicação de conceitos abrangentes às situações nacionais ou específicas. Temas controversos, como a definição da unidade e homogeneidade das classes confrontam-se com, por exemplo, a multiplicidade de situações decorrentes das mutações do trabalho (setor informal, trabalhadores terceirizados e por conta própria), com a existência dos "inúteis para o mundo" segundo a formulação de Robert Castel, e com a proeminência crescente dos rentistas parasitários.

Na medida em que o tema possui uma conotação política, por tratar de situações e de relações de classe fortemente díspares, existe sempre o risco de ponderações morais e moralistas contaminarem a análise. Os conceitos sintetizados anteriormente foram formulados com pretensões heurísticas, como forma de preencher parte do espaço que existe entre as grandes formulações e as situações objetivas que constituem a realidade. Apesar de serem imensas, as desigualdades no caso brasileiro não configuram algo qualitativamente diferente do que ocorre em outros países capitalistas, mas, ao mesmo tempo, o conhecimento da sua persistência histórica e, sobretudo, da dinâmica das relações de poder esbarram numa espécie de déficit explicativo.

Esse déficit tem múltiplas dimensões, intelectuais e materiais, tem causas específicas e conseqüências importantes. Henri Lefebvre afirmava que as "desigualdades existem duas vezes: a primeira objetivamente, a segunda nas representações do mundo social" (Lefebvre, 1969). A cegueira ou como sustenta Jessé Souza (2004), a "opacidade" que impede a compreensão da desigualdade vincula-se a processos pré-reflexivos que afetam privilegiados e vítimas, naturalizando situações e condicionamentos. Isso até pode ser compreensível tratando-se da opinião pública ou do senso comum, mas é inadmissível no conhecimento científico.

Entre os vários elementos que explicam o fato de as Ciências Sociais não avançarem no tocante à compreensão dessa temática destacam-se três situações. A primeira diz respeito à percepção largamente compartilhada de que a pobreza é um problema enquanto a riqueza não o é. As populações pobres e miseráveis são medidas, quantificadas e analisadas nas suas dimensões sociais, políticas, psicológicas e educacionais. Estudos são feitos sobre o comportamento eleitoral, os projetos de vida e as estratégias de sobrevivência para dar conta de uma realidade aparentemente autônoma. A preocupação com a correta medição da pobreza (linha precisa de pobreza, identificação dos "verdadeiros pobres", etc.) visa aprimorar os programas sociais e as formas de intervenção. Na estranha linguagem bélica de algumas políticas públicas, o "combate à pobreza" objetiva elevar o nível de vida dos mais pobres e superar a linha da pobreza. A mesma pletora de dados e análises não existe a respeito do "pólo riqueza" e com isso se oblitera um princípio essencial que a Sociologia destaca na vida em sociedade: a desigualdade socioeconômica não é medida por uma linha mínima de rendimentos abaixo da qual se situam os pobres. Ela é auferida pelas distâncias entre as posições relativas ocupadas pelos diversos segmentos da sociedade. Mesmo se os pobres e miseráveis alcançarem o nível mínimo, isso não significa que haverá uma situação equilibrada e socialmente justa pois o que conta, sempre, é a dimensão relacional (Cattani, 2007).

A segunda situação diz respeito aos temas explorados por Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot: a imensa distância do pesquisador com o tema (falta de hexis corporal, de habitus, de domínio sobre os códigos que permitem uma melhor apreensão dos objetos); o efeito de dominação do objeto sobre o pesquisador e as equivocadas condições de recepção do assunto como tema de conhecimento científico, por um lado considerando-o fútil ou supérfluo, por outro, associando-o à defesa da causa dos ricos (Pinçon e Pinçon-Charlot, 1997). Por exemplo, na concepção corrente, quem estuda os pobres ou movimentos sociais é progressista e identifica-se com as causas populares; quem estuda elites é elitista! Poder-se-ia ainda evocar questões deontológicas (problemas com a identificação de personagens poderosos ou com a origem e a fruição de determinadas fortunas), mas, o problema se põe, novamente, num só sentido. As mesmas preocupações não aparecem no caso dos pobres, perscrutados, identificados e fotografados sem constrangimentos e suas condições de vida expostas nos mínimos detalhes.

Existem condições para os dois condicionamentos anteriores serem superados, o mesmo não acontecendo para a terceira situação envolvendo dificuldades materiais. Em alguns casos, os empecilhos são praticamente insuperáveis. Como argumentam Pochmann (2004) e Medeiros (2005), os ricos escondem-se e o fazem por diversas razões: medo de seqüestros, temor de fiscalizações tributárias mais rigorosas, receio de que sejam identificadas as relações freqüentes entre fortunas e práticas ilícitas (Cattani, 2007). Não bastasse isso, a riqueza tem um caráter multifacetado, pois há inúmeras fontes de renda e ilimitadas possibilidades de investimentos de difícil apreensão e medição. As dimensões reais da riqueza substantiva são inacessíveis até mesmo para órgãos governamentais especializados e, no caso de haver alguma forma de registro, o acesso público é interditado pela legislação que garante a inviolabilidade do segredo bancário e das declarações de renda.

As pesquisas indiretas também encontram barreiras importantes. O acesso aos clubes e aos condomínios de luxo é vetado com truculência pelos sistemas de vigilância privada e mesmo pela polícia. Até as pesquisas oficiais (PNAD, Censo), não conseguem captar dimensões elementares dos segmentos mais ricos e, em muitos casos, os dados fornecidos não correspondem à realidade. Dificilmente obtêm-se informações dos serviçais, seja por cumplicidade (o excesso de rigor corresponde, frequentemente, à servitude naturalizada), seja por temor de perder o emprego.

Em resumo, não existe interesse algum em facilitar o acesso às informações que poderiam pôr em questão a legitimidade de posições da classe dominante. As barreiras levam muitos pesquisadores a abandonar o tema lembrando a estratégia da pessoa que desiste de procurar a chave perdida num local escuro, buscando-a em outro lugar porque está iluminado! Concretamente, para cada 100 estudos sobre os pobres brasileiros existe apenas um sobre os mais ricos (Bordignon, 2005).

Considerações finais

Ao final deste artigo não cabe nenhuma conclusão peremptória mas a reafirmação de algumas questões básicas a começar pelo grave significado de situações extremas de desigualdade socioeconômica. A desmedida corresponde a condições permanentemente renovadas de apropriação da riqueza social por grupos minoritários. A questão da escala ou da desproporção entre o "pólo riqueza" e o "pólo pobreza" é importante na medida em que ela corresponde a processos cumulativos: de um lado, proporcionando vantagens, privilégios e regalias, de outro, impondo condições que degradam e destroem, moral, social e biologicamente o maior milagre cósmico: a vida humana (Boltvinik, Damián, 2004, p.11; Bihr et Pfefferkorn, 1999). Os dois pólos não são auto-referentes e menos ainda auto-suficientes mas vinculados a relações de poder que perpassam de alto a baixo a estrutura social. A dimensão relacional é permanente e ações dos perpetradores em termos de violação de direitos sociais básicos e de exploração pática dos trabalhadores têm efeito cascata. Inicia-se no topo da pirâmide social e reproduze-se nos grupos intermediários até atingir os segmentos da base.

Entre os grandes desafios colocados para as Ciências Sociais está a renovação dos quadros teóricos de maneira a reduzir o déficit explicativo, eliminando preconceitos e superando dificuldades materiais que bloqueiam o acesso aos dados essenciais sobre os fundamentos e as estratégias da riqueza. Novos enfoques, novas perspectivas analíticas se fazem necessários para se produzir conhecimento crítico e instigante acerca da sociedade, ampliando-se os horizontes da consciência e os campos da ação política.

Recebido: 03/05/2007

Aceite final: 30/05/07

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2007

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2007
  • Aceito
    30 Maio 2007
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