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Editorial

O primeiro número do volume deste ano de Scientiæ studia está inteiramente dedicado à história e epistemologia das ciências físicas no século xx. Os artigos publicados estão ordenados em dois grupos. Os três primeiros artigos dedicam-se à história da ciência e apresentam cronologicamente a aritmetização da geometria por David Hilbert, desenvolvimento matemático de enorme repercussão na física (particularmente na mecânica); a filiação kantiana do convencionalismo de Henri Poincaré concernente à caracterização do espaço-tempo físico; a reação de Albert Einstein aos experimentos que comprovavam a hipótese do quantum de luz, evento de grande importância na constituição da mecânica quântica (MQ). Os três artigos seguintes voltam-se para a filosofia da ciência, tratando da utopia da ciência unificada de Otto Neurath, da caracterização empirista da observação segundo o antirrealista Bas van Fraassen e, finalmente, da caracterização clássica e quântica do conceito de informação. O documento científico deste número mantém-se no século xx, publicando uma conferência de Werner Heisenberg que trata da teoria das cores em Newton e em Goethe sob o ponto de vista da MQ. A introdução ao documento faz uma apresentação da trajetória de Heisenberg e de seu papel no desenvolvimento da MQ. Fecham o número duas resenhas, das quais a primeira expõe o retorno de Chalmers ao demônio da fundamentação lógica do mundo procurada por Rudolf Carnap, enquanto a segunda apresenta a reconstrução histórica de Olival Freire para o desenvolvimento da MQ na segunda metade do século xx.

Abrindo o número, Eduardo Nicolás Giovannini, em artigo que pressupõe um conhecimento geométrico, em particular, dos Elementos de Euclides, e um conhecimento do significado do método axiomático e do tratamento que lhe dá Hilbert, mostra a relevância do cálculo de segmentos desenvolvido por este último matemático para a possibilidade de fundamentação da geometria em bases exclusivamente geométricas. O autor atinge assim seu objetivo de mostrar que a aritmética de segmentos, tal como desenvolvida nos Fundamentos da geometria de Hilbert, não é apenas um resultado matemático relevante, mas também uma contribuição significativa do ponto de vista metodológico, pois o método axiomático não é somente um método para a apresentação e sistematização de teorias matemáticas, mas constitui-se como uma heurística capaz de levar à descoberta e de exibir novas conexões estruturais internas entre as teorias matemáticas.

No segundo artigo, João Príncipe volta-se para a filosofia da física de Henri Poincaré, aportando uma nova solução para a questão sobre se é possível ou não inscrever a filosofia da física de Poincaré em alguma forma de kantismo. Contrariamente à tendência dominante que procura responder à questão restringindo-se à primeira parte da Crítica da razão pura, o autor mostra a importância dos aspectos poéticos de Kant, tais como a ordem, a analogia e o princípio regulador, para o pensamento de Poincaré. Seguindo a pista do neokantismo francês da segunda metade do século xix, fornecida por António Sergio e Leon Brunschvicg, o autor percebe uma "especificidade francesa", presente em Charles Renouvier e, sobretudo, em Jules Lachelier, no interesse que dispensam à dialética transcendental e na valorização epistemológica da terceira crítica kantiana. Príncipe apresenta, como comprovação da fecundidade da perspectiva interpretativa proposta, passagens de Poincaré que desenvolvem temas, tais como a modelação mecânica dos fenômenos, a estrutura das teorias físicas, a hierarquia das leis e a evolução do status das leis e do sistema das leis, nos quais se encontram óbvias ressonâncias das ideias kantianas.

Fechando o primeiro grupo de artigos, Alejandro Cassini, Leonardo Levinas e Hernán Pringe, incitados pelas ressalvas da nota crítica que Michel Paty dirige à interpretação por eles desenvolvida na introdução ("Einstein y el efecto Compton") à tradução do artigo de Einstein, intitulado "El experimento de Compton" - todos eles publicados no último número do décimo primeiro volume de 2013 de Scientiae Studia -, organizam sua resposta em duas partes. Na primeira, aceitam a crítica de Paty, segundo a qual a análise por eles apresentada limitava-se à reação de Einstein ao experimento de Compton de 1923, sem levar em consideração outros experimentos importantes no processo de confirmação da teoria einsteniana da radiação e para a hipótese da realidade dos quanta de luz. Por isso, na segunda parte do artigo, os autores ampliam o escopo da investigação sobre a posição de Einstein, analisando os experimentos de Bothe e Geiger, e de Compton e Simon, ambos de 1924, que proporcionaram provas adicionais ao experimento de Compton de 1923 para a comprovação da teoria da radiação de Einstein. Entretanto, em apoio a sua tese de que Einstein manteve sempre uma atitude reticente (por vezes, instrumentalista) no que diz respeito à realidade dos quanta de luz - que é uma das teses objetadas por Michel Paty -, os autores comparam a reação de Einstein à pronta recepção e expressão categórica de aprovação de De Broglie.

No quarto artigo, que abre o conjunto de trabalhos de filosofia da ciência, Ivan Ferreira da Cunha se dedica a discutir as propostas de Otto Neurath, destacado integrante do Círculo de Viena, para a questão da unidade da ciência. Para tanto, o autor parte da crítica sociológica de que há uma quantidade enorme de comunidades disciplinares no interior das quais proliferam práticas especializadas que dificilmente satisfazem critérios lógicos, rigorosos e únicos, de cientificidade, tal como supõem os positivistas. Há, assim, uma falta de unidade ("desunidade") intrínseca no que se considera como ciência, quando esta é vista como uma prática comunitária institucionalizada. Entretanto, a aceitação do diagnóstico da crítica pós-moderna não é incompatível com a perspectiva adotada por Neurath da concepção científica do mundo, tomada como uma orientação ou atitude com relação ao mundo e aos problemas na procura por soluções racionais e positivas. Na medida em que Neurath propõe como resposta à questão da unidade da ciência a utopia da ciência unificada, para a qual a unidade é um objetivo dinâmico e em constante construção, a situação atual da ciência e sua desunidade característica podem sempre ser tomadas como um mosaico de disciplinas que se ordenam em vista da coerência da imagem científica do mundo.

O artigo de Alessio Gava volta-se para uma questão interna ao desenvolvimento da epistemologia empirista antirrealista da ciência que corresponde, afinal, à velha tentativa empirista de dar primazia à observação na produção do conhecimento (inclusive científico) e de fundamentar essa mesma observação na percepção (nos atos perceptivos), na qual subjaz um processo de naturalização psicofisiológica da epistemologia. Contudo, como mostra o autor, apesar do empirismo construtivo de Bas Van Fraassen considerar central a distinção entre observável e inobservável - o que se compreende em virtude da tentativa de fundamentar a observação na percepção individual e imediata -, não há nesse autor uma tentativa séria de definir ou proporcionar uma caracterização de observação. O autor pretende contribuir para eliminar essa lacuna (movendo-se nos domínios do demônio do Aufbau de Carnap), propondo, a partir da caracterização de Otávio Bueno das condições contrafáticas da percepção, a definição de observação como percepção verdadeira justificada.

Encerrando o conjunto de artigos, Cristian López e Olimpía Lombardi analisam o conceito de informação - tema atual de grande interesse científico (considerado, por exemplo, como uma nova área de aplicação da MQ) e filosófico, desenvolvendo consistentemente uma crítica às ideias correntes que sustentam a existência de dois tipos distintos de informação: uma clássica, caracterizada pela teoria da informação de Claude Shanon, e outra quântica, que é expressa pela teoria de Benjamin Schumacher. Os autores argumentam que a informação, embora seja expressa por uma definição conceitual precária, deve ser diferenciada da codificação da informação. Segundo o argumento, é na codificação - a qual tem necessidade da intervenção de sistemas físicos concretos (dispositivos materiais) - que cabe fazer uma distinção entre uma codificação clássica, concretizada em sistemas físicos passíveis de descrição pela física clássica, e uma codificação quântica, que se efetua em sistemas adequadamente descritos por estados quânticos. Não há, portanto, dois conceitos de informação mas dois tipos de codificação da informação.

Scientiæ studia publica, na seção de documentos científicos, a tradução da conferência "A doutrina goetheana e newtoniana das cores à luz da física moderna", proferida por Werner Heisenberg em Budapeste, em 5 de maio de 1941. Nela, Heisenberg expõe sua concepção de ciência e sua interpretação do que seria a concepção da natureza vinculada à MQ, articulandoa com a controvérsia entre a doutrina goetheana das cores, do início do século xix, e a óptica de Newton, do início do século xviii, e desenvolvendo uma perspectiva filosófica de índole perspectivista. Em sua introdução, Alexandre de Oliveira Ferreira procede a uma ampla contextualização, situando a conferência na evolução intelectual do próprio Heisenberg, no contexto científico da época, que é de consolidação da mecânica quântica moderna, no contexto ideológico, tratando da "ciência alemã", e no contexto filosófico, com a consolidação da interpretação de Copenhagen.

Fecham este número de Scientiæ studia duas resenhas. Na primeira, Lorenzo Baravalle discute o livro Constructing the world de David Chalmers, fornecendo apoio na literatura para que o leitor possa seguir de modo inteligível o desenvolvimento criativo de uma linha de pensamento que encontra sua inspiração no Aufbau de Carnap, movendo-se este trabalho de metafísica epistemológica nos domínios do demônio da determinação lógica completa. Na segunda resenha, Antonio Augusto Passos Videira apresenta o livro de história da mecânica quântica em sua relação com a filosofia, Quantum dissidents: rebuilding the foundations of quantum mechanics (1950-1990), de Olival Freire Júnior, resumindo o conteúdo dos nove capítulos da obra, com vistas a despertar seja o interesse do historiador em aprofundar-se na história da MQ, seja o interesse dos próprios físicos em virtude da exposição pedagógica dirigida a mostrar a relevância da área de fundamentos no desenvolvimento da MQ.

Pablo Rubén Mariconda
editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015
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