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Entrevista com Terry Shinn

ENTREVISTA

Entrevista com Terry Shinn* * Entrevista realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 07 de dezembro de 2007 e traduzida por Pablo Rubén Mariconda.

Pablo Rubén Mariconda

Professor Titular de Filosofia da Ciência do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, Brasil. ariconda@usp.br

Terry Shinn é diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (cnrs), sediado na Maison des Sciences de l'Homme em Paris, leciona em nível de doutorado na Sorbonne e na École des Hautes Études em Sciences Sociales. Dentre seus temas de análise estão: estudos sociológicos sobre a pesquisa tecnológica, história e sociologia da educação científica e técnica, o crescimento da pesquisa industrial, as interações entre indústria e universidade nos séculos xix e xx, e as origens e a evolução da nanociência e da nanotecnologia. Suas publicações incluem: Instrumentation between science, state and industry, com B. Joerges (Ed.), 2001; Controverses sur la science. Pour une sociologie transversaliste de l'activité scientifique, com P. Ragouet, 2005 [trad. bras.: Controvérsias sobre a ciência. Por uma perspectiva transversalista da atividade científica. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34. No prelo.]; Pragmatic construction of reality, com J. Kueppers e J. Lehnard (Ed.), 2006; e Research-technology and cultural change, 2008.

Como está sendo a experiência de estar no Brasil para apresentar duas séries de conferências no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo?

Está sendo uma experiência bastante interessante e positiva em dois níveis. Em primeiro lugar, é uma oportunidade para falar com muitos colegas com formações diversas sociologia, ciência política, antropologia e obviamente, de modo um pouco mais setorial, filosofia , alguns dos quais possuem perspectivas que são bastante diferentes de minha própria perspectiva. Mas, em segundo lugar, penso que tem sido mais significativo para mim, não simplesmente a experiência de ser capaz de expressar os resultados de minha pesquisa mais recente para um público tão variado, mas de ter tido a oportunidade de ser submetido a certo número de questões, formuladas a partir dessa variedade de perspectivas, que me forçam a levar adiante a pesquisa. Assim, tem sido uma experiência ativa, que me permite pensar acerca de novas coisas e muitas das questões levantadas durante os seis seminários têm exigido que eu pense mais profundamente acerca de temas relacionados, que até aqui ou eu tinha deixado de lado com sucesso ou aos quais eu não tinha dado até aqui séria atenção. Em suma, trata-se de uma estadia na qual tenho constantemente sido forçado a pensar mais profundamente sobre um número de assuntos relacionados àqueles nos quais me especializei nos últimos dez ou quinze anos.

O que você considera ser o background, o pano de fundo, de sua pesquisa e como ele serve de base para as duas séries de conferências aqui apresentadas?

A perspectiva a partir da qual falo pressupõe alguma percepção da história, da filosofia e da sociologia da ciência. Acredito que, para empreender efetivamente pesquisas em história, filosofia e sociologia da ciência, é preciso ter sensibilidade e, em certa medida, estar informado acerca dos conteúdos da ciência sobre a qual se está trabalhando ou se pretende trabalhar. Uma das condições-limite de minha pesquisa é que ela se restringe a questões de física, nas quais tenho alguma competência. E penso que, de modo a entender o que está acontecendo [em certo domínio científico], é preciso entender, em alguma medida, as questões cardeais e os estados intelectuais que estão envolvidos nas práticas dos indivíduos estudados. Em outros termos, é preciso estabelecer condições-limite nos tópicos da pesquisa que se está empreendendo. E claramente uma das condições-limite da minha pesquisa é estudar a física sob a perspectiva da história e sociologia da ciência.

Existe outro aspecto geral de minha pesquisa que aparece, como se verá, em todas as conferências. Eu estou interessado no problema das trajetórias intelectuais e profissionais e, mais especificamente, nas correspondências que se pode identificar entre a trajetória intelectual e a trajetória profissional. Penso que o intelectual e o socioprofissional devem ser distinguidos, mas, ao mesmo tempo, eles se tornam inteligíveis somente quando são vistos sob a perspectiva de uma correspondência. Estou sempre procurando por correspondências entre as trajetórias intelectuais e as trajetórias socioprofissionais. Aqui é onde intervém um tema constante em minha pesquisa, porque é aqui que vejo uma fronteira entre a operação do elemento intelectual e a operação do social; procuro por divisas que permitam um vínculo (linkage) entre o intelectual e o social. Ou seja, estou procurando por uma espécie de mecanismo transversal que permita a mobilidade de ida e vinda entre os fatores intelectuais e socioprofissionais e, evidentemente, suas inter-relações enquanto elementos organizacionais e institucionais.

Uma vez que sua perspectiva está bem clara, gostaria que você falasse sobre o que é feito na primeira série de conferências, uma espécie de sumário geral delas, de modo a dar-nos, se possível, uma visão de sua unidade.

As primeiras três conferências tratam muito especificamente da centralidade das fronteiras no interior da ciência e entre a ciência e as outras formas de atividades sociais.

Na primeira conferência, trata-se de dar uma resposta à rejeição ou à diminuição de importância das fronteiras na historiografia e na sociologia da ciência recentes. Estou, portanto, procurando por uma diferenciação e estou em oposição aos estudos dos últimos vinte anos, feitos por certa sociologia da ciência e certa história da ciência, tentando argumentar contra a idéia de que as fronteiras desapareceram ou estão em processo de desaparecimento, entre as ciências como um todo e as outras formas de atividades sociais. Com efeito, a primeira conferência pode provavelmente ser resumida como uma defesa do entendimento das relações da ciência com outras formas de atividade. Uma concepção que mantém as fronteiras. Meu argumento é, com efeito, contrário a muito do pensamento pós-moderno: ao invés do desaparecimento das fronteiras, estamos vivendo uma transformação cultural caracterizada pela multiplicação de fronteiras e foi esta multiplicação de fronteiras que produziu uma espécie de ilusão óptica de que as fronteiras estariam desaparecendo. Meu argumento é de que estamos assistindo uma multiplicação de fronteiras e que isso torna cada vez mais necessário que se atravessem fronteiras. Particularmente, a cultura e a ciência estão inventando mecanismos novos e adicionais que permitem aos praticantes atravessar as fronteiras no interior da ciência e atravessar igualmente fronteiras extracientíficas.

A segunda conferência continua com essa questão das fronteiras em termos da teoria do campo científico, formulada por Bourdieu em 1975. Para mim, esse conceito de campo científico é absolutamente essencial, porque ele identifica o que ocorre no interior da ciência e especifica certo número de características que distinguem a ciência da não-ciência e, além disso, nos artigos de 1975 e 1976 de Pierre Bourdieu, existe alguma incerteza, mas não ambigüidade, vagando por sua mente quanto a se deve falar em termos de ciência no singular ou de ciências no plural. Ele se pergunta: Qual é a unidade básica do campo científico? A unidade básica do campo científico é a ciência como um todo? É a unidade da ciência ou é a desunião da ciência, para usar a linguagem de Peter Gallison? Este é um problema fundamentalmente não resolvido nos trabalhos de Bourdieu e que fica sem solução em suas conferências finais no Collège de France.

Na terceira conferência, procuro, em algum grau, ir à raiz dessa questão acerca da relação entre homogeneidade e diferenciação na ciência. Meu tratamento dessa questão se dá em termos da observação histórica do estabelecimento de uma multiplicidade de regimes de produção e distribuição de pesquisa científica e tecnológica. De modo que defendo a existência de uma multiplicidade de regimes, cada um com suas próprias diferenciações, sua própria divisão de trabalho, sua própria produção e distribuição de conhecimento e cada um desses regimes relacionado a um conjunto histórico específico de circunstâncias. Podemos enumerar esses regimes em sua ordem histórica de surgimento: o regime disciplinar, o regime utilitário, o regime transitório, que descreve em certa medida relações emergentes cambiantes entre a empresa e a ciência e prepara o surgimento do regime transversal de produção e distribuição de pesquisa. Ora, comprovamos empiricamente que idéias, materiais e homens movem-se a partir da ciência. Eles estão simultaneamente ligados a certo número de questões de pesquisa, possuem um conjunto específico de habilidades de pesquisa e cada regime tem seus próprios critérios de avaliação; e, ainda assim, existe movimento e, mais importante, esse movimento está acompanhado de inteligibilidade entre os regimes.

Minha hipótese é que o final do século xix deu origem ao desenvolvimento de um regime adicional, o regime transversal de pesquisa científica e tecnológica, e que esse regime continua a produzir artefatos, divisas genéricas na forma de artefatos ou de modelos mentais que permitem a inteligibilidade entre os regimes porque os praticantes de todos eles, por meio de adaptação, podem adotar os produtos instrumentais em termos de divisas tais como o micro fio detector, certos modelos computacionais de linguagens e lasers há uma enorme lista de divisas científicas genéricas que atravessam as fronteiras de um regime específico e que permitem aos praticantes, em cada regime, entender até certo grau o que está ocorrendo em outros regimes, atravessar as fronteiras entre regimes e gerar inteligibilidade entre os regimes. Em suma, o que a terceira conferência reivindica é que há na ciência transversalidade suficiente para produzir coesão e inteligibilidade transversal; e isso significa que no interior da própria ciência não se pode falar senão de um certo grau de unidade, caso contrário a unidade da ciência torna-se absolutamente totalitária.

Assim, a ciência é caracterizada, segundo a terceira conferência, pela autonomia, um aspecto de diferenciação do trabalho científico, mas apenas pela autonomia relativa; o que significa uma combinação de partilha do que é comum, de coesão e de inteligibilidade transversal, que permite algum grau de diferenciação no interior da ciência. Outro aspecto é que diferenciação e integração não são opostas, elas constituem, em meu modelo de regimes de pesquisa, uma complementaridade: uma é o complemento da outra. É isso que permite tanto certa medida de unidade na ciência, a própria habilidade no interior da ciência, como também lança uma ponte entre a ciência e a não-ciência. Essa é a conclusão última das três primeiras conferências.

Além dos temas, que são obviamente diferentes, existe alguma diferença que mereça ser mencionada entre a primeira série de conferências e a segunda?

Penso que a primeira coisa importante a fazer é estabelecer o status intelectual, o status de pesquisa, dessa segunda série de conferências, em comparação com a primeira série. As primeiras conferências são o fruto de uma década de reflexão e pesquisa empírica. Por outro lado, o mundo da nanociência e da nanotecnologia é um mundo que apresento no próprio processo de investigação, e trata-se de um projeto coletivo, de modo que seria mais apropriado falar de nós, ao invés de eu, porque o projeto foi concebido, desenhado e está sendo empreendido por mim e uma colaboradora, Anne Marcovitch, de modo que o pensamento que apresento aqui é efetivamente o produto de pesquisa empírica e de muita reflexão conjunta. Trata-se de um projeto conjunto e deve ser visto como bastante preliminar e como levantando mais questões do que aquelas que fomos capazes de responder até aqui.

Você poderia apresentar-nos brevemente do que trata, mais especificamente, a segunda série de conferências relativas à nanociência e à nanotecnologia?

A primeira conferência da série lida, muito especificamente, com a multiplicidade de backgrounds existentes no nanomundo. E eu uso expressamente a expressão "nanomundo", porque somos imensamente sensíveis à extrema habilidade com que são feitas as diferenciações que caracterizam o mundo da nanopesquisa. Essas diferenciações são freqüentemente negligenciadas e desejo chamar imediatamente a atenção para duas diferenciações fundamentais que constituem um dos padrões subjacentes de nossa reflexão sobre o nanomundo. A primeira diferenciação, que constitui uma questão que se origina permanentemente e da qual Anne Marcovich está convencida, encontra-se na dinâmica que subjaz ao nanomundo da biologia e ao nanomundo da física, que constitui e reflete a diferenciação de fronteiras em condições-limite que subjazem à dinâmica entre o bionanomundo e o nanomundo da física. Embora os dois nanoreinos compartilhem características comuns, eles são, provavelmente, diferentes em aspectos importantes. Há, por conseqüência, uma distinção fundamental que deve ser mantida em mente ou, pelo menos, deve ser introduzida como uma forte hipótese quando se pensa acerca do nano. O nano é um campo extraordinariamente heterogêneo. A segunda diferenciação, que deve ser mantida, é a distinção entre a nanociência e a nanotecnologia, muito embora partilhem certas características comuns. Se considerarmos muito simplesmente os muitos componentes que produzem o reino do nano, perceberemos que se presta muita atenção ao discurso do nano. Cientistas, elaboradores de políticas científicas, políticos e, particularmente, jornalistas e cidadãos, que são conscientes dos perigos dos inventos nano, elaboram um discurso que tem despertado muito interesse, mas, ao mesmo tempo, um grande problema, pois em qualquer discussão sobre o nanoreino, existem tantos elementos envolvidos que não sabemos, em geral, acerca do que estamos falando. Falamos acerca de tudo; o que significa que não falamos de nada com precisão. Uma de nossas principais preocupações é tentar desenvolver uma metodologia que nos permita falar mais precisamente acerca da nanociência e da nanotecnologia. No caso da nanociência, pode-se facilmente conseguir essa delimitação, estudando particularmente laboratórios de nanociência. A situação é mais complicada com a nanotecnologia.

De qualquer modo, a primeira conferência trata do nascimento do nanoreino, que é, em si mesmo, extraordinariamente diversificado. A idéia do nano é um complexo de representações visionárias da parte de Drexler, que constitui, nos anos 1970, uma resposta aos problemas da diminuição dos recursos físicos em um mundo que demanda cada vez mais recursos e que experimenta uma explosão demográfica. Ele viu uma resposta para esse problema do esgotamento dos recursos em termos de nanomanufatura. Outra fonte muito importante foi, obviamente, a capacidade de cristalógrafos e metalúrgicos de produzir novas categorias de substâncias. Anteriormente, os físicos, os químicos e assim por diante lidavam com materiais relativamente grandes, medindo muitos metros de diâmetro e isso limitava o tipo de pesquisa que se podia realizar. Mas nos anos 1970 e 1980, acontece uma verdadeira revolução nas ciências dos materiais, com a produção de novas categorias de materiais que conseguem mudar, potencialmente, os processos tecnológicos, que, por sua vez, passam a oferecer novas formas de informação acerca do mundo físico. Há um desafio epistemológico, proposto por Feynmann em 1959 uma contribuição bastante original , que sugeria que se pode, em verdade, pensar na engenharia, não em termos de componentes macroscópicos, mas realmente em termos de componentes microscópicos. Os átomos podem constituir os tijolos da engenharia e isso pode ser feito na ausência de entendimento, isto é, pode ser feito empiricamente, pode ser feito por processos de ensaio e eliminação. Temos aqui um componente visionário e um componente epistemológico, temos também a introdução de novas categorias de materiais que podem ser experimentadas e usadas nos processos de engenharia e, nos anos 1980 e 1990, passam a existir também novas categorias de instrumentação. Temos aqui novamente uma corrente independente que contribuiu significativamente para o nascimento da nanociência e da nanotecnologia. Desse modo, desde o início, defrontamo-nos com um mundo extraordinariamente assustador e heterogêneo. E, na minha opinião, essa diversidade deu origem, na sociedade, a uma multiplicidade de apresentações, esperanças e medos acerca do nanomundo e originou duas formas de orientação da pesquisa, ou seja, a nanociência, por um lado, e a nanotecnologia, por outro. Assim, segundo uma hipótese bastante forte, embora seja possível falar conjuntamente da nanofísica e da nanobiologia, elas podem realmente ser a conseqüência de dinâmicas suficientemente divergentes que são importantes quando se pretende fazer qualquer generalização, quando falamos da nanociência, da nanobiociência, da nanociência física e, talvez, seja preciso diferenciar entre a nanobiotecnologia e a nanotecnologia física.

Minha segunda conferência desta série trata muito especificamente da característica diferenciadora da nanociência, segundo nossa pesquisa empírica introdutória, empreendida em um grande e importante laboratório da França. A nanociência física deve ser entendida como caracterizada por certo número de características particulares, que a distinguem da física em geral, mas a nanofísica é, ainda assim, fundamentalmente entendida como parte e parcela do rio maior da física. Isso significa que a nanofísica constitui um importante afluente do rio da física quântica; esta é a tese corretamente adotada, uma vez que a nanofísica pode ser caracterizada em termos, não do nascimento de novos conceitos, mas de uma mudança no status de conceitos previamente existentes na física quântica. Por exemplo, durante os anos 1970 e 1980, na visão padrão da física quântica, a importância do conceito e dos fenômenos físicos de confinamento, com os materiais disponíveis para a pesquisa física naquele momento particular, era de tal magnitude que era virtualmente impossível realizar experimentos no contexto de confinamento, o qual significa a existência de substâncias que são efetivamente menores do que o tamanho característico dos fenômenos físicos que estão operando na área confinada. Por exemplo, no caso do elétron, o tamanho físico da dinâmica do elétron é 0,10 nanos.1 1 Ou seja, 0,10 nanômetros. Um metro (m) tem mil milímetros (mm), um milímetro tem mil micrômetros (µm) e um micrômetro tem mil nanômetros (nm). Desse modo, se um elétron está operando em um espaço muito próximo de 0,10 nanos, seu comportamento elétrico e óptico muda radicalmente e poderão ser vistas categorias não usuais, novas e bastante excitantes de comportamento físico. Por conseguinte, na nanociência e, de todo modo, na nanofísica, todos os conceitos estão assumindo novos significados. Não se trata de uma revolução, pois todos os conceitos constituem o paradigma da física quântica, mas da atribuição de novos significados e isso converge com o fato de que temos agora um novo grupo de especialistas, no interior da nanociência, especialistas que não existiam previamente, na síntese bastante especializada de substâncias, não apenas de substâncias na escala nano, mas de substâncias na escala nano com configurações geométricas específicas. Isso permite que se levantem novamente velhas questões de novas maneiras e, simultaneamente, introduz uma nova divisão de trabalho no interior da ciência; o que quer dizer que a física quântica clássica não possuía a divisão de trabalho dos cristalógrafos, dos metalurgistas e dos químicos, que têm aqui um papel especial. Vê-se que não há propriamente uma diferenciação e uma institucionalização específica para o propósito de sintetizar, caracterizar e padronizar cristais. Entretanto, vemos hoje, na nanociência, a origem de uma divisão de trabalho, e essa nova divisão de trabalho introduz novas fronteiras, ainda outras fronteiras, no interior da ciência; fronteiras com as quais se deve lidar, que se deve reconhecer, que se deve sustentar e atravessar. Ora, essa multiplicação de fronteiras no interior da nanociência é, em nossa opinião, uma característica fundamental, uma assinatura da nanociência, de modo que temos nela a manutenção dos teóricos e dos experimentadores, temos um reforço da especialização e da instrumentação já nos referimos ao nascimento de toda uma geração de instrumentos ou seja, temos uma fronteira quase-suplementar no interior da nanociência com a especialização da instrumentação. Tudo isso significa que atravessar fronteiras, que a necessidade de atravessar fronteiras, torna-se parte e parcela muito fundamental da nanociência. Argumentamos que a interdependência de ação na nanociência é extremamente forte e de que isso requer a aceleração das travessias entre frontei-ras e essa aceleração é um fenômeno geral na nanociência, que pode ser constatado pelo aumento no número de artigos dedicados à nanociência, que nos últimos dezessete anos girou em torno de 70 a 100 mil.

Estamos, portanto, falando de uma extraordinária aceleração na produção de informação na nanociência e na nanotecnologia, de modo que podemos estender o conceito de aceleração de Marcovich, do qual temos muitos testemunhos, também para o atravessamento das fronteiras, que se realiza por meio de dois mecanismos, que talvez não sejam peculiares da nanociência, mas que são fundamentais para ela, a saber: um deles é a circulação e o outro é a sinergia. A circulação é um tipo de atravessamento de fronteiras para outra área, com o propósito de obter um tipo específico de informação, uma espécie de incursão em outra região fronteiriça, uma passagem para outra região diferenciada, e depois um retorno pela fronteira à região original e a utilização da informação obtida, o que normalmente encerra o processo. Isso, segundo nossa hipótese, é muito importante e ocorre com alguma freqüência e segundo uma taxa acelerada. Existe outra forma de interação, que é bastante fundamental, a saber, a sinergia que ocorre quando praticantes de duas especialidades, tais como a acústica e a óptica, consideram a possibilidade de uma colaboração para o propósito de resolver algum problema bem definido. Nesse caso, há a combinação, uma combinação ativa, de teorização e instrumentação, ou de habilidades de diferentes áreas, que se reúnem para resolver o problema científico, que é enfrentado, não simplesmente porque dá origem à informação, mas porque origina a multiplicação da informação, ou seja, existe uma espiral ascendente, ocasionada pela interação sinérgica, que conduz a uma estabilização de um tipo de interação entre formas de coordenação.

A existência da sinergia mostra que não há interdisciplinaridade. Somos muito cuidadosos em distinguir a dinâmica da sinergia, que deixa intactas as duas disciplinas referentes iniciais, a óptica por um lado, e a acústica por outro, que são as instâncias que estudamos no laboratório já referido. Não há aqui interdisciplinaridade, mas uma multiplicação de conhecimento que pode ser a base para uma nova comunidade de pesquisa, mas não se trata de uma comunidade interdisciplinar, porque não há integração de conhecimento, mas multiplicação de conhecimento, de modo que cada uma das duas referências de pesquisa mantém suas próprias questões, certa base educacional, seus próprios critérios de avaliação e assim por diante. Para nós, as assinaturas da nanociência são a multiplicação das fronteiras por meio da introdução de novas práticas e de novas divisões de trabalho, a aceleração em atravessar essas fronteiras, comunicação e cooperação de modo a permitir a circulação. Aqui Anne Marcovich tem uma hipótese que está sendo desenvolvida, segundo a qual a circulação pode produzir uma circularidade, que se revela como uma forma mais poderosa, mais estável, de interação do que as sinergias e que, possivelmente, conduz à introdução de novas comunidades de pesquisa, que não devem ser confundidas com a introdução da interdisciplinaridade. Essa é a substância da segunda conferência: a identificação das assinaturas da nanociência; e nosso argumento: a nanociência, onde é diferente, não é fundamentalmente uma forma nova radical de coordenação da prática; ela é um rio que faz parte do rio maior da física quântica.

A terceira conferência põe o foco na nanotecnologia e aqui estamos realmente no seio de uma pesquisa em andamento, tanto mais que tudo o que acabo de dizer sobre as outras conferências, ou seja, nossa pesquisa sobre a nanociência, começou neste ano [2007]. Assim, a pesquisa sobre a nanotecnologia está em curso e entrevistaremos pesquisadores de nanotecnologia nos Estados Unidos em janeiro e fevereiro de 2008. De qualquer modo, há o problema já indicado com relação à nanotecnologia, de que as pessoas dizem e querem dizer quase tudo, quando falam de nanotecnologia. Isso origina medos e sonhos. Existe tal multiplicidade de discursos e eu acrescentaria de atividades na nanotecnologia que realmente não se sabe com alguma precisão científica rigorosa o que constitui a substância da nanotecnologia. Ora, na sociologia da ciência, as premiações são algumas vezes usadas como um método para a identificação de características centrais do domínio da pesquisa. Estamos, portanto, usando o Prêmio Feyneman de Nanotecnologia, um prêmio muito importante para essa área, como indicador do que é geralmente visto, no interior da comunidade de nanotecnologia, como boas questões postas para a comunidade, como indicador do modo como essas questões devem ser enfrentadas, de qual é a tecnologia ou técnica de base que é apropriada, de qual é a epistemologia que constitui a prática, de como as pessoas se comunicam (a extensão da comunicação no interior da comunidade), de que tipos de relações ocorrem entre os nanotecnólogos e assim por diante. Entrevistarei indivíduos que são geralmente vistos por ampla maioria da comunidade nanotecnológica como bons exemplos do que se deve visar na nanotecnologia, de como se deve conduzir a pesquisa nanotecnológica. Com base nessa evidência documental, será possível discernir a emergência de certo número de orientações que se pode conjecturar que caracterizam o campo.

Há, entretanto, algo que já é claro: alguns sociólogos e muitos jornalistas dizem que a nanotecnologia é interdisciplinar. Essá é uma caracterização bastante vaga da nanotecnologia. Meu exame preliminar dos vencedores do Prêmio Feyneman de Nanotecnologia mostra que bem mais do que a metade deles é químico, simplesmente químico; e isso, evidentemente, não é interdisciplinaridade. Um segundo grupo bastante amplo, de aproximadamente 1/3, está envolvido com o desenvolvimento de recursos computacionais, são cientistas computacionais; e existe um grupo bastante pequeno que é interdisciplinar ou, antes, que se descreve como biofísico, bioquímico, físico-químico e assim por diante. A química parece, então, dominar a área, a química e a engenharia química, de modo que parecem existir orientações epistemológicas muito específicas no campo da nanotecnologia. Uma dessas orientações é que a pesquisa está fortemente focada na computação, isto é, no uso de supercomputadores para experimentar aquilo que está baseado no entendimento da natureza, para testar os modelos computacionais desenvolvidos para descrever as leis físicas, para ver o que é factível e o que não é factível em termos dos sistemas de engenharia, nos níveis molecular e atômico. Assim, a maior parte da pesquisa é computacional e origina as possibilidades do que pode eventualmente ser feito materialmente. Portanto, grande parte do trabalho não é material, mas é matemática ou está baseada em modelos. Toda uma série de assuntos e de orientações, que utilizam essas técnicas, está sendo explorada na nanotecnologia e, muito claramente, a partir do final dos anos 1990, ou em 2001 e 2002, a biologia se torna dominante. Com isso, a biologia torna-se o foco central da nanotecnologia, ou seja, desses exercícios computacionais, desses experimentos computacionais, pode-se quase dizer. A pesquisa tem como foco a possibilidade de mudar os sistemas biológicos em termos de combinações de DNA, combinações de RNA, enzimas etc., de modo a modificar o mundo material e aumentar a modificação do mundo natural, dirigindo-se para o desenvolvimento de máquinas moleculares, isto é, máquinas eventualmente capazes de realizar alguma espécie de tarefa ou performance ou incorporar uma linguagem. A biologia constrói máquinas moleculares que podem realizar alguma espécie de trabalho para você e para mim, podem servir para a produção de substâncias, para limpar o ambiente, para produzir novos tipos de energia, para produzir novas categorias de mercadorias, para melhorar a saúde etc.

Vemos, portanto, que há muitas visões, representações, envolvidas aqui, mas o trabalho posterior a 2001 e 2002 mostra que a nanotecnologia adotou, como se pode claramente ver no Prêmio Feyneman de Nanotecnologia, a orientação para a aplicação da simulação computacional e de técnicas computacionais a substâncias biológicas para toda a engenharia: uma espécie de nanoprograma. Essa é a tendência dominante nessa área, hoje em dia. Penso que, anteriormente, o trabalho também era em grande medida computacional, mas não com orientação exclusivamente computacional e por vezes, no período entre 1990 e 2001, existia um componente físico, em termos da eletrônica envolvida. Mas o que parece muito importante em todo esse trabalho, desde a origem do Prêmio Feyneman em 1993, é a produção de nanosistemas, que são capazes de produzir hidrogênio e, como se pode imaginar, temos um instrumento auto-replicante, capaz de produzir grandes quantidades de hidrogênio, e, evidentemente, o impacto que isso terá na tecnologia e na cultura contemporâneas.

Em minha visão e esta é a visão que proponho o trabalho da nanotecnologia tem seu foco na produção de efeitos. Outras pessoas, que são pensadores profundos, e que consideram as fronteiras particularmente na área da nanobiotecnologia, argumentam diferentemente. Refiro-me a pessoas, tais como Bernadette Bensaud, que argumentam que as nanotecnologias visam, uma vez mais, as condições de limite da biologia: o objetivo seria produzir funções. Essa não é minha posição. Minha observação é que a preocupação da nanotecnologia é produzir efeitos, isto é, afirmo que é característico dos nanotecnólogos modificar, de modo controlado, os componentes internos a uma molécula; e essa modificação dos componentes, digamos, a relação entre dois conjuntos de DNA, seja para mudar a configuração geométrica da molécula biológica, seja para adicionar um componente a um cristal que muda seu comportamento óptico e elétrico, é o foco dos nanotecnólogos. Ora, isso não é modificar necessariamente a função, a função controlada, da amostra de material. A modificação da função controlada tem, em minha opinião, uma espécie de amplo efeito no lugar que o material ocupa em um contexto mais amplo; mas controlar o efeito da operação do material em um contexto mais amplo não é o objetivo da nanotecnologia hoje. Seus objetivos são bastante mais restritos. Se o pesquisador consegue mudar a arquitetura do material, isso já parece em si mesmo uma realização proveitosa, suficiente em si mesma para vencer o prêmio. Penso, portanto, que, no momento presente, o objetivo da nanotecnologia é mudar efeitos, modificar efeitos, mudar as arquiteturas reais dos nanomateriais e não produzir uma transformação funcional no material e, certamente, não se objetiva obter qualquer impacto no mundo real. Com certeza, esses são os objetivos de longo termo visados pela nanotecnologia, mas eles estão longe de conseguir progresso em uma máquina que possa realizar trabalho e, com efeito, em quase todas as instâncias, a pesquisa nem mesmo conduz a alguma espécie de transformação da função no interior do material; podemos, com sucesso, mudar a arquitetura, a geometria, podemos aumentar a extensão da elasticidade dos componentes no interior dos materiais, mas para mim e para minha interpretação, isso não constitui uma função, mas um efeito.

Meu comentário final sobre a nanotecnologia é, de algum modo, epistemológico. Na nanociência, existe muita fala concernente à importância das imagens (imagery). E isso é verdadeiro no laboratório que estamos estudando, e há a intenção de tentar entender em profundidade a importância das imagens e isso pode conduzir a outra assinatura da nanociência. Na nanotecnologia, há indicações muito fortes, por exemplo, Simmond, que ganhou o Prêmio em 1995, afirma que suas intuições, que a representação que conduziu seu trabalho sobre a alteração de células biológicas, inspiravam-se no trabalho artístico de Hescher. Digamos, portanto, que as imagens parecem ser importantes, pelo menos, para alguns nanotecnólogos.

A questão das trajetórias intelectuais e socioprofissionais dos atores parece ter bastante importância em sua análise; nesse sentido, gostaria que você nos falasse um pouco das influências em seu trabalho e de sua própria trajetória.

Existem duas pessoas que são pensadores muito importantes e que me influenciaram desde o início de minha carreira intelectual. A primeira influência é a de Pierre Bourdieu. Seu conceito de campo científico, introduzido em 1975 e 1976, porque me permite pensar específica e simultaneamente em termos das dinâmicas intelectuais e sociais que ocorrem na ciência.2 2 La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progrès de la raison. Sociologie et Sociétés, 7, 1, p. 91-118, 1975; Le champ scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2-3, p. 88-104, 1976. 3 Forman, P. Weimer culture, causality and quantum theory, 1918-1927. Historical Studies in the Physical Sciences, 3, p. 1-115, 1971. E minha perspectiva tem sido sempre a invisibilidade das operações intelectuais e das condutas sociais, e meu pensamento tem sido sempre em termos de trajetórias, isto é, de trajetória intelectual e trajetória social, e da conexão entre as duas. Pierre Bourdieu sempre reforçou essa minha inclinação de trabalhar nessa direção e apresentou-me originalmente a idéia de pensar nisso não necessariamente em termos lineares ou causais, mas em termos de uma correspondência. Em suma, a produção de Bourdieu e meu contato pessoal com ele serviram como uma inspiração e proporcionaram, pelo menos, uma porção do vocabulário que se tornaria central e característico de meu trabalho, de modo que sou muito agradecido por sua contribuição para meu trabalho.

A segunda pessoa, que teve talvez o maior impacto sobre meu trabalho e que é provavelmente um dos pensadores mais originais na área da história da ciência e da tecnologia da segunda metade do século xx, é Paul Forman. Seu trabalho teve influência sobre mim, porque ele pensou com muita profundidade acerca das relações entre a ciência e a cultura; e isso forçou-me a pensar para além das ciências sobre as quais trabalho, forçou-me a tratar dessas questões mais amplas que são as das transformações culturais e as mudanças na ciência; o que foi tornando-se cada vez mais importante em meu trabalho. O entendimento que Paul Forman tem da ciência é ininteligível, se não se entende as operações internas, os detalhes das operações internas, do que está acontecendo na ciência. Isso é maravilhosamente demonstrado em um de seus primeiros artigos de 1971 sobre a causalidade,1 onde ele insiste numa direção que, para mim, é fortemente convergente com a influência de Bourdieu sobre mim, que insiste na necessidade de estabelecer documentalmente não simplesmente argumentar a favor, mas documentar de modo muito preciso os vínculos entre o que acontece intelectualmente na ciência e as mudanças que ocorrem na sociedade: como a cultura impacta na ciência e então, reciprocamente, como as mudanças na ciência têm um efeito na transformação da cultura.

Esses são os dois importantes estudiosos que tiveram definitivamente impacto sobre meu trabalho: ambos são rebeldes intelectuais e serviram de inspiração para minha trajetória intelectual.

  • 2 La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progrès de la raison. Sociologie et Sociétés, 7, 1, p. 91-118, 1975;
  • Le champ scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2-3, p. 88-104, 1976.
  • 3 Forman, P. Weimer culture, causality and quantum theory, 1918-1927. Historical Studies in the Physical Sciences, 3, p. 1-115, 1971.
  • *
    Entrevista realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 07 de dezembro de 2007 e traduzida por Pablo Rubén Mariconda.
  • 1
    Ou seja, 0,10 nanômetros. Um metro (m) tem mil milímetros (mm), um milímetro tem mil micrômetros (µm) e um micrômetro tem mil nanômetros (nm).
  • 2
    La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progrès de la raison.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2008
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