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O programa fome zero no contexto das políticas sociais brasileiras

Resumos

O artigo apresenta algumas reflexões sobre o Programa Fome Zero, no contexto das políticas sociais brasileiras dos anos recentes, sob a influência do ideário neoliberal. Traz um sumário do Programa e desenvolve uma análise de seu significado social e político em face da questão social brasileira, apresentando seus primeiros resultados e as principais polêmicas técnicas e políticas.

fome zero; questão social; política social


This article presents some reflections on the No Hunger Program, in the context of the Brazilian social politics in recent years, under the influence of neoliberal ideals. It brings a summary of the Program and develops an analysis of its social and political meaning regarding the Brazilian social question. It also presents its first results and the main technical and political polemics.

no hunger; social questions; social politics


O programa fome zero no contexto das políticas sociais brasileiras

Maria Carmelita Yasbek

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-SP (mcyaz@uol.com.br)

RESUMO

O artigo apresenta algumas reflexões sobre o Programa Fome Zero, no contexto das políticas sociais brasileiras dos anos recentes, sob a influência do ideário neoliberal. Traz um sumário do Programa e desenvolve uma análise de seu significado social e político em face da questão social brasileira, apresentando seus primeiros resultados e as principais polêmicas técnicas e políticas.

Palavras-chave: fome zero; questão social; política social.

ABSTRACT

This article presents some reflections on the No Hunger Program, in the context of the Brazilian social politics in recent years, under the influence of neoliberal ideals. It brings a summary of the Program and develops an analysis of its social and political meaning regarding the Brazilian social question. It also presents its first results and the main technical and political polemics.

Key words: no hunger; social questions; social politics.

Este texto propõe-se a examinar algumas ambigüidades e tensionamentos que perpassam a política social brasileira neste início de milênio, privilegiando a análise de um dos seus programas emblemáticos: o Programa Fome Zero, que emerge no país em um contexto de profundas transformações societárias e de alterações na proteção social destinada particularmente aos segmentos populacionais em situação de maior risco e vulnerabilidade social.

Cabe inicialmente observar que, no cenário político dos anos recentes, a pobreza e a desigualdade social vêm sendo crescentemente abordadas como questões de filantropia e solidariedade social. O avanço do ideário da "sociedade solidária", como base do setor privado e não mercantil de provisão social, parece revelar a edificação de um sistema misto de proteção social que concilia iniciativas do Estado e do denominado Terceiro Setor.

Este tratamento, em termos mais gerais, insere-se nos marcos da reestruturação dos mecanismos de acumulação do capitalismo globalizado, que vêm sendo implementados por meio de uma reversão política neoliberal caracterizada, entre outras coisas, pela destituição de direitos trabalhistas e sociais legais, pela erosão das políticas de proteção social e por mudanças no ideário político que conferia um caráter público à demanda por direitos.

"A articulação: trabalho, direitos e proteção social pública que configurou os padrões de regulação sócio estatal do Welfare State, cuja institucionalidade sequer alcançamos, está em crise. Crise que expressa o aprofundamento da cisão entre o econômico e o social, instala desregulações públicas, reitera as desigualdades, confronta práticas igualitárias e constrói uma forma despolitizada de abordagem da questão social fora do mundo público e dos fóruns democráticos de representação e negociação dos diferentes interesses em jogo nas relações Estado/Sociedade" (Yazbek, 2002:172).

Assim, as propostas em relação ao papel do Estado na esfera da proteção social são reducionistas e voltadas para situações extremas, com alto grau de seletividade e focalização, direcionadas aos mais pobres entre os pobres, apelando à ação humanitária e/ou solidária da sociedade.

São mudanças que encolhem o mundo público e reduzem "a cidadania aos bem sucedidos no empreendimento privado mercantil" (Paoli, 1999:10). Mudanças que tornam opacos os espaços de reconhecimento da pobreza e da exclusão social como manifestações da questão social brasileira, como expressões de relações sociais vigentes nesta sociedade e dessa forma como expressões da desigualdade estrutural do país. "É bom lembrar que a questão social circunscreve um terreno de disputas, pois diz respeito à desigualdade econômica, política e social entre os cidadãos na sociedade capitalista, envolvendo a luta pelo usufruto de bens e serviços socialmente construídos, por direitos sociais e pela cidadania" (Yazbek, 2002:172).

Uma hipótese para melhor entender as razões das ambíguas estratégias de enfrentamento à pobreza no âmbito da política social brasileira é o reconhecimento da profunda "incompatibilidade entre os ajustes estruturais da economia à nova ordem capitalista internacional e os investimentos sociais do Estado. Incompatibilidade legitimada pelo discurso, pela política e pela socialidade engendrados no pensamento neoliberal que, reconhecendo o dever moral de prestar socorro aos pobres e 'inadaptados' à vida social, não reconhece seus direitos sociais" (Yazbek, 2002: 173). "Não por acaso, onde antes o discurso da cidadania e dos direitos tinha algum lugar ou pertinência no cenário público, é hoje ocupado pelo discurso humanitário da filantropia" (Telles, 1998:19). Esta lógica, que subordinou políticas sociais aos ajustes econômicos e às regras do mercado, moldou para a política social brasileira um perfil despolitizado, privatizado e refilantropizado, como bem atestou o Programa Comunidade Solidária e seus desdobramentos. Seus fundamentos na solidariedade social e em componentes éticos e humanitários presentes na sociedade, capazes de mobilizar adesões e apoios generalizados, reforçaram o deslocamento de ações no âmbito da proteção social para a esfera privada, colocando em questão direitos constitucionalmente afiançados. Se, por um lado, a Constituição de 1988 trouxe a Seguridade Social e os direitos sociais para o campo da responsabilidade pública e da universalização dos acessos, por outro, o quadro social mais amplo caracteriza-se por uma perspectiva de retração dos investimentos públicos no campo social e pelo seu reordenamento e crescente subordinação das políticas sociais às políticas de ajuste da economia, com suas restrições aos gastos públicos e sua perspectiva privatizadora que transformam em simulacro as possíveis saídas inovadoras estabelecidas constitucionalmente para a Seguridade Social.

Não se pode esquecer que décadas de clientelismo consolidaram neste país uma cultura tuteladora que não tem favorecido o protagonismo nem a emancipação dos usuários das políticas sociais, especialmente da Assistência Social (os mais pobres). Ou seja, permanecem nas políticas de enfrentamento à pobreza brasileira concepções e práticas assistencialistas, clientelistas e patrimonialistas, além da ausência de parâmetros públicos no reconhecimento de seus direitos, reiterando a imensa fratura entre direitos e possibilidades efetivas de acesso às políticas sociais de modo geral. Ao contrário, carências se acumulam e se sobrepõem, desafiando possíveis soluções e deixando de lado grandes segmentos populacionais desprovidos de qualquer sistema público de proteção social.

Nos anos recentes, no âmbito do Estado, a necessidade de assegurar um mínimo de subsistência aos pobres vem evidenciando o que Draibe (2002) denomina de uma "inflexão gradual do padrão pretérito de proteção social", observada no plano das políticas, programas e instituições por meio de três características: "a descentralização, os novos parâmetros para a alocação de recursos e a redefinição das relações público/privado no financiamento e na provisão de bens e serviços sociais. A nova institucionalidade das políticas sociais, que daí emerge, caracteriza-se ainda por uma expansão e multiplicação dos mecanismos participativos e, na grande parte dos programas, pelo reforço do poder regulatório do Estado".

Um outro aspecto vem chamando a atenção na experiência brasileira recente no que se refere às alterações nas políticas sociais: a ampliação de programas compensatórios no âmbito da transferência de renda em suas diversas modalidades e níveis de operação (municipal, estadual e federal).

Apesar da predominância dessas características, merecem reconhecimento: o Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Loas em 1993 e implantado em 1996, que, apesar do baixíssimo "corte" de renda para selecionar seus usuários, alcança aproximadamente 1 milhão e 400 mil beneficiários; o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – Peti; e o Programa Bolsa-Escola, que, embora constitua um benefício bastante modesto, hoje alcança todos os municípios do país, configurando uma emergente rede de proteção social.

O PROGRAMA FOME ZERO

Para uma análise das alternativas que se desenham para a questão social brasileira, particularmente na definição de estratégias de combate à pobreza, como é possível constatar, por exemplo, em propostas atualmente localizadas no Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS e especialmente no Programa Fome Zero, é necessário ter como referência as relações sociais mais amplas, que particularizam a sociedade brasileira na atual conjuntura, assim como o que representou a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na construção da democracia, da República e da nação. Para Oliveira (2003), esta eleição colocou em questão mais uma vez, na história brasileira, a "disputa pelos sentidos da sociedade". Entre as disputas centrais a serem travadas nos próximos anos, está aquela pelo lugar do social na construção da nação. São os rumos e a politização desse debate que permitirão a um Programa como o Fome Zero se colocar (ou não) na perspectiva de forjar formas de resistência e defesa da cidadania dos excluídos, ou apenas reiterar práticas conservadoras e assistencialistas.

Os riscos enfrentados nessa disputa são no sentido de que as ações permaneçam no plano do assistencialismo e do dever moral e humanitário e não se realizem como direito. Até o momento, as propostas não rompem com a ótica seletiva e emergencial, com o desenvolvimento de ações de caráter paliativo, focalizadas e sem inovações.

Portanto, trazer à análise um Programa como o Fome Zero, no contexto da refilantropização da questão social brasileira e da despolitização da política social, é enfrentar uma temática complexa, que supõe diversos caminhos analíticos e diferentes ângulos a serem considerados em sua análise. Nesta oportunidade, o Programa será abordado a partir de dois aspectos:

- sua proposta e seu significado social e político em face da questão social brasileira;

- sua gestão, primeiros resultados e algumas polêmicas de ordem técnica e política.

Uma Proposta de Política de Segurança Alimentar para o Brasil

A proposta apresentada ao debate público, em outubro de 2001, em um documento de 132 páginas, foi elaborada pelo Instituto de Cidadania, sob a coordenação de José Graziano da Silva (ex-ministro do recém extinto Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e Combate à Fome), com a participação de representantes de ONGs, institutos de pesquisa, sindicatos, organizações populares, movimentos sociais e especialistas vinculados à questão da segurança alimentar no país. Partindo da concepção de que o direito à alimentação deve ser assegurado pelo Estado, apresentou-se como principal objetivo a formulação de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional para a população brasileira. Na apresentação do documento, assinada por Luiz Inácio Lula da Silva, já estava explícita a preocupação do programa na "conjugação adequada entre as chamadas políticas estruturais – voltadas à redistribuição de renda, crescimento da produção, geração de empregos, reforma agrária, entre outros e as intervenções de ordem emergencial, muitas vezes chamadas de políticas compensatórias. Limitar-se a estas últimas quando as políticas estruturais seguem gerando desemprego, concentrando a renda e ampliando a pobreza (...) significa desperdiçar recursos, iludir a sociedade e perpetuar o problema (...) também não é admissível o contrário. Subordinar a luta contra a fome à conquista prévia de mudanças profundas nas políticas estruturais representaria a quebra da solidariedade que é dever imperativo de todos perante os milhões de brasileiros hoje condenados à exclusão social e à insuficiência alimentar".

O documento apresenta a alimentação como direito humano básico e a prioridade do combate à fome e à miséria como questão que vem mobilizando a sociedade brasileira há mais de uma década. Também destacam-se a Ação de Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela Vida (1992/93), o amplo movimento social liderado pelo sociólogo Herbert de Souza, que se expressou na formação de milhares de comitês de solidariedade, e o Conselho de Segurança Alimentar – Consea. São realizadas, ainda, a construção do conceito de segurança alimentar, uma análise do problema da fome no país e no mundo e das políticas existentes nessa área e, para finalizar, uma síntese das propostas (Projeto Fome Zero, 2002).

O conceito de segurança alimentar que norteou o projeto foi explicitado neste documento, ficando claro que no Brasil a pobreza e o desemprego são as causas principais da fome, constatando que o aumento da capacidade produtiva no país não resultou na diminuição relativa dos preços dos alimentos nem na maior capacidade de aquisição desses alimentos pelos segmentos mais pobres da população. Entende-se por segurança alimentar "a garantia do direito de todos ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, e nem o sistema alimentar futuro, devendo se realizar em bases sustentáveis. Todo país deve ser soberano para assegurar sua segurança alimentar, respeitando as características culturais de cada povo, manifestadas no ato de se alimentar. É responsabilidade dos Estados Nacionais assegurarem este direito e devem fazê-lo em obrigatória articulação com a sociedade civil, cada parte cumprindo suas atribuições específicas" (Projeto Fome Zero, 2002). Ressalta-se também que a alimentação deve ser acessível a todos, com dignidade.

Ao abordar o problema da fome, o projeto apresenta dados da FAO (2000), do PNUD (2000), do Banco Mundial (2000), da Cúpula Mundial da Alimentação (1996/Roma) e de outras organizações sobre a fome no Brasil e no mundo, afirmando que a fome não tem diminuído no mundo, assim como não é causada pelo aumento da população nem pela falta de alimentos. Mostra também que, no Brasil, a pobreza e a fome não estão concentradas nas áreas rurais do Nordeste e que as forças do mercado não vêm sendo capazes de resolver o problema.

O Projeto Fome Zero efetiva uma avaliação dos programas existentes na área da alimentação e nutrição a partir dos anos 90: em uma rápida síntese histórica, destaca a novidade representada pelo Consea e a importância da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar em julho de 1994; faz referência ao Programa Nacional de Alimentação – Pronan do Ministério da Saúde; e mostra os impactos negativos da extinção do Consea e da criação do Conselho do Comunidade Solidária, no governo FHC, sobre a questão da segurança alimentar. Apresenta, ainda, o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos, reativado com a seca do Nordeste, que teve distribuição recorde de cestas em 1998.

Em 1999, a Secretaria Executiva do Comunidade Solidária priorizou uma proposta de Desenvolvimento Local Integrado Sustentável – o Comunidade Ativa – para superação da fome e da pobreza. Nos dois últimos anos do governo FHC, emergiram o Projeto Alvorada (2001), um rearranjo dos programas anteriores, que incorporou recursos do Fundo de Erradicação da Pobreza, o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação (para crianças até seis anos e gestantes), substituindo o Leite é Saúde.

São apresentados também programas específicos: Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT; Programa de Combate às Carências Alimentares e Bolsa-Saúde; Programa Cestas Básicas – Prodea; e Cupons de Alimentação (exemplificados com o "Food Stamp"1 1 . Programa de Ajuda Alimentar dos EUA, que opera por meio do fornecimento de cupons ou cartões eletrônicos que são utilizados para compras de alimentos em varejistas previamente cadastrados. Em 2001 atendeu 7,3 milhões de domicílios e 17,2 milhões de pessoas por mês, tendo custado US$ 1,25 bilhão/mês. Os cupons podem ser usados também para a compra de sementes e plantas destinadas a produzir alimentos em jardins e hortas, mas não podem ser usados para comprar bebidas alcoólicas, cigarros, vitaminas, remédios, alimentos prontos, alimentos para animais de estimação e itens não alimentares. ). Apontam-se o papel da reforma agrária e da agricultura familiar, as políticas de renda mínima e Bolsa-Escola e o papel da Previdência Social, além de problematizar outras iniciativas de Estados e municípios, como os restaurantes populares, os Fóruns Estaduais de Segurança Alimentar, a merenda escolar e outros.

O documento Fome Zero define o público a que se destina e apresenta a estimativa da população brasileira em situação de carência alimentar ou em situação vulnerável a ela. São apresentados estudos que definem uma linha de pobreza/indigência única para o país e outros que diferenciam as regiões (indigente: população cuja renda familiar per capita não alcança o valor de uma cesta alimentar; pobre: população que não atinge a renda necessária para adquirir a cesta de alimentos mais os bens não alimentares básicos2 2 . Ipea – Mapa da Fome (1993); Hoffman (2001); Rocha (2000); Árias (1999a); Ferreira et al. (2000). ).

Os conceitos de pobreza, fome e desnutrição "têm uma forte relação, mas não têm o mesmo significado (...) A fome leva à desnutrição, mas nem toda desnutrição se origina da deficiência energética, principalmente na população infantil (...) por conta disso, considera-se que a desnutrição está mais associada à pobreza do que à fome, devido a carências globais" (Projeto Fome Zero, 2002). O projeto mostra que, no caso brasileiro, a grande causa da falta de acesso aos alimentos é o baixo nível de renda.

A metodologia apresentada no projeto tem como ponto de partida a Linha de Pobreza – LP do Banco Mundial, que corresponde a US$ 1,00/dia, considerada uma linha de pobreza extrema. A partir dela foi realizado um processo de regionalização e de distinção das zonas urbana e rural. Com base nas linhas de pobreza regionalizadas, calculou-se o número de famílias3 3 . O conceito de família adotado foi o de "família extensa": todas as pessoas que vivem sob o mesmo teto, mesmo que tenham constituído outra família (marido, mulher e filhos) e os agregados. e de respectivas pessoas pobres.

Os resultados apontam um público potencial de 44.043 milhões de pessoas que constituem 9.324 milhões de famílias, cujas características são detalhadamente apresentadas no projeto.

Finalmente, é apresentada uma síntese em que são retomadas as causas da fome no país:

- a insuficiência da oferta de produtos agropecuários;

- problemas relativos à intermediação – distribuição e comercialização;

- falta de poder aquisitivo da população decorrente dos altos níveis de desemprego e subemprego.

O documento afirma que, historicamente, essas três causas têm-se revezado, mas, neste início de século XXI, a principal causa da fome está na insuficiência da demanda efetiva causada por concentração de renda, baixos salários, desemprego e baixos índices de crescimento econômico, componentes endógenos do atual padrão de crescimento e, portanto, resultados inseparáveis do modelo econômico vigente (gerando um círculo vicioso da fome). Propõe-se o equacionamento da questão por meio da ampliação da demanda de alimentos, do barateamento do preço dos alimentos e de programas emergenciais para atender à população excluída do mercado, reconhecendo que é preciso alterar o modelo econômico (crescimento com distribuição de renda) (Projeto Fome Zero, 2002).

As políticas emergenciais de segurança alimentar são consideradas indispensáveis para o enfrentamento do problema e devem ser acompanhadas da criação de condições e da obrigatoriedade das famílias em ter seus filhos na escola e da instituição de conselhos com a participação dos beneficiários. Devem, em síntese, ser políticas educativas (em relação aos hábitos alimentares), organizativas (para a defesa de direitos) e emancipadoras (visando a autonomia).

O projeto supõe ainda que essas políticas sejam acompanhadas de ações estruturais (geração de emprego e renda, previdência social universal, incentivo à agricultura familiar, alfabetização de adultos, reforma agrária e bolsa-escola e renda mínima) e específicas (Programa Cupom de Alimentação, doações de cestas emergenciais, segurança e qualidade dos alimentos, ampliação do PAT, combate à desnutrição infantil e materna, ampliação da merenda escolar e outros). São ainda propostas políticas locais (estaduais e municipais): programas para as áreas metropolitanas – como restaurantes populares, bancos de alimentos, modernização dos equipamentos de abastecimento, novo relacionamento com as redes de supermercados –; programas para pequenas e médias cidades – como banco de alimentos, parceria com varejistas, agricultura urbana –; e programas para áreas rurais, como apoio à agricultura familiar e à produção para o autoconsumo.

Quanto aos custos do projeto, estão estimados os programas específicos com estimativas de custo anual e origem dos recursos. A principal proposta específica (cupons de alimentação) prevê um custo anual de R$ 19,9 bilhões, "um montante de recursos relativamente pequeno", conforme afirma o próprio projeto, "para erradicar a fome", pois os gastos sociais (exceto a Previdência) de diversos programas realizados atualmente são da ordem de R$ 45 bilhões ao ano, o que é mais do que o dobro dos recursos necessários à implantação do Programa de Cupons de Alimentação proposto. O projeto indica ser possível redirecionar parte dos recursos já existentes, gerenciar melhor os recursos disponíveis (como por exemplo o Fundo de Combate à Pobreza) e prever novos recursos.

Finalizando, o documento aborda a questão de sua institucionalidade, propondo-a diretamente vinculada à Presidência da República, assim como propõe a recuperação da experiência do Consea.

Rápidas Considerações sobre a Proposta

Uma avaliação inicial do documento revela tratar-se de estudo consistente e bem elaborado, no âmbito da segurança alimentar, que muito poderá contribuir para a sociedade brasileira caminhar na efetivação do direito humano à segurança alimentar e nutricional. A relação entre o emergencial e o permanente presente em todo o texto do documento, em diferentes perspectivas temporais com propostas de curto, médio e longo prazos, é sem dúvida um dos aspectos mais relevantes do projeto. Entretanto, cabe ressaltar que o texto apresenta lacunas, particularmente na problematização dos fundamentos estruturais da desigualdade social que historicamente caracteriza a sociedade brasileira e ao não levar em consideração outros programas sociais no âmbito do enfrentamento à pobreza, principalmente as políticas de seguridade social conforme propõe a Constituição Federal de 1988. Sua articulação à seguridade social, constitucionalmente afiançada, e às demais políticas setoriais configura-se necessária e urgente, tendo em vista a superação da histórica desarticulação e superposição das ações sociais no país. Isso porque as políticas de seguridade já têm os instrumentos necessários à descentralização e à criação de novos mecanismos, já que os existentes podem ser redirecionados para os objetivos do programa, evitando paralelismo e superposição de ações no âmbito do enfrentamento à pobreza.

A interface com a assistência social, enquanto política orientada pelo reconhecimento de direitos e provisão de necessidades sociais, deveria ser orgânica, uma vez que a questão da fome é também, sem dúvida, um desafio a ser enfrentado no âmbito da instauração de mínimos sociais no país, como afirma a Lei Orgânica da Assistência Social – Loas (Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 que regulamentou os artigos 203 e 204 da Constituição federal de 1988) em seu artigo primeiro: "A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativas pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas".

Sem dúvida, o direito humano à segurança alimentar e nutricional localiza-se no conjunto dos mínimos sociais, a que têm direito todos os cidadãos do país. Para Sposati (1997) na definição dos mínimos sociais o que está em questão é o estabelecimento de um padrão básico de inclusão social que contenha a idéia de dignidade e de cidadania. Afirma Sposati (1997:13): "Estabelecer mínimos sociais é mais do que um ato jurídico ou um ato formal, pois exige a constituição de um outro estatuto de responsabilidade pública e social (...) é fundar uma nova cultura num contexto de grande acidez à sua proliferação. Por isto denomino este processo de revolução da consciência da cidadania". E, mais adiante, "considero que há uma dupla interpretação de mínimos sociais: uma que é restrita, minimalista, e outra que considero ampla e cidadã. A primeira se funda na pobreza e no limiar da sobrevivência e a segunda em um padrão básico de inclusão" (Sposati, 1997:15). Assim, "propor mínimos sociais é estabelecer o patamar de cobertura de riscos e de garantias que uma sociedade quer garantir a todos seus cidadãos. Trata-se de definir o padrão societário de civilidade. Neste sentido ele é universal e incompatível com a seletividade o focalismo" (Sposati, 1997:10, grifos da autora).

Assim sendo, trata-se da constituição de um padrão básico de proteção e inclusão para os segmentos mais vulneráveis e de baixos rendimentos de nossa sociedade (que, nos anos recentes, têm sido submetidos a critérios de alta seletividade e focalização em termos de acesso a serviços sociais).

Nesse sentido, é preciso vincular o Fome Zero às políticas de seguridade social e a outras ações no campo da proteção social, em uma perspectiva de inclusão social conforme aponta a Loas em seu artigo 25: "Os projetos de enfrentamento da pobreza compreendem a instituição de investimento econômico social nos grupos populares, buscando subsidiar financeira e tecnicamente iniciativas que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio ambiente e sua organização social".

Significado Social e Político diante da Questão Social4 4 . Ao se colocar como referência a questão social, está se discutindo a divisão da sociedade em classes cuja apropriação da riqueza socialmente gerada é extremamente diferenciada. Estão sendo colocadas em questão, portanto, a desigualdade e a disputa pela apropriação da riqueza social. Questão social que se reformula, redefine, agrava ou atenua, mas permanece substantivamente a mesma por se tratar de uma questão estrutural que não se resolve numa formação econômico/social por natureza excludente. Brasileira

O debate sobre o significado social e político do Projeto Fome Zero, na sociedade brasileira, tem como pano de fundo as relações sociais mais amplas, assim como o contexto em que emerge e o que representou a eleição de Lula na construção da democracia, da República e da nação. "Eleição que, como afirma Francisco de Oliveira (2003), colocou em questão, mais uma vez na história brasileira a 'disputa pelos sentidos da sociedade' num contexto em que caminhamos na contramão de interesses do capitalismo contemporâneo. Para o autor, disputas centrais serão travadas nos próximos anos, questões estratégicas deverão ser enfrentadas, o novo governo inicia um processo que poderá dar um caráter de centra- lidade ao social na construção da nação" (Yazbek, 2003a:47).

Há política nas políticas sociais, há direção e interesses em confronto, seja na perspectiva de "recomposição do sistema de controle dominante, seja direcionada para a alteração/transformação desse sistema com a prevalência dos interesses e demandas dos segmentos alvo da política" (Abreu, 2002:133). Essa disputa, que nos anos recentes, sob inspiração do ideário neoliberal, configurou um perfil despolitizado e refilantropizado para as políticas sociais brasileiras, no qual a pobreza ocupou o "lugar da não política", onde foi "figurada como dado a ser administrado tecnicamente ou gerido pelas práticas da Filantropia" (Telles, 1998:15), está mais uma vez colocada.

Sem dúvida, o Programa Fome Zero coloca em evidência o lugar da pobreza na sociedade brasileira. Ao trazer para o debate público a problemática da fome, movimentando a mídia, a opinião pública, os especialistas de diversas áreas, as universidades, as lideranças locais, os governantes de Estados e municípios e outros cidadãos do país, o Fome Zero coloca a pobreza e a fome como questões públicas, alvo de opções políticas que põem em foco as alternativas de futuro para o país e os desafios da cidadania e da construção democrática nesta sociedade excludente e desigual (Telles, 1998:3).

São os rumos e a politização desse debate que permitirão ao Programa se colocar (ou não) numa perspectiva assistencialista e conservadora, ou se localizar efetivamente na direção do enfrentamento da questão social, que, como refere Iamamoto (1998:28), "sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem e se opõem. É nesta tensão entre produção da desigualdade e produção da rebeldia e da resistência" que se movem interesses sociais distintos e que disputam os "sentidos da sociedade".

Essa disputa apresenta um grande risco: que o Programa permaneça apenas no plano do assistencialismo e do dever moral e humanitário de prestar socorro aos pobres, não se realizando como direito social (e assim não se politizando). É evidente que uma "cruzada solidária" contra a fome tem grande apelo e é capaz de realizar um consenso social (dimensão importante para o governo), mas é também mais do que conhecida a necessidade de enfrentar, no âmbito estrutural das relações sociais, as causas da fome e da pobreza.

Como afirma Valente (2003:23), referindo-se à solidariedade de grandes grupos empresariais (Pão de Açúcar, Nestlé e outros), "a Segurança Alimentar da população não pode ser garantida por meio da solidariedade (...) estas ações devem ser progressivamente assumidas pelo Estado e desenvolvidas dentro da ótica de garantia de direitos e inseridas em um processo emancipatório de construção da cidadania".

Sabe-se que escapa às políticas sociais, às suas capacidades, desenhos e objetivos reverter níveis tão elevados de desigualdade como os encontrados no Brasil, mas sabe-se também que as políticas sociais respondem a necessidades e direitos concretos de seus usuários. Entretanto, constata-se que neste país nunca foi adotada uma política global de enfrentamento à pobreza. Ao contrário, as políticas sociais brasileiras têm-se mostrado erráticas e tímidas, incapazes sequer de atenuar a enorme desigualdade que caracteriza nossa sociedade. Focalizadas5 5 . De acordo com Silva (2001), o direcionamento de recursos e programas para determinados grupos populacionais, considerados vulneráveis no conjunto da sociedade, não se contrapõe à universalização de direitos. "Todavia, no contexto de reforma dos programas sociais na América Latina a concepção de focalização vem significando medidas meramente compensatórias aos efeitos do ajuste estrutural sobre as populações, já estruturalmente vulneráveis, em detrimento de ações universais, interrompendo, assim, um processo de lutas sociais por universalização dos direitos sociais em curso no continente latino-americano e, especificamente, no Brasil, nos anos 80" (Silva, 2001:13). apenas nos indigentes, seletivas e compensatórias, as políticas sociais vêm desenvolvendo estratégias fragmentadoras da pobreza (Silva, 2001) e se colocando em um movimento contrário à universalização de direitos sociais.

Sob esse ângulo de análise, o Programa Fome Zero, apesar de seu grande apelo simbólico (tal como o Programa Comunidade Solidária), não apresenta inovações, pelo menos em seu desenho concreto inicial, embora em sua proposta original fique explícita a perspectiva de associar o objetivo da segurança alimentar a estratégias permanentes de desenvolvimento econômico e social e a medidas de cunho mais estrutural.

A GESTÃO DO PROJETO FOME ZERO: SUA ESTRUTURAÇÃO, POLÊMICAS TÉCNICAS E POLÍTICAS

Primeiros Resultados

O Fome Zero foi apresentado como um Programa de todo o governo, envolvendo todos os Ministérios. Inicialmente, contou com a estrutura do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome – Mesa e do Consea. Posteriormente, em janeiro de 2004, passou a integrar as ações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, que reuniu as ações do Ministério de Assistência Social (extinto), do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome e da Secretaria do Bolsa-Família, sendo empossado como seu titular o deputado federal e ex-prefeito da cidade de Belo Horizonte, Patrus Ananias. Sua proposta, como já apresentada, é combinar políticas estruturais, específicas e locais, sendo um aspecto positivo do Programa a integração entre os órgãos federais envolvidos nas ações (não se observa uma relação com o Ministério das Cidades). Apesar desse aspecto, no momento sua visibilidade pública vem se efetivando sobretudo pelo Programa Cartão Alimentação (política específica).

Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, até janeiro de 2004, as principais ações do Programa foram: o atendimento de 1.900.000 famílias, totalizando 11 milhões de pessoas, em 2.369 municípios, prioritariamente localizados nas regiões semi-áridas do Nordeste.

O projeto-piloto iniciado nos municípios de Acauã e Guaribas, no Estado do Piauí (semi-árido nordestino), evidenciou a interligação de diferentes dimensões da questão, como, por exemplo, a necessidade da água e da construção de cisternas para obtê-la. Essas ações (de natureza estrutural) foram desencadeadas pelo Programa Articulação do Semi-Árido, que construiu 22.040 cisternas. Foi criada também uma linha de crédito destinada à construção de pequenas obras hídricas dentro do Programa Nacional de Agricultura Familiar – Pronaf Semi-Árido, tendo sido concluídas 205 obras e previstas mais 81. O investimento na alfabetização de adultos está em andamento: nesses dois municípios, 494 jovens e adultos foram alfabetizados. Atualmente, outros 193 municípios desenvolvem iniciativas para implantar Programas de Alfabetização (Programa Brasil Alfabetizado do MEC e Programa Alfabetização Solidária).

Outra ação estrutural em andamento é a formação de Consórcios Intermunicipais de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local em todo o país. Esses consórcios já reuniram, em média, 20 municípios para o desenvolvimento de ações interligadas no âmbito do desenvolvimento local, como microcrédito, inclusão digital, incentivo à agricultura familiar, etc. Outra ação desencadeada e em andamento é o registro civil gratuito. Em Guaribas e Acauã, foram emitidos 400 documentos.

Como políticas específicas, além do Cartão Alimentação (Programa Cartão Alimentação – PCA), que define um benefício de R$ 50,00 para cada família com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo, estão também as Ações Emergenciais para grupos específicos, como a distribuição de alimentos em acampamentos dos sem-terra, às comunidades indígenas e aos quilombolas. Em maio foi iniciada a primeira distribuição de alimentos em caráter emergencial a 113.909 famílias, de 626 acampamentos credenciados pelos Incras regionais. Até outubro de 2003, foram distribuídas 490 mil cestas básicas.

Para as comunidades indígenas de Mato Grosso do Sul, foram financiadas ações de desenvolvimento local para 11 mil famílias. Na Bahia foram distribuídas 14 toneladas de alimentos para os Tupinambás.

O terceiro programa específico – Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (Programa do Leite) – atendeu, em 2003, 2.570 produtores em 67 municípios. O governo vem adquirindo leite e alimentos (6.935 toneladas de alimentos) desses produtores.

A ampliação da merenda escolar constitui a quarta política específica e vem alcançando escolas indígenas (1.711); creches (17.600) e mais do que dobrou o valor per capita da merenda.

A quinta política específica é a Nutrição Materno Infantil (Bolsa-Alimentação), em atuação em quase todos os municípios brasileiros (o Mesa realizou em 2003 o repasse de R$36 milhões ao ministério da Saúde). Em 2003 foram cadastradas 206 mil famílias.

Como última dessas políticas está o Banco de Alimentos (37 projetos em diferentes Estados em parceria com o Sesc).

As principais polêmicas e críticas sobre o Programa Fome Zero, desde sua apresentação pelo Instituto de Cidadania, estão relacionadas ao processo de implantação técnica e política, bem como à sua gestão e efetividade.

Entre as primeiras polêmicas esteve a criação de um Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MP nº 103 de 01/01/2003), a partir da consideração de que uma nova instituição não resolveria o problema da fome e que os programas de transferência monetária deveriam ser expandidos (Peti, Agente Jovem, BPC, Bolsa-Alimentação, Bolsa-Renda, Bolsa-Escola, Auxílio-Gás, etc.), questão que parece estar encaminhada com a criação do MDS e a recente unificação dos cartões, com a implantação do Bolsa-Família.

A opção pela vinculação (exclusiva) do uso dos R$ 50,00 do Cartão Alimentação à compra de alimentos, questão da qual o governo não abriu mão, e a exigência de recibos e notas fiscais (atualmente são aceitas outras comprovações, inclusive testemunho) foram outros dois temas objeto de polêmicas.

Os riscos da fragmentação e pulverização das ações do programa e sua despolitização contribuem para reeditar a filantropia e a caridade, assumidas, nesse contexto, não apenas individualmente, mas também por grandes grupos econômicos.

O corte do público beneficiário pela linha de pobreza parece ser um dos pontos mais vulneráveis do programa, por "focar" nos mais pobres entre os pobres, promovendo seu cadastramento discriminatório e sua fragmentação. "O custo dessa 'discriminação negativa' pode ser alto. Em primeiro lugar por excluir famílias e pessoas que também estão em condições de pobreza e vulnerabilidade (...) Em segundo, porque a pobreza tem uma espacialidade, ou seja, territórios definidos, onde, de modo geral, as condições de precariedade são generalizadas para todos os que aí vivem" (Tavares, 2003), o que exige ações mais globalizadas. A perspectiva compensatória e residual, centrada numa renda mínima, nos limites da sobrevivência e voltada aos incapazes de competir no mercado, vai configurar uma política social excludente, inspirada no "dever humanitário e solidário" e não pelos princípios da cidadania e reconhecimento público de direitos sociais.

Finalmente, a opção por priorizar para seu primeiro ano de funcionamento os municípios da região do semi-árido nordestino deixa muitas indagações e inquietações sobre os possíveis impactos desse tipo de proposta, em face dos crescentes riscos e vulnerabilidades das populações das regiões urbanas, particularmente de suas periferias metropolitanas.

O PROGRAMA FOME ZERO E A LÓGICA NEOLIBERAL

Até o momento, as ações implementadas pelo programa mostram-se conservadoras e apoiadas em forte apelo humanitário, sem claras referências a direitos. Nesse sentido, não rompem com a lógica neoliberal. São ações que nos colocam, como aponta Telles (1998:22), "no fio da navalha, essa estreita fronteira entre direitos e carências na qual transitam" programas como esse. Aí parece estar o maior desafio do programa, e que "diz respeito às mediações políticas entre o mundo social e o universo público dos direitos e da cidadania. Essas mediações, a serem construídas e reinventadas, circunscrevem um campo de conflito que é também de disputa pelos sentidos de modernidade, cidadania e democracia. Disputa que diz respeito também ao sentido político e desdobramentos possíveis de programas de enfrentamento à pobreza (...) Pois, no fio da navalha em que transitam, suas promessas de cidadania dependem grandemente da refundação da política como espaços de criação e generalização de direitos" (Telles, 1998:22).

Não se pode esquecer que essa disputa ocorre numa sociedade em que, historicamente, as ações de enfrentamento à pobreza têm se apoiado, na maior parte das vezes, na matriz do favor, do apadrinhamento, do clientelismo e do mando, formas enraizadas na cultura política do país, sobretudo no trato com as classes subalternas. "Essa matriz conservadora, baseada na reciprocidade e em relações de caráter personalizado, permeou o conjunto da vida nacional e, para os segmentos populacionais inclusos nas faixas de renda mais baixas, vem gerando uma condição de 'prisioneiros de relações de dependência pessoal, da deferência e da lealdade (...) sendo a identidade do trabalhador pobre tratada como algo inferior' (Zaluar, 1985:49). No campo da assistência social, esta matriz reforça as figuras do 'pobre beneficiário, do desamparado e do necessitado', com suas demandas atomizadas e uma posição de subordinação e de culpabilização do pobre pela sua condição de pobreza" (Yazbek, 2003b:50). Romper com essa lógica e superar a identificação das políticas sociais em geral com o assistencialismo e com o poder desarticulador do clientelismo é o desafio.

Projeto Fome Zero. Instituto de Cidadania. 3. versão, 2002.

NOTAS

  • ABREU, M.M. O controle social e a mediação da política de assistência social na sociedade brasileira na atualidade indicações para o debate. Revista de Políticas Públicas, São Luis, Ufama, v.6 n.1, 2002.
  • DRAIBE, S.M. Brasil, a proteção social após 20 anos de experimentação reformista. Políticas Públicas: proteção e emancipação, 2002. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/ppublicas/pp10.htm>.
  • IAMAMOTO, M. O serviço social na contemporaneidade São Paulo: Cortez, 1998.
  • OLIVEIRA, F. Aula inaugural do curso de Ciências Sociais USP São Paulo, 1. sem. 2003. Mimeografado.
  • SPOSATI, A. Mínimos sociais e seguridade social: uma revolução da consciência da cidadania. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, Cortez, n.55, p.9-33, 1997.
  • SILVA E SILVA, M.O. O Comunidade Solidária: o não enfrentamento da pobreza no Brasil. São Paulo: Cortez, 2001.
  • TAVARES, L. O Programa Fome Zero Rio de Janeiro: UERJ, 2003. Disponível em: <http://www.outrobrasil.net>.
  • TELLES, V.S. No fio da navalha: entre carências e direitos. Notas a propósito dos programas de Renda Mínima no Brasil. Programas de Renda Mínima no Brasil: impactos e potencialidades. São Paulo: Polis, 1998. p.1-23.
  • VALENTE, F.L.S. A mobilização da sociedade será fundamental. PUC Viva, Revista dos professores da PUC-SP, São Paulo, ano 5, n.19, 2003. (Entrevista).
  • YAZBEK, M.C. Classes subalternas e assistência social 4. ed. São Paulo: Cortez, 2003a.
  • ________. Fome Zero: uma política social em questão. Saúde e Sociedade, São Paulo, Faculdade de Saúde Pública da USP e Associação Paulista de Saúde Pública, v.12, n.1, p.43-51, jan./jun. 2003b.
  • ________. Voluntariado e profissionalização na intervenção social. Intervenção Social, Revista do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa/Beja. Portugal, n.25/26, p.171-184, nov. 2002.
  • 1
    . Programa de Ajuda Alimentar dos EUA, que opera por meio do fornecimento de cupons ou cartões eletrônicos que são utilizados para compras de alimentos em varejistas previamente cadastrados. Em 2001 atendeu 7,3 milhões de domicílios e 17,2 milhões de pessoas por mês, tendo custado US$ 1,25 bilhão/mês. Os cupons podem ser usados também para a compra de sementes e plantas destinadas a produzir alimentos em jardins e hortas, mas não podem ser usados para comprar bebidas alcoólicas, cigarros, vitaminas, remédios, alimentos prontos, alimentos para animais de estimação e itens não alimentares.
  • 2
    . Ipea – Mapa da Fome (1993); Hoffman (2001); Rocha (2000); Árias (1999a); Ferreira et al. (2000).
  • 3
    . O conceito de família adotado foi o de "família extensa": todas as pessoas que vivem sob o mesmo teto, mesmo que tenham constituído outra família (marido, mulher e filhos) e os agregados.
  • 4
    . Ao se colocar como referência a questão social, está se discutindo a divisão da sociedade em classes cuja apropriação da riqueza socialmente gerada é extremamente diferenciada. Estão sendo colocadas em questão, portanto, a desigualdade e a disputa pela apropriação da riqueza social. Questão social que se reformula, redefine, agrava ou atenua, mas permanece substantivamente a mesma por se tratar de uma questão estrutural que não se resolve numa formação econômico/social por natureza excludente.
  • 5
    . De acordo com Silva (2001), o direcionamento de recursos e programas para determinados grupos populacionais, considerados vulneráveis no conjunto da sociedade, não se contrapõe à universalização de direitos. "Todavia, no contexto de reforma dos programas sociais na América Latina a concepção de focalização vem significando medidas meramente compensatórias aos efeitos do ajuste estrutural sobre as populações, já estruturalmente vulneráveis, em detrimento de ações universais, interrompendo, assim, um processo de lutas sociais por universalização dos direitos sociais em curso no continente latino-americano e, especificamente, no Brasil, nos anos 80" (Silva, 2001:13).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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