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Editorial

Editorial

Este segundo número do quarto volume de Scientiæ udia está dedicado, com uma única exceção, ao que se pode chamar genericamente de desenvolvimento histórico-conceitual do mecanicismo. O primeiro artigo dedica-se à formulação do programa mecanicista newtoniano do início do século xviii, que corresponde à generalização da aplicação do conceito de força, enquanto o segundo situa-se no outro extremo do desenvolvimento do mecanicismo, tematizando a constituição do conceito de campo no período entre os séculos xix e xx que antecede à formulação da teoria da relatividade em 1905. O documento científico está intimamente ligado a esses textos, realizando uma espécie de arqueologia da concepção mecanicista, ao publicar um manuscrito composto na primeira metade do século xvii, que se encontra, portanto, na origem do mecanicismo. De sua parte, o terceiro artigo situa-se, de pronto, em outro plano, dedicando-se a tema atual da filosofia da ciência. Embora seu tema não seja o mecanicismo, também ele apresenta, em sentido bastante preciso, uma história conceitual. Nele, submete-se a uma análise detida a argumentação anti-realista contrária ao chamado "argumento do milagre" em favor do realismo científico.

No primeiro artigo, Favio Ernesto Cala Vitery discute a famosa questão 31 – a questão final e a mais extensa – incluída na segunda edição inglesa de 1717 da Óptica, a última publicada em vida por Sir Isaac Newton. Vitery argumenta, por um lado, que ela pode ser considerada como uma proposta de extensão do modelo da gravitação universal ao conjunto dos fenômenos naturais, constituindo-se no paradigma das forças de ação a distância, que visa a unificação de todas as forças que parecem atuar na natureza, e apresenta, por outro lado, as dificuldades que cercam um tal programa de unificação, tendo em vista o estado prematuro de desenvolvimento das ciências experimentais na direção baconiana e a resistência à matematização da natureza nos moldes newtonianos. O artigo de Valter Alnis Bezerra, uma história conceitual da teoria do campo, aborda o desenvolvimento da crise da imagem mecanicista da natureza pondo no centro de sua análise a figura de James Clerck Maxwell, principalmente no período de construção da teoria eletromagnética (1856-1864), pela qual são unificados, sob um mesmo sistema conceitual, os fenômenos elétricos e os magnéticos. Bezerra analisa as realizações de Maxwell sob um duplo movimento: em direção ao passado, para encontrar em Michael Faraday a origem do conceito de campo no contexto da polêmica sobre as dificuldades ligadas à força de ação a distância, no sentido de caracterizar o alcance do programa de pesquisa eletromagnético de Maxwell; em direção ao futuro, para avaliar a posição ocupada por Maxwell no aprofundamento da crise do mecanicismo e no desenvolvimento da desmecanização da física. No artigo final, Silvio Seno Chibeni submete a um exame crítico a tese de Larry Laudan, segundo a qual a desconfiança cética no realismo científico esteve baseada na confiança de que a afirmação do conseqüente é efetivamente uma falácia, e defende da crítica anti-realista o argumento do milagre, formulado por Hilary Putnam em defesa do realismo científico, argumento segundo o qual ou o sucesso da ciência prova a realidade daquilo de que fala a ciência ou é um milagre que as hipóteses científicas correspondam aos dados observáveis. Dessa perspectiva, Chibeni submete a uma análise detida todo um conjunto de argumentos anti-realistas céticos, para os quais o argumento do milagre não é mais do que simples falácia, para mostrar que esse argumento resiste às críticas e captura uma intuição epistemológica legítima e relevante para a atividade científica.

Scientiæ udia tem a satisfação de publicar a tradução de Guilherme Rodrigues Neto do original em inglês de um pequeno tratado contido nos fólios 297-308 do conjunto de manuscritos Harley Ms. 6796. Esse manuscrito, não titulado, de 12 fólios denominado, a partir de Ferdinand Tönnies, A short tract on first principles, foi atribuído por ele e por toda uma tradição de intérpretes a Thomas Hobbes, até que, recentemente, outro grupo de estudiosos reivindicou, com base em exame especializado, tratar-se de um manuscrito que tem a caligrafia de Robert Payne. Em sua introdução, Guilherme Rodrigues Neto faz uma apresentação do texto dividida em duas partes. Na primeira, faz uma reconstrução exaustiva do debate acerca da autoria e da datação do manuscrito, aceitando a sugestão de Tönnies que a situa por volta de 1630 e mostrando que é alta a probabilidade de que Hobbes tenha desempenhado um papel fundamental para sua existência, embora não se possa obter uma prova cabal para a autoria. Esse é o motivo pelo qual vem entre colchetes o nome de Thomas Hobbes como autor do manuscrito. Na segunda parte, enfrenta-se a principal objeção de conteúdo para a atribuição do manuscrito a Hobbes, a saber, de que a teoria, que o Breve tratado fornece de como as imagens dos objetos chegam ao sujeito da percepção por meio da transmissão das species ou dos simulacros dos objetos, representaria a sobrevivência de uma teoria tradicional incompatível com as concepções ópticas mecanicistas posteriores de Thomas Hobbes. Rodrigues Neto mostra que a teoria da transmissão das species já está adaptada, no próprio texto manuscrito, a uma concepção óptica mecanicista, e que é bem possível a evolução de uma teoria desse tipo para uma teoria da transmissão em um meio, defendida por Hobbes em seus escritos posteriores.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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