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O social como intersubjetividade: George Herbert Mead e a sociologia das multitudes individuais

The social as intersubjectivity: George Herbert Mead and the sociology of individual multitudes

MEAD, George Herbert. Mente, self e sociedade. Edição definitiva. Charles, W. Morris. Morris, notas de Hans Joas e Daniel Huebner. Petrópolis: Vozes, 2021

Resumo

Este texto aprecia criticamente a mais nova edição do clássico Mente, Self e Sociedade de George Herbert Mead, preparada por Hans Joas e Daniel Huebner e recentemente traduzida ao português e publicada no Brasil. O exame das suas ideias principais contextualiza a psicologia social que ele sistematiza no pensamento de Mead e no universo conceitual do pragmatismo, em especial junto às influências recebidas pelo autor de James e Dewey. Isto será acompanhado de uma discussão sobre os problemas editoriais que envolvem o volume e seu editor original, Charles W. Morris, com referência ao debate contemporâneo sobre sua legitimidade no conjunto da obra de Mead. Conclui-se que esta nova edição contribui para a adoção de uma abordagem mais alinhada à postura teórica do próprio Mead para a reflexão sobre a sua obra.

Palavras-chave
George Herbert Mead; intersubjetividade; pragmatismo; self; Escola de Chicago

Abstract

This review critically appraises the newest edition of George Herbert Mead’s classic Mind, Self, and Society, edited by Hans Joas and Daniel Huebner and recently translated to Portuguese and published in Brazil. The analysis of its main ideas contextualizes the social psychology the book systematizes in Mead’s thought and in the conceptual universe of pragmatism, with special reference to the influence Mead received from James and Dewey. This is followed by a discussion on the editorial problems surrounding the volume and its original editor, Charles W. Morris, and reference is made to the contemporary debate on the book’s legitimacy within Mead’s body of work. It is concluded that this newest edition contributes for the adoption of an approach more aligned to Mead’s theoretical standpoint in order to reflect on his own production.

Keywords
George Herbert Mead; intersubjectivity; pragmatismo; self; Chicago School

O pensamento de George Herbert Mead tem sido uma referência constante para a construção da teoria social, tendo atravessado o século XX e se estendido até os dias de hoje. Seja como inspiração central na proposta metodológica do interacionismo simbólico, no seio da tradição sociológica de Chicago, ou como componente das inovações teóricas da linhagem crítica de Frankfurt a partir de sua segunda geração, a psicologia social de Mead foi tomada como elemento fundamental para a exploração conceitual do papel da intersubjetividade nas relações sociais. Com tal aporte, os sociólogos passaram a observar com mais atenção os elos entre a produção do significado e os encontros e trocas comunicativas entre os atores em seus diferentes contextos sociais.

Em grande medida, os diálogos da sociologia com a filosofia de Mead se deram em torno do livro que mais projeção lhe rendeu, Mind, self & society: From the standpoint of a social behaviorist (MSS), publicado originalmente em 1934, três anos após a sua morte. Mais de oitenta anos depois, em 2015, uma nova edição revisada e comentada foi preparada sob os auspícios de Hans Joas e Daniel Huebner, com o ambicioso intento de reapresentar ao público o livro em uma versão final (Mead, 196711 MEAD, George Herbert. Mind, self & society: From the standpoint of a social behaviorist. Chicago: The University of Chicago Press, 1967/1934./1934). Esta reedição e sua recente tradução ao português com o título Mente, self e sociedade: Edição definitiva (MSSD) são índices da contínua relevância da teoria de Mead à disciplina sociológica, que aqui será examinada através da discussão do livro. Seu novo apêndice, escrito por Huebner, apoia-se em uma sólida pesquisa arquivística para analisar o trabalho editorial de Charles W. Morris, ex-aluno de Mead encarregado de compilar e organizar o material que substanciou MSS. Com isso, nova luz é lançada sobre o clássico e polêmico livro, alvo de repetidos questionamentos quanto à sua autoria e à fidelidade conceitual à obra de Mead (Joas, 19857 JOAS, Hans. G.H. Mead: A contemporary re-examination of his thought. Cambridge: The MIT Press, 1985.; Silva; Vieira, 201116 SILVA, Filipe C. da; VIEIRA, Mónica B. Books and canon building in sociology: The case of Mind, Self, and Society. Journal of Classical Sociology, v. 11, n. 4, p. 356-377, 2011.; Cook, 20132 COOK, Gary A. Resolving two key problems in Mead’s Mind, Self, and Society. In: BURKE, F. T.; SKOWRONSKI, K. P. (org.). George Herbert Mead in the Twenty-First Century. Lanham: Lexington Books, 2013. p. 95-105.; Huebner, 20146 HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.).

É inevitável que considerações sobre MSSD empreendam um deslocamento entre essa versão mais recente do trabalho de Mead e o material original presente em MSS. Na verdade, a nova edição de Joas e Huebner se propõe a ser bastante fiel ao que foi originalmente preparado por Morris. Além do inédito apêndice escrito por Huebner, que ocupa as sessenta e seis páginas finais do livro, MSSD apenas corrige erros tipográficos e completa referências bibliográficas do original (p. 12). Dessa forma, um comentário sobre o processo editorial de MSS é de crucial importância antes que adentremos pelas suas discussões conceituais.

Como se sabe, trata-se de um trabalho no qual manuscritos de autoria efetiva de Mead compuseram parte apenas diminuta, sendo sua estrutura o resultado de uma compilação coordenada e editada por Morris sobre notas de aulas tomadas por diferentes indivíduos, a maioria ex-alunos, em aulas do professor de filosofia da Universidade de Chicago (p. 332). A maior parte desse material advém de um conjunto de notas estenográficas realizadas durante o curso intitulado Psicologia Social Avançada, ministrado por Mead no inverno de 1928. Sua seleção como espinha dorsal do livro visava o suporte de um material mais coerente e, por fiar-se em uma técnica estabelecida de transcrição, mais próximo de um registro verbatim da fala de Mead. O material estenográfico de 1928 foi “grandemente enriquecido” (p. 16) por um conjunto de notas tomadas durante a edição de 1930 daquele mesmo curso por Robert R. Page, ex-aluno de honors de Mead. Além dessas notas de 1930, que contribuíram com um terço do total final do livro, outros conjuntos de notas de aulas de autorias diferentes serviram a Morris para complementar as notas de rodapé do volume (pp. 331-397).

Assim, em MSS, várias camadas interpretativas se encontram entre as palavras proferidas por Mead em sala de aula em diferentes pontos de sua docência em Chicago e o material textual publicado, entre elas (mas não somente) a interpretação transcritiva dos alunos ao tomarem suas notas, os critérios estabelecidos por Morris para a seleção das fontes destas e a sua edição ativa sobre o material textual compilado com vistas à formatação do texto final (Huebner, 20146 HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.).[1] O principal incentivo para a publicação, não obstante o notável problema das fontes do material, era a possibilidade de oferecer aos leitores a mais extensa e abrangente discussão sobre a psicologia social na obra de Mead, uma vez que, até aquele momento, o que se encontrava disponível sobre o tópico eram artigos esparsos que o próprio autor havia publicado a partir da passagem da primeira para a segunda década do século XX.

De fato, MSS conferiu alguma sistematicidade às ideias de Mead sobre a psicologia social. Entre textos introdutórios (um prefácio e uma introdução de Morris em MSS, e um prólogo de Joas adicionado em MSSD) e quatro curtos ensaios suplementares, o livro é estruturado em três eixos fundamentais, que seguem a uma abertura que posiciona sua discussão junto ao debate então corrente na psicologia sobre o papel do binômio interioridade/externalidade no comportamento individual (Parte I: O ponto de vista do behaviorismo social); um primeiro eixo dedicado à relação entre linguagem, comunicação e a formação da mente (Parte II: A mente); um segundo eixo que adentra na composição do self e apresenta sua estrutura interna (Parte III: O self) e um terceiro eixo, que aborda o encontro de diferentes selves no tecido da comunidade (Parte IV: A sociedade).

O princípio subjacente à construção da psicologia social de Mead é a disponibilização do método e dos conceitos fundamentais do pragmatismo para o estudo das diferentes propriedades do comportamento individual. Por conta disso, a noção de experiência a que ele adere não se esgota na observação externa da ação aberta (overt action) dos indivíduos e de suas consequências. Seguindo a trilha de Peirce, James e Dewey, Mead entende como indispensável a extensão do campo da experiência humana ao universo interior de cada pessoa, de modo a enxergar os problemas da subjetividade individual como contrapartes dos problemas sociais no âmbito coletivo (Mead, 191314 MEAD, George Herbert. The social self. The Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Methods, v. 10, n. 14, p. 374-380, 1913.). Destarte, ao incorporar em seu vocabulário o termo behaviorismo, Mead contrapõe-se imediatamente à abordagem empregada nele por John B. Watson, seu colega em Chicago que se tornou conhecido como pioneiro da linhagem convencional dessa tradição na psicologia. A Parte I de MSS ocupa-se então com a crítica a Watson e com a delimitação daquilo que, no livro, é apresentado como o “behaviorismo social” firmado por Mead. O principal ponto fraco de Watson estaria, justamente, em sua exclusão da interioridade como elemento fundamental da composição do comportamento, de forma que ele “tenta reduzir todos os fenômenos mentais a reflexos condicionados e mecanismos fisiológicos similares” (p. 48). No lugar disso, Mead almeja uma psicologia dinâmica (p. 56), atenta ao inter-relacionamento entre a introspecção e as propriedades ecológicas, fisiológicas e sociais do organismo. A sua concepção de behaviorismo se interessa pelos conjuntos de atitudes e respostas que formam as condutas do indivíduo na interação com objetos de várias naturezas, entre os quais se destacam os demais membros dos grupos sociais dos quais faz parte (p. 45; Mead, 192213 MEAD, George Herbert. A behavioristic account of the significant symbol. The Journal of Philosophy, v.19, n. 6, p. 157-163, 1922.).

É nessa discussão concentrada sobre a proposta de um behaviorismo meadiano que encontramos a primeira grande polêmica editorial de MSS. Isto porque, a despeito do subtítulo da edição original do livro e do título da sua Parte I (o primeiro, removido de MSSD, o segundo, não), Mead nunca utilizou, em seus escritos próprios, o termo “behaviorismo social” para definir o estilo de sua psicologia social, tampouco referiu-se a si próprio enquanto um “behaviorista social”, conquanto tenha, isso sim, utilizado “behaviorismo e “behaviorista” em seu vocabulário (Mead, 192213 MEAD, George Herbert. A behavioristic account of the significant symbol. The Journal of Philosophy, v.19, n. 6, p. 157-163, 1922.; Joas, 19857 JOAS, Hans. G.H. Mead: A contemporary re-examination of his thought. Cambridge: The MIT Press, 1985.; Cook, 19931COOK, Gary A. George Herbert Mead: The making of a social pragmatist. Urbana: University of Illinois Press,1993.; Silva; Vieira, 201116 SILVA, Filipe C. da; VIEIRA, Mónica B. Books and canon building in sociology: The case of Mind, Self, and Society. Journal of Classical Sociology, v. 11, n. 4, p. 356-377, 2011.; Huebner, 20146 HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.). A origem da adição do adjetivo “social” à terminologia está em uma reunião de Morris com o editor geral da editora da Universidade de Chicago (responsável pela então vindoura publicação de MSS); sua incorporação no texto enquanto qualificativo teórico seria resultado da intervenção editorial de Morris, para quem a adjetivação valorizaria o posicionamento de Mead frente ao de Watson (Huebner, 20146 HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.).

Seja como for, o behaviorismo de teor pragmatista de Mead aponta para a conciliação entre a introspecção individual e as relações tecidas entre o indivíduo e seus pares em contexto social. Para tanto, as definições conceituais de símbolo significante e mente são passos decisivos em MSS. A discussão de Mead sobre os gestos, que ele desenvolve a partir de uma crítica à psicologia de Wundt (com quem estudara em seu doutorado na Alemanha), permite que contrastemos sua abordagem sobre a produção e a dinâmica do significado com a hermenêutica sociológica de origem neokantiana, uma das matrizes mais importantes sobre a questão na teoria social. Em diferença àquela linhagem, para Mead, um rompimento metodológico (com o risco de implicações ontológicas) com a natureza não é um caminho desejável a uma preocupação com o simbólico, pois este se desdobra dos processos da experiência humana enquanto existência ecológica.

Mead posiciona-se junto a Wundt ao entender que o gesto performado no contexto de um ato social é o ponto de encontro entre a existência corpórea e a existência psíquica do indivíduo (p. 71). Contudo, distancia-se do pensador alemão em duas importantes frentes. A primeira é a negação de seu paralelismo psicofísico, que estabelece uma distinção fundamental entre as experiências mentais e fisiológicas, não obstante serem uma a contraparte da outra. Com base no materialismo naturalista do pragmatismo (Dewey et al., 19454 DEWEY, John; HOOK, Sidney; NAGEL, Ernest. Are naturalists materialists? The Journal of Philosophy, v. 42, n. 19, p. 515-530, 1945.), Mead defende a integração das vidas do espírito e da matéria, cuja diferenciação no sistema do organismo é, fundamentalmente, de ordem funcional. Em razão disso, acusa Wundt de negligenciar o aspecto evolutivo do gesto na comunicação humana: a participação deste no ato social depende de desenvolvimentos filogenéticos e ontogenéticos específicos, de forma que a mente é resultado, e não pressuposto, da experiência social (p. 77).

Ao adotar esse ponto de vista, Mead propõe que a sociabilidade humana é um marco evolutivo, pois eleva a comunicação gestual à mais alta complexidade por fazer surgir nela a produção cooperativa de significado. Para o filósofo, diferente das interações entre outras espécies animais, os gestos realizados na comunicação humana permitem que estejamos “continuamente despertando em nós mesmos aquelas respostas que eliciamos em outras pessoas, de modo que assimilamos as atitudes dos outros em nossa própria conduta” (p. 90-91). O elo dessa comunhão hermenêutica intersubjetiva entre dois ou mais parceiros de interação é o símbolo significante, produto de um ajuste gestual mútuo que gera base comum sobre a natureza e o propósito de determinado objeto (p. 74, 91). O símbolo significante, portanto, é produto da significação prática que se desenrola nas interações sociais e medeia a coordenação destas ao oferecer aos sujeitos padrões comuns de atitudes e respostas associadas a situações ou atos específicos (p. 93).

Mas, para que as transações de sentido possam ter lugar, os indivíduos precisam trabalhar internamente os fluxos de estímulo e resposta encetados no jogo interativo. É para dar conta desse espaço interior que Mead se detém na discussão sobre a mente na segunda parte de MSS. Para ele, a mente é um ambiente de inteligência reflexiva (p. 128), onde é processado o fluxo intersubjetivo a compor uma individualidade; um plano que, mesmo abrigado introspectivamente, abre-se exteriormente, de forma a permitir a operacionalização dos significados socialmente produzidos e subjetivamente reconstruídos pelo indivíduo (p. 139). Sua localização não está em uma realidade transcendente à experiência, tampouco em uma região determinada do corpo orgânico, mas na interação, nos pontos de contato, nas trocas entre sujeitos e objetos. Assim, quando nos remetemos à concepção de comportamento de Mead, observamos que tais intercâmbios não ocorrem somente na interação aberta entre pessoas, mas também no foro interno de cada indivíduo, uma vez que a sociedade é fator constitutivo necessário à individualidade, e não elemento adjacente a ela. Ou seja, a mente encontra-se em plena atividade sempre que refletimos conscientemente sobre nós mesmos vis-à-vis aqueles que nos circundam, e que frequentam, de alguma maneira, a nossa experiência. Ela é o próprio ambiente que permite esta reflexão, que, por sua vez, conduz à resolução dos problemas experimentados pelo sujeito, reconstruindo seu “campo perceptual, de modo que se torne possível para os impulsos em conflito não mais inibirem a ação” (p. 132).

Ao adentrar na análise da exterioridade na interioridade, Mead desenvolve seu conceito de self, aquele que ocupa o centro de sua psicologia social e que representa um dos seus principais legados à teoria social, porquanto compreende a implicação relacional entre indivíduo e sociedade. Em sua visão, o autoentendimento da pessoa, que lhe confere uma noção de si e de seu papel no mundo e que a permite, em alguma medida, gerenciar a forma como se comporta junto a outras pessoas e a si mesma, é algo resultante de um processo de socialização: “O self é menos uma substância e mais um processo em que o diálogo de gestos foi internalizado por uma forma orgânica” (p. 174). De tal modo, o que Mead chama de self é uma forma reflexiva, (auto)consciente e socialmente informada com que um indivíduo se relaciona consigo próprio. Em termos básicos, seu ponto de origem está no momento em que um indivíduo consegue estabelecer a si mesmo, e não apenas o outro, como objeto de sua própria ação (p. 142).

Posto de outra forma, podemos considerá-lo como um regime de subjetividade acessado pelo indivíduo para analisar a sua própria constituição interna e pelo qual ele transita de forma intermitente, quando lida mentalmente com problemas que afetam sua constituição interior. Embora isto não seja explicitamente explorado em MSS, há nele a reverberação da ideia de investigação (inquiry), um dos pilares conceituais do pensamento pragmatista. Há uma inclinação investigativa no movimento reflexivo do self, com o qual o indivíduo socializado ao mesmo tempo elabora e responde aos questionamentos que ele próprio dirige a si. Uma referência importante para Mead enxergar a dinâmica reconstrutiva que se dá no contexto de um problema é a discussão cognitiva de Dewey (1896)3 DEWEY, John. The reflex arc concept in psychology. The Psychological Review, v. III, n. 4, p. 357-370, 1896. sobre as transações entre objetividade e subjetividade na percepção. Este regime subjetivo não é o único com que Mead lida em sua obra, visto sua discussão de formas espontâneas de engajamento com o mundo (experiência imediata) em seus trabalhos sobre as vicissitudes do ato (Mead, 197210 MEAD, George Herbert. The philosophy of the act. Chicago: The University of Chicago Press, 1972/1938./1938). Com relação a estas, o self não representa uma ruptura, mas um desdobramento constituído incrementalmente pela atividade do pensamento (Mello, 202215 MELLO, Fabrício C. de. On the material supports of subjectivity: Mead, the self and the new mastery of nature. Social Science Information, v. 61, n. 2-3, p. 245-270, 2022.).

Há nisto distintas implicações filogenéticas e ontogenéticas. No primeiro caso, o elo intersubjetivo que surge com o aparecimento do símbolo significante possibilita que, ao travar contato com as respostas de outrem à sua ação, um determinado indivíduo as tome como referência para a construção de suas próprias respostas (p. 144 et seq.). No segundo caso, Mead introduz sua discussão sobre o papel da brincadeira (play), do jogo (game) e do outro generalizado na genética social do self. Os dois primeiros elementos são fundamentais na socialização infantil. Na brincadeira, a criança engaja-se em uma dinâmica de estímulos e respostas ao reproduzir lúdica e espontaneamente papeis específicos, de origem real ou imaginária, atinentes à sua experiência social, como quando “fala consigo própria como se fosse seu pai ou sua mãe, ou a professora; ela mesma se prende como se fosse um policial prendendo alguém” (p. 153). Já no jogo, o infante lida com uma tarefa intersubjetiva mais complexa, pois precisa coordenar sua conduta com aquelas de todos os demais participantes da atividade, apreciando a si próprio a partir das atitudes atribuídas a cada um desses parceiros de ação (p. 159 et seq.). A sistematicidade da assunção de papeis proporcionada pelo jogo começa a introduzir na experiência do indivíduo o outro generalizado, uma forma mais ampla e abstrata de se relacionar com a comunidade. Por meio do outro generalizado, a pessoa acessa o conjunto geral de atitudes dos membros da sociedade e as expectativas que estes lançam sobre o seu próprio comportamento. Isso representa um ponto mais avançado em sua socialização, a consolidação da organização de seu self e seu ingresso na sociedade como um membro orgânico (p. 159).

Outro elemento central na apresentação do self meadiano é a composição dinâmica de sua estrutura interna. Por meio da influência dos escritos psicológicos de William James, Mead sugere que o trabalho do self ocorre pela relação entre um “eu” e um “mim”, fases distintas de uma conversa interior ao indivíduo no curso da qual ele concebe a si próprio a partir das interações que mantém com terceiros. Aqui encontramos uma encruzilhada com grande consequência para a estrutura das ideias apresentadas em MSS. Isso porque convivem no livro duas definições básicas, distintas e conflitantes, sobre o conteúdo do “eu” e do “mim” e sobre as relações tecidas entre eles. Em uma primeira definição, mais próxima da abordagem inicial da obra de Mead aos dois conceitos e em sintonia com as influências e James e Dewey, “eu” e “mim” são tomados pela função, ou papel, que desempenham na atividade reconstrutiva do self. Dessa forma, enquanto fase subjetiva do self, o “eu” seria a resposta atual2 2 A opção da tradução de “actual response” por “resposta verdadeira” (p. 249) oculta o sentido temporal do termo empregado no original, visto que Mead se refere a uma resposta que efetivamente se manifesta no presente, o que a diferencia de algum tipo devir. do indivíduo, seu “ato em si” (p. 250), a manifestação de sua ação no contexto de um problema, ao passo que o “mim” seria composto pelos elementos que o self pode apontar a si como contrapartes à sua ação, o que inclui, com destaque, o “o conjunto organizado das atitudes dos outros que a própria pessoa assume” (p. 185). Em uma outra definição, em que se apagam a influência daqueles dois pragmatistas, “eu” e “mim” são encarados como agências concorrentes no interior do self, a primeira radicalmente individual (p. 189-190), a segunda habitual e convencional (p. 188), atuando como emissária da sociedade. Esta segunda interpretação é aquela que mais repercutiu na teoria social ao longo das décadas, formando a base da leitura hegemônica sobre o “eu” e o “mim” meadianos (Mead, 20229 MEAD, George Herbert. Mente, self e sociedade: Edição definitiva. Petrópolis: Vozes, 2020.).

Para Gary Cook (2013)2 COOK, Gary A. Resolving two key problems in Mead’s Mind, Self, and Society. In: BURKE, F. T.; SKOWRONSKI, K. P. (org.). George Herbert Mead in the Twenty-First Century. Lanham: Lexington Books, 2013. p. 95-105., essa polifonia seria mais um dos problemas da lista de imprecisões de MSS, reforçando a ideia do livro como um documento comprometido pelo afastamento irresolúvel da autoria direta de Mead. Já Markell (2006)8 MARKELL, Patchen. The potential and the actual: Mead, Honneth, and the “I”. In: VAN DEN BRINK, B.; OWEN, D. (org.) Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of critical social theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 100-132. observa que a origem da diferença na interpretação dos dois conceitos é mais antiga, remetendo-se à transição da preocupação psicológica de Mead do psíquico para o social, o que ocorreu após a publicação de The Definition of the Psychical, em 1903. Em textos publicados subsequentemente, como The Mechanism of Social Consciousness, em 1912, e The Social Self, em 1913, Mead reformulou a composição da estrutura interna do self ao sentir a necessidade de identificar mais claramente a atuação do “mim” com as atitudes sociais da comunidade. A partir deste ponto de vista, o maior problema de MSS nesse quesito não é a ausência de uniformidade na definição de “eu” e “mim”, visto isto já se verificar anteriormente na obra de Mead. Mais grave é a presença no livro de formulações bastante reificadas daquela interpretação mais afastada dos pragmatismos de James e Dewey, que reduzem ao máximo a complexidade de ambos os conceitos ao ponto de os converterem, ao fim e ao cabo, em entidades semiautônomas com naturezas opostas coabitando a mente individual. Nos últimos anos, diferentes autores têm buscado reabilitar a abordagem inicial de Mead ao “eu” e ao “mim” como uma opção mais enriquecedora, tanto para a reconstrução atual de sua obra quanto para abordagens sociológicas sobre a subjetividade inspiradas no filósofo (Markell, 20068 MARKELL, Patchen. The potential and the actual: Mead, Honneth, and the “I”. In: VAN DEN BRINK, B.; OWEN, D. (org.) Recognition and power: Axel Honneth and the tradition of critical social theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 100-132.; Cook, 20132 COOK, Gary A. Resolving two key problems in Mead’s Mind, Self, and Society. In: BURKE, F. T.; SKOWRONSKI, K. P. (org.). George Herbert Mead in the Twenty-First Century. Lanham: Lexington Books, 2013. p. 95-105.; Mello, 202215 MELLO, Fabrício C. de. On the material supports of subjectivity: Mead, the self and the new mastery of nature. Social Science Information, v. 61, n. 2-3, p. 245-270, 2022.).

O princípio da intersubjetividade alicerça as considerações de Mead sobre os aspectos estruturais do social em MSS. Fruto de uma opção didática de Mead em seu curso estenografado em 1928, essa entrada à discussão não é contextualizada no livro, o que levou críticos a acusarem o filósofo de não se preocupar com problemas macrossociais (Huebner, 20146 HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.). Isto não obstante, a imagem morfológica que se encontra na parte dedicada à “sociedade” é a de um entrelaçamento compósito de perspectivas em que subjetividade e objetividade se interpenetram, formando um laço experimental e comunicativo por meio do encadeamento de interações. Se toda individualidade é coletiva, a coletividade é produto relacional da continuidade das perspectivas individuais de seus membros umas nas outras.3 3 Mead (1932) desenvolve essa ideia por meio do conceito de socialidade em The Philosophy of the Present. Do ponto de vista da organização do sistema, a capacidade de alguém assumir a atitude do outro dá ensejo a um controle sobre a atitude deste, mas também, e fundamentalmente, a uma forma de controle sobre a sua própria atitude (p. 230-231). Para Mead, portanto, a questão do controle social passa pelo alinhamento cooperativo das diferentes condutas dos membros de uma comunidade. A esfera moral e normativa da coletividade, os valores e instituições que as sustentam, são produtos simbolicamente processados dos ajustes recíprocos de comportamentos entre os atores da vida social. Assim, sobre a instituição, Mead afirma que ela “representa uma resposta comum por parte de todos os membros da comunidade diante de uma situação específica” (p. 236). Diante disto, são movimentações com efeitos recíprocos as reconstruções subjetivas dos membros da comunidade e a reconstrução da própria comunidade a partir dos problemas coletivos que ela atravessa (p. 272). Na visão democrática de Mead, portanto, os indivíduos não apenas se adequam às mudanças sociais e políticas, mas consubstanciam a dinâmica que as anima.

No anexo escrito para esta nova edição, Daniel Huebner apresenta um detalhamento, capítulo a capítulo, das fontes utilizadas por Morris para compor o texto de MSS. Com ele, pela primeira vez, temos uma noção precisa de quais conjuntos de notas foram utilizados pelo editor para dar suporte a cada discussão desenvolvida no livro. Vislumbramos também algumas das partes excluídas por Morris da peça final, como momentos de interação dialógica entre Mead e seus alunos quando estes lhe endereçavam alguma pergunta. Essa contribuição de Huebner dá embasamento à sua proposta, avançada em outro momento (Huebner, 20146 HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.), da necessidade de nos movermos além da questão da lealdade do material advindo das notas de aula ao conteúdo filosófico de Mead rumo a uma discussão sobre os processos de conhecimento ensejados pela interação entre este autor, seu pensamento e o trabalho intelectual daqueles que com ele se engajaram. Como apontaram Fine e Kleinman (1984)5 FINE, Gary Alan; KLEINMAN, Sherryl. Interpreting the sociological classics: Can there be a “true” meaning of Mead? Symbolic Interaction, v. 9, n. 1, p.129-146, 1986. já há alguns anos, analistas da obra de Mead por vezes perdem de vista que, segundo o pragmatismo daquele, o significado de algo não emana de um objeto em si, mas é constituído pelas respostas suscitadas nas interações com ele. De tal modo, parece ser mais frutífero empregar na reflexão sobre Mead os mesmos princípios que ele propôs para o estudo da sociedade. Por mais que a ideia de uma “edição definitiva” soe bastante antipragmatista, a publicação de MSSD ajuda a pavimentar esse caminho. Se consideramos que os problemas e limitações editoriais de MSS ficam bem mais claros com esta nova edição, ficamos mais seguros para vertermos algo da atenção concentrada sobre as questões da fidedignidade autoral do livro em benefício de novas e promissoras questões em torno do pensamento meadiano.

  • 1
    Sobre as minúcias do processo editorial de MSS, ver Silva e Vieira (2011)16 SILVA, Filipe C. da; VIEIRA, Mónica B. Books and canon building in sociology: The case of Mind, Self, and Society. Journal of Classical Sociology, v. 11, n. 4, p. 356-377, 2011. e, principalmente, Huebner (2014, cap. 5)6 HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.. Abordo neste texto algumas das discussões do livro mais afetadas por este processo, mas remeto o leitor àquelas referências para uma apreciação mais completa de tais problemas.
  • 2
    A opção da tradução de “actual response” por “resposta verdadeira” (p. 249) oculta o sentido temporal do termo empregado no original, visto que Mead se refere a uma resposta que efetivamente se manifesta no presente, o que a diferencia de algum tipo devir.
  • 3
    Mead (1932)12 MEAD, George Herbert. The philosophy of the Present. Londres: Open Court, 1932. desenvolve essa ideia por meio do conceito de socialidade em The Philosophy of the Present.
  • Quando da escrita e submissão desse texto o autor era bolsista do PNPD-CAPES junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Vila Velha (Nº 88882.317013/2019-01).

Referências

  • 1
    COOK, Gary A. George Herbert Mead: The making of a social pragmatist. Urbana: University of Illinois Press,1993.
  • 2
    COOK, Gary A. Resolving two key problems in Mead’s Mind, Self, and Society. In: BURKE, F. T.; SKOWRONSKI, K. P. (org.). George Herbert Mead in the Twenty-First Century Lanham: Lexington Books, 2013. p. 95-105.
  • 3
    DEWEY, John. The reflex arc concept in psychology. The Psychological Review, v. III, n. 4, p. 357-370, 1896.
  • 4
    DEWEY, John; HOOK, Sidney; NAGEL, Ernest. Are naturalists materialists? The Journal of Philosophy, v. 42, n. 19, p. 515-530, 1945.
  • 5
    FINE, Gary Alan; KLEINMAN, Sherryl. Interpreting the sociological classics: Can there be a “true” meaning of Mead? Symbolic Interaction, v. 9, n. 1, p.129-146, 1986.
  • 6
    HUEBNER, Daniel R. Becoming Mead: The social process of academic knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 2014.
  • 7
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    06 Fev 2023
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