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Quando a realidade se impõe: 50 anos de Dialética da dependência, de Ruy Mauro Marini

When reality imposes itself: 50 years of Dialectics of dependence, by Ruy Mauro Marini

Introdução

A Teoria Marxista da Dependência (TMD) surge no contexto de crítica às formas vigentes de dominação imperialista sobre a América Latina de meados das décadas de 50 a 80 do século XX, período coincidente com a emergência do pensamento crítico latino-americano.

No seio dessa teoria, valemo-nos da comemoração do aniversário de 50 anos da publicação de Dialética da dependência, de Ruy Mauro Marini, e observamos que homenagens de diversas sortes têm despontado no Brasil, na América Latina e no mundo. Em 2022, por exemplo, o livro do autor teve sua primeira publicação em inglês pela editora Monthly Review, tendo ganhado o Paul A. Baran - Paul M. Sweezy Memorial Award. Mesmo antes dessa edição em inglês, autores de diversas partes do mundo passaram a dialogar com Dialética da dependência e se apropriar de suas contribuições para pensar o mundo de hoje. Também é possível dizer que, depois de décadas de exílio intelectual no Brasil, houve uma recuperação e um redescobrimento importantes do pensamento de Marini e da TMD no país. Toda uma nova geração de pesquisadores entrou em contato pela primeira vez com uma obra mais ampla dos autores da TMD e, especialmente, de Marini.

Esse movimento se deu na primeira década do século XXI e foi ganhando corpo com a crise de 2008 e a crise do ciclo social-liberal dos governos petistas no Brasil, cujas contradições expuseram, mais uma vez, os limites do projeto de desenvolvimento capitalista em países dependentes - repondo a atualidade do debate clássico latino-americano sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, bem como a vitalidade da análise de André Gunder Frank sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Na entrada da terceira década deste século, é possível dizer que essa corrente teórica e o pensamento de Marini constituem-se em uma referência fundamental para o debate crítico do capitalismo brasileiro e latino-americano. Em outras palavras, não é mais possível ignorá-lo.

Isso é um péssimo sinal, diríamos ao leitor. Sinal das exigências do tempo histórico; tempo de crises múltiplas e extremamente profundas que nos desafiam a compreender a realidade caótica atual que repõe em outros termos o enigma da esfinge: decifra-me enquanto te devoro. Esse é o tamanho da relevância e atualidade desse livro, cuja atual edição da revista Serviço Social & Sociedade celebra e convida para reflexão.

Neste editorial, celebramos e homenageamos os 50 anos de Dialética da dependência com o objetivo de apresentar ao leitor o essencial desse livro cinquentenário. Isso inclui debater e problematizar seus limites e possibilidades de contribuição à história do marxismo latino-americano, o que nos permite sugerir uma agenda de pesquisas e, por fim, resgatarmos parte do processo de aproximação do Serviço Social brasileiro à TMD e a suas principais categorias.

Dialética da dependência: em poucas tintas

Dialética da dependência parte exatamente do período colonial para expor seu arsenal categorial. Ao mencionar que o desenvolvimento econômico e a inserção latino-americana no capitalismo mundial ocorreram desde o século XVI, Marini (1982MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982., p. 16) observa que “ao calor da expansão comercial promovida, no século XVI, pelo capitalismo nascente, a América Latina se desenvolve em estreita consonância com a dinâmica do capital internacional”. Marini diferencia o que é a dependência do que foi a situação colonial, marcando um afastamento, nesse ponto, com Frank, que entendia existir uma dependência estrutural já no século XVI. Seria a partir das independências formais dos países da América Latina, que andaram pari passu com a Revolução Industrial, que as relações entre América Latina e Europa alcançaram um novo momento qualitativo. Isso ocorreu em razão da configuração da:

[...] divisão internacional do trabalho, que determinará o curso do desenvolvimento ulterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre as nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. O fruto da dependência só pode assim significar mais dependência e sua liquidação supõe necessariamente a supressão das relações de produção que ela supõe. Neste sentido, a conhecida fórmula de André Gunder Frank sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” é impecável, como impecáveis são as conclusões políticas a que ela conduz (Marini, 1982MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982., p. 18).

Para Marini, a grande indústria teria encontrado maiores entraves, não fosse a especialização produtiva característica da divisão internacional do trabalho na época, viabilizada pela função dos países dependentes, fornecedores de matérias-primas e meios de subsistência que entraram na cesta de consumo do proletariado dos países industriais. Nesse sentido, o autor percebe, magistralmente, como a exportação de meios de subsistência, que se incorporavam nos bens de salário do proletariado dos países industriais, contribuiu para que o eixo de acumulação capitalista nesses países se deslocasse da extração de mais-valor absoluto para mais-valor relativo. Assim, “mediante sua incorporação no mercado mundial de bens de salário, a América Latina desempenha um papel significativo no aumento do mais-valor relativo nos países industriais” (Marini, 1982MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982., p. 27).

Dessa maneira, houve uma mudança qualitativa nas relações produtivas dos países dependentes, relações produtivas que se configuraram “fundamentalmente com base na maior exploração do trabalhador. É esse caráter contraditório da dependência latino-americana que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista” (Marini, 1982MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982., p. 23).

Como se pode notar, uma das potencialidades e ineditismos do estudo consistiu em, articulando o referencial marxiano, elaborar uma análise que integra os países dependentes latino-americanos na dinâmica do sistema capitalista e dos países imperialistas e, a partir daí, compreender a dinâmica interna da América Latina. Com efeito, partindo do primeiro momento da circulação, que consistia nas relações entre dependência e imperialismo, Marini desenvolveu a categoria de intercâmbio desigual, a primeira contribuição fundamental desse livro. Não trataremos da categoria aqui, indicando somente que esse fenômeno consiste em uma situação condicionante para os países latino-americanos, na medida em que garante a transferência de valor para os países imperialistas.

As burguesias dependentes, ou lúmpen burguesias, ao expressar sua condição de classe dominante dominada, se associam, de forma dependente, ao capital internacional. Nesse sentido, buscam compensar a perda de uma parte do mais-valor ao qual teriam direito por meio da superexploração da força de trabalho. Essa é a segunda e principal descoberta de Marini. A superexploração da força de trabalho seria a peculiaridade imposta pelo sistema capitalista aos países dependentes, expressando-se por meio de três características: a) o aumento da intensidade do trabalho pela maior exploração da força de trabalho e não pelo aumento de sua produtividade; b) o aumento do mais-valor absoluto; c) a redução do tempo de trabalho necessário mediante o pagamento da força de trabalho por debaixo do seu valor, portanto da transformação do fundo de consumo do trabalhador em fundo de acumulação do capitalista.

[...] esse processo estava marcado por uma profunda contradição: chamada a coadjuvar a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve que fazê-lo mediante uma acumulação fundada na superexploração do trabalhador. Nesta contradição radica a essência da dependência latino-americana (Marini, 1982MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982., p. 49).

Se a dinâmica do capitalismo dependente reside na superexploração da força de trabalho, isso significa que a realização das mercadorias não se resolverá, adequadamente, com o consumo das massas trabalhadoras. Conforme acentuado por Caio Prado Jr.PRADO JR., C. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. em a Formação do Brasil colonial, os setores econômicos dinâmicos desses países consistem naqueles exportadores, de sorte que o consumo das massas trabalhadoras não interfere nesses setores. Esse cenário se estrutura com base em um fator fundamental: uma multidão de exército industrial de reserva sempre disponível.

A acumulação fundada na superexploração da força de trabalho se viabiliza, se beneficia e, ao mesmo tempo, acentua uma cisão do ciclo do capital.

Opera-se assim, desde o ponto de vista do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital - a produção e a circulação de mercadorias - cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral, é dizer, a que opõe o capital ao trabalhador em tanto que vendedor e comprador de mercadorias (Marini, 1982MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982., p. 50).

Contrastando com a diminuição do poder de consumo das massas trabalhadoras, ergue-se a demanda por bens industriais pela burguesia dependente a quem, posteriormente, se somam as camadas médias da sociedade. Com efeito, forma-se um mercado interno específico nas sociedades dependentes, um mercado cindido entre a baixa e a alta esfera de circulação, que, conforme Marini, vai impactar decisivamente os rumos do processo de industrialização desses países, cujas debilidade e dependência de fatores externos estruturaram os capitais industriais locais segundo as necessidades e as exigências do capital internacional. Configurou-se, assim, uma situação em que a função dessas indústrias seria a de atender às necessidades e complementar as grandes indústrias dos países imperialistas. As burguesias industriais dependentes recorreriam, uma vez mais, ao exército industrial de reservas para superexplorar a força de trabalho, que seria a base da etapa industrial dependente.

De acordo com Marini, esses fenômenos correspondiam a uma nova etapa da divisão internacional do trabalho. Nessa etapa, os países imperialistas se dedicariam aos setores industriais com alta composição técnica - setores como a indústria eletrônica pesada, a computação, a exploração de novas energias, entre outros. Caberia a alguns países dependentes absorver os setores inferiores da produção industrial, como a siderurgia, no caso do Brasil.

Nessa nova etapa, aqueles países dependentes que absorviam o progresso técnico e, ao mesmo tempo, se apoiavam na superexploração da força de trabalho renovavam a cisão entre o consumo de bens de salário pela classe trabalhadora e o consumo de bens suntuários pelas burguesias dependentes e camadas médias. A compressão do consumo das massas dificultou a realização dos bens de consumo industriais produzidos em alguns países dependentes, acarretando a adoção de uma política externa agressiva por esses países. De acordo com Marini, a partir desse cenário, haveria uma tendência acentuada ao subimperialismo, sobretudo no Brasil - ainda que esse fenômeno não seja exclusividade desse país ou corresponda a uma existência anômala.

Eis, portanto, o movimento da dialética do capitalismo dependente: das constrições externas, a partir da transferência de valor e do intercâmbio desigual, as sociedades latino-americanas se configuram sobre a base da superexploração da força de trabalho que, por sua vez, resulta na cisão do ciclo do capital e na restrição da realização das mercadorias produzidas localmente, levando alguns países da região a criar uma tendência subimperialista.

Sabedor de que Dialética da dependência consistia apenas no início do percurso e não no ponto de chegada, Marini escreveu no posfácio do livro:

Estas são algumas questões substantivas do meu ensaio que convinha pontuar e esclarecer. Elas estão reafirmando a tese central que é sustentada ali, isto é, a de que o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho. Não nos resta, nesta breve nota, senão advertir que as implicações da superexploração transcendem o plano de análise econômico e devem ser estudadas também do ponto de vista sociológico e político. É avançando nessa direção que aceleraremos o parto da teoria marxista da dependência, liberando-a das características funcionais-desenvolvimentistas que a elas foram aderidas em sua gestação (Marini, 1982MARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982., p. 100-101).

Problematizações e a construção de uma agenda de pesquisas

Este texto se permitirá um exercício de reflexão sobre a maneira como Dialética da dependência e a obra dos autores da TMD têm impactado uma miríade de estudos e abordagens oriundas de diferentes áreas. A avidez com que as novas gerações se debruçam sobre os mais diversos temas em torno dessa corrente teórica resulta num processo simultâneo de renovação, atualização, ampliação e redescobertas; redescobertas de textos importantes, ideias ou lapsos que estavam esquecidos em folhas amareladas. Disso, surgem trabalhos de todas as sortes.

Não seria necessário mencionar que uma série de questões, temas e problematizações ficou de fora do livro e de outras obras dos autores clássicos da TMD. Ao mesmo tempo, passadas cinco décadas de sua primeira publicação, é necessário dizer que o capitalismo mundial e as sociedades se modificaram bastante, de sorte que novos temas surgiram e devem ser enfrentados. Com isso, queremos indicar alguns desdobramentos da Dialética da dependência e da TMD, em geral alguns pontos que estão esperando ser enfrentados e, especialmente, como a área de Serviço Social se inseriu nesse debate.

A categoria de transferência de valor e de intercâmbio desigual não parece estar ainda bem desenvolvida. Em Dialética da dependência, MariniMARINI, R. M. Dialéctica de la dependencia. México: Ediciones Era, 1982. apenas esboça os traços dessa categoria. Autores como Arghiri Emmanuel, em sua obra Unequal exchange, de 1972EMMANUEL, A. Unequal exchange: a study of the imperialism of trade. With additional comments by Charles Bettelheim. Nova York: Monthly Review, 1972., se dedicaram exclusivamente a isso. Samir AminAMIN, S. Unequal development: an essay on the social formations of peripheral capitalism. Nova York: Monthly Review, 1976., em Unequal development, de 1973, também tratou desse assunto. O fato é que o tema da transferência de valor em escala internacional e o intercâmbio desigual desencadearam uma polêmica grande no marxismo dos países centrais. Brenner (1977BRENNER, R. The origins of capitalist development: a critique of neo-Smithian Marxism. New Left Review, n. 104, jul./ago. 1977.), Weeks e Dore (1979aWEEKS, J.; DORE, E. International exchange and the causes of backwardness. Latin American Perspectives, v. VI, n. 2, 1979a., 1979bWEEKS, J.; DORE, E. Reply to Samir Amin. Latin American Perspectives, v. VI, n. 3, 1979b.) e Weeks (1977WEEKS, J. The sphere of production and the analysis of crisis in capitalism. Science & Society, v. XII, n. 3, p. 281-302, 1977., 1981WEEKS, J. The differences between materialist theory and dependency theory and why they matter. Latin American Perspective, v. VIII, n. 3-4, 1981., 1982WEEKS, J. A note on underconsumptionist theory and the labor theory of value. Science & Society, v. XLVI, n. 1, p. 60-81, 1982.), por exemplo, escreveram textos importantes e pouco considerados pelo marxismo latino-americano. Esse conjunto de textos ainda aguarda um debate adequado. Apesar de alguns estudos recentes terem surgido, com destaque para o artigo de João Machado Borges Neto (2011NETO, J. M. B. Ruy Mauro Marini: dependência e intercâmbio desigual. Crítica Marxista, n. 33, p. 83-104, 2011.), bem como a excelente tese de doutorado de Diógenes Breda (2020BREDA, D. M. A transferência de valor no capitalismo dependente contemporâneo. O caso do Brasil entre 2000 e 2015. 2020. Tese. (Doutorado) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020.), nos parecem ainda insuficientes para dar conta do desafio.

Nesse sentido, diretamente vinculado a esse tema, torna-se cada vez mais necessário avançarmos na reflexão sobre o imperialismo na atualidade. Seria na esfera da circulação, por meio do intercâmbio desigual, por exemplo, que a dominação imperialista se reproduziria? Alguns trabalhos têm avançado em relação ao tema, entre os quais destacamos o de John Smith, Imperialism in the twenty-first century (2016SMITH, J. Imperialism in the twenty-first century: globalization, super-exploitation, and capitalism’s final crisis. Nova York: Monthly Review, 2016.), o de Intan Suwandi, Value chains: the new economic imperialism (2019SUWANDI, I. Value chains: the new economic imperialism. Nova York: Monthly Review, 2019.), o trabalho conjunto de Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik, Capital and imperialism (2021PATNAIK, U.; PATNAIK, P. Capital and imperialism: theory, history, and the present. Nova York: Monthly Review, 2021.), e o de Sam King, Imperialism and the development myth (2021KING, S. Imperialism and the development myth: how rich countries dominate in the twenty-first century. Manchester: Manchester University Press, 2021.). São livros extremamente rigorosos que fazem avançar o estudo sobre o imperialismo. No entanto, ainda não é possível responder, a partir da lei do valor, como o imperialismo garante e perpetua sua reprodução de forma ampliada.

Esses desafios se avolumam em função das dificuldades que estamos encontrando em apreender o capitalismo mundial de nossa época. Temáticas que impõem novos desafios interpretativos e atualizam desafios antigos: o desenvolvimento das novas tecnologias e das novas tecnologias da informação, o advento do mundo digital e sua apropriação pelo capitalismo, a função do capital financeiro, novas disputas interimperialistas ou de trocas hegemônicas, a partir da ascensão da China. Como compreender a integração do capitalismo dependente latino-americano nesta etapa do sistema capitalista mundial?

Nesse aspecto, explicita-se uma questão de primeira importância, a saber, a necessidade de empreender um nível de análise mais elevado, que se dedique, justamente, à compreensão do sistema capitalista mundial hoje, sob uma ótica marxista. Nesse aspecto, os esquemas do plano de pesquisa do Centro de Estudos Socioeconômicos podem contribuir para organizar novos itinerários de pesquisa. Contudo, aqui fica evidente um grande problema que o conjunto de pesquisadores e pesquisadoras, das velhas e novas gerações, parece não enfrentar adequadamente: os estudos que se detêm no nível de análise do sistema capitalista partem de pressupostos teóricos das teorias do sistema mundial moderno. Uma sistematização teórica alternativa acabada não existe. Sendo assim, é possível articular a TMD com essas teorias? Existe compatibilidade? Nessa linha, uma outra lacuna consiste em entender a fundo o pensamento de Theotônio dos Santos a esse respeito. Como é sabido, desde pelo menos 1968, esse autor estuda a economia mundial e os processos de integração mundial. Existiu um giro na sua trajetória intelectual? Ou a tentativa de articular a TMD com as teorias do sistema mundial moderno foi o passo consequente de seu pensamento? André Gunder Frank percorreu um caminho parecido.

Isso nos leva a outra questão não menor: é preciso avançar numa pesquisa de fundo responsável por publicar biografias à altura de Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e André Gunder Frank.

É extremamente necessário avançar mais na compreensão das expressões concretas da superexploração da força de trabalho nos novos setores de serviços, nas fábricas e maquiladoras e no trabalho rural, ao passo que, para isso, é fundamental recolocar a questão do exército industrial de reserva. Aliás, do debate latino-americano clássico sobre o exército industrial de reserva, superpopulação relativa e marginalidade, surgiram reflexões de extrema importância sobre o racismo em capitalismos dependentes, nas penas de Lélia GonzalezGONZALEZ, L. Mulher negra. In: GONZALEZ, L. Primavera para as rosas negras. São Paulo: Diáspora Africana, 2018.. Aqui há todo um caminho ainda por percorrer. Também é verdade que já se avançou bastante, sobretudo com as contribuições de Cristiane Sabino de Souza e demais autoras e autores do Serviço Social.

Por outro lado, há de se colocar em termos a categoria mesma de superexploração da força de trabalho na atual etapa do capitalismo. Esta se mundializou ou ainda se mantém como fundamento da dependência? Mas caso tenha se mundializado, essa categoria deixa de ser o fundamento da dependência. Nesse sentido, uma má compreensão do tema pode conduzir o debate de volta ao labirinto da circulação, mais precisamente de uma abordagem circulacionista. Foi exatamente sobre esses termos que ocorreu o debate entre Claudio KatzKATZ, C. La teoría de la dependencia: cincuenta años después. San Telmo/Buenos Aires: Batalla de Ideas, 2018. e Jaime OsorioOSORIO, J. Teoría marxista de la dependencia: historia, fundamentos, debates y contribuciones. Los Polvorines: Universidad Nacional General Sarmiento, 2016., em 2017: o fundamento da dependência consiste na superexploração da força de trabalho, tal como entendia Ruy Mauro Marini, ou o fundamento da dependência é o intercâmbio desigual?

A crise do capitalismo mundial e a ascensão da extrema-direita repõem a questão do fascismo e do autoritarismo, cuja temática os autores da TMD trataram em diversos momentos. Também colocam a problemática dos Estados nacionais e estes, da questão da atualidade ou não do subimperialismo, bem como do problema da dívida pública. Recolocam, ainda, a problemática da dominação ideológica. Por sua vez, a grave crise ambiental com a mudança climática impõe elementos de primeira ordem: o problema da renda da terra, passando pela ofensiva dos capitais nacional e internacional sobre a natureza, chegando à questão dos povos originários que, por toda a América Latina, vão se impondo como uma das pontas de lança na luta de classes no século XXI.

Outro aspecto relevante, ainda que menos elaborado, diz respeito à trajetória da taxa de mais-valor, da taxa de lucro, e como a lei tendencial de sua queda opera no âmbito do capitalismo dependente da América Latina.

O Serviço Social e a tradição marxista: aproximações à Teoria Marxista da Dependência

Desde que rompeu com suas bases conservadoras e passou a incorporar componentes da tradição marxista como substrato de análise para a compreensão de si mesmo como profissão e de sua relação com a sociedade, o Serviço Social brasileiro vem amadurecendo seu posicionamento crítico quanto à gênese, ao desenvolvimento e à manutenção das condições estruturais do modo de produção capitalista responsável por desigualdades, pobreza e todo o conjunto de opressões que marcam esse sistema.

Em fins da década de 1970 e início dos anos 1980, um grupo de pesquisadores latino-americanos foi convidado pelo Centro Latino-Americano de Trabalho Social (CELATS) a investigar a história do trabalho social na América Latina. Competiu a Marilda Villela Iamamoto e a Raul de CarvalhoIAMAMOTO, M.; CARVALHO, R. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1982. se deterem sobre a realidade brasileira. Mais que “narrar a história”, esses autores se valem das ferramentas da crítica marxista para compreender aspectos significativos da relação entre Estado burguês, empresariado e Igreja Católica no grande pacto do pseudoenfrentamento às refrações da questão social que penalizavam as populações latino-americanas.

Iamamoto e Carvalho procederam a uma rigorosa análise da sociedade brasileira no período de 1930 a 1960, e explicitaram os determinantes que tornam esse período decisivo para a estruturação de um tipo peculiar de Estado que transita entre democracia e autocracia, valendo-se, sobretudo, das políticas sociais como meio para garantir coesão social. Ao narrar a gênese e o desenvolvimento dessa profissão em particular, os autores se viram compelidos a desvendar as relações que o Estado brasileiro estabeleceu com a chamada “sociedade civil” pela intermediação das políticas sociais. Nesse processo, atores singulares, como o empresariado e a Igreja, misturam-se na trama, demonstrando que a regulação do trabalho se reflete diretamente nas condições de vida da população e, como tal, se manipulam recursos de poder. Não apenas poder político, mas também econômico, cultural e ideológico. A categoria marxiana reprodução social é compulsada com rigor pelos autores e Iamamoto inaugura a análise que nos demonstraria o “lugar” que o Serviço Social, em tese, ocuparia na complexa trama produção - reprodução social.

Nesse sentido, demonstram que ao mesmo tempo que a sociedade se organiza para produzir tudo que lhe é útil à vida, também se autorreproduz, o que faz com que as relações entre as pessoas e entre as classes sociais personifiquem determinadas categorias econômicas. Demonstram que no período de 1930 a 1960 as classes sociais que se constituíram no Brasil sofreram a influência do débil processo de industrialização centrado no eixo Sul/Sudeste, aumentando a concentração da riqueza e possibilitando, ao mesmo tempo, a emergência de organizações de trabalhadores nos centros urbanos. É nesse processo que se verifica a necessidade de um reordenamento na divisão social e na técnica do trabalho coletivo, e profissões como a das/os assistentes sociais são requisitadas.

Essa matriz de análise para o Serviço Social se fez acompanhar de outras análises que foram aos poucos construindo o lugar do Serviço Social na sociedade em um duplo vértice: a) de um lado, a produção científico-acadêmica se notabilizava pela qualidade de suas elaborações e o Serviço Social brasileiro conquistava espaço no difícil campo da construção de conhecimento; b) de outro, a categoria profissional avançava na compreensão de seu lugar na divisão social e técnica do trabalho como uma especialização do trabalho coletivo, eivada das contradições elementares da sociedade burguesa e da ordem do capital, o que lhe permitiu condições para a construção de um projeto ético-político-profissional comprometido com a superação da ordem do capital.

Contudo, é imprescindível considerar que essa matriz de análise que se faz acompanhar de outras igualmente notáveis, como a análise de Netto (1992NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992.) sobre a condição sincrética em que o Serviço Social se erige sob os auspícios do capitalismo monopolista, é resultado de uma fase madura da profissão. Antes, temos o registro de que a aproximação do Serviço Social à tradição marxista se deu na esteira do militantismo que marcou a intenção de ruptura da área com seu conservadorismo originário, e propiciou uma efervescência no debate e na produção cientifica marcados, sobretudo, pelo ecletismo. Esse processo possibilitou alavancar um movimento latino-americano de contestação que reiterava compromissos com a “luta dos oprimidos” pela transformação social:

De base teórica e metodológica eclética, esse movimento foi inicialmente polarizado pelas teorias desenvolvimentistas. Seus desdobramentos, especialmente a partir de 1971, condensam as primeiras aproximações do Serviço Social à rica e diversificada tradição marxista, haurida em manuais de divulgação do marxismo-leninismo, na vulgata soviética, em textos maoistas, no estruturalismo francês de Althusser e nas elaborações relativas à “teoria da dependência” (Iamamoto, 2018IAMAMOTO, M. Marxismo e Serviço Social: uma aproximação. Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 18, n. 2, p. 204-226, ago./dez. 2018., p. 213-214).

Sendo assim, o ecletismo marca a primeira fase dessa aproximação, e em que pese a motivação reiterada das perspectivas desenvolvimentistas na elaboração teórica e nos “manuais” da prática profissional, a TMD não foi incorporada como substrato teórico relevante, embora não fosse “desconhecida” das vanguardas profissionais da época.

Com o passar do tempo e a chegada da maturidade intelectual que mencionamos antes, o Serviço Social busca superar a aproximação enviesada que fez ao marxismo corroborado principalmente pela “abertura” democrática dos anos 1980/90 no Brasil, ao mesmo tempo que se posicionava com veemência contra os ajustes neoliberais que emergiam amparados por contrarreformas estatais no mundo capitalista.

Nesse sentido, a leitura atenta do léxico marxiano permitiu ao Serviço Social resgatar a centralidade do trabalho como categoria fundante do ser social e, a partir daí, reposicionar-se com um projeto profissional ético e político comprometido com os interesses da classe trabalhadora. Mas é somente nos primeiros anos do século XXI que a TMD é problematizada pelo Serviço Social como corrente teórica relevante na tradição marxista e incorporada à produção corrente das vanguardas profissionais. A motivação, como não poderia ser de outra forma, foi a reposição sob novas bases do debate sobre o desenvolvimentismo impulsionado pelas políticas, sobretudo anticíclicas, praticadas pelo governo federal petista iniciado em 2003.

Ao se autodenominar “neodesenvolvimentista”, o governo foi alvo de críticas e impulsionou a revitalização do debate sobre a dependência. Em 2012, o XIII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (Enpess) teve como tema Serviço Social, acumulação capitalista e lutas sociais: o desenvolvimento em questão. No mesmo ano, o número 112 desta revista trouxe em seu olho de capa a temática (Neo)Desenvolvimentismo e política social. A publicação em livro da tese de Paula (2016PAULA, R. F. dos S. Estado capitalista e Serviço Social: o (neo)desenvolvimentismo em questão. Campinas: Papel Social, 2016.) expunha os limites do chamado neodesenvolvimentismo e esclarecia se tratar, na verdade, de um padrão peculiar de neoliberalismo nominado pelo autor de neoliberalismo à brasileira. Esses são apenas alguns exemplos que atestam a necessidade inadiável de aprofundamento de uma agenda de pesquisas acerca do universo categorial da TMD, que sirva tanto à construção do conhecimento quanto às investiduras das práticas políticas que visem à emancipação humana.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2023
  • Aceito
    20 Out 2023
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