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Política social entre a hegemonia e a dependência

Social policy between hegemony and dependency

Resumo:

Este artigo visa apresentar as principais determinações da política social na conformação da hegemonia burguesa, com ênfase nas realidades latino-americana e brasileira marcadas pela dependência. Para isso, resgata referências que se debruçam sobre a configuração particular do mercado de trabalho e a centralidade da transferência de valor nas economias dependentes, evidenciando as limitações impostas à materialização das políticas sociais e da hegemonia.

Palavras-chave:
Política Social; Hegemonia; Dependência; Estado; Transferência de Valor

Abstract:

This article aims to present the main determinations of social policy in shaping bourgeois hegemony, with an emphasis on Latin American and Brazilian realities marked by dependency. To this end, it retrieves references that focus on the particular configuration of the labor market and the centrality of value transfer in dependent economies, highlighting the limitations imposed on the materialization of social policies and hegemony.

Keywords:
Social Policy; Hegemony; Dependency; State; Transfer of Value

Introdução

Este artigo trata da política social na conformação da hegemonia burguesa, realçando os estudos sobre Estado, classes e políticas sociais que auxiliam na compreensão de nossa realidade concreta. No capitalismo sui generis latino-americano, a política social adquire traços específicos em razão da herança do colonialismo e, posteriormente, da dependência que se funda após as independências formais sob as determinações da transferência internacional de valor. É com o objetivo de lançar luz sobre tais traços e determinações que este trabalho se desenvolve.

Cabe, nessa direção, refletir sobre o ponto de partida ao abordar a política social. Apreender como se dá a articulação da hegemonia burguesa nos países dependentes exige considerar a contínua transferência de valor da periferia para o centro, ressaltando a importância do papel do Estado que condensa as relações entre as classes - inclusive as de subordinação da burguesia local frente ao imperialismo. Nesse escopo, o aparelho estatal se apoia em inúmeros mecanismos que garantem a transferência de valor e a superexploração da força de trabalho, ao passo que demarcam a condição da política social sob a dependência.

O tema é necessário à compreensão da realidade brasileira e à conformação das bases para pensar a política social, seus limites estruturais e possibilidades conjunturais. É notória a importância do tema para a formação em Serviço Social, postos os questionamentos recorrentes sobre as particularidades da política social na América Latina, bem como suas singularidades no Brasil. Sob essa motivação, o texto se organiza em duas seções: a primeira busca evidenciar os traços gerais da hegemonia burguesa no capitalismo dependente, os elementos fundantes da dependência e como impactam as políticas sociais. A segunda seção apresenta uma breve trajetória da política social no Brasil, explicitando as marcas do colonialismo e da escravidão sobre a configuração do mercado de trabalho. Finalmente, esboça a centralidade da transferência de valor na constituição do fundo público e, portanto, das limitações concretas que se impõem à materialização das políticas sociais e da hegemonia.

A política social sob a dependência

Ao pensar a política social como uma das formas de intervenção do Estado capitalista, é inerente tratá-la como parte constitutiva da hegemonia burguesa e, portanto, como um dos aspectos que permitem a dominação de classe. Nesse sentido, ganha destaque o debate sobre hegemonia, justamente como a organização e as formas da dominação burguesa que variam de acordo com cada formação social e conjuntura. O Estado capitalista se apresenta, então, como condensação da luta de classes, expressão da hegemonia da classe dominante, e é a sociedade civil o espaço privilegiado de construção de hegemonia, conforme o nível de organização das classes e frações de classes.

Assim, o Estado integral ou ampliado também é disputado pelas classes subalternas na construção de uma nova hegemonia e, de acordo Gramsci (2019GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. v. 3., p. 42), “a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis [...] entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados”. Para o autor, esses interesses “implicam-se reciprocamente [...] segundo as atividades econômico-sociais e segundo os territórios”. Todavia, ressalta que o processo de incorporação das demandas das classes subalternas pode acontecer, contanto que não toque no que é essencial para a acumulação de capital. Tem especial relevância aqui a seguinte constatação: o que é essencial pode mudar de acordo com cada formação social, pois as relações entre as classes se dão num espaço específico e num período determinado, em constante movimento. Poulantzas (2015POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2015., p. 23) observa essa questão ao afirmar que “a teoria do Estado capitalista não pode ser separada da história de sua constituição e de sua reprodução”. É imprescindível que as formações sociais não sejam tomadas como simples concretização de um modelo já previamente estabelecido de Estado capitalista como obje­to abstrato-formal, posto que as “formações sociais são o lugar real de existência e de reprodução, portanto do Estado em suas formas diversas” (Poulantzas, 2015POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2015., p. 24).

Para Gunder Frank (1978FRANK, Andre Gunder. Lumpenburguesía: lumpendesarollo. 3. ed. México: Serie Popular Era, 1978.), as classes sociais devem ser situadas na relação entre imperialismo e dependência. Para o autor, a dependência não é só externa; é também condição interna que determina e satisfaz a burguesia dependente, a qual cria políticas de desenvolvimento do subdesenvolvimento, sendo caracterizada como lumpenburguesia. Assim, a lumpenburguesia para Frank (1978FRANK, Andre Gunder. Lumpenburguesía: lumpendesarollo. 3. ed. México: Serie Popular Era, 1978.) é a própria caracterização da burguesia dependente, uma burguesia sem vocação nacional que, em sua concepção e estrutura, precisa manter o subdesenvolvimento para sobreviver como classe dominante. Nas vias do projeto imperialista, a lumpenburguesia é a sócia menor do capital estrangeiro, e para lhe atender cria políticas, por meio do Estado, que sustentam as economias no lugar do subdesenvolvimento. Isso é condição de existência para a burguesia dependente.

Sob determinadas condições postas pela dependência, o Estado, utilizando-se do fundo público, é responsável por concentrar os recursos advindos do trabalho excedente e do trabalho necessário, e direcioná-los com o estabelecimento de políticas econômicas e sociais (Behring, 2016BEHRING, Elaine. Fundo público: um debate estratégico e necessário. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL (ENPESS), 15., 2016, Ribeirão Preto. Anais [...]. Ribeirão Preto; Brasília: ABEPSS, 2016. v.1.; Salvador, 2020SALVADOR, Evilasio da Silva. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: CASTRO, Jorge Abrahão de; POCHMANN, Marcio (org.). Brasil: Estado de bem-estar social? São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020. p. 371-392. No prelo.). Destarte, Estado, fundo público e política social são categorias articuladas e necessárias para a compreensão da reprodução do capital e da força de trabalho; portanto, para a perpetuação da exploração e da dominação, na medida em que são condições e resultados da hegemonia.

Embora a política social seja determinada pelo modo de produção capitalista, é determinada também, no nível mais concreto, pela formação social dependente e pela participação de seu Estado na acumulação de capital (Rocha, 2017ROCHA, Mirella. Capitalismo dependente e Serviço Social: crítica à formação social brasileira na produção teórica do Serviço Social e outras contradições. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.), bem como pela luta de classes nas formas em que se constitui, a partir de uma classe trabalhadora superexplorada e de uma burguesia subordinada ao imperialismo.1 1 De acordo com Lenin (2012, p. 123), “o imperialismo surgiu como desenvolvimento e continuação direta das características fundamentais do capitalismo em geral”, e compreende um novo estágio da acumulação de capital com predomínio dos monopólios, do capital financeiro, da exportação de capital e da partilha territorial do mundo entre nações e empresas. Nesse processo de partilha geopolítica, os países dependentes encontram-se subordinados aos países imperialistas, os quais exercem a relação de dominação permitida pelo desenvolvimento histórico das conquistas territoriais durante o período da acumulação primitiva. A limitação da burguesia e o caráter necessariamente agudizado da lei geral da acumulação sob a dependência tornam ainda mais latente a vinculação da luta por direitos sociais com a luta mais ampla contra o capitalismo, posto que as reformas aqui não se realizaram tal qual nos países centrais, tampouco há horizonte de realização.

No nível mais abstrato, apreende-se, portanto, a política social como parte da totalidade do sistema capitalista que a estrutura, a partir de sua inserção na esfera da produção e reprodução das relações sociais. Já no nível temporal mais concreto, Netto (2011NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 8. ed. São Paulo: Cortez , 2011.) ressalta que embora o Estado nunca tenha sido isento na história do capitalismo, no estágio imperialista a intervenção estatal se modifica, passando a exercer uma multiplicidade de funções políticas e econômicas que se imbricam organicamente. Como instrumento de organização da economia, inclusive na administração das crises, o Estado desempenha funções diretas, como subsídios às grandes empresas monopolistas e socialização das perdas em momentos de crises; e indiretas, como investimentos em infraestrutura e pesquisa, além da preparação e preservação da força de trabalho ocupada e excedente.

A política social, por sua vez, responde à preservação e ao controle da força de trabalho: da parcela ocupada da classe trabalhadora, mediante a regulamentação das relações de trabalho; e daquela fração que compõe o “exército industrial de reserva”, por meio dos “sistemas de seguro social” (Netto, 2011NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 8. ed. São Paulo: Cortez , 2011., p. 31). Entretanto, conforme ressalva do autor, o fato de demandas econômico-sociais e políticas dos trabalhadores poderem ser incorporadas pelo Estado não significa que seja um processo natural ou automático.

Na América Latina, não se reproduziram aquelas condições de universalização das políticas sociais vistas nos Estados europeus do pós-guerra, as políticas sociais compensatórias são uma realidade histórica. O subdesenvolvimento foi condição de existência e desenvolvimento do capitalismo monopolista no centro imperialista, gerando no continente latino-americano uma população trabalhadora alijada das relações de trabalho formais e regulamentadas.

Na fase de integração monopólica, Bambirra (2012BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Florianópolis: Insular, 2012.) explicita os novos mecanismos de subordinação das burguesias latino-americanas ao capital estrangeiro, posto que este conduz a industrialização e orienta o mercado de consumo com a mediação dos Estados nacionais. A autora afirma que, a partir do final dos anos 1940, o imperialismo “em sua corrida expansionista e integradora, [...] pode dirigir sua atuação para a busca dos investimentos que passam a ser mais vantajosos na atual fase: os investimentos no setor manufatureiro” (Bambirra, 2012BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Florianópolis: Insular, 2012., p. 125). Desse modo, “o imperialismo era um elemento constitutivo interno do sistema de dominação” (Bambirra, 1977BAMBIRRA, Vânia. Teoría de la dependencia: una anticrítica. México: Ciudad Universitaria, 1977., p. 8) e sua contraface, a dependência, condiciona as estruturas internas dos países dependentes, possibilitando a perpetuação das condições de domínio e subordinação.

A particularidade do ciclo do capital nas economias dependentes tem seu ponto de partida essencialmente na transferência de valor, compreendida como o excedente produzido e transferido para os países centrais. Isso decorre do que Marini (2011MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular , 2011. p. 131-172.) caracteriza como troca desigual. Em razão das diferenças entre as capacidades produtivas dos países dependentes e imperialistas - que se expressam em compra e venda de produtos com preços maiores ou menores no mercado mundial -, há uma transferência de valor contínua da periferia para o centro. Por isso, embora apareça como um problema na circulação, pois suas principais formas se concretizam pela remessa de lucros, pagamento de juros e serviço da dívida, a transferência de valor decorre das condições de produção. Nos termos de Marini (2012aMARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2012a., p. 52), “uma parte variável da mais-valia que aqui se produz é drenada para as economias centrais, pela estrutura de preços vigente no mercado mundial, pelas práticas financeiras impostas por essas economias, ou pela ação direta dos investidores estrangeiros no campo da produção”.

A burguesia local, então, se utiliza da superexploração da força de trabalho como mecanismo de compensação das perdas decorrentes da transferência de valor, caracterizando-se como o princípio fundamental da economia subdesenvolvida (Marini, 2011MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. In: TRASPADINI, R.; STEDILE, J. P. Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular , 2011. p. 131-172.; 2012bMARINI, Ruy Mauro. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012b.). Para a garantia da acumulação de capital em escala mundial e para a manutenção da taxa de lucro das burguesias locais associadas ao capital estrangeiro, há uma elevação da taxa de mais-valia sem a respectiva ampliação da produtividade, remunerando a força de trabalho abaixo de seu valor.

Embora a superexploração da força de trabalho seja considerada um mecanismo de compensação das perdas para os capitais com menor composição orgânica, as empresas monopolistas são mais uma vez privilegiadas, posto que a massa de salários pagos por elas é reduzida em termos relativos, diminuindo seus custos de produção. Segundo Marini (2012bMARINI, Ruy Mauro. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012b., p. 30), se estabelece “um círculo vicioso no qual a estrutura de preços tende sempre a ser deprimida, pelo fato de que se deprime artificialmente o preço do trabalho, o salário”. Tal fenômeno acentua ainda mais as contradições inerentes à lei geral da acumulação capitalista nos países dependentes, tornando-se mais difícil satisfazer as necessidades consideradas básicas ou essenciais para a reprodução da vida do/a trabalhador/a.2 2 No Brasil, é possível observar o fenômeno da superexploração da força de trabalho se considerados o valor do salário mínimo nominal e os estudos do DIEESE (2021), que indicam o que seria o salário mínimo necessário: R$ 5.495,52 em detrimento de R$ 1.100,00 em janeiro de 2021. Esse fato se traduz em alto grau de enfrentamento entre os interesses da burguesia e da classe trabalhadora e, em razão disso, elevado nível de conflitos sociais, bem como Estados com dimensões autoritárias mais presentes (Osorio, 2014OSORIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014.).

Nas palavras de Marini (2012aMARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2012a., p. 62), “o desenvolvimento capitalista integrado reforça o divórcio entre a burguesia e as massas populares, intensificando a superexploração a que estas estão submetidas e negando-lhes sua reivindicação mais elementar: o direito ao trabalho”. Isso desencadeia o crescimento do que Marini (2012aMARINI, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2012a., p. 68) denomina populações marginais urbanas ou subproletariado, parcela da população “sem uma posição definida no sistema de produção e vivendo de trabalhos ocasionais”, fortemente atingida pela violência estatal - não somente em períodos de exceção, mas também como elemento constitutivo do controle político-econômico sobre a população e a pobreza.

De acordo com Rocha (2017ROCHA, Mirella. Capitalismo dependente e Serviço Social: crítica à formação social brasileira na produção teórica do Serviço Social e outras contradições. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.), a particularidade da contradição entre capital e trabalho na América Latina se estrutura a partir do capitalismo colonial, onde a fração comercial do capital era protagonista, e cuja força de trabalho empregada era da população negra e originária escravizada. Assim, “patriarcado e racismo são [...] relações sociais estruturantes que determinam um lugar singular na estrutura de classes das sociedades coloniais, primeiro, e dependentes, depois [...]” (Rocha, 2017ROCHA, Mirella. Capitalismo dependente e Serviço Social: crítica à formação social brasileira na produção teórica do Serviço Social e outras contradições. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017., p. 234). Portanto, em uma sociedade marcada pela superexploração, em que a maior parte da classe trabalhadora não tem salário ou salário insuficiente para a reprodução de sua força de trabalho, as políticas sociais devem ser pensadas de maneira distinta daquelas dos países centrais.

Trajetória da política social no Brasil: marcas do colonialismo e da dependência

No caso brasileiro, onde a independência formal ocorrera em 1822, o restante do século foi marcado por intensas lutas sociais (Moura, 1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.; Procópio, 2017PROCÓPIO, Ana Paula. O contrário de casa grande não é senzala. É quilombo! A categoria práxis negra no pensamento social de Clóvis Moura. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.), bem como pela conformação de um Estado nacional que implementava as primeiras legislações acerca da força de trabalho, da propriedade da terra, dentre outras. Maricato (1997MARICATO, Ermínia. Habitação e cidade. 3. ed. São Paulo: Atual, 1997.) ressalta que a Lei de Terras (n, 601, de 18 de setembro de 1850) e a Lei Eusébio de Queirós (n. 581, de 4 de setembro de 1850), não por coincidência, foram aprovadas quase conjuntamente. Enquanto esta última tratava da força de trabalho, proibindo a continuidade do tráfico internacional de africanos, a Lei de Terras instituía a propriedade privada e a terra como mercadoria, legitimando o latifúndio para aqueles que já detinham terras concedidas pela Coroa anteriormente, e excluindo a possibilidade de pequenos posseiros se instalarem para a subsistência. Dessa forma, se antes de 1850 a posse de escravizados era central para as classes dominantes, após a implementação de ambas as leis referenciadas, a manutenção do poder de classe prescindia desse mecanismo, e a posse sobre a terra passa a ter mais centralidade. A libertação jurídica da população escravizada ocorre décadas mais tarde, em 1888, deixando-a sem nenhuma possibilidade de adquirir terras, tanto no campo como na cidade (Moura, 1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.; Maricato, 1997MARICATO, Ermínia. Habitação e cidade. 3. ed. São Paulo: Atual, 1997.).

Moura (1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 69-70) apresenta um longo estudo sobre a transição do que ela caracteriza como escravismo pleno para o escravismo tardio, apontando o ano de 1850 como ponto fulcral. Segundo a autora, a Lei da Terra torna-se um “mecanismo regulador e controlador montado para equilibrar e preservar os interesses dos senhores fundiários diante da possibilidade de uma Abolição com a integração de ex-escravos na sociedade via doação de terras pelo Estado aos egressos das senzalas”. Após a aprovação da lei, essa possibilidade deixa de ser vislumbrada, e o Estado passa a mediar a comercialização da terra cuja posse não é uma realidade para a população escravizada: “dado seu grau de descapitalização (quase absoluto, por sinal) no momento em que fossem libertados, as terras lhes seriam mercadoria de aquisição impossível” (Moura, 1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 70). Por outro lado, mediante a cobrança de impostos sobre a terra, “o governo poderia obter recursos para subsidiar a imigração, único recurso reconhecido como capaz de resolver o problema da mão-de-obra na agricultura” (Moura, 1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 72), numa política de branqueamento da população. A autora ressalta que a vida do imigrante também tinha seus percalços, mas “nessa fase de passagem da escravidão para o trabalho livre [ele] teve muito mais oportunidade de se transformar em um proprietário do que o escravo na mesma época, o qual não teve nenhuma” (Moura, 1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 75).

Tais alterações na legislação expressam as demandas do bloco de poder escravista para que a transição para o trabalho livre ocorresse “de acordo com os seus interesses fundamentais e daqueles dos quais eram internamente os seus agentes caudatários: o imperialismo inglês” (Moura, 1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 99). Assim, a estrutura da propriedade fundiária se manteve e a importação de imigrantes garantiu a força de trabalho desejada pelas classes dominantes, “conservando os ex-escravos como massa marginalizada, reserva de segunda categoria do exército industrial” (Moura, 1994MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita, 1994., p. 102). Todo esse processo foi legitimado com a propaganda racista, a ausência de direitos e a repressão violenta de suas lutas e resistências, posto que a violência dos senhores e a desumanização já eram realidades seculares para essa população.

A digressão realizada tem relevância, pois evidencia não apenas a desigualdade social e racial, mas também as formas extremamente desiguais de acesso ao mercado de trabalho no Brasil. Nesse espectro, surgem no final do século XIX as primeiras iniciativas de legislação social no Brasil, que até 1930 contaram com “medidas esparsas e frágeis de proteção social” (Behring; Boschetti, 2011BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 79). Santos (1987SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1987.) destaca o surgimento de associações privadas voltadas à caridade ainda na primeira metade do século XIX,3 3 Santos (1987) comenta a fundação da Sociedade Musical de Beneficência, em 1834, e a Sociedade Animadora da Corporação de Ourives, em 1838. mas a iniciativa estatal pioneira foi a Lei n. 3.397/1888, que tratava de amparar os empregados das estradas de ferro do Estado, sob a forma de Caixa de Socorro, abrangendo a burocracia civil e militar.

De acordo com Behring e Boschetti (2011BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 80), em 1923, a aprovação da Lei Eloy Chaves, que criava as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs), legitimava direitos trabalhistas e previdenciários para categorias de trabalhadores como ferroviários, envolvidas diretamente na produção e na circulação do café, principal mercadoria voltada à exportação e responsável por 70% do Produto Interno Bruto (PIB). Esse fato chama especial atenção, posto que demonstra explicitamente como a política social já se conforma e consolida pautada pelos interesses do capital, como elemento constitutivo da hegemonia burguesa.

Importa destacar brevemente dois momentos decisivos para a política social brasileira: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, e a Constituição Federal de 1988. De acordo com a crítica de Santos (1987SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1987., p. 69), a partir da adoção das medidas previstas na CLT, a carteira de trabalho se torna uma “certidão de nascimento cívico”. A cidadania - restrita aos limites da hegemonia burguesa - se configura destituída de caráter universal, pautada em políticas compensatórias e seletivas. A parcela das classes subalternas inserida nas relações formalizadas de trabalho obteve acesso aos serviços sociais de saúde, aposentadorias e pensões. O restante da população, naquele momento a maioria dos brasileiros, mantinha-se desprovido de direitos sociais.

Em 1950, a população economicamente ativa era de 14,6 milhões de pessoas num universo de 52 milhões de brasileiros, segundo dados do censo demográfico do IBGE (2011IBGE. Tabela 1288: população nos censos demográficos por situação do domicílio. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1288#/n1/all/v/all/p/all/c1/all/d/v1000606%202/l/v,c1,t+p/resultado . Acesso em: 20 fev. 2021.
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). O número de carteiras profissionais emitidas durante a década de 1940 foi pouco mais de 2,4 milhões (IBGE, 2021IBGE. Estatísticas do século XX. Rio de Janeiro: IBGE , 2021. Disponível em: Disponível em: https://seculoxx.ibge.gov.br/populacionais-sociais-politicas-e-culturais/busca-por-palavra-chave/trabalho . Acesso em: 20 fev. 2021.
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), o que significa que no ano de 1950 cerca de 17% da população ocupada possuía carteira de trabalho.4 4 Ressalta-se que a emissão da carteira não significava garantia de que seu portador estaria empregado formalmente ou sequer empregado; contudo, não era possível que alguém tivesse acesso ao mercado formal de trabalho sem possuir uma carteira de trabalho. Esses fatos permitem afirmar que, na melhor das hipóteses, mais de 50% da força de trabalho urbana, em 1950, não tinha acesso ao mercado de trabalho formal e que mais de 80% dos trabalhadores brasileiros não possuía acesso ao trabalho formal. Vale notar que os percentuais de acesso podem estar superestimados porque foram calculados sobre a população economicamente ativa (aquela que efetivamente trabalhava) e não sobre a população em idade ativa, que também inclui pessoas que não trabalhavam (independentemente das razões). O procedimento alternativo tenderia a reduzir os percentuais de acesso ao mercado de trabalho formal. Isso evidencia que uma parcela ínfima de trabalhadores acessava as políticas sociais, uma vez que estas estavam vinculadas às ocupações. A população rural e os ex-escravizados que poucas décadas antes tinham migrado para o “trabalho livre” não adquiriram status de assalariados, conformando uma classe trabalhadora desempregada, subempregada, fragmentada, informal, sem salários regulares capazes de repor a força de trabalho. Tais características, embora acentuadas no final do século XX com o neoliberalismo, já estavam presentes e estruturam o mercado de trabalho no Brasil. De acordo com dados da PNAD (2019PNAD. Tabela 4097: pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência, por posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/4097 . Acesso em: 5 fev. 2020.
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), no quarto trimestre de 2018, apenas 35,5% das pessoas ocupadas tinham carteira assinada, enquanto outras 12,4% eram empregadas sem carteira assinada e 25,6% trabalhavam por conta própria, explicitando a permanência das condições desiguais de acesso ao trabalho.

Sob essas bases, a política social durante o período da ditadura civil-militar foi a política do Estado de contrainsurgência, que aprofundou a dependência e a superexploração da força de trabalho, na medida em que os salários foram bastante desvalorizados. O bloco no poder conforma-se, então, com a subordinação das demais frações burguesas à burguesia monopolista, “mediante os investimentos diretos de capital estrangeiro, a subordinação tecnológica e a penetração financeira” (Marini, 2018MARINI, Ruy Mauro. Estado de contrainsurgência. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 12, n. 3, 2018., p. 4). De acordo com Osorio (2014OSORIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014.), esse novo arranjo de classes lança as bases para o neoliberalismo na América Latina.

Demier (2017DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017.) ressalta que, no Brasil, a transição gradual da ditadura civil-militar para a democracia liberal blindada foi realizada pelas cúpulas dirigentes do próprio regime ditatorial-militar. De acordo com Demier (2017DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017., p. 54-55), “os teóricos neoconservadores indicavam para a América Latina a edificação de um regime democrático de tipo ‘procedimental’, o qual seria vertebrado por instituições e uma lógica de funcionamento que garantissem a ‘governabilidade’”. Isso deveria ocorrer com a desmobilização e a apatia dos cidadãos, na medida em que as eleições regulares fossem disputadas apenas pelas elites políticas tradicionais.

No entanto, segundo Demier (2017DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017.), houve um erro de percurso nesse período de transição no Brasil, posta a reorganização sindical e política da classe trabalhadora ainda sob a ditadura civil-militar no final da década de 1970, com a proliferação de uma série de aparelhos privados de hegemonia das classes dominantes e das classes subalternas. Com isso, a Constituição Federal de 1988, “principal resultado jurídico-político do processo de transição”, acabou por travar um conteúdo contraditório, “mesclando aspectos progressistas e conservadores” (Demier, 2017DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017., p. 58). A Constituição de 1988, então, apresentou um conjunto de mudanças no que se refere às políticas sociais, abrangendo setores que até então não tinham quaisquer garantias de direitos. Embora a legislação apontasse para o princípio da universalidade, isso nunca chegou a ser implementado, pois “o texto constitucional por si só não é capaz de estruturar uma rede de proteção social” (Brettas, 2017BRETTAS, Tatiana. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Temporalis, Brasília, ano 17, n. 34, jul./dez. 2017., p. 59). Segundo a autora, a dependência e o movimento da luta de classes determinam os desafios para a efetivação dos direitos constitucionais, muitos dos quais dependiam de legislações complementares e de condições históricas que não estavam dadas.

Esta ressalva parece ser importante tendo em vista que a análise das políticas sociais a partir dos anos 1990 precisa considerar o que de fato estava estruturado até o final dos anos 1980. A não implementação das definições constitucionais não permite afirmar, de imediato, o desmonte das políticas, haja vista que suas bases ainda estavam por ser montadas. A reflexão sobre as mudanças na configuração das políticas sociais nas últimas décadas exige também enfrentar o desafio de identificar e separar os aspectos estruturais e conjunturais que marcam a acumulação capitalista no Brasil a partir dos anos 1990 (Brettas, 2017BRETTAS, Tatiana. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Temporalis, Brasília, ano 17, n. 34, jul./dez. 2017., p. 59-60, grifos nossos).

Aí se destaca o que vinha sendo delineado anteriormente acerca do mercado de trabalho e das políticas sociais desde o século XIX, como aspectos estruturais da formação social no Brasil. É nesse contexto que se desenvolve a ofensiva neoliberal, como estratégia do capital imperialista para resolver a crise econômica e recompor a hegemonia. Sob as particularidades postas aqui, “a fragmentação, a focalização e a privatização sempre estiveram presentes nas políticas sociais [...]. Embora assumam contornos mais profundos no neoliberalismo, estes traços não parecem suficientes para caracterizar este período” (Brettas, 2017BRETTAS, Tatiana. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Temporalis, Brasília, ano 17, n. 34, jul./dez. 2017., p. 62). Segundo a autora, o que de fato se torna o principal determinante da política social é a financeirização.

Marini (2012bMARINI, Ruy Mauro. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012b.) auxilia na compreensão do papel da financeirização e da centralidade dos juros, ao destacar que a primeira questão a ser obser­vada quando se analisa o ciclo do capital na economia dependente é a origem do capital dinheiro, o qual provém de três fontes: capital privado interno, investimento público estatal e capital estrangeiro. Quando concluído o ciclo, o capital estrangeiro se apropria de parte da mais-valia sob a forma de lucro (no caso de investimento direto) ou juros (quando se trata de investimento indireto), no que é caracterizado como transferência de valor ao exterior. Portanto, nesse primeiro momento do ciclo do capital, “atua um fator externo à economia dependente e que se encontra totalmente fora de seu controle: o capital estrangeiro” (Marini, 2012bMARINI, Ruy Mauro. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012b., p. 26). Marini ressalta, ainda, que até o final da década de 1960 predominava o investimento direto na América Latina, mas desde a década de 1970, em países com maior desenvolvimento relativo como Brasil e México, a forma predominante passa a ser o investimento indireto, com protagonismo do capital financeiro. O capital estrangeiro, então, “além das taxas de amortização, cobra taxas de juros que são deduzidas da mais-valia gerada pelo investimento produtivo para o qual ele contribuiu, sem haver assumido, contudo, os riscos da produção e realização dessa mais-valia” (Marini, 2012bMARINI, Ruy Mauro. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; OSORIO, Jaime; LUCE, Mathias (org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012b., p. 25).

Mensurar a transferência de valor entre países não é uma tarefa fácil5 5 Para um aprofundamento sobre a transferência de valor no capitalismo dependente, conferir Breda (2020). . O expediente mais comum é utilizar o resultado da balança de pagamentos, em especial o resultado das transações correntes, como forma de evidenciar a saída de riquezas de um país. Mas mesmo essa forma pode estar subcontabilizada. Isso ocorre porque há formas de transferência de valor que ocorrem pelo sistema de preços ou, ainda, por mecanismos intrafirmas que não aparecem em números disponíveis publicamente.

Apesar dessa limitação, os números do balanço de pagamentos6 6 O balanço de pagamentos considera: 1. Transações correntes, as quais se dividem em a) balança comercial, que relaciona exportações e importações de bens; b) balança de serviços e rendas; e c) transferências unilaterais (pessoais); 2. Conta de capital e financeira, que se dividem entre a) investimentos diretos no país; e b) investimentos em carteira ou portfólio; 3. Erros e omissões; 4. Variação de receitas. Embora no Brasil a balança comercial seja historicamente positiva - pois exportamos mais que importamos, ainda que considerando o intercâmbio desigual -, as transações correntes são negativas. Isso ocorre porque a balança de serviços e rendas apresenta um déficit sempre maior que o superávit da balança comercial, em função dos serviços financeiros que operam a transferência de valor para outras economias (Corrêa, 2019). do Brasil são bastante evidentes no que se refere às perdas de valor para o restante do mercado mundial nas últimas décadas, tal qual expresso por Oliveira (2017OLIVEIRA, Elizabeth Moura Germano. A economia do conhecimento e uma nova forma de dependência no capitalismo brasileiro. 2017. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.), no Gráfico 1 a seguir.

Gráfico 1 -
Transações correntes, balança comercial, serviços e rendas, em US$ bilhões

A título de ilustração e para melhor compreender a exposição de Oliveira (2017OLIVEIRA, Elizabeth Moura Germano. A economia do conhecimento e uma nova forma de dependência no capitalismo brasileiro. 2017. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.), buscou-se uma desagregação das contas no banco de dados do Banco Central. As rendas primárias dispostas no Gráfico 1 incluem remessa de lucro e juros, e são divididas em: i) rendas de investimento direto, que costuma compor a maior parte das rendas, e cujas principais rubricas são a) lucros e dividendos; e b) juros intercompanhia; ii) rendas de investimento indireto (carteira), que inclui entre suas principais contas lucros e juros de títulos de renda fixa; e iii) rendas de outros investimentos, com maioria dos valores formados por juros.

Destaca-se o peso dos juros, que vêm crescendo cada vez mais. Salvador (2020SALVADOR, Evilasio da Silva. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: CASTRO, Jorge Abrahão de; POCHMANN, Marcio (org.). Brasil: Estado de bem-estar social? São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020. p. 371-392. No prelo., p. 387, grifos do autor) elucida essa questão com a apresentação de dados especialmente relevantes no que se refere ao orçamento público:

Enquanto o orçamento fiscal e da seguridade social apresentou um crescimento real de somente 2,6% acima do IPCA, no período de 2016 a 2019, as despesas com juros e encargos da dívida pública cresceram 8,5 vezes mais. [...] no orçamento de 2016, o pagamento de juros e encargos da dívida foi de 242,61 bilhões de reais, aumentando para 287,57 bilhões de reais, em 2019, um crescimento real de 22,57%. O pagamento efetivo das despesas com juros e amortização da dívida pública consomem um quarto do orçamento público.

Considerando que parcela relevante do volume de títulos da dívida pública é detida por não residentes, o capital imperialista garante, assim, transferência contínua de valor proveniente das economias dependentes. A política social, por sua vez, fica limitada em razão da prioridade estabelecida para o pagamento de juros da dívida, que consomem grande parte do orçamento público.

Nesse viés, de acordo com Rocha (2017ROCHA, Mirella. Capitalismo dependente e Serviço Social: crítica à formação social brasileira na produção teórica do Serviço Social e outras contradições. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.), a política social no capitalismo dependente tende à monetarização e ao incremento do consumo, condições necessárias à reprodução do capital, posto que as relações de trabalho não colocam essa possibilidade para a classe trabalhadora em geral. Para a autora, “trata-se de uma forma de coadjuvar a acumulação de capital considerada a forma peculiar com que se reproduz na América Latina, bem como a parca fração da massa global de mais-valia para investimento em gasto social pelo Estado” (Rocha, 2017ROCHA, Mirella. Capitalismo dependente e Serviço Social: crítica à formação social brasileira na produção teórica do Serviço Social e outras contradições. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017., p. 251). Em acordo com esse argumento, estudo citado por Fagnani et al. (2018FAGNANI, Eduardo et al. Reforma tributária e financiamento da política social. In: FAGNANI, Eduardo (org.). A reforma tributária necessária: diagnóstico e premissas. Brasília: Anfip; Fenafisco; São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. p. 173-211., p. 204) demonstra que o gasto social no Brasil “não é elevado na comparação internacional”, e relativamente baixo quando comparado com os países europeus.

Demarca-se aí a particularidade do fundo público e, portanto, da atuação estatal no capitalismo dependente. O Estado cumpre papel fundamental no desenvolvimento do capitalismo e na garantia das condições para a reprodução do capital em escala sempre crescente, especialmente nos países dependentes nos quais o desenvolvimento do capitalismo e do subdesenvolvimento foi reflexo das transformações políticas e das necessidades econômicas do Velho Mundo. Assim, o que permanece em solo nacional para a destinação aos gastos sociais é estruturalmente insuficiente, impactando as políticas sociais e, em acordo com Paiva, Rocha e Carraro (2010PAIVA, Beatriz; ROCHA, Mirella; CARRARO, Dilceane. Política social na América Latina: ensaio de interpretação a partir da teoria marxista da dependência. SER Social, Brasília, v. 12, n. 26, p. 147-175, jan./jun. 2010.), tornando ainda mais relevante a luta das massas por garantias mínimas para a reprodução da vida.

Considerações finais

O capitalismo dependente articula mecanismos, em conjunto com o Estado, para manter a superexploração da força de trabalho e suas justificativas. O pagamento de juros, encargos e amortização da dívida pública, as metas de superávit primário, a não limitação de remessa de lucros, a transferência de recursos para empresas estrangeiras, a apropriação dos conhecimentos tradicionais, as isenções e desonerações tributárias e a abertura comercial cada vez mais adequada aos interesses do imperialismo são formas de participação do Estado na manutenção da dependência e, por consequência, de sustentação da burguesia dependente. Em especial nos momentos de crise aguda do capitalismo, a burguesia avança sobre padrões civilizatórios e direitos sociais considerados básicos em outras latitudes, dificultando as condições para sustentação da hegemonia, como é possível observar no período mais recente.

Como evidenciado ao longo deste trabalho, as políticas sociais no Brasil são materializadas sob condições bastante restritas. Como elementos constitutivos da hegemonia, o fundo público e as políticas econômicas e sociais adquirem características particulares devido à transferência de valor dos países dependentes aos imperialistas. Essa precariedade estrutural das políticas estatais pode chegar a afetar a capacidade dirigente da burguesia de aglutinar e conduzir grupos sociais em torno de um projeto que abarque as múltiplas dimensões de reprodução da vida, impactando a manutenção da hegemonia e tornando mais instáveis as relações entre as classes sociais.

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  • SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1987.
  • 1
    De acordo com Lenin (2012LENIN, V. Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 2012., p. 123), “o imperialismo surgiu como desenvolvimento e continuação direta das características fundamentais do capitalismo em geral”, e compreende um novo estágio da acumulação de capital com predomínio dos monopólios, do capital financeiro, da exportação de capital e da partilha territorial do mundo entre nações e empresas. Nesse processo de partilha geopolítica, os países dependentes encontram-se subordinados aos países imperialistas, os quais exercem a relação de dominação permitida pelo desenvolvimento histórico das conquistas territoriais durante o período da acumulação primitiva.
  • 2
    No Brasil, é possível observar o fenômeno da superexploração da força de trabalho se considerados o valor do salário mínimo nominal e os estudos do DIEESE (2021DIEESE. Pesquisa nacional da cesta básica de alimentos: salário mínimo nominal e necessário. São Paulo, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html . Acesso em: 19 fev. 2021.
    https://www.dieese.org.br/analisecestaba...
    ), que indicam o que seria o salário mínimo necessário: R$ 5.495,52 em detrimento de R$ 1.100,00 em janeiro de 2021.
  • 3
    Santos (1987SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1987.) comenta a fundação da Sociedade Musical de Beneficência, em 1834, e a Sociedade Animadora da Corporação de Ourives, em 1838.
  • 4
    Ressalta-se que a emissão da carteira não significava garantia de que seu portador estaria empregado formalmente ou sequer empregado; contudo, não era possível que alguém tivesse acesso ao mercado formal de trabalho sem possuir uma carteira de trabalho. Esses fatos permitem afirmar que, na melhor das hipóteses, mais de 50% da força de trabalho urbana, em 1950, não tinha acesso ao mercado de trabalho formal e que mais de 80% dos trabalhadores brasileiros não possuía acesso ao trabalho formal. Vale notar que os percentuais de acesso podem estar superestimados porque foram calculados sobre a população economicamente ativa (aquela que efetivamente trabalhava) e não sobre a população em idade ativa, que também inclui pessoas que não trabalhavam (independentemente das razões). O procedimento alternativo tenderia a reduzir os percentuais de acesso ao mercado de trabalho formal.
  • 5
    Para um aprofundamento sobre a transferência de valor no capitalismo dependente, conferir Breda (2020BREDA, Diógenes Moura. A transferência de valor no capitalismo dependente contemporâneo: o caso do Brasil entre 2000 e 2015. 2020. Tese (Doutorado) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.).
  • 6
    O balanço de pagamentos considera: 1. Transações correntes, as quais se dividem em a) balança comercial, que relaciona exportações e importações de bens; b) balança de serviços e rendas; e c) transferências unilaterais (pessoais); 2. Conta de capital e financeira, que se dividem entre a) investimentos diretos no país; e b) investimentos em carteira ou portfólio; 3. Erros e omissões; 4. Variação de receitas. Embora no Brasil a balança comercial seja historicamente positiva - pois exportamos mais que importamos, ainda que considerando o intercâmbio desigual -, as transações correntes são negativas. Isso ocorre porque a balança de serviços e rendas apresenta um déficit sempre maior que o superávit da balança comercial, em função dos serviços financeiros que operam a transferência de valor para outras economias (Corrêa, 2019CORRÊA, Daniel. Economia política da crise brasileira. Ciclo Nacional de Formação pela Revolução Brasileira, Brasília, 2019. Palestra.).
  • ERRATA

    10.1590/0101-6628.266
    Na página 394, onde se lia:
    Moura (1994, p. 69-70) apresenta um longo estudo sobre a transição do que ela caracteriza como escravismo pleno para o escravismo tardio, apontando o ano de 1850 como ponto fulcral. Segundo a autora, a Lei da Terra torna-se um “mecanismo (…), numa política de branqueamento da população. A autora ressalta que a vida…
    Leia-se:
    Moura (1994, p. 69-70) apresenta um longo estudo sobre a transição do que ele caracteriza como escravismo pleno para o escravismo tardio, apontando o ano de 1850 como ponto fulcral. Segundo o autor, a Lei da Terra torna-se um “mecanismo (…), numa política de branqueamento da população. O autor ressalta que a vida…

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2021
  • Aceito
    14 Jun 2021
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