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Sociedade e conhecimento: ordem, caos e complexidade

Society and knowlege: order, chaos, and complexity

DOSSIÊ COMPLEXIDADE

APRESENTAÇÃO

Sociedade e conhecimento – ordem, caos e complexidade

Society and knowledge - order, chaos, and complexity

María Baumgarten

Doutora em Sociologia, professora do Departamento de Educação e Ciências do Comportamento da Fundação Universidade Federal de Rio Grande e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Editora da Revista Sociologias. Brasil

RESUMO

O paradigma da ciência moderna, assentado na razão, na divisão/análise e na máxima "conhecer para controlar" reduziu os problemas e suas respostas a modelos para a ação transformadora sobre a natureza e controladora da sociedade, produzindo conhecimentos disciplinares e com alto nível de especialização. Separar e reduzir têm sido máximas do paradigma moderno. Entretanto natureza e sociedade nunca deixaram de ser complexas e o mundo atual é a expressão desta complexidade – os problemas que se nos apresentam são multidimensionais e as contradições se avolumam. O ser humano – alienado por suas próprias mãos – da natureza (que não deixa por isso de integrar), passou a ameaçá-la de forma perigosa para sua própria espécie e todas as outras. Vivemos um processo de hibridação entre o natural e o humano e o artificial. Os laços de solidariedade humana se desfazem e contradições irredutíveis emergem no cotidiano natural e social. Como conhecer e como agir nessa realidade? Como perceber as tantas bifurcações que o devir contém, seus feixes de possibilidades? Como escolher caminhos? A perspectiva da complexidade, com seus diálogos interdisciplinares, suas pontes entre perspectivas e campos de conhecimento e seu pensamento estratégico parece ser uma boa forma de lidar com as incertezas do mundo contemporâneo.

Palavras-chave: sociedade e conhecimento, complexidade.

ABSTRACT

The paradigm of modern science, founded on reason, on the division/analysis and on the motto "knowing for controlling" has reduced problems and their answers to models for a transforming action over nature, thus producing highly specialized and disciplinary knowledges. Separating and reducing have been mottos of the modern paradigm. However, nature and society have never ceased to be complex and today's world is the expression of such complexity – the problems we face are multidimensional and contradictions increase. Humans, alienated from nature by their owns hand (but then integrating anyway), started threatening it in a dangerous way to their own species as well as to all the others. We live in a process of hybridization of the natural, the human, and the artificial. The bonds of human solidarity are undone ,and irreducible contradictions emerge in natural and social everyday life. How is it possible to know and to act on such reality? How can we perceive the several bifurcations contained in the becoming and their range of possibilities? How to choose the direction to be taken? The perspective of complexity, with its interdisciplinary dialogues, its bridges between perspectives and fields of knowledge and its strategic thinking, seems to be a good way to deal with the uncertainties of contemporary world.

Key words: society and knowledge, complexity.

O ímpeto de conhecer relaciona-se ao impulso para descobrir, desvelar obscuridades, revelar pequenos instantâneos da vida ou grandes painéis da natureza e das sociedades. Miudezas do cotidiano dos seres ou a imensidão espaço-temporal do universo e toda a problemática que medeia esses dois pólos são o objeto dessa busca que está intimamente ligada às pequenas e grandes necessidades humanas e aos nossos desejos de satisfazer carências.

O paradigma da ciência moderna, assentado na razão, na divisão/análise e na máxima "conhecer para controlar" reduziu os problemas e suas respostas a modelos para a ação transformadora sobre a natureza e controladora da sociedade, produzindo conhecimentos disciplinares e com alto nível de especialização. Separar e reduzir têm sido máximas do paradigma moderno.

Entretanto natureza e sociedade nunca deixaram de ser complexas e o mundo atual é a expressão desta complexidade – os problemas que se nos apresentam são multidimensionais e as contradições se avolumam. O ser humano – alienado por suas próprias mãos – da natureza (que não deixa por isso de integrar), passou a ameaçá-la de forma perigosa para sua própria espécie e todas as outras. Os laços de solidariedade humana se fragilizam, desfazem e contradições irredutíveis emergem no cotidiano natural e social.

Como conhecer e como agir nessa realidade? Como perceber as tantas bifurcações que o devir contém, seus feixes de possibilidades? Como escolher caminhos? A perspectiva da complexidade tem sido apontada como alternativa para lidar com as incertezas do mundo contemporâneo.

Mas o que é complexidade? Quais os significados do conceito? Que debates estão nele contidos? Um conhecimento que envolve problemas e diálogos multi, inter, transdisciplinários? Um conhecimento complexo ou uma sociedade e uma natureza complexas, que lançam o desafio do desenvolvimento de modos de conhecer que trilhem as sendas da complexidade sem perder de vista suas limitações? Quais as reais mudanças nas formas de conhecer? Quais as permanências?

Os artigos que compõem esse dossiê buscam retratar algo desse imenso debate levantando teses, diálogos, práticas e apresentando complementaridades em diferentes perspectivas que fluem como ondas de desejos de saber e refluem como imagens nítidas ou ainda veladas, representações, fragmentos de realidades, totalidades reconstruídas: conhecimentos. Do impacto epistemológico da complexidade viajamos aos diálogos impertinentes que querem aumentar a transparência da realidade complexa. E, então, partimos na busca de religar saberes e embarcamos nas inúmeras práticas interdisciplinares que a ciência mobiliza. Nesse andar passamos pelo debate do lugar do corpo nas estratégias do conhecimento e deparamo-nos com a necessidade da reintrodução da perspectiva da complexidade do próprio ser humano, submergida no velho dualismo corpo/mente e subestimada nos debates acerca das possibilidades da inteligência artificial, da crescente artificialização possibilitada pela tecnociência, bem como, das conseqüências da manipulação íntima dos nossos corpos viabilizada pelos avanços da engenharia genética.

Iniciamos, portanto, com Maria Manuel Araújo Jorge, que problematiza o impacto epistemológico das investigações sobre a complexidade. Segundo a autora, a complexidade, proposta como idéia filosófica (embora a partir das ciências que a abordam), foi tida, por alguns, como a expressão de um novo "espírito epistemológico" que estaria a mudar não só a nossa imagem mecanicista da natureza mas, inclusive, a nossa relação com ela e o modo de fazer ciência, numa aproximação mais qualitativa, menos agressiva e mais humana. Superando o reducionismo tradicional, reconhecendo a autonomia e as inter-relações entre os diferentes níveis da realidade, a simbiose entre a ordem e a desordem, as regularidades e o aleatório, as ciências, assimilando o espírito da complexidade, estariam abertas a uma consciência dos seus limites fundamentais.

Maria Manuel Jorge, alerta para a possibilidade de estarem alguns a pedir mais às ciências do que elas podem oferecer: "...um aplainamento das fronteiras internas, o que combateria a fragmentação disciplinar e favoreceria uma reaproximação com o resto da cultura". A autora afirma que ao contemplar a face visível da ciência contemporânea o que vê é "...um conjunto de práticas físicas, operatórias, marcadas pelos tiques tradicionais do mecanismo e de sua atitude calculatória, mesmo quando o objeto de estudo e de manipulação são os fenômenos complexos, de tipo caótico ou de ordem emergente".

O que a autora está a apontar é o risco se transformar em obstáculo epistemológico a própria idéia de complexidade ao mascarar a face real da tecnociência com a reflexão que acompanha o confronto recente com a complexidade.

Nos artigos seguintes do dossiê, essas questões são retomadas a partir de distintos olhares que giram em torno da complexidade do/no mundo, da/na sociedade, do/no conhecimento.

Em "La complejidad en la totalidad dialéctica", Carlos Massé Narváez inicia mostrando as limitações dos discursos substantivos disciplinares para, em seguida, expor a complexidade dos conceitos de realidade, presente e utopia, visando discutir como ocorre a produção do conhecimento científico, ao mesmo tempo em que alerta para seus limites frente a contraditoriedade do real. Face às contingências imprevistas que se apresentam nesse processo o autor expõe as categorias de Esperança e Utopia e finaliza propondo uma apropriação do conhecimento como conhecimento científico através de uma articulação transdisciplinar, que garanta a apropriação da complexidade do real como totalidade.

Em "Sociedade e conhecimento: diálogos impertinentes", Alexandre Virgínio busca demarcar o sentido que tem assumido, no contexto do capitalismo, a relação entre sociedade e conhecimento científico. Segundo o autor, tanto o desenvolvimento do capitalismo quanto o da ciência moderna prosperaram a partir de uma relação de interdependência entre a lógica mercantil do primeiro e os pressupostos lineares da segunda. Neste sentido, ao racionalismo cartesiano podem ser creditadas muitas das conseqüências indesejadas que o sistema mundo tem produzido ao longo dos dois últimos séculos. Entrementes, face às promessas de progresso não realizadas pelo capitalismo sua versão cognitiva, a ciência moderna, passa a ser questionada em seu mais elementar fundamento: o domínio da natureza pelo homem. Segundo Virgínio, da crítica da ciência moderna nascem e ou ressurgem perspectivas não-lineares, que procuram considerar novas conexões e/ou saberes entre consciência e existência, entre sujeito e objeto, entre homem e natureza, entre sociedade e conhecimento. Sua expectativa é que este debate, marcado por antagonismos e tensões, menos intransparente quanto mais impertinente, possa contribuir para um diálogo que deságüe em um outro conhecimento mais atento para com a complexidade do real. Nas palavras do autor " ... em função do desafio da construção de interdependência e reciprocidade dos saberes presentes na sociedade, precisamos (...) de uma imaginação científica que inclua em suas teorias, métodos e procedimentos o problema (...) de enriquecimento do conhecimento científico por outras formas de conhecimento".

Gilson Lima, com o artigo "Sociologia na complexidade," apresenta uma introdução didática e informativa sobre a emergência do paradigma da complexidade para a sociologia. A partir de uma abordagem inicial do conceito de paradigma, Lima desenvolve, de modo comparado, os princípios que considera mais importantes do paradigma da complexidade. E, por fim, chama a atenção para alguns desafios da sociologia na complexidade, alertando para os riscos da paralisação da complexidade na difícil tarefa de religar os saberes diante da hiper-especialização presente na crise do paradigma da modernidade simples. Segundo Lima, "...Quem quiser trilhar pelo caminho da complexidade na Sociologia, também é desafiado a propor novas modulações organizacionais do saber e das instituições informacionais ...".

Clarissa Eckert Baeta Neves e Fabrício Monteiro Neves discutem a complexidade a partir da compreensão de Niklas Luhmann - sua função na teoria, e os diferentes modos de sua utilização. o artigo trata da complexidade no sistema da ciência, o modo como este reduz complexidade interna e externa, segundo uma base operativa própria.

Segundo os autores, a contribuição mais significativa de Niklas Luhmann é a proposição da teoria dos sistemas baseada numa mudança paradigmática fundamental: passar da distinção do todo e das partes, para a distinção de sistema e entorno. Distinção feita tendo como referência o conceito de complexidade, categoria utilizada por Luhmann de várias maneiras: desde a sua compreensão como sinônimo de modernidade, significando a totalidade das possibilidades do mundo, até a complexidade como categoria analítica, para a apreensão da diferença sistema/entorno. De acordo com os autores "... Luhmann aprofunda o conceito de complexidade ao introduzir a figura do observador e da distinção complexidade como unidade de uma multiplicidade".

Ao lado do debate epistemológico sobre a complexidade e as diferentes perspectivas de aplicação do conceito, há todo um campo de práticas interdisciplinares que são utilizadas na investigação científica hoje em dia.

Olga Pombo descreve e caracteriza essas práticas, apresentando uma categorização dos novos arranjos disciplinares (ciências de fronteira, interdisciplinas e interciências) e uma tipologia das diversas práticas de investigação interdisciplinar que a ciência hoje mobiliza (práticas de importação, cruzamento, convergência, descentração e comprometimento). Para a autora, "... a interdisciplinaridade existe, sobretudo, como prática. Ela traduz-se na realização de diferentes tipos de experiências interdisciplinares de investigação (...) em universidades, laboratórios (...) na experimentação e institucionalização de novos sistemas de organização, programas interdepartamentais, redes e grupos inter-universitários (...) na criação de diversos institutos e centros de investigação interdisciplinar que, em alguns casos, se constituem (...) como um pólo organizador de novas ciências...."

Para finalizar, uma questão crucial para o debate da complexidade: o lugar do corpo no conhecimento. Em seu artigo Adroaldo Gaya, reivindica a presença do corpo humano nas reflexões epistemológicas e pedagógicas. O autor parte da hipótese que "em tempos pós-modernos, os discursos filosófico e sociológico apontam para a superação da racionalidade iluminista. As propostas pedagógicas procuram perspectivas interdisciplinares, novas formas de configuração curricular e de organização do espaço escolar. Muito seguidamente ouvem-se referências a uma pedagogia da complexidade. Todavia, paradoxalmente, é (...) no âmbito dessa mesma pedagogia que o paradigma do racionalismo iluminista inspirador de uma educação intelectualista permanece, assumindo a herança cartesiana que concebe o corpo como simples extensão da mente". Segundo Gaya as principais correntes epistemológicas sobre a origem do conhecimento limitam-se a expressões de um conhecimento predominantemente racional. O corpo permanece ausente de interesse epistemológico. Para o autor é necessário recolocar os corpos na epistemologia, na pedagogia e nas escolas. É a reinvenção dos corpos, o reconhecimento de sua imprescindível capacidade de participar dos processos do conhecimento.

Enfim, a perspectiva da complexidade, com seus diálogos e práticas interdisciplinares e seu pensamento estratégico parece ser uma boa forma de lidar com as incertezas do mundo contemporâneo que é, sem a menor dúvida, complexo. O essencial é não perder de vista que os poderes preditivos da ciência são limitados pelas características complexas da própria realidade empírica social e/ou natural.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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