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Editorial

Editorial

Todos os textos publicados neste número de Scientiæ udia tomam como objeto, de um modo ou de outro, a tecnologia ou aspectos importantes da dimensão técnica. Mesmo o artigo inicial, que aborda as concepções de David Hume e Charles Darwin acerca da capacidade humana e animal de produzir e reconhecer inferências causais evidentemente, um tema da epistemologia geral , mantém-se vinculado ao tema central deste número, pois faz, em particular, um interessante contraponto à reflexão de Martin Heidegger sobre a causalidade, apresentada no documento científico. O número move-se, a partir do segundo artigo, de uma reflexão nitidamente sociológica sobre a origem, na obra de Georg Simmel, da crítica à tecnologia na teoria social, para a fronteira entre a sociologia e a filosofia por meio de uma apresentação da estreita conexão entre a ciência, a tecnologia e a sociedade, chegando, no documento científico, ao texto propriamente filosófico (ontológico-histórico) de questionamento da tecnologia. A resenha faz uma rápida passagem às implicações políticas das aplicações biotecnológicas da pesquisa genética contemporânea.

Abre o número o artigo de José Claudio Morelli Matos que compara as idéias de David Hume e Charles Darwin, procurando mostrar a convergência entre ambos no tratamento dado à capacidade causal, o qual tende a supor a existência de uma continuidade entre a capacidade cognitiva humana e a de outros animais, em uma direção naturalista, segundo a qual a natureza é governada por leis e regularidades, sem a existência de um plano, nem de um desígnio.

Ambos autores vão assim na direção da dessacralização da natureza, ao mesmo tempo em que apontam para uma animalização do humano. No segundo artigo, José Luís Garcia apresenta a originalidade (e radicalidade) da reflexão de Georg Simmel sobre a tecnologia, chamando a atenção para o fato de que seu pioneirismo nessa reflexão foi descurado pela sociologia e pela filosofia da tecnologia. Para mostrá-lo, o autor contextualiza o pensamento de Simmel sobre a tecnologia em seu tempo, para em seguida dedicar-se ao aspecto diferenciador de apreender a realidade social pela mediação de objetos ou artefatos, revelando nessa reflexão dois aspectos significativos: a compreensão da tecnologia como sistema cultural e a antecipação da tese da autonomização da tecnologia. No artigo final, Tatiana Schor caracteriza a ciência, seguindo Hugh Lacey, como um padrão de racionalidade que conduz à explicitação de uma dupla relação de explicação e de desenvolvimento entre a ciência e a tecnologia, mostrando que a força desse padrão de racionalidade está nos laços estabelecidos entre os valores cognitivos seguidos pela ciência e pela tecnologia e os valores sociais tencionados nas aplicações e, ao mesmo tempo, como esse amálgama entre ciência e técnica, característico da modernidade, está imbricado na sociedade. Tendo por base o quadro exposto, a autora passa a um estudo de caso, analisando o experimento de grande escala da biosfera-atmosfera na Amazônia, que é revelador das dificuldades enfrentadas pelos projetos de cooperação científica internacional, concernentes às questões ambientais que envolvem aspectos políticos (internacionais) de soberania dos Estados nacionais.

Scientiæ udia publica, como documento científico deste número, a tradução do texto de Martin Heidegger de questionamento da técnica, escrito em 1952, o qual é visto por alguns como pertencente à corrente pessimista da filosofia da tecnologia, pois tenderia a ver a tecnologia como um mal ou um sintoma de decadência cultural; o que é matizado por Franklin Leopoldo e Silva, na introdução ao texto traduzido, ao mostrar que Heidegger não se alinha aos que consideram que a técnica conduz à perda do humano ou a sua inevitável alienação. O autor mostra como, ao inserir a reflexão na matriz grega, Heidegger consegue passar da concepção usual da técnica como simples determinação instrumental da causalidade para a concepção da técnica como desocultamento (não-natural), apresentando a seguir a vinculação entre o modo de desocultamento do homem moderno e a representação moderna da verdade e da ciência experimental (aplicada), para chegar à caracterização da "armação" como modo próprio de desocultamento correspondente à essência da técnica moderna.

Finalizando este número de Scientiæ udia, Messias Basques resenha livro do antropólogo americano Paul Rabinow, que se debruça sobre uma trama que envolve nações, comércio, pacientes e genética, investigando o complexo jogo de interesses, relações e concepções que direcionam as pesquisas médicas modernas. O livro faz um estudo de caso do fracassado projeto conjunto, proposto em 1993-1994, entre uma companhia privada americana e o mais avançado laboratório público francês de genética, que visava o desenvolvimento de uma pesquisa que conduzisse à descoberta dos genes do diabetes, mas que envolvia a transferência de material genético humano da França para os EUA, motivo pelo qual a implementação do projeto foi impedida pelo governo francês. O caso é, como mostra o resenhista, revelador da dimensão política (internacional) das pesquisas genéticas aplicadas à medicina.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Set 2007
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