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Estrutura de sentimentos, Stimmung e atmosfera: uma proposta de sistematização do emergente mood studies

Structure of feelings, Stimmung and atmosphere: A proposal for the systematization of the emerging mood studies

Estructura de sentimientos, Stimmung y atmósfera: una propuesta para la sistematización del emergente mood studies

Resumo

O artigo busca identificar um campo de estudos em formação, aqui nomeado como Mood Studies. Esse campo, influenciado pela “virada afetiva”, tem abrigado estudos de diversas disciplinas, como Sociologia, Antropologia, Geografia, História da Arte, Comunicação, Literatura e Arquitetura. Seu foco comum são os aspectos específicos dos fenômenos sociais, como humor, clima e atmosfera. O mapeamento desse campo se dá pela identificação de três conceitos fundamentais – Stimmung, atmosfera e estrutura de sentimento – e da orientação em realçar, por meio desses conceitos, a hibridez entre individual e coletivo e entre subjetivo e objetivo. Realizando breves genealogias, ressalta-se as relações entre os conceitos de forma, a fazer ver a formação atual de uma gramática comum. Essa nova gramática e o distanciamento crítico à Teoria dos Afetos têm dado especificidade a esse campo.

Palavras-chave
humor; Stimmung ; clima; atmosfera; estrutura de sentimento

Abstract

This paper aims to identify a field in formation, herein named Mood Studies. Influenced by the “affective turn”, this field is composed of studies from several disciplines such as Sociology, Anthropology, Geography, Art History, Communication, Literature, and Architecture. Its common focus is on specific aspects of social phenomena such as mood, climate, and atmosphere. To map this field, three main concepts – Stimmung, atmosphere, and structure of feeling – are identified, and special attention is given to the hybridity between individual and collective, as well as between subjective and objective. With short genealogies, we show that these concepts are building a common grammar. This grammar and the critical detachment from Affect Theory provide specificity to the field.

Keywords
mood; Stimmung; climate; atmosphere; structure of feeling

Resumen

Este artículo tiene como objetivo identificar un campo de formación, aquí denominado Mood Studies. Influenciado por el “giro afectivo”, este campo se compone de estudios de diversas disciplinas como Sociología, Antropología, Geografía, Historia del Arte, Comunicación, Literatura y Arquitectura. Su enfoque común está en aspectos específicos de fenómenos sociales como el estado de ánimo, el clima y la atmósfera. Para mapear este campo, se identifican tres conceptos principales: Stimmung, atmósfera y estructura de sentimiento, y se presta especial atención a la hibridación entre individuo y colectivo, así como entre subjetivo y objetivo. Con breves genealogías, demostramos que estos conceptos construyen una gramática común. Esta gramática y el distanciamiento crítico de la teoría del afecto proporcionan especificidad al campo.

Palabras clave
humor; Stimmung ; clima; atmósfera; estructura de sentimiento

Nos últimos anos, pesquisas abrigadas em diversas tradições disciplinares (Sociologia, Geografia, História da Arte, Estudos Culturais, Comunicação, Literatura, Antropologia) têm olhado com interesse para aspectos nebulosos dos fenômenos sociais. São aspectos que têm sido identificados, em geral, como humores, climas ou atmosferas. Suas referências conceituais também são bastante diversas. A principal vem da conceitualização de Martin Heidegger sobre Stimmung, mas há também referência aos conceitos de atmosfera, de Hermann Schmitz, e de estrutura de sentimento, de Raymond Williams50 WILLIAMS, Raymond. Os tempos da imaginação. In: WILLIAMS, R. A produção social da escrita. Editora Unesp. 2014.. Ainda que haja tamanha diversidade disciplinar e de conceitos, aos poucos percebe-se a constituição de um campo por referências e debates comuns. Neste artigo, apresento uma proposta de sistematização e compreensão da especificidade desse campo, que chamo aqui de Mood Studies.1 1 Agradeço à Faperj pelo apoio à pesquisa via edital “Jovem Pesquisador Fluminense – 2021” (Processo E-26/210.342/2022).

Esta nomeação, preciso alertar, não parte da constatação de que os Mood Studies existam em sentido estrito. Esse campo, até o momento, não possui uma unidade facilmente identificável com referências institucionais. Sua unidade está mais visível em como certos conceitos ganham centralidade e na forma como se trabalha esses conceitos para realçar um conjunto de aspectos como hibridez, afetividade, corporalidade e ambientalidade. Ainda assim, indícios institucionais podem ser percebidos na construção de certas agendas de pesquisas e também em iniciativas de articulação, como os dossiês em revista “In the mood” na New Literary History (Felski; Fraiman, 2012a17 FELSKI, Rita; FRAIMAN, Susan (org.). Dossiê “In the mood”. New Literary History, v. 43, n. 3, 2012a.), “Mood work” na New Formations (Highmore; Taylor, 201434 HIGHMORE, Ben; TAYLOR, Jenny B (org.). Dossiê “Mood Work”. New Formations, v. 82, 2014.), “Staging Atmospheres: Materiality, Culture, and the Texture of the In-Between” na Emotion, Space and Society Journal (Bille et al., 20153 BILLE, Mikkel; BJERREGAARD, Peter; SØRENSEN, Tim Flohr. Staging atmospheres: Materiality, culture, and the texture of the in-between. Emotion, Space and Society, v. 15, p. 31-38, 2015. https://doi.org/10.1016/j.emospa.2014.11.002
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), “The Meaning of Moods” na Philosophia (Krebs; Ben-Ze’ev, 201737 KREBS, Angelika; BEN-ZE’EV, Aaron. Preface to the Meaning of moods. Philosophia, v. 45, n. 4, p. 1395-1397, 2017. https://doi.org/10.1007/s11406-017-9900-6
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), “Moods” na Studi di Estetica (Griffero, 2019c23 GRIFFERO, Tonino (org.). Dossiê “Sensibilia 12: moods”. Studi di Estetica, ano XLVII, série IV, 2019c.) e “Atmosphere and Mood” na Art Style (Sauer; Wang, 202342 SAUER, Martina; WANG, Zhuofei. Dossiê “Atmosphere and Mood: Two Sides of the Same Phenomenon”. Art Style, Art & Culture International Magazine, v. 11, n. 11, 2023.); as coletâneas “Atmosphere/Atmospheres: testing a new paradigm” (Griffero; Moretti, 201825 GRIFFERO, Tonino; MORETTI, Giampierro (org.). Atmosphere/atmospheres: testing a new paradigm. Milano: Mimesis International, 2018.), “Atmosphere and aesthetics: a plural perspective” (Griffero; Tedeschi, 201926 GRIFFERO, Tonino; TEDESCHINI, Marco. Atmosphere and aesthetics: a plural perspective. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.), “Mood: interdisciplinar perspectives, new theories” (Breidenbach; Docherty, 201610 BREIDENBACH, Birgit; DOCHERTY, Thomas (org.). Mood: interdisciplinar perspectives, new theories. Nova York: Routledge, 2016.), “Atmospheres and Shared Emotions” (Trigg, 202248 TRIGG, Dylan (org.). Atmosphere and hared emotions. Nova York: Routledge, 2022.); e dezenas de mesas redondas, seminários e sessões temáticas.

Este campo em formação também se torna visível analiticamente, pois é possível diferenciá-lo de outras abordagens sobre o mesmo termo. Para além dos estudos da Psicologia e da Psiquiatria que tomam mood como um conceito primariamente individual, existe uma teoria para a qual mood possui papel central e que foca seu aspecto coletivo (social mood), a Socionomics. Esta teoria tem buscado relacionar índices de bolsas de valores com humores coletivos (Casti, 201011 CASTI, John. Mood matters: from rising skirt lengths to the collapse of world powers. Nova York: Copernicus Books, 2010.). Recentemente, a Socionomics se reacendeu com pesquisas sobre redes sociais, já que a identificação de um índice de sentimento social (Bollen et al., 20115 BOLLEN, Johan; MAO, Huina; ZENG, Xiaojun. Twitter mood predicts the stock market. Journal of Computational Science, v. 2, n. 1, p. 1-8, 2011. https://doi.org/10.1016/j.jocs.2010.12.007
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), que ocorria nos estudos a partir do desempenho das bolsas de valores, foi estendida às análises da circulação intensiva de mensagens sobre sentimentos e emoções que insinuam com mais força a existência de um clima público, uma visão emocional do coletivo. Ainda que tenha como foco o aspecto social, humor coletivo é entendido como resultante translúcida dos humores individuais – psicometricamente identificados e somados estatisticamente (Bollen et al., 20115 BOLLEN, Johan; MAO, Huina; ZENG, Xiaojun. Twitter mood predicts the stock market. Journal of Computational Science, v. 2, n. 1, p. 1-8, 2011. https://doi.org/10.1016/j.jocs.2010.12.007
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).

Para iniciarmos o distanciamento dos Mood Studies das abordagens existentes, podemos tomar a crítica que Pierre Bourdieu faz sobre a noção de opinião pública e estendermos para a de humor público (até porque muito do debate cria uma continuidade pouco tensa entre as duas noções). Bourdieu afirma que as pesquisas de opinião registram “disposições que, por definição, não constituem opinião, se por esta palavra compreendemos […] alguma coisa que pode ser formulada num discurso com uma certa pretensão à coerência” (19836 BOURDIEU, Pierre. A Opinião Pública não existe. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero Limitada. 1983., p. 182). Analogamente, podemos questionar se agregar emoções vividas privadamente explicita um certo clima social; ou perguntar se o clima tem uma dinâmica que, antes de ser formado por emoções vividas individualmente, tem mais a ver com o funcionamento de uma orquestra, na qual o sentimento vivido compõe um clima mediado pelo conjunto dos sentimentos em comunicação.

O novo campo de estudos tem partido de uma rejeição da separação estanque entre sujeito e objeto e de individual e coletivo. Estão imersos em um “novo clima”, para usarmos um termo ajustado a esse campo, e participam de uma nova agenda de pesquisas, fortemente marcados pelo foco nos afetos, ou seja, estão ligados a uma nova orientação teórica que emergiu nos anos 90 e ficou conhecida como virada afetiva (Clough, 200712 CLOUGH, Patricia. Introduction. In: CLOUGH, P. (org.). The affective turn: Theorizing the social. Durham: Duke University Press. 2007.). Essa mudança ocorre ao tomar a noção de afeto, principalmente a partir da leitura deleuziana de Espinosa, como chave da compreensão das novas configurações tecnológicas que abalam a separação entre orgânico e inorgânico, entre sujeito e objeto e, por sua vez, entre ambiente e coisa. Em Mil platôs (1997), Gilles Deleuze e Felix Guattari questionam a ideia de que o ambiente seja um pano de fundo da coisa. Como partem da ideia de que não há uma separação entre exterioridade e interioridade, ou, colocando de forma melhor, de que não existe uma interioridade que fundamenta uma exterioridade, os autores reconfiguram a noção de ambiente. Ambiente não seria o meio no qual a exterioridade de uma interioridade se expressa. Se tudo é exterior, não faz sentido pensar-se em um ambiente como simples meio ou cenário. A essa exterioridade, os autores chamam de hecceidade, onde “tudo aí é relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado” (Deleuze; Guattari, 199715 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. (Vol. 4)., p. 47). Hecceidade seria a latitude e longitude de cada coisa, sua intensidade e extensão (Deleuze; Guattari, 199715 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. (Vol. 4).). Aquilo que chamamos de meio, como o “clima, o vento, a estação, a hora não são de uma natureza diferente das coisas, dos bichos ou das pessoas que os povoam, os seguem, dormem neles ou neles acordam” (Deleuze; Guattari, 199715 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. (Vol. 4)., p. 50).

Com este foco nos afetos, o meio, a atmosfera, torna-se uma arena de contágios. Para Ben Anderson, a noção de atmosfera se aproxima bastante do que foi definido como afeto por Deleuze e Guattari, para quem os afetos são intensidades que não são de um corpo isolado, mas algo dinâmico que vai para além dos sentimentos ou afecções (Anderson, 20092 ANDERSON, Ben. Affective atmospheres. Emotion, Space and Society, v. 2, n. 2, p. 77-81, 2009. https://doi.org/10.1016/j.emospa.2009.08.005
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).2 2 Todas as traduções de citações neste artigo foram minhas. Ao compreender sentimentos como ligados a intensidades afetivas, abriu-se campo para os estudos sobre as transmissões dessas intensidades, ao “que está entre” – “in-betweenness” (Gregg; Seigworth, 201020 GREGG, Melissa; SEIGWORTH, Gregory. Introduction. In: GREGG, M.; SEIGWORTH, G. (org.). The affect theory reader. Durham: Duke University Press, 2010., p. 2). O que, por sua vez, permite um conjunto de instrumentos teóricos para diminuir ou eliminar as barreiras sólidas entre conceitos como clima, humor e atmosfera. Não seriam fenômenos isolados. Por exemplo, se pensarmos que humor, como uma disposição afetiva do sujeito, e clima, como uma tonalidade compartilhada, humor e clima se afetam permanentemente.

A proposta de Deleuze e Guattari também reabilitou o uso de termos entendidos como voltados aos fenômenos naturais para os fenômenos sociais. Ao borrar a separação entre natureza e cultura, o uso cotidiano dos termos de clima ou atmosfera para tratar de situações tidas como sociais, como por exemplo o clima frio de um consultório, ganhou legitimidade científica. Sob a ótica dos afetos, o frio de uma sala de consultório médico e o humor frio do atendente comunicam-se, afetam-se, sem necessariamente os pensarmos como fenômenos de ordem distintas. Isso nos ajuda a entender, portanto, como a noção de clima ou atmosfera para tratar de fenômenos não ficaram restritos a uma ideia de natureza. Como afirma Bernd Herzogenrath32 HERZOGENRATH, Bernd. Introduction. In: HERZOGENRATH, B. (org.). An [un]likely alliance: thinking environment[s] with Deleuze/Guattari. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2009., a virada afetiva ajudou na proliferação do uso de termos antes considerados próprios para fenômenos naturais para fenômenos sociais, como “natureza”, “paisagem” e “ambiente” (2009, p. 3).

Se concordarmos com definição de Denílson Lopes de que a “virada afetiva” pode ser entendida como um “campo de discussões” (Lopes, 201345 SILVA, Denilson Lopes. Afectos pictóricos ou em direção a transeunte de Eryk Rocha. Revista Famecos, v. 20, n. 2, p. 255-274, 2013. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2013.2.14125
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, p. 256), podemos pensá-la como parte de um novo clima de pesquisas. Esse clima, como tentamos apontar acima, incentiva o foco em aspectos mais etéreos dos fenômenos, como os afetos, o humor, o clima e a atmosfera. Esses termos já estavam presentes nos debates acadêmicos, mas é um novo clima que fará com que esses termos já existentes sejam reoperacionalizados para tratar essa zona cinzenta da ambientação. Será sob essa ótica que trataremos agora de apresentar pequenas genealogias de conceitos que foram resgatados recentemente: a abordagem heideggeriana de Stimmung, a visão de Hermann Schmitz de atmosfera e a de estrutura de sentimento de Raymond Williams.

Stimmung

O Mood Studies tem se formado majoritariamente por meio da língua inglesa. No entanto, a principal referência conceitual para tratar de mood está no conceito alemão de Stimmung. O que, principalmente, tem atraído os pesquisadores para esse conceito é sua forte ambiguidade, presente desde seu surgimento na discussão filosófica, no século XVIII. Até ser tratado como conceito, o termo era uma substantivação do verbo “stimmen”, que significava “levantar a voz” ou “afinar um instrumento musical” (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018., p. 10). Na música, ele poderia significar: a afinação de um instrumento; a condição de estar em harmonia com outros instrumentos; e a condição de um instrumento estar preparado para tocar, ou seja, a disposição para tocar (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018.). Segundo Leo Spitzer (1944)46 SPITZER, Leo. Classical and christian ideas of world harmony: Prolegomena to an interpretation of the word “Stimmung”: Part I. Traditio, v. 2, p. 409-464, 1944., o termo ganha importância filosófica inicial por ter afinidade com uma visão cristã sobre a harmonia do mundo.

Immanuel Kant36 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Petrópolis: Editora Vozes, 2017., em Crítica da faculdade de julgar (2017/1790), evoca o sentido da harmonização para tratar de uma relação bem temperada entre imaginação e entendimento do juízo do gosto que prescinde do conceito. Faz uso também do sentido de disposição, como estado de ânimo (Silva, 201645 SILVA, Denilson Lopes. Afectos pictóricos ou em direção a transeunte de Eryk Rocha. Revista Famecos, v. 20, n. 2, p. 255-274, 2013. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2013.2.14125
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). O termo está carregado da objetividade advinda do seu uso musical, a reciprocidade entre faculdades não é subjetiva, mas algo que é comunicável e geral (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018.). No entanto, durante o século XIX, seu uso se tornará cada vez mais voltado à subjetividade (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018.). Em Schiller, sobrevive o sentido de disposição, mas já não há o de harmonização entre as partes. Em Humboldt, Stimmung se refere à maneira como o mundo é compreendido, que é subjetiva. E em Fichte, “vê-se que o uso da noção de disposição não se reporta à de proporção, contudo, ao movimento de direcionamento do espírito, pois, se o gênio é um protegido da natureza, é porque ele transmite, como espírito que é, imediatamente, sua Stimmung em uma matéria” (Silva, 201645 SILVA, Denilson Lopes. Afectos pictóricos ou em direção a transeunte de Eryk Rocha. Revista Famecos, v. 20, n. 2, p. 255-274, 2013. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2013.2.14125
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, p. 58).

Na virada para o século XX, Alois Riegl apresenta uma concepção que se diferencia bastante da proposta romântica. Resgatando o sentido ligado à harmonia do termo, Riegl, em “Stimmung como conteúdo da arte moderna” de 1899, considera que a arte moderna se constitui como uma afirmação da harmonia em oposição ao caos da natureza e da própria vida moderna.

os saberes descobertos são para nós frequentemente penosos, eles nos invadem o pensamento e o pessimismo é, não por acaso, um aspecto que caracteriza nossa moderna vida espiritual [...] mas esse mesmo saber desperta em nós a libertadora harmonia, quando acima da estreiteza das manifestações individuais rebeldes, deixamos alcançar com a vista um elo da corrente; quanto mais abarcamos num único olhar esse elo, tanto mais certa, libertadora e elevada é para nós a convicção de uma ordem, na qual a harmonia equilibra-se. A arte da Stimmung, isto é, a arte moderna baseia-se nessa harmonia simultaneamente posta em cena e provocada pelo saber

(Riegl apud Silva, 201645 SILVA, Denilson Lopes. Afectos pictóricos ou em direção a transeunte de Eryk Rocha. Revista Famecos, v. 20, n. 2, p. 255-274, 2013. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2013.2.14125
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, p. 60-61).

David Wellbery ressalta que pela primeira vez se toma a noção de Stimmung como tendo historicidade (2018), pois é na modernidade que Stimmung ganha importância para arte como um refúgio. Portanto, o resgate do sentido de harmonia não significa um retorno à visão metafísica original – de harmonia do mundo. “A arte não transmite a verdade pela introspecção na ordem metafísica do mundo. Antes, arte é entendida como meios de tornar a vida suportável” (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018., p. 26). Essa harmonia advém de uma “experiência estética da paisagem”, uma visão que conecta harmoniosamente os elementos à distância. “A Stimmung é, precisamente, a produção de uma unidade formal e a vivência de uma percepção organizada, a qual pode ser traduzida por harmonia ou ‘atmosfera’ e não pela disposição para o reconhecimento de uma bela proporção entre as faculdades” (Silva, 201645 SILVA, Denilson Lopes. Afectos pictóricos ou em direção a transeunte de Eryk Rocha. Revista Famecos, v. 20, n. 2, p. 255-274, 2013. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2013.2.14125
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, p. 62).

A conexão entre paisagem e Stimmung também aparece em Georg Simmel e em Moritz Geiger, autores das primeiras décadas do século XX. Para Simmel, Stimmung colore tudo e dá unidade à paisagem, “faz-se sentir como uma qualidade afetiva que permeia e, portanto, unifica tudo. A unidade da paisagem como sua própria entidade se deve à conquista pré-reflexiva da integração por parte do Stimmung, aqui entendido como afetividade compreensiva” (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018., p. 28-29). Na visão simmeliana, “percepção e sentimento estão sempre unidos” (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018., p. 31), o que tende a uma subjetivação quase romântica de Stimmung, na ideia de uma individualização da paisagem pelos sujeitos. Já para Geiger, os objetos, as paisagens inclusive, tomados como Stimmung não correspondem a sentimentos do observador, “coisas, formas, cores tem ‘caracteres’ que podem ser tomados como componente objetivo. Mas há também uma orientação de sentimento em direção ao objeto, uma conexão entre a experiência […] e o objeto” (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018., p. 30). Na fenomenologia de Geiger, a coisa pode resistir aos sentimentos do observador e o Stimmung se forma a partir de um movimento de constante feedback entre observador e coisa, entre sentimento e experiência.

A espacialização da Stimmung, realizada por Riegl, Simmel e Geiger, é crucial para compreender o uso contemporâneo do conceito como atmosfera e também a forma como Heiddeger o usará. A continuidade com Heidegger está no abandono do elemento metafísico de harmonia ligado ao conceito. No entanto, somente em Heidegger se realiza um segundo giro anti-metafísico: o uso do termo Stimmung se faz a partir da busca de antemão de abdicar da ideia de uma vida interior, da psique. “Stimmungen não são eventos que acontecem em nossa mente ou alma ou consciência e devem de alguma forma ser relacionados ou conectados com eventos no mundo mais amplo” (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018., p. 33). Para Heidegger, Stimmung é algo existencial (Wellbery, 201849 WELLBERY, David. Stimmung. New Formations, v. 93, p. 6-45, 2018.), a condição do ser-aí de estar jogado no mundo, de se sintonizar ao mundo. Nesse sentido, Stimmung seria o modo de afetação (Breidenbach, 20179 BREIDENBACH, Birgit. Stimmung and modernity: the aesthetic philosophy of mood in Dostoevsky, Beckett and Bernhard. 2017. Tese (Doutorado em Filosofia) – University of Warwick, Warwick, 2017., p. 15) inescapável de todo ser-aí (Dasein),

a sintonização do ser-aí é o pré-requisito para a habilidade do sujeito em estabelecer sentidos, intenções e ações em relação ao mundo. No entanto, o termo ‘mundo’ aqui designa não simplesmente o ambiente ôntico dentro do qual o ser-aí existe, mas também, e mais importante, o sistema de referências pelo qual ele se relaciona com aquelas entidades que o circundam

(Breidenbach, 20179 BREIDENBACH, Birgit. Stimmung and modernity: the aesthetic philosophy of mood in Dostoevsky, Beckett and Bernhard. 2017. Tese (Doutorado em Filosofia) – University of Warwick, Warwick, 2017., p. 16).

Essa formulação heideggeriana foi a que mais serviu para os novos estudos sobre mood. A aplicação das características de Stimmung para mood proliferaram. A ideia de que estamos sempre em algum mood é recorrente nesses estudos, bem como a ideia de que o mood não apenas diz respeito a um sentimento sem objeto, como a Psicologia geralmente o classifica, mas a um sentimento de um “eu-e-mundo juntos” (Felski; Fraiman, 2012b18 FELSKI, Rita; FRAIMAN, Susan. Introduction. New Literary History, v. 43, n.3, p. v–xii, 2012b. https://doi.org/10.1353/nlh.2016.0010
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, p. vii). Mood, tomado a partir do Stimmung heideggeriano, se afasta do conceito de emoção, com o qual é muitas vezes confundido. Mood, por influenciar “mais a forma como se percebe do que o conteúdo percebido, leva apenas indiretamente a comportamentos e não motiva diretamente emoções” (Griffero, 2019a21 GRIFFERO, Tonino. In a neo-phenomenological mood: Stimmungen or atmospheres? Studi di Estetica, ano XLVII, série IV, p. 121-151, 2019a. https://doi.org/10.7413/18258646086
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, p. 133-134).

Podemos considerar que a popularidade do sentido dado por Heidegger tem a ver com uma mudança social ligada à descrença nas possibilidades de harmonia, como o pessimismo de Leo Spitzer indica. Como aponta Hans Ulrich Gumbrecht, o conceito deixa de ter o sentido ligado à harmonia e à reconciliação e passa a significar as atmosferas próprias de cada situação. Com essa inflexão, “o conceito ficou disponível para uso universal” (2015, p. 20). A tendência ao reforço do aspecto climático do termo permitiu, em alemão, um diálogo com o conceito de Atmosphäre, como veremos a seguir.

As metamorfoses pelas quais passou o conceito não o fizeram de mais fácil tradução. Stimmung ainda evoca três sentidos que não encontram, segundo Wellbery, um termo unificador em outras línguas de raiz europeia. Humor, atmosfera (ou clima) e sintonização são sentidos que, em português, só podem ser expressos separadamente. De forma semelhante, a língua inglesa necessita de três termos: mood, atmosphere (climate) e attunnement, ainda que os recentes estudos sobre mood tenham esticado o sentido coletivo, quase ambiental, de mood.

Atmosfera

Atmosfera, como um conceito filosófico, foi tratado por Hermann Schmitz, a partir do final dos anos 60, como parte essencial do que chamou de nova fenomenologia, em especial no papel de reposicionar a discussão sobre sentimentos e emoções. Para Schmitz, as emoções tradicionalmente na filosofia (na linhagem que iria de Demócrito e Platão a Sartre) são compreendidas como ligadas à alma, “uma esfera interna contendo o conjunto das experiências [do sujeito]” (Schmitz et al., 201143 SCHMITZ, Hermann; MÜLLAN, Rudolf Owen; SLABY, Jan. Emotions outside the box – the new phenomenology of feeling and corporeality. Phenomenology and the cognitive sciences, v. 10, n. 2, p. 241-259, 2011., p. 247). O corpo teria sido relegado aos aspectos considerados físicos, maquinais, não de forma necessariamente negativa, mas como aquilo que é visível e pode ser considerado e estudado objetivamente.

A alma passa a ser recheada com todo o possível e imaginável que não se quer mais no resto do mundo, para que este possa ser abarcado pela visão. Uma vez aí, muitas coisas não são mais consideradas objetivas, como as cores e os sons. Passam a existir apenas nesse mundo interior, na alma. A maior parte dessas coisas vão sendo simplesmente esquecidas, como atmosferas, sentimentos, situações, relações, programas e problemas

(Dias, 200616 DIAS, Geraldo de Souza. O corpo em mira: entrevista com Hermann Schmitz. Novos Estudos – CEBRAP, n. 74, p. 141-153, 2006., p. 148).

Contra essa polarização, Schmitz apresenta o conceito de “corpo sentido” (Leib). Diferentemente do corpo físico, que seria o corpo da ciência, o corpo sentido poderia ser entendido como o corpo da experiência cotidiana, um espaço sem superfície (Schmitz et al., 201143 SCHMITZ, Hermann; MÜLLAN, Rudolf Owen; SLABY, Jan. Emotions outside the box – the new phenomenology of feeling and corporeality. Phenomenology and the cognitive sciences, v. 10, n. 2, p. 241-259, 2011., p. 253), absoluto, local do que o autor denomina o presente primitivo. O presente primitivo seria mais evidente nos animais e nas crianças, mas estaria em todas as experiências como fundamento e produz “uma autoconsciência sem identificação” (Schmitz et al., 201143 SCHMITZ, Hermann; MÜLLAN, Rudolf Owen; SLABY, Jan. Emotions outside the box – the new phenomenology of feeling and corporeality. Phenomenology and the cognitive sciences, v. 10, n. 2, p. 241-259, 2011., p. 245), ou seja, seria a matéria-prima da formação identitária, da personalidade. Portanto, “[a] fundação da personalidade não é a alma, mas a vida do corpo sentido como uma vida no presente primitivo, marcado pelo dinamismo corporal e pela comunicação corporal, sem uma esfera privada interior fechada” (Schmitz et al., 201143 SCHMITZ, Hermann; MÜLLAN, Rudolf Owen; SLABY, Jan. Emotions outside the box – the new phenomenology of feeling and corporeality. Phenomenology and the cognitive sciences, v. 10, n. 2, p. 241-259, 2011., p. 254).

Considerando a abertura do presente primitivo, para Schmitz, não há uma diferença ontológica entre emoção e atmosfera. A emoção não seria um fenômeno subjetivo, e a atmosfera, objetivo. A própria emoção seria atmosférica, espacial. Em um famoso e quase enigmático trecho, o autor afirma que “emoções são atmosferas derramadas espacialmente que movem o corpo (Lieb).” (Schmitz et al., 201143 SCHMITZ, Hermann; MÜLLAN, Rudolf Owen; SLABY, Jan. Emotions outside the box – the new phenomenology of feeling and corporeality. Phenomenology and the cognitive sciences, v. 10, n. 2, p. 241-259, 2011., p. 247). E, por sua vez, a atmosfera seria “a completa ocupação do espaço sem superfícies na região da presença experenciada” (p. 255). A forma como Schmitz apresenta as emoções e atmosferas deriva de uma concepção de que estas, ainda que não advenham da alma, têm algo de diferente das entidades como a pedra, que ele chama de entidades inteiras. Essas têm duas características que se diferem das semi-entidades. Uma pedra, por exemplo, tem uma existência ininterrupta e “por meio de um impulso (modo de influência) pode causar movimento ou dano ao objeto atingido (efeito)” (Schmitz et al., 201143 SCHMITZ, Hermann; MÜLLAN, Rudolf Owen; SLABY, Jan. Emotions outside the box – the new phenomenology of feeling and corporeality. Phenomenology and the cognitive sciences, v. 10, n. 2, p. 241-259, 2011., p. 256). Já as semi-entidades, como sentimentos, vozes, vento, dor, melodias, podem ser interrompidas e se apresentam como causa por ser um modo de influência. Ou seja, não determinam, mas são influenciadoras da ação. Entre os elementos que Schmitz apresenta como semi-entidades, podemos identificar um ponto em comum: estão mais ligados à existência como vibrações (cor e som como ondas, por exemplo) do que como o que identificamos como algo material (pedra, água e nuvem).

Tonino Griffero, bastante influenciado por Schmitz, recém lançou um livro intitulado “Quase-coisas: o paradigma das atmosferas”. Neste, o autor se dedica a apresentar as atmosferas com uma objetividade especial: “atmosferas são tanto um exemplo – ou melhor, o principal exemplo – da categoria mais ampla de quase-coisas como a forma fundamental na qual quase-coisas nos tocam e nos envolvem” (Griffero, 201724 GRIFFERO, Tonino. Quasi-things:the paradigm of atmospheres. Nova York: State University of New York Press, 2017., p. xv). Portanto, para Schmitz e Griffero, a atmosfera ganha sentido de qualidade das coisas, ela é característica das quase-coisas: sentimentos, ventos, sons são atmosféricos pois não respeitam bordas, são sem superfície. Por isso, o poder das quase-coisas está na comunicação mais direta e imediata com o corpo sentido.

Podemos identificar dois aspectos aparentemente divergentes nessa definição. Haveria a atmosfera e também as coisas atmosféricas (quase-coisas). Tim Ingold (2012)35 INGOLD, Tim. The Atmosphere. Chiasmi International, v. 14, p. 75-87, 2012. https://doi.org/10.5840/chiasmi20121410
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enxerga essa tensão nos usos que a ciência meteorológica e os estudos de estética fazem do termo. Na ciência meteorológica, atmosfera é éter, ou seja, um meio onde ocorrem os fenômenos. Nos estudos de estética, especialmente a partir da contribuição de Gernot Böhme (1993)4 BÖHME, Gernot. Atmosphere as the fundamental concept of a new aesthetics. Thesis Eleven, v. 1, n. 36, p. 113-26, 1993. https://doi.org/10.1177/072551369303600107
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em seu basilar texto sobre atmosfera como categoria fundamental da nova estética, atmosfera se aproxima de aura, aquilo que emanaria das obras. Esse último sentido pode ser conectado à forma como o termo era usado no século XVIII em francês e alemão. Se o sentido original em grego (ατμόσφαιρα) era o de uma esfera de vapor, ele é ressignificado para aquilo que emana dos corpos, como os odores, e passa a tratar das paixões e humores como aquilo que sai do corpo e habita o ambiente (Riedel, 201941 RIEDEL, Friedlind. Atmosphere. In: SLABY, Jan; VON SCHEVE, Christian (org.). Affective societies: key concepts. Nova York: Routledge, 2019. p. 85-95.). O uso nesse sentido aproximará ainda mais o termo à Teoria dos Afetos.

Crucialmente, as atmosferas e sentimentos que corpos emanavam não eram um mero fenômeno estético imaterial da percepção, mas consistia em eflúvio material e poderia até contagiar como a cólera. É esta não binária concorrência da substância material e sentimentos já presente na semântica inicial de atmosfera que imbui o termo com um potencial inovativo e o alinha ao afeto numa ontologia monística

(Riedel, 201941 RIEDEL, Friedlind. Atmosphere. In: SLABY, Jan; VON SCHEVE, Christian (org.). Affective societies: key concepts. Nova York: Routledge, 2019. p. 85-95., p. 87).

Além dessa afinidade com a Teoria dos Afetos, são evidentes outros pontos de contato. A discussão conceitual sobre atmosfera tem atingido a separação entre sujeito e objeto, interior e exterior, em sintonia com o clima teórico da virada afetiva. Essa afinidade fica evidente em Ingold (2012)35 INGOLD, Tim. The Atmosphere. Chiasmi International, v. 14, p. 75-87, 2012. https://doi.org/10.5840/chiasmi20121410
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, que enxerga o debate sobre atmosfera em conexão com a discussão de Deleuze e Guattari sobre o espaço nebuloso, e está presente na forma como ele busca superar as duas visões sobre atmosfera: “para transcender a oposição entre o meteorológico e o afetivo, nós precisamos recarregar a atmosfera com o material do ar. E o que é também reconhecer que o mundo que habitamos, longe de ter se cristalizado em formas fixas e definitivas, é um mundo do tornar-se, de fluxos ou, em síntese, um mundo-clima” (2012, p. 81).

No entanto, para alguns estudiosos, atmosfera também propõe desafios à Teoria dos Afetos. Como indica Riedel, uma visão mais recente faz a atmosfera se distanciar do termo afeto para ressaltar a “forma na qual uma multiplicidade de corpos é parte e está entrincheirada numa situação que a engloba” (2019, p. 85). Diferentemente dos afetos, que dizem respeito às afetações entre corpos, atmosfera “opera como um meio que traz à aparência aquilo que não pode ser deduzido de ou reduzido aos corpos presentes numa situação” (Riedel, 201941 RIEDEL, Friedlind. Atmosphere. In: SLABY, Jan; VON SCHEVE, Christian (org.). Affective societies: key concepts. Nova York: Routledge, 2019. p. 85-95., p. 85). A visão da atmosfera como meio abre campo para aproximar o termo das metáforas musicais, o que, curiosamente, gera semelhanças com Stimmung (Schmitz usará muitas vezes Stimmung como sinônimo de atmosfera, por exemplo). Se atmosfera engloba os corpos, ela é algo que está para além do que eles emanam. Portanto, o que daria a unidade necessária para se identificar uma atmosfera? Não seria uma certa harmonia entre os corpos, no sentido de haver algo que os conecta e que dá um certo tom comum a eles? Para Riedel, “[m]odulando o humor, atmosfera governa a relação de suas partes assim como a escala configura os graus de seus tons” (Riedel, 201941 RIEDEL, Friedlind. Atmosphere. In: SLABY, Jan; VON SCHEVE, Christian (org.). Affective societies: key concepts. Nova York: Routledge, 2019. p. 85-95., p. 91).

Na nossa experiência cotidiana sobre atmosfera, no entanto, ao mesmo tempo que sentimos esse tom geral, essa identificação coletiva acima das ações individuais, muitas vezes nos sentimos fora do clima, deslocados. Aqui vale trazer o questionamento de Robert Seyfert: “por que alguns seres sociais ressoam a aura religiosa em igrejas ou em lugares sagrados enquanto outros permanecem não afetados, ou por que alguns ressoam as febres da bolsa de valores enquanto outros produzem fortes reações contrárias num contexto idêntico?” (2012, p. 29-30). Se atmosfera é algo que governa as partes, as partes necessitam estar predispostas a reagir positivamente. Para Seyfert44 SEYFERT, Robert. Beyond personal feelings and collective emotions: Toward a theory of social affect. Theory, Culture & Society, v. 29, n. 6, p. 27-46, 2012. https://doi.org/10.1177/0263276412438591
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, o termo atmosfera realça excessivamente o aspecto objetivo, obscurecendo o aspecto interativo da relação entre as partes e o meio. Riedel toma a crítica de Seyfert para propor que, ainda dentro do espectro da atmosfera, olhemos para as ressonâncias afetivas dessas interações. Dessa forma, “um foco nos modos nos quais a situação se unifica como atmosfera nos permite considerar atmosfera com respeito à abundante diversidade cultural, histórica e física das existências incorporadas, e mesmo das não incorporadas” (Riedel, 201941 RIEDEL, Friedlind. Atmosphere. In: SLABY, Jan; VON SCHEVE, Christian (org.). Affective societies: key concepts. Nova York: Routledge, 2019. p. 85-95., p. 92).

A atmosfera, sob essa ótica da ressonância, traz a campo a formação e referências culturais dos sujeitos, ou seja, qual repertório, interesses e corporeidade são relevantes para fazer seu corpo ressoar e o modo como ressoa numa certa atmosfera. Nesse diálogo entre o atmosférico e o corpo histórico e cultural, podemos pensar em como certa atmosfera pode ativar ou fazer emergir sentimentos e memórias. “Uma atmosfera, portanto, não apenas estimula uma unidade palpável onde talvez de outra forma haveria diferença, mas pode fazer presentes abundantemente futuros potenciais ou memórias reprimidas, ou tornar perceptíveis pessoas ou relações outrora ausentes ou ocultas” (Riedel, 201941 RIEDEL, Friedlind. Atmosphere. In: SLABY, Jan; VON SCHEVE, Christian (org.). Affective societies: key concepts. Nova York: Routledge, 2019. p. 85-95., p. 85). Ao se referir ao emergente e ao aspecto cultural da corporeidade, o conceito de atmosfera vai se aproximando de outro conceito, advindo de uma tradição teórica distante, o de estruturas de sentimentos.

Estrutura de sentimento

Este conceito foi cunhado por Raymond Williams, primeiramente, em Prefácio para um filme, de 1954. Williams o formula para tratar de um elemento que não consegue ser apreendido pelo conhecimento disciplinar, que trata a vida social em esferas separadas, nos estudos das obras de arte.

Quando se mede uma obra com as partes separadas, ainda sobrevive algum elemento para o qual não existe um correspondente exterior. Este elemento, creio, é o que eu nomeei a estrutura de sentimento de um período, e é somente imaginável pela experiência da obra de arte em si, como um todo

(Williams apud Highmore, 201733 HIGHMORE, Ben. Cultural Feelings: mood, mediation and cultural politics. Nova York: Routledge, 2017., p. 24).

O conceito tenta evitar a redução da experiência tal como vivida da qual a obra de arte é fruto; busca captar a substância do vivido, de forma semelhante a Schmitz, como experiência não compreendida pela referência externa das coordenadas, mas como algo absoluto. O interesse de Williams é na especificidade histórica da experiência e, portanto, em preservar o todo do momento vivido. Das diversas caracterizações do conceito de estrutura de sentimentos, talvez a mais próxima à visão de Schmitz seja a de considerá-la como “o senso sentido da qualidade da vida em um lugar e um tempo particular” (Williams, 197552 WILLIAMS, Raymond. The long revolution. Westport: Greenwood Press, 1975., p. 47).

O conceito de estrutura de sentimentos reaparece com frequência em sua obra com significados que flutuam, mas que preservam essa busca pela compreensão da experiência vivida sem redução por meio de separações disciplinares. Em 1977, ele retoma o termo a partir do foco em experiências sociais que estão em solução “distintamente de outras formações sociais que foram precipitadas e estão mais evidentes e mais disponíveis imediatamente” (Williams, 197751 WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. Oxford: Oxford University Press, 1977., p. 133-134). Aqui o foco não é a obra de arte mas as produções que ainda não amadureceram semanticamente, que estão em emergência. Muito mais do que atmosfera, estrutura de sentimento evoca os processos de produção de significados sociais das práticas e foca na faixa temporal em que eles estão brotando. A dualidade entre estrutura e sentimento registra a instabilidade entre o que é sentido e o que ganha significado. Williams o usa também para falar de uma forma específica de sentir comum de uma geração, “uma conexão com algo plenamente cognoscível, embora ainda não conhecido” (2014, p. 346). Aqui o conceito apresenta outra semelhança com a noção de atmosfera, pois Williams trata de uma comunicação não discursiva, pré-reflexiva, ou, para colocar em seus termos, pré-semântica.

Apesar de estar presente em vários textos em períodos diferentes, este conceito não recebeu muita atenção dentro dos Estudos Culturais. A virada linguística, que marcou também a segunda geração desse campo (Stuart Hall, Terry Eagleton), orientou uma pauta voltada para signos, significados e estruturas. Será apenas no contexto da virada afetiva que os Estudos Culturais vão olhar com mais atenção para o conceito de estruturas de sentimentos. Como afirmam Miglievich-Ribeiro et al39 MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia; SOARES, Elaine; GAJANIGO, Paulo; MATIAS, Glauber. Cultura, crítica e democratização: o estado da arte dos Estudos Culturais. Revista Brasileira de Sociologia, v. 5, n. 11, p. 142-164, 2017. https://doi.org/10.20336/rbs.224
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a nova onda recolocou em primeiro plano as contribuições da primeira geração, como Richard Hoggart e Raymond Williams, com o foco nos elementos mais etéreos e menos estruturados dos processos sociais, e ofereceu um contraponto à influência estruturalista (de Althusser) da segunda geração

(2018, p. 157-158).

Lawrence Grossberg, ex-aluno de Hall, foi o principal responsável por conectar as discussões sobre afeto e o conceito de estrutura de sentimento. Para o autor, os Estudos Culturais acabaram por focar excessivamente na representação e significados, reduzindo o social ao cultural. “A proposta de Grossberg é adicionar afeto nas ‘relações já lotadas’ de significação (significado, representação, linguagem), economia (produção material, distribuição e consumo) e libido (desejo, sexualidade)” (Harding; Pribram, 200429 HARDING, Jennifer; PRIBRAM, Deidre. Losing our cool? following Williams and Grossberg on emotions. Cultural Studies, v. 18, n. 6, p. 863-883, 2004. https://doi.org/10.1080/0950238042000306909
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, p. 12). O conceito de Williams permitiu ao autor explorar aquilo que está aquém e além da representação. Para Grossberg, “estruturas de sentimento são os componentes e as expressões de uma paisagem afetiva, traduzindo em humores [moods], definindo as tonalidades de nosso comportamento e mapas de interesse, definindo as formas e lugares do investimento e cuidado, do vínculo, atração e distanciamento” (2018, p. 93). Essas estruturas articulam afetos e significados, criando vínculos e interesses dos sujeitos, por isso produzem uma paisagem afetiva, ou seja, uma configuração dos afetos.

Não parece ser muito exagerado aproximar a noção de paisagem afetiva à de atmosfera. Estrutura de sentimento, portanto, não seria um substituto de atmosfera, mas poderia estar articulado a ela. Para Anderson (2009, p. 161)2 ANDERSON, Ben. Affective atmospheres. Emotion, Space and Society, v. 2, n. 2, p. 77-81, 2009. https://doi.org/10.1016/j.emospa.2009.08.005
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, “podemos entender tanto as atmosferas afetivas quanto as estruturas de sentimento como processos de mediação que misturam aquilo que tem forma e o amorfo, o emergente e o pronto, o estrutural e o efêmero”. Eles se diferenciam pela forma como atuam; estruturas de sentimento estão vinculadas ao sujeito, configurando uma experiência que “conecta lugares diferentes, ocorrendo por eles, e cria algo como uma predisposição entre o self, os outros e o mundo” (Anderson, 20092 ANDERSON, Ben. Affective atmospheres. Emotion, Space and Society, v. 2, n. 2, p. 77-81, 2009. https://doi.org/10.1016/j.emospa.2009.08.005
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, p. 160). Já as atmosferas estão ligadas ao lugar e através dele fornecem uma experiência de imersão.

Se estruturas de sentimento configuram “limites” e “pressionam” como se formam aparatos e encontros, então atmosferas são talvez mais bem abordadas como proposições afetivas, iscas inacabadas para sentir uma situação, lugar, pessoa ou coisa de uma forma particular que venha a condicionar os encontros. A ação acontece em atmosferas que podem ser habitadas por dentro, moldadas intencionalmente, praticamente ignoradas ou sentidas como uma presença avassaladora

(Anderson, 20092 ANDERSON, Ben. Affective atmospheres. Emotion, Space and Society, v. 2, n. 2, p. 77-81, 2009. https://doi.org/10.1016/j.emospa.2009.08.005
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, p. 156).

Estrutura de sentimento, portanto, evoca o processo interminável de produção de sentidos dos sujeitos, chamando mais atenção para como se organizam as formas de sentir e menos como o mundo emana sentimentos. Dentro do debate sobre afetos, estrutura de sentimento acaba por servir a uma crítica à abordagem que privilegia os afetos como elemento pré-pessoal e que relega ao termo “sentimento” um caráter estritamente pessoal (Highmore, 201733 HIGHMORE, Ben. Cultural Feelings: mood, mediation and cultural politics. Nova York: Routledge, 2017.) ou, ainda, que toma o afeto como elemento vivo e o significado, a ideologia, como estruturas mortas (Hemmings, 200531 HEMMINGS, Clare. Invoking affect: Cultural theory and the ontological turn. Cultural studies, v. 19, n. 5, p. 548-567, 2005. https://doi.org/10.1080/09502380500365473
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).

Ben Highmore tem construído a ideia de sentimentos culturais se apoiando na contribuição de Williams como forma de ponderar sobre o que seria um perigo de objetivação da leitura a partir dos afetos dos fenômenos sociais. O autor está “mais interessado nos sentimentos e humores [mood] sustentados e mantidos que caracterizam uma situação histórica ou um meio social, do que […] num mundo dos afetos mais esvoaçante e menos previsível” (Highmore, 201733 HIGHMORE, Ben. Cultural Feelings: mood, mediation and cultural politics. Nova York: Routledge, 2017., p. 46). Para isso, o autor ressalta que Williams usa o termo sentimentos não como emoção, mas como forma de trazer à cena a experiência como vivida, sentida. Seu foco está na relação entre sentimentos e hábitos materiais, em como os “sentimentos e humores [mood] estão incorporados e embutidos em práticas e hábitos, em rotinas e procedimentos que frequentemente têm tanto o suporte linguístico quanto material” (Highmore, 201733 HIGHMORE, Ben. Cultural Feelings: mood, mediation and cultural politics. Nova York: Routledge, 2017., p. 37-38). Essa visão não se mistura com a identificação entre Stimmung e habitus que fez Bourdieu ao tratar do conceito de Heidegger como sendo “fundamentalmente um habitus, ou seja, um estilo de vida e uma visão da vida, um mood que se situa abaixo do discurso e que resta irredutível a todas as objetivações do discurso ou a todas outras formas de expressão” (19757 BOURDIEU, Pierre. L’ontologie politique de Martin Heidegger. Actes de la recherche en sciences sociales. v. 1 n. 5, p. 109-156, 1975., p. 124). Highmore está colocando sentimentos e humores [mood] nos hábitos e não no habitus (gerador de hábitos), ou seja, eles estão e são essas materialidades.3 3 Andrew Milner, ao destacar a profunda semelhança entre os conceitos, apontou para o foco mais abstrato do conceito de habitus se comparado ao de estrutura de sentimento (1994).

Ainda que Highmore aproxime o termo de estrutura de sentimentos ao de mood e Anderson com frequência o use como sinônimo de collective moods, ambos pontuam diferenças. Highmore compara estrutura de sentimentos a Stimmung, que ele traduzirá majoritariamente por mood: “Se Williams insiste que é por padrões de sentimentos que podemos ver mudanças sociais ocorrendo, então Heidegger nos oferece o insight de que Stimmung [...] é como o mundo é para nós” (2017, p. 38). Comparado à estrutura de sentimento, portanto, mood diria respeito ao elemento atmosférico, ao mundo como nos aparece. Já Anderson diferencia os termos por outro critério. Fazendo referência à categorização feita por Jonathan Flatley, Anderson afirma que “diferente de termos mais gerais como ‘mood’, ‘estrutura de sentimento’ tem a virtude de nos orientar para formações específicas” (2014, p. 118). Por exemplo, “depressão é um mood, não uma estrutura de sentimentos; no entanto, nós podemos descrever a depressão particular do campesinato russo nos estepes na década de 1920 como uma estrutura de sentimento” (Flatley apud Anderson, 20141ANDERSON, Ben. Encountering affect: capacities, apparatuses, conditions. Farnham: Ashgate, 2014., p. 118). Scott McCracken38 MCCRACKEN, Scott. The mood of defeat. New Formations, v. 82, p. 64-81, 2014., tratando do clima de derrota que orienta experiências políticas, articula os dois conceitos apontando que estruturas de sentimentos podem estabelecer moods que orientarão a forma de experenciar (2014). O que é ressaltado aqui é a polarização entre a tonalidade dos humores e uma formação sentimental histórica. Moods seriam conjuntos de frequências disponíveis que ganham sentido concreto por meio das estruturas de sentimentos. Já estrutura de sentimento teria sua vocação analítica principal em permitir compreender a formação sentimental de sujeitos históricos.

A emergência dos Mood Studies

As genealogias dos termos feitas até agora evidenciam que a preocupação com esse aspecto nebuloso dos fenômenos não é recente. No entanto, a convergência apontada neste artigo sugere a existência um ambiente propício para as articulações conceituais. Podemos relacionar a proliferação dos estudos sobre humor, atmosfera e estrutura de sentimento ao clima teórico da virada afetiva, mas não podemos resumir esse movimento a essa virada. Esses novos estudos estão orientados para um novo olhar e sensibilidade. Uma forma, inclusive, de pensar esses estudos está em ver neles uma resposta ou uma proposta de ajuste contra a tendência de planificar os fenômenos à chave interpretativa dos afetos. Na introdução a um dossiê de estudos sobre mood, Rita Felski e Susan Fraiman afirmam que os estudos de afeto algumas vezes reforçam dicotomias como sujeito e objeto, pensamento e sentimento, latente e manifesto,

criando um cenário de afetos como uma zona de experiência inefável e primordial que é subsequentemente espremida numa camisa de força racionalista da linguagem. O conceito de humor [mood], em sua maior parte, evita tais dificuldades. Definições de humor [mood] frequentemente enfatizam seu papel em modular pensamentos, reconhecendo uma relação dinâmica e interativa entre razão e emoção

(2012b, p. vi).

Griffero apresenta outra crítica ao identificar nos estudos de atmosfera uma alternativa à interpretação spinozista-deleuziana do afeto que “o vê como uma força expressiva apenas pelas intensidades corporais onipresentes” (2019b22 GRIFFERO, Tonino. Is there such a thing as an “atmospheric turn”? Instead of an introduction. In: GRIFFERO, T.; TEDESCHINI, M. Atmosphere and aesthetics: a plural perspective. Cham: Palgrave Macmillan, 2019b., p. 16). Tanto atmosfera quanto humor [mood] tensionam com os afetos, o primeiro por tirar da centralidade os corpos e as coisas (daí por exemplo a relevância de se pensar em quase-coisas), o último por ressaltar o aspecto processual dos afetos.

Pode-se argumentar que essa crítica já estava presente, avant la lettre, na formulação de Heidegger sobre Stimmung, quando critica a noção não-situada das afecções.

Os “sentidos” só podem ser “estimulados” e “ter sensibilidade para”, de maneira que o estimulante se mostre na afecção, porque eles pertencem, do ponto de vista ontológico, a um ente que possui o modo de ser disposto no mundo. Por mais fortes que fossem a pressão e a resistência, coisas como afecção não ocorreriam se a resistência não se descobrisse de modo essencial, se o ser disposto no mundo já não estabelecesse um liame com um ente intramundano, trabalhado de modo privilegiado por humores. Na disposição subsiste existencialmente um liame de abertura com o mundo, a partir do qual algo que toca pode vir ao encontro. Do ponto de vista ontológico-fundamental, devemos em princípio deixar a descoberta primária do mundo ao “simples humor”. Uma intuição pura, mesmo introduzida nas artérias mais interiores de alguma coisa simplesmente dada, jamais chegaria a descobrir algo como ameaça

(198830 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988., p. 192).

A busca por atualização crítica à Teoria dos Afetos tem feito Heidegger e sua acepção sobre Stimmung ser central para esses estudos. De fato, mood tem sido o termo mais utilizado para organizar o campo, no sentido de nomear aquilo que é comum nas iniciativas coletivas. Conta a vantagem de um termo em inglês circular com muito mais facilidade no ambiente acadêmico hegemonizado por essa língua. O termo Stimmung, por sua vez, tem tido um papel menos visível, mas essencial nas discussões. Por ser aquele que mais parece “resistir” às perspectivas de reduzir os fenômenos a aspectos subjetivos ou objetivos, Stimmung aparece, nesses estudos, de forma a realçar uma acepção mais híbrida de mood e de atmosfera, ambos mais facilmente atribuídos a um dos polos (mood como algo mais subjetivo e interior e atmosfera como mais objetivo e exterior). Gerhard Thonhauser47 THONHAUSER, Gerhard. Beyond mood and atmosphere: a conceptual history of the term stimmung. Philosophia, v. 49, n. 3, p. 1247-1265, 2021. https://doi.org/10.1007/s11406-020-00290-7
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argumenta que, exatamente por essa virtude, Stimmung mereceria obter mais atenção nesses estudos, pois “nos leva a focar nas relações em vez de polos substantivos e, portanto, tem o potencial para se pensar além do dualismo sujeito-objeto” (2021, p. 1262).

Como dito no início deste texto, o Mood Studies é um campo em formação. Nem mesmo a expressão para dar nome a ele está consolidada. Isso faz com que este artigo tenha que ser compreendido como parte dessa articulação e das discussões sobre as convergências possíveis. Buscou-se demonstrar que, ainda que pouco maduro, esse campo tem desenvolvido referenciais conceituais articulados e uma gramática própria. Nessa gramática, os conceitos que realçam a hibridez entre individual e coletivo entre subjetivo e objetivo têm sido privilegiados. Cada conceito forjado, resgatado ou ressignificado tem ganhado ao mesmo tempo um tom comum desse novo clima teórico e gera, por sua vez, mais interesse e atenção a certos aspectos e elementos da vida social. Esses conceitos parecem responder à dupla hermenêutica tratada por Anthony Giddens (1978)19 GIDDENS, Anthony. Novas regras do método sociológico. Lisboa: Gradiva, 1978.: alimentam e são alimentados pela vida cotidiana. Se levamos a sério o que propõe os Mood Studies, não podemos desconectar esse clima teórico fundamental para a conformação do campo e climas sociais mais amplos. Caberia, por exemplo, perguntar que tipo de relação é possível estabelecer entre a alta popularidade que o termo mood tem tido na vida cotidiana – podemos mencionar aqui o marcador digital (tag) #mood usado massivamente (Breidenbach, 20208 BREIDENBACH, Birgit. Aesthetic and philosophical reflections on mood: Stimmung and modernity. Londres: Routledge, 2020.)4 4 Na rede social Instagram, há o registro de 125 milhões de ocorrências de – e a emergência desse novo campo.

Obviamente, não pretendo aqui oferecer uma resposta. Mas quero finalizar apresentando uma hipótese a partir de dois trabalhos recentes. No livro Mood and Mobility (2016), o filósofo Richard Coyne observa, numa viagem de trem, a absorção dos sujeitos numa diversidade de humores que são possíveis pela presença de dispositivos tecnológicos pessoais. Relaciona, de forma ensaística, mood e mobilidade e considera as novas mídias potentes circuladoras de mood (Coyne, 201614 COYNE, Richard. Mood and mobility: Navigating the emotional spaces of digital social networks. Cambridge: MIT Press, 2016.). Atribui a elas, especialmente à internet, o papel de fragmentar o espírito do tempo (Zeitgeist), de desbancar em definitivo profetas e uma elite intelectual necessária para lhe fornecer unidade (Coyne, 201614 COYNE, Richard. Mood and mobility: Navigating the emotional spaces of digital social networks. Cambridge: MIT Press, 2016.) e de substituí-lo por moods particulares. Nosso tempo, portanto, estaria marcado pela proliferação de moods. Por outra via, Rebecca Coleman (2018)13 COLEMAN, Rebecca. Theorizing the present: digital media, pre-emergence and infra-structures of feeling. Cultural Studies, v. 32, n. 4, p. 600-622, 2018. https://doi.org/10.1080/09502386.2017.1413121
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também permite pensar a relação entre novas tecnologias e mood. Coleman cunhou o conceito de infraestrutura de sentimentos, atualizando o termo de Wiliams, para chamar atenção ao caráter pré-emergente das estruturas de sentimentos que “se tornaram cada vez mais importantes na cultura digital contemporânea” (Coleman, 201813 COLEMAN, Rebecca. Theorizing the present: digital media, pre-emergence and infra-structures of feeling. Cultural Studies, v. 32, n. 4, p. 600-622, 2018. https://doi.org/10.1080/09502386.2017.1413121
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, p. 17). Segundo a autora, “uma das vias primárias pela qual a mídia digital é experenciada, incorporada e engajada é a do sentimento” (2018, p. 9) e “o que ‘paira à beira da viabilidade semântica’ […] é cada vez mais o que o social e o cultural ‘são’” (p. 17). Para converter essa terminologia à discussão sobre atmosfera, o que Coleman está afirmando é que, na nova configuração midiática, estamos envoltos cada vez mais de quase-coisas. Seria possível então nos perguntar se as novas configurações das experiências contemporâneas fazem do mood algo mais facilmente perceptível. Ou, como o próprio conceito estabelece, se, nesse novo contexto, há um engajamento que faz mood ser mais percebido e mais interessante.

  • 1
    Agradeço à Faperj pelo apoio à pesquisa via edital “Jovem Pesquisador Fluminense – 2021” (Processo E-26/210.342/2022).
  • 2
    Todas as traduções de citações neste artigo foram minhas.
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    , ao destacar a profunda semelhança entre os conceitos, apontou para o foco mais abstrato do conceito de habitus se comparado ao de estrutura de sentimento (1994).
  • 4
    Na rede social Instagram, há o registro de 125 milhões de ocorrências de

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2022
  • Aceito
    30 Ago 2023
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